domingo, 25 de setembro de 2011

ALENCAR E SILVA (1930-2011)








Os Sonetos Reunidos de Alencar e Silva, uma simples apresentação


POR


Jorge Tufic*


Escrever sobre o poeta Alencar e Silva, sobretudo quando o tema recai nos sonetos reunidos neste volume, somatório de uma vida inteira dedicada à poesia, antes de ser uma tarefa que nos empolga, é um dever que nos desarma diante de tantas facetas de sua vida e de seus múltiplos recursos de escritor preocupado em fixar pormenores da história cultural da geração madrugada, de cujos primórdios datam as primeiras estrofes de sua pena versátil.

Ainda jovem, em Manaus, escrevia e publicava sonetos, poemas, artigos e crônicas nos matutinos e vespertinos de maior circulação, inclusive na revista de Anísio Mello, “Amazonas Ilustrado”, de 1952, ano que marca sua estréia na poesia, com o livro Painéis. Em 1951 participou de uma caravana de poetas que demandara o sul, sudeste e extremo-sul do País, com paradas obrigatórias no Rio de Janeiro e São Paulo, estando esse grupo constituído pelos seus amigos de então e de sempre Farias de Carvalho, Antísthenes Pinto e Jorge Tufic. Numa segunda viagem dessa caravana, passaria a integrá-la o inesquecível Guimarães de Paula. Segundo historiadores, estas duas incursões dos “caravaneiros”, também chamados de “monges”, se inscrevem nos antecedentes do movimento madrugada, surgido em 1954, ou seja, um ano após seu retorno definitivo a Manaus, em cuja praça do Pina deu-se o encontro da geração que tomaria seu nome: a “geração madrugada”.

Um raro depoimento sobre Alencar e Silva é de Arimathéa Cavalcante, completamente avesso a qualquer manifestação desse tipo. Segundo esse mestre, também poeta e dos bons, “ALENCAR E SILVA é um Midas admirável. Moderno. Tem o Dom mágico de transformar, não no ouro que não tem importância para ele, mas em poesia tudo aquilo que toca. Respira poesia, e é dela que o mundo de hoje mais precisa, porque sendo mescla de prazer e dor, é sobretudo natureza, amor, vida, é Deus que vem para dar um novo alento ao mundo em rotação.” (Território Noturno, Coleção Madrugada, 2003). Para Max Carphentier, no prefácio de Noturno Após o Mar, livro de crônicas e poemas em prosa, “Alencar e Silva pertence a essa corporação restrita de reveladores-salvadores do divino-humano, dos que, esperançosamente sós, se fortaleceram e se consumaram, e se aceitaram majestosamente tristes, sabiamente sombrios, numa estratégia apostolar milimetrada, para poderem preparar, a partir mesmo do cerco das sombras, a hora da alegria.”

Acha-se também, e com justiça, incluído na antologia de André Seffrin, Roteiro da Poesia Brasileira – Anos 50, Global Editora, SP, 2007, sob a direção de Edla van Steen –, parte de uma série que trata das raízes até o ano 2000, um instrumento auxiliar e da maior valia para o estudo das fases e dos processos criativos de nossa literatura. “Os anos 50 foram dos períodos mais férteis da poesia brasileira do século XX.” Tempo de grandes aventuras formais, suplementos literários, debates, performances. Fazendo coro às mudanças e inovações, Alencar e Silva foi um dos teóricos da “poesia de muro”, apoiada pelo Clube da Madrugada, e outras correntes estéticas que fizeram história.

Poesia Reunida é de 1987, com três livros, apenas, de sua laboriosa oficina, editados entre 1965 e 1986. Apresentando-a, discursa o poeta e cronista L. Ruas, de saudosa memória: “Gostaríamos apenas de dizer que Alencar e Silva comprova, na edição desta obra conjunta, que permanece fiel a si mesmo, o que equivale dizer que permanece fiel à sua singular vocação poética”. E Elson Farias, no prefácio à primeira edição de Lunamarga, não deixa por menos: “O livro que temos em mãos, além do timbre pessoal característico da expressão autêntica, traz as melhores qualidades da atual poética brasileira: profundidade mítica, angústia, a palavra existindo livre dos luxos supérfluos e do comum, dolorosamente sofrida e recriada no espaço vital do seu mundo.” A fortuna crítica tonteia pelas celebridades: José Alcides Pinto, Ramayana de Chevalier, Arthur Engrácio, Antísthenes Pinto, Genesino Braga, Guimarãs de Paula, Anísio Mello...

Na qualidade de homem público e braço de Governo, sobressai-se como Diretor-Presidente da Imprensa Oficial do Estado, fazendo editar o Suplemento Literário Amazonas, que circula de novembro de 1986 a outubro de 1988. Nada disso por conta do Estado, senão através de um acordo feito junto aos assinantes do Diário Oficial, com alguns centavos a mais nas respectivas assinaturas. Foram, na verdade, vinte e quatro edições e uma distribuição nunca vista antes por toda a América do Sul. Além disso, pagavam-se as colaborações selecionadas pela Comissão Editorial e a ninguém, que eu saiba, negara-se acolhida em suas páginas abertas, quer para todos os amazonenses, quer para escritores de outros Estados brasileiros. Por falta de maiores aproximações ou tempo para isso, valeu-se o Diretor-Presidente daqueles companheiros do Clube da Madrugada que aparecem no expediente, sem, contudo, discriminar ou cercar a iniciativa de normas ou preconceitos temáticos ou linguísticos, muito menos grupais ou pessoais. Em tão pouco tempo à frente do órgão, nem por isso deixara, também, de apor o seu visto favorável à publicação de obras importantes da literatura amazônica.

Assis Brasil, no volume “A Poesia Amazonense no Século XX”, relembra que Astrid Cabral haveria de destacar o veio romântico e “o equilíbrio clássico” da poesia de Alencar e Silva, toda vazada em “dicção despojada e serena”. Enfim, “amazonense e brasileiro por circunstâncias biográficas, podendo aplicar-se a Alencar e Silva a verdade pessoana: sua pátria é a língua portuguesa”. E vai mais longe na pesquisa a que sabe imprimir o calor da descoberta: “Escrevendo desde adolescente, entre poemas e primeiros livros publicados, ativa colaboração nos jornais de Manaus, “A Tarde”, de Aristóphano Antony, e “A Crítica”, de Umberto Calderaro Filho. O jornalismo literário foi feito em “O Jornal”, onde o Clube da Madrugada mantinha um importante suplemento e no “Jornal-Cultura”, da Fundação Cultural do Amazonas, de que foi secretário e editor”. Digressões necessárias, já que o nosso Alencar é, antes do mais ou do menos, poeta. Um poeta universal desde que nascera, e mais que universal, cósmico, já que até mesmo o ponto geográfico de seu nascimento, em Fonte Boa-AM, as enchentes cíclicas arrastaram para o oceano atlântico.

Mas foi o professor e crítico Arimathéa Cavalcanti o autor que melhor estudara o poeta no livro citado linhas atrás, estudo que, pela extensão e planejamento, tem-nos encaminhado para uma compreensão global de sua obra poética. Deste modo, esclarece: “Pude agora ultimar a análise, sem caráter definitivo, mas de modesta contribuição, na certeza de uma verdade insofismável: a obra enriquece espiritualmente a quem quer que a folheie. Pois o livro Território Noturno, de Alencar e Silva, propõe amplas reflexões, eis que abrange aquelas regiões oníricas onde nem sempre mergulham escafandristas neófitos, na tentativa de desvendar-lhe quando não o hermetismo, pelo menos a aura de enigma criada pelos símbolos, ajudados do próprio autor, em comparações e confrontos textuais”. Ressalta o lírico, percebe vagamente a presença de um neomisticismo em algumas de suas escritas, dando-nos, afinal, uma investigação crítica dificilmente encontrada em monografias da espécie.

Poeta maior, escritor extensivo aos mais difíceis gêneros literários, memorialista que faz a história de sua geração e do Clube da Madrugada, Alencar e Silva conta com os seguintes livros publicados, entre prosa e poesia: Painéis, poesia, 1952; Lunamarga, poesia, 1965; Território Noturno, poesia, 1982; Sob Vésper, poesia, 1986; Poesia Reunida, 1987; Noturno Após o Mar (crônicas e poemas em prosa), 1988; Sob o Sol de Deus, poesia, 1992; Ouro, Incenso e Mirra (poema em cinco segmentos e cinquenta sonetos), l994; Solo do Outono, poesia, 2000; Jorge Tufic: As Tendas do Caminho, ensaio, 2004; Crepuscularium, poesia, 2006. A sair, tem o Autor os seguintes títulos: Prosa Vária, ensaios, e Poetas e Figuras na Paisagem, ensaios. Entretanto, como um de seus velhos companheiros, sou testemunha das inumeráveis ocasiões em que a Musa lhe dera aquele sopro extra para compor sonetos e poemas, satíricos ou não, com o único objetivo de exercitar as falanges, expor deformidades ou tirar-nos de certos apertos em nossos caminhos pelo mundo. Um fato no mínimo grandioso, ocorrido em São Paulo (1951), ao ensejo da visita que fazíamos à sede da Prudência e Capitalização, na tentativa de obtermos apoio às nossas viagens de Caravaneiros da Cultura, foi Ramayana de Chevalier, secretário particular de Adalberto Vale, Superintendente da empresa seguradora, quem nos sugeriu a idéia de formularmos o pedido que tínhamos a fazer, através de um soneto. Sem demora, Alencar e Silva tomou a si o desafio, redigiu, com a maior tranquilidade, os quatorze versos solicitados, e, assim, com este “passaporte”, oficializamos palestras e contatos em Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre.

A obra de que estamos nos ocupando reúne todos ou quase todos os sonetos do autor, recolhidos das páginas de oito títulos, com mais alguns avulsos, sem falar nos improvisos e nas circunstâncias poéticas ou de foro íntimo. Sem falar, também, nos rejeitos que vamos deixando nas cestas do lixo, nem sempre merecedores desse trágico destino. Egresso do rigor parnasiano, do neossimbolismo e dos versos livres que trazíamos conosco do sul do País, a estrutura do soneto alencarino é simples, funcional e profundamente sugestiva, quando retarda ou deixa ao leitor a fruição da beleza e da verdade. “Quero enxuto o meu verso e muito simples”, em O Soneto no Amazonas (pag. 22), eu destaco esse verso de um soneto de Lunamarga como exemplo de “linhas calmas e transparentes, despojado de lugares-comuns e dos artifícios postos em prática, na ânsia de inovação, por certos autores da corrente futurista.”

Já é hora, contudo, de entregar ao leitor este livro do poeta, representativo, como se verá, de uma de suas paixões literárias, talvez a maior, que é a arte do soneto. Mas Alencar e Silva é poeta em qualquer situação, gênero ou categoria. Um belíssimo poema ele carrega, também, no afeto e na convivência humana, de que nunca, jamais, enquanto vivermos, podemos nos esquecer.

(*) Apresentação do livro Sonetos Reunidos, de Alencar e Silva, a sair.





SONETO DE EVOCAÇÃO

Alencar e Silva

Que me fez evocar tua face ausente
e teus olhos e encantos já mudados
e cantar este canto em que ressurges
esculpida em martírio e solidão?
Foi a flor que colhi sem cheiro algum?
O som que me chegou anoitecendo?
A lua que lembrando uma outra Ofélia
me fez buscar tua face de afogada?
Pobre amada, o mistério se desvenda
e se faz claro como o fio de prantos
que abre rios de luas em teu rosto:
esta canção nasceu de tua presença
de fonte dolorosa e ave ferida
que canta enquanto mais lhe punge a vida.

(Território noturno)



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Poética I

Alencar e Silva



Não o poema-verso simplesmente,
mas o poema-coisa, sim: substância
inefável, sim: coisa que funcione
como relógio e o que ele preconiza.

Assim, sem asco aceito-o integral
como uma pedra ou coisa-viva incômoda
que fere e entanto dá-se em forma e gosto
à natureza que a urdiu. Poema:

eia! deserto povoado. Fruto
onde a fome espreitava a presa. Chuva
onde a sede lavrava seu incêndio.

Incessante doar-se em ponte e veículo
ao evento da coisa – corpo vivo
intato sobre as águas do poema.


Tríptico do espanto



Alencar e Silva



I


Tudo traz sob a pele a sua morte:
a rosa e o sonho dançam sobre o abismo
as formas de uma só fatalidade
trabalhada em equívocos. Sereno,
contudo, é o meu semblante: este e o mesmo
que passeio entre as gentes. A amargura
é disposta em murais pelas paredes
do eu profundo – e me espia. Duro é vê-la
contemplando os meus gestos: de seus olhos
flui um rio de sono, um rio sem barcos,
onde bóia meu rosto repartido
em cartazes de espanto... Chove cinzas
sobre as asas de uma ave: e o canto, ausente,
talvez mudo se cumpra eternamente.



II


Amargar o teu peso e nunca mais
o sorriso que vem de não saber-te,
de ignorar teu mistério, de sentir-te
no que apenas supomos e não és.
Ah! o riso não cabe – e é vão o gesto
para colher o sonho decepado:
a mão ergue-se fria contra o vácuo
onde as sombras tropeçam seus enganos.
Nunca mais – e nos olhos e nas mãos
uma calma de angústias concentradas
ante barcos inúteis que se vão
sobre as águas do Letes... Resta apenas
a invenção de outros mitos: como um fruto
que um dia secará sobre um chão bruto.



III


Um rio corre surdo sob as horas
com seu lastro de cinzas e agonias.
Pesa-lhe sobre o curso um astro doido
que governa suicídios e naufrágios.
Uma lua também, por noite funda,
pende a face amarela sobre as águas
onde boiam pesados de silêncio
restos do que já foi – coisas que dormem
ou só derivam na corrente muda
seus corpos, ora belos, ora corpos
de mágoa e medo – sombras penduradas
em vértices de espantos... Nada conta
nesse rio que rola irreversível
carregado de sonho e de impossível.




Soneto de espera ou o 1º da morte


Alencar e Silva


De espera e espera sofro-te em meu canto,
em meu verso e nas coisas que te anseiam.
E mais sofrera se te não sonhara
nem crera em tua vinda, anjo noturno
que virás sobre o mar – pássaro, estrela
ou rosa a se elevar na noite pura –
sem outro anúncio a preceder-te, além
do teu hálito fresco sobre o vale
e esta certeza para além do sonho
de que teus olhos de mistério e flamas
descerão de repente em minha espera
e me destruirás para salvar-me:
que os noturnos jardins florescerão
e nos ventos da noite fugiremos.



Cantar de andarilho



Alencar e Silva

Não tenho pátria
determinada
nem tenho pressa
nesta jornada:

só esta sede
que têm meus olhos
de ver e ver

e este incontido
impulso de asas
sobre meus pés.

Minhas sandálias
cobrindo o mundo
que descobriram
pé ante pé,
minhas sandálias
vão-se ficando
pelos caminhos
de minha fé.

Arde em meu rosto
o sol de todos
os continentes.

Todos os ventos
já visitaram
minhas narinas.
Todas as águas
já circularam
dentro de mim.

Em minha fala
todas as falas
se misturaram.

E nos meus olhos
os céus mais vários
se despejaram.

Não tenho pátria
determinada
nem tenho pressa
nesta jornada:

só esta sede
que têm meus olhos
de ver e ver

e este incontido
impulso de asas
sobre meus pés.



Desce a noite no vale e as sombras cantam



Alencar e Silva

Desce a noite no vale e as sombras cantam
trescalantes canções de fim de dia.
Nada pode igualar-se à nostalgia
das luzes mortas que ainda se levantam
e andam na noite e à própria noite encantam
com marcados compassos de agonia,
enquanto a brisa vai ficando fria
e as sombras soltas pela noite cantam.
Fez-se noite no vale e agora é a hora
de recolher ao ninho o coração
entre as notas longínquas da canção
que em doces vozes o embalara outrora.

Vão-se os últimos pássaros do outono.
Fecha-se a noite. E já me apaga o sono.


Sob Vésper



Alencar e Silva

Antes que o grande vendaval me afaste
do teu corpo de pássaros e rosas,
deixa que eu cante uma canção sonâmbula
sob as luas ciganas de teus olhos.
Antes que o grande vendaval me arraste,
deixa-me ter-te como um lírio aberto
na hora crepuscular da tarde ardente
numa varanda toda de jasmins.
Antes que o grande vendaval quebre a haste
das rosas últimas e só espinhos
cerquem-me a fronte - deixa que me mirem
teus olhos, como sempre me miraste.
E eu canto, amor, uma canção de outono
para inundar de pássaros teu sono.



--- Poemas encontrados no Blog O fingidor


SONETO DE SETEMBRO


Eis que volve setembro e traz nos ombros
as clâmides azuis da primavera.
Vem como vinha e como virá sempre:
ressuscitando o verde pelas tardes.
Eis que volve setembro e novamente
o azul amplia o céu e o mar profundo
enquanto o amor retece uma coroa
de flores para a fronte constelada.
Eis que volve setembro e são quarenta
e sete vezes que ele a mim retorna,
e suas asas e seu hausto suave
ainda me aquecem neste claro agora.
Eis que volve setembro. A tarde larga
é ainda a mesma, só que um tanto amarga.


Prefácio de L.Ruas ao livro LUNAMARGA:

Lunamarga é um livro de maturidade, ou melhor, de maturação. Alencar e Silva é um homem voltado para as grandes realidades interiores. É um reflexivo por natureza. É um meditativo. Até o seu modo de falar nos diz isso claramente. Não é um extrovertido. Um
palrador.

Fala como se estivesse sussurrando, confessando um segredo. Há sempre um silêncio envolvendo cada palavra que ele profere. O silêncio é o seu "habitat". Ninguém pode deixar de comungar com a realidade. Mas isto pode ser feito de duas maneiras.

Há indivíduos que, por assim dizer, se deixam devorar pela realidade externa. Outros, ao contrário, se transformam em receptáculos e absorvem, na sua interioridade, o mundo exterior. Alencar e Silva é assim. A realidade, para ele, é apenas pretexto para manifestar seu universo interior. Não se transforma na paisagem. A paisagem se transforma nele. (...)

O homem mergulhado no seu próprio mistério, que é vida e morte, angústia e canto, inconsistência e rosa, não para explicá-lo, mas para vivê-lo ou sofrê-lo que é a mesma coisa. O homem diante de seu mistério, conscientemente diante dele, poeticamente diante dele, maravilhadamente diante dele:

o meu rosto se move horrorizado
sem se encontrar em qualquer dos espelhos.


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Noturno do eu profundo


Adrino Aragão



Talvez o título lembre o poeta Fernando Pessoa. Não seria pra menos, acho que, de algum modo, somos todos descendentes do vate lusitano. Mas, no caso do presente artigo, o título nasceu mesmo da leitura que fiz de Lunamarga, livro de Alencar e Silva, grande poeta brasileiríssimo, lamentavelmente ainda longe dos holofotes da mídia. Como disse Mário de Andrade: “os brasileiros não conhecem o Brasil”. Parafraseando o mestre, diríamos: o Brasil não conhece os seus poetas. Espalhados por estes brasis, esses poetas tecem e enriquecem, anonimamente, o que se faz de melhor na poesia brasileira.

De fato, existe algo de eternidade na poesia de Alencar e Silva, que, por vezes, nos faz pensar no genial Fernando Pessoa. Não que isto comprometa a sua obra poética. Ao contrário, eleva-a, enriquece-a. E por uma razão: Alencar e Silva tem personalidade de poeta maduro, advinda de leituras constantes, sérias, profundas, conscientes, de grandes poetas, como Pessoa, Drummond, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Cruz e Sousa.

O livro, publicado em 1965, foi reeditado ao término de 2005, numa feliz iniciativa da Editora Valer. O tempo, entretanto, em nada envelheceu o discurso poético do poeta. A começar do título Lunamarga, de forte simbolismo, já anuncia um universo de denso conteúdo existencial. O mundo real se configura no texto sob o aspecto noturno da subjetividade. “Tudo traz sob a pele a sua morte:/ a rosa e o sonho dançam sobre o abismo/ as formas de uma só fatalidade/ trabalhada em equívocos. Sereno,/ contudo, é o meu semblante: este e o mesmo/ que passeio entre as gentes. A amargura/ é disposta em murais pelas paredes/ do eu profundo – e me espia.”

O poema “Tríptico do espanto”, do qual extraímos os versos acima, como que funda os rumos que a obra poética de Alencar e Silva haveria de seguir em livros posteriores.

Ler Alencar e Silva é um deslumbramento para a inteligência e para a emoção do leitor. Mas o poeta não se entrega fácil. É preciso descobri-lo por trás “dos frágeis cristais embaçados” e captar-lhe a imagem em cada filigrana do poema. E isto exige atenção, sensibilidade e saber. Não o saber que exibe erudição. Mas, principalmente, o saber do pensar. Do refletir. Senão, será perder-se pelos caminhos de um rio profundo que ora corre sereno ora corre veloz. Como o poeta confessa: “Neste barco passageiro/ maldisposto a viajar/ eu me invento rotas novas/ rotas de nunca chegar”.

Mas há momentos de absoluta, ou quase, transparência dos cristais: “Não sei, só sei que eu entrei/ em muitas casas de livros/ como quem vai para o cais...”. É quando os elementos do poema surgem luminosos, fulgurantes: o rio, a lua, a noite, o sonho, a solidão, a morte... – todos envolvidos na pele do tempo, que é medida, corte corrosivo a expor a finitude de tudo. Só a poesia é perene. E através do poema o poeta pode sobreviver.

Essa certeza se me anuncia com a leitura atenta e emocionada de Lunamarga. Tomo de empréstimo os versos do poeta. E canto: “não tenho pátria/ determinada/ nem tenho pressa/ nesta jornada”. 



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quarta-feira, 21 de setembro de 2011

HUMBERTO DE CAMPOS - MEMÓRIAS 2




MASSENA


ENTRE as raras lembranças amáveis da minha meninice está a nossa estação anual no Massena, fazenda de meu pai, a algumas léguas de Miritiba. Em frente à casa de barro tosco, alta e grande, estende-se a várzea, limitada à direita por uma orla extensa de coqueiros novos e baixos, que acompanha o curso de um riacho marulhante. Antes do riacho, entre ele e a casa, e a uns cinquenta metros desta, levanta-se o curral sólido, de troncos superpostos, em cujos mourões os gaviões e caracarás vêm pousar ao meio-dia, em busca de pintos ou de cordeirinhos recém-nascidos, cujos olhos arrancam. Avida, aí, para mim, é, durante o dia, um deslumbramento e uma festa. Penetro no mato, sozinho, em busca dos ninhos de rola, ou dos urubus implumes, que me causam enorme espanto quando vejo que eles, como os filhos das pretas que moram na casa do patrão, também nascem brancos... Ao anoitecer, porém, quando a escuridão começa a descer sobre a várzea e os olhos perdem os contornos do horizonte, o coração se me enche de um pavor surdo e pressago. É que vem da mata, ao longe, o ronco engasgado das guaribas, as quais, pela voz que emitem na solidão, me dão a ideia de animais temíveis e fabulosos.


Nessas viagens para a fazenda, eu não vejo, entretanto, quase nunca, minha mãe ao meu lado. Quem me aparece, acompanhando-me maternalmente, é a velha Miquelina, preta africana que criara meu pai e que o não abandonara mesmo depois de alforriada por ele. Eu vou para o Massena de véspera, com ela. Quando a família chega, eu já estou coçando desespe¬radamente os pés e os joelhos com os bichos, as terríveis pulgas de pé, que me assaltam. Avó Miquelina extrai, porém, o famigerado inseto penetrante com um espinho do mato, especialmente o de mandacaru, e enche o orifício com o barro do seu cachimbo. E eu fico bom.


Certa vez eu cheguei ao Massena com febre. Paludismo, com acessos quase diários. Avó Miquelina tomou à sua conta o meu tratamento: clister de água de pimenta com outros ingredientes, aplicado com auxílio de um papo de galinha, a que adaptara um canudo do talo de mamona. Feita a aplicação do remédio, eu corria para o mato, como um doido. Elá, quieto, vermelho de dor e do esforço, ao procurar o céu azul através dos rasgos da folhagem, ficava a olhar com inveja os passarinhos pipilantes, que não conheciam, na sua vida inocente, aqueles recursos da medicina caseira...


A mezinha bárbara não deu, porém, ao que parece, o resultado previsto. Ocerto é que, uma tarde, avó Miquelina me tomou pela mão, atravessou o riacho, e me conduziu mata a dentro. Caminhamos, os dois, não sei quanto tempo. Começava a escurecer, quando paramos. Avelha africana reuniu, em torno, alguns galhos secos, fez fogo, e, ajoelhada, pôs-se a rezar, resmungando, e fazendo-me pronunciar, com ela, palavras que eu não entendia. Em seguida, fez-me passar três vezes por cima da pequena fogueira fumegante, repetindo sempre aquilo que ela me ia ensinando. Feito isso, desandamos a correr pelo caminho por onde tínhamos vindo, levando eu a recomendação que o Anjo fizera, na Bíblia, a mulher de Lot: não olhar para trás. Ao atingirmos a várzea, perguntei à avó Miquelina o que significava tudo aquilo.
– É pro menino ficar bom depressa... Agora menino não tem mais sezão...
Emais explicitamente:
– Nós fomos amarrar a febre no mato...
Foi aí, no Massena, que eu vi a festa mais bonita a que tenho assistido neste mundo. Meu pai era, como já tive ocasião de dizer em outro capítulo, um espírito claro, limpo, e alegre, palmeira elegante e erecta em que se não enroscavam, na floresta de árvores retorcidas em que vivia, as heras das superstições. Ele só admitia a religião, como culto exterior, quando ela dava oportunidade a um folguedo profano. Efoi uma festa dessa ordem, uma festa mais pagã do que católica, espécie de homenagem à Ceres dos antigos romanos, que ele promoveu na fazenda, com a cumplicidade não sei de que santo.
Na sala principal da casa, ao centro, foi armado um grande arco, tecido de folhas de coqueiro, frescas e cheirosas. Nesse arco foram pendurados toda a sorte de frutos da terra, que o transformaram em Arco da Abundância: cachos e pencas de bananas maduras, ananases, espigas de milho verde, laranjas e tangerinas, raízes de macaxeira, cocos, cestos de manga, araticuns, frutas de conde, bacuris, cachos de juçara, e outros deli¬ciosos pomos selvagens. O solo, coberto de folhas de mangueira, perfuma o ambiente, carregado, já, do cheiro agreste dos frutos. Violas e harmônicas choram fora, no terreiro iluminado a querosene ou óleo de mamona. Deslumbramento, encanto da minha imaginação.
Após o ato religioso, constante de uma ladainha ou oração equiva¬lente, rezada no pequenino altar improvisado ao fundo da sala, começa o leilão dos donativos pendurados no arco. Eeste é pretexto para a explosão da índole maliciosa da nossa gente do interior, pronta, sempre, a empregar as palavras de duplo sentido, principalmente quando um destes tem fundo francamente rabelaiseano.
– Quanto me dão pela penca de bananas que está no meio do arco?... É a penca do meio... Quanto me dão pela penca do meio ?... – grita o leiloeiro, meu tio Lídio, Anacreonte louro, barbado como Carlos Magno, e que viria morrer aos noventa anos, alegre e livre como um florentino da Renascença.
Ou, então, fazendo rir, alto, a assistência aglomerada em torno, e composta de vaqueiros, de roceiros, de pequenos fazendeiros da vizinhan¬ça:
– Quanto me dão pelo cacho de bacuri?... É o cacho que está do lado esquerdo... Quanto me dão pelo cacho?...
Terminado o leilão, cujo produto reverte, invariavelmente, em pro¬veito da igreja mais próxima, ou de alguma obra de caridade, as violas e harmônicas entram, debaixo de palmas, para começo das danças.
Episa-se folha de mangueira, até de manhã.


IX

MACACOEIRA

OUTRA recordação amável, em que me aparece a imagem viva do meu pai, é a estação que fizemos em Macacoeira, nome bizarro que ficou, para sempre, ressoando na minha memória. A vida que aí levamos caracteriza, aliás, o seu espírito jovial e boêmio.
Macacoeira é uma ilha de que jamais encontrei menção na geografia maranhense. Lembro-me, entretanto, que era batida pelas ondas do mar alto, e que para lá fomos, a família toda, em um grande barco a vela. Não sei como foi a viagem ou o tempo consumido na travessia. Sei que, um dia, acordei lá. Aos cinco anos a vida é um sonho bom e largo, de que só nos fica a suave lembrança que ordinariamente nos deixam os sonhos.
A escolha de meu pai, que pretendia comprar a fazenda ali existen¬te, não podia ser mais extravagante nem, também, mais de acordo com o seu temperamento. Quando lá chegamos, as únicas benfeitorias existentes eram o curral e, em frente a este, um albergue de palha mas inteiramente aberto em redor. Em poucas horas, porém, os canoeiros o cercaram de pindoba, dividindo-o em três compartimentos: dois quartos de dormir e uma sala de jantar. Diante desta erguia-se um grande cajueiro marchetado de frutos, a cuja sombra se improvisou a cozinha. Duas rústicas trempes de pedra serviam de fogão, em que ferviam ao ar livre grandes panelas de peixe. Alouça era arrumada nos troncos das árvores. Eao menor balanço do vento marítimo os cajus despencavam dos ramos altos, sucedendo, às vezes, caírem diretamente nas panelas, como se a natureza tivesse prazer em nos dar, a nós, seus hóspedes, sem trabalho nosso, tudo que possuía.

Tinham ido conosco, a fim de alegrar ainda mais a vilegiatura, diver¬sas moças e meninas, para as quais tudo aquilo era novidade. Omar, que espumava à nossa vista, e que urrava mais alto do que os novilhos, ofere¬cia-nos peixe saboroso e gratuito; o curral, a poucos passos dele e de nós, dava-nos o leite e a coalhada. Ea mata, em torno, era um cajueiral imenso, em que os cajus eram tantos, e tão miúdos, que se tinha a impressão de que havia baixado sobre as frondes uma grande nuvem de vaga-lumes vermelhos. Tomava-se banho de mar, comia-se peixe apanhado na hora, e bebia-se leite, ainda espumante, na cuia tosca em que era mungido. À tar¬de, cada uma com o seu cesto de palha verde, que elas mesmas teciam, as moças se dispersavam pelo mato, em busca de cajus. Eestes eram tantos, e tão variados no gosto, que algumas, repleto o seu cabaz, o derramavam no chão, por terem encontrado outros mais doces e saborosos. Eo cajuí, o caju-menino, lindo como uma joia rubra ou amarela, e cuja castanha era pequenina como uma unha de criança recém-nascida, o cajuí, ele próprio, parecia contente de ser apanhado por mãos femininas, e de sentir-se mor¬dido por aquelas bocas frescas e jovens, e virgens, quase todas, do caju-veneno, que é o beijo... À noite, misturavam-se o cheiro da maresia e o perfume acre do cajual silvestre. Eos bois, monotonamente, num orgulho de cousa viva, respondiam ao mugido contínuo e cavernoso do mar...


Essa vida sem comodidade era, para meu pai, o maior dos encantos. Ele tinha horror, parece, à vulgaridade e aos exageros do método. Por isso mesmo, os dias passados em Macacoeira foram, talvez, dos mais felizes da sua existência ativa e rápida.
– Eu não conheço nada melhor no mundo – dizia ele à minha mãe, que me repetia às vezes esta sua opinião; – eu não conheço nada melhor no mundo do que um almoço em uma velha casa esburacada, diante do mar, e em que penetre o vento atirando ao prato punhados de areia da praia. Epara despertar mais o apetite, uma galinha de pintos ciscando e fazendo barulho debaixo da mesa.
Macacoeira oferecia-lhe tudo isso. Oconforto era nenhum. Só havia o que a natureza dava. O arroz, o açúcar, a farinha, o café, as provisões, enfim, que havíamos levado, estavam ao ar livre, em torno da casa. E, diante desse espetáculo, da completa desarrumação de tudo, em contraste com a vida ordeira e organizada da nossa casa da vila, meu pai rejuvenes¬cia, sentia-se feliz, e tomado, mesmo, de um contentamento alvoroçado e quase infantil.

Foi aí, por ocasião dessa estação de agoniado repouso, que eu pra¬tiquei uma das minhas peraltices mais remotas e inexplicáveis. Minha mãe havia levado preventivamente para aquele degredo que reteria Ulisses algumas dúzias de ovos, que ficaram acondicionados em um caixão de sal, atrás da casa. Eu descobri essa ninhada prodigiosa e fiz, com ela, o que não faria nenhum ovívoro truculento: quebrei-os, um a um, dentro do caixão, como se este fosse uma frigideira, e atirei fora as cascas. Ao dar com a depredação, minha mãe aplicou-me, naturalmente, a surra merecida. Oprazer de haver feito aquela maldade inconsciente foi, porém, tão intenso, que eu não tenho a menor ideia do castigo. Ficou-me, apenas, a lembrança do estrago.
Em compensação, trouxe de lá um ensinamento que me serviu, du¬rante algum tempo, de preventivo contra a gula. Sendo a nossa despensa ao ar livre, eu vivia sempre a rondar os sacos de bolacha, as latas de açúcar e os paneiros de farinha. Enchia o estômago e corria a beber água. Até que, um dia, um vaqueiro mostrou-me um couro de bode, espichado em umas varas, e contou-me a seguinte história:
– Este bode era um animal de estimação. Mas era doido por farinha d’água. Anteontem, apanhou um paneiro de farinha, e pôs-se a comer. Comeu até não poder mais. Quando acabou, marchou no rumo do riacho, e começou a beber. Aágua misturou-se com a farinha, e a farinha princi¬piou a inchar na barriga do bode... De repente, eu ouvi um estouro para o lado do riacho. Corri para ver, e tive pena. Era o bode que tinha estourado, partindo de cima a baixo o couro do bucho!
Olhei minha barriga esticada de cheia, e desatei num berreiro doido. Tinha comido farinha e bebido água, a manhã toda.
E fiquei apavorado, até à noite, à espera do estouro.

HUMBERTO DE CAMPOS - MEMÓRIAS 1


MEUS ANTEPASSADOS


NADA é mais difícil no Brasil do que estabelecer as origens de uma família burguesa ou supostamente aristocrática, tentando desenhar, na botânica das vaidades, uma árvore genealógica. O que possuímos nesse sentido assenta, exclusivamente, sobre hipóteses. E eu, voltando-me neste momento para o Passado, sem ascendentes que me orientem e elucidem, não me podia sentir em menores dificuldades. Prefiro confessar a ignorância a recorrer à fantasia.
Que espécie de sangue circula e prevalece nas minhas veias? Português? Espanhol? Tupinambá? Ou africano? Os meus antepassados preponderantes vieram depois de Cabral, com as suas velas borboleteando nas ondas, ou já aqui se encontravam, a flecha em punho, o dente aguçado, animados de instintos sanguinários, devorando os seus semelhantes? Combati com a mão deles em Aljubarrota, matei panteras no areal, ou esperei de cócoras, dias inteiros, no refúgio da sumaumeira monstruosa, o tapir ou o índio adversário?

As informações que tenho dão-me direito a vaidades de europeu. Minha avó materna era filha de mãe brasileira e pai português. Pertencia este à família Bruzaca de que usava o nome. Um dos irmãos de minha avó, nascido no Brasil, emigrou para a África, onde fez fortuna artificial e filhos naturais. Ao falecer em 1870 ou vizinhança desse ano, os parentes de Miritiba mandaram à ilha de São Tomé um representante, para assistir ao inventário. Esse emissário voltou trazendo um açucareiro e algumas colheres de prata. Mas a viagem fora, parece, proveitosa a esse procurador, o qual, confirmando o epigrama bocageano, pouco depois do regresso começava a prosperar, construindo uma casa e comprando uma fazenda de gado com alguns sólidos patacões portugueses. Descende, talvez, desse parente remoto e benemérito um poeta africano de nome Bruzaca, que eu encontrava, às vezes, nos meus inícios literários, assinando sonetos, no Almanaque de lembranças, e no Almanaque das senhoras, de Portugal. O mesmo sangue, infiltrado em veias de negros ou de caboclos, ou de portugueses acaboclados pelo ambiente, dava, sob climas diversos, os mesmos frutos de alma e coração. Sob o meu cabelo duro, ou sob a carapinha do meu primo desconhecido, diluía-se ele na névoa dos mesmos sonhos.


Meu avô materno chegou a Miritiba, no Maranhão, vindo de Viana, no norte da Província. Era Oliveira Campos e, pela profissão e nome, devia ser, igualmente, de origem lusitana. Ligava-se, pelo sangue, às principais famílias da região de onde provinha, mas ignoro em que época os seus maiores se fixaram no Brasil. Um dos ramos de que descendia tomou o nome de Conduru, nas campanhas jacobinas pela manutenção da independência nacional, havendo um parente seu que, com esse nome, publicou uma gramática. Professor público, transmitiu os seus honrados e modestos conhecimentos, com o talhe da sua letra, a todos os meninos e meninas da vila em que exerceu o magistério. E a ideia que eu tenho dele, pelas reminiscências de minha mãe, é que era um homem pequeno, miúdo, metódico, manso, e calado. Minha avó, que se chamava Malvina, teve treze filhos, morrendo no parto do último, que, por isso, tomou o nome de Benjamin. Meu avô, de nome Manuel, assumiu o comando da casa e da tribo. Poucos anos depois, porém, sentindo indisposições de estômago, mandou vir do Maranhão um purgativo, em pó. Chegado o remédio, tomou-o. E vinte horas depois morria, deixando nos filhos e na vila a convicção de que fora envenenado por uma troca de medicamentos. Morrera mansamente, como vivera. Deixou na memória da família a recordação que deixam os santos no seu tranquilo trânsito pela terra. Ninguém soube, jamais, se ele sabia queixar-se ou gemer.

Sobre os ascendentes de meu pai, as minhas pesquisas não são mais seguras, embora alcancem um pouco mais longe. No segundo quartel do século passado, chegaram a Pernambuco, procedentes de Portugal, cinco irmãos Veras, os quais, após se terem estabelecido no Recife – onde até há pouco existia o Beco dos Veras, no centro da cidade –, se dispersaram pelo país, como os filhos de Noé depois da confusão em Babel: dois ficaram, parece, em Pernambuco mesmo; um foi para o Rio Grande do Norte; outro fixou residência em Caxias, no Maranhão, onde deixou entre os descendentes o dramaturgo Colaço Veras; e outro foi ter à Tutóia, na mesma Província, casando-se aí na família Gomes de Almeida, que possuía, na região, importantes propriedades rurais. Este último, que se chamava Joaquim, foi o meu avô, pai do meu pai.
Como se teria formado, porém, a família, na outra margem do Atlântico? Veras será um prenome ou um patronímico? Provirá do latim Verus, ou do prenome russo Vera, que corresponde ao da primeira das virtudes teológicas?


As probabilidades são, todas, em favor da primeira hipótese. Segundo se lê no Ementário luso-brasileiro de José de Sousa Menezes, o prenome Vera não era conhecido em Portugal antes de 1860, ano em que foi batizada, ali, com esse nome, a primeira criança. É verdade que, no século XVII, já existia na Argentina, vinda da Espanha, uma família Vera. A esposa do poeta cordovês Luis de Tejada, que fundou no Rio da Prata um convento à sua própria custa, chamava-se Francisca de Vera (Ricardo Rojas, La literatura argentina, v. VIII, p. 771, ed. 1925). Mas é verdade, também, que essa família pode ser perfeitamente de procedência portuguesa. Inocêncio Francisco da Silva, no seu Dicionário biográfico, dá notícia de Álvaro Ferreira de Vera, nascido, provavelmente, nos últimos decênios do século XVI. Natural de Lisboa, Ferreira de Vera escreveu e publicou aí, em 1631, duas obras consideráveis: Origem da nobreza política, brasão d’armas e apelidos, cargos e títulos nobres, e Ortografia ou modo de escrever certo na língua portuguesa, aproveitando, neste último trabalho, “a muita semelhança, que tem a língua portuguesa com a latina”. Achando-se em Madri quando se deu, em 1640, a restauração do trono em Portugal, recusou-se a reconhecer a autoridade real do Duque de Bragança, preferindo permanecer na Espanha, sob a proteção de Filipe IV. Em 1647, informa Inocêncio, ainda vivia ele na corte espanhola. E como a viúva de Luis de Tejada chegou à Argentina em 1667, é provável que se trate de uma descendente, possivelmente filha, do lexicólogo português.


A circunstância de ser o prenome Álvaro um dos mais comuns na família Veras, a ponto de ser encontrado em todas as suas gerações brasileiras, fortalece a suspeita dessa origem, isto é, de que os Veras procedem, ou têm sangue, daquele Álvaro Ferreira de Vera, da informação de Inocêncio. Não deixa de ser, todavia, interessante, que essas dúvidas se levantem, precisamente, no espírito de um descendente possível do homem
que escreveu, para evitá-las, um tratado genealógico. E quem nos dirá se os Veras não pluralizaram esse apelido já em terras do Brasil, por terem emigrado em grupo, e vivido inicialmente reunidos, como se verifica pela nomenclatura do beco do Recife, e por informações obtidas há vinte anos por alguns membros da nossa família, dos seus mais antigos moradores?

Homem empreendedor e inteligente, meu avô conseguiu, em pouco tempo, uma pequena fortuna, em gado, terras de cana, escravos e filhos. Destes, teve doze – como Jacó – sendo dez homens e duas mulheres. Ao falecer, um seu empregado e amigo, português também, de nome Farias, casou com a viúva, com as terras, o gado e os escravos. E desbaratou o que pôde, deixando, ao morrer, a prole do outro na mais elogiável pobreza. Conta-se que esse padrasto de meu pai despertava os enteados, pela madrugada, aos pontapés, mandando-os para os trabalhos da roça. E por lembrança da sua pessoa, por não ter filhos dessa união, deixou no nome dos filhos que minha avó tivera do primeiro matrimônio o seu próprio nome. Daí o nome de meu pai: Joaquim Gomes de Farias Veras. Esse intruso, como se vê, bebeu a água e cuspiu no poço. Morreu tragicamente. Tendo ido a Parnaíba em uma canoa a remos tripulada por escravos, teve aí uma discussão com um filho do coronel Simplício Dias da Silva, homem riquíssimo, senhor da Casa Grande, originando-se a desinteligência numa questão de política ou de mulheres. Farias, perseguido, corre para a sua canoa e sobe o rio Igaraçu, a fim de alcançar a sua propriedade, no delta parnaibano. O inimigo tripula também uma embarcação do mesmo gênero, e sai-lhe no encalço. Cada um leva a sua dúzia de negros robustos, prontos a morrer pelo amo. As duas canoas correm a noite toda, arrebatadas pelos remos dos negros. Ao amanhecer, alcança o português Farias o porto do seu engenho. Ao deitar, porém, o pé na terra firme, a canoa da Casa Grande vem abordando a sua. Um tiro de mosquete derruba-o na praia. Os escravos cercam o corpo do senhor. E trava-se o combate entre os dois grupos de pretos, que se exterminam a faca, e que não cessam a luta senão quando não há mais, do grupo dos perseguidos, ninguém para matar.

Meu avô Joaquim, segundo tradição corrente na região em que viveu, era um rapagão alegre e louro, com ares e hábitos de fidalgo jovial. Metido na sua jaqueta de veludo lusitano, punha nos bolsos desta pequenas moedas de ouro que deviam cair quando ele sapateava. E as moças curvavam-se, sôfregas e contentes, em torno dele, quando ele, o braço erguido, à espanhola, dançava nas salas ou nos terreiros enluarados, nas festas à maneira do Brasil, ou do Reino. Não sei se foi ele, ou se um parente de minha avó, que teve um ataque de catalepsia, e foi enterrado em uma velha capela particular, na Tutóia. O que sei é que ao exumar-lhe, anos depois, os ossos, encontraram o esqueleto retorcido no caixão. A sua sombra percorre, ainda hoje, as regiões onde viveu feliz, perseguindo as sombras daqueles que o sepultaram em vida.


Por esse retrospecto vê-se que, ao contrário do que eu desejara, o meu sangue é, quase todo, se não todo, de origem portuguesa. Nobre ou vilão, ele vem de lá. Se há alguma colaboração do bugre, ela se fez sentir por intermédio da minha bisavó materna, que nasceu no Brasil. Minha avó Malvina apresentava, porém, um claro tipo europeu. Os Veras, irmãos de meu pai, eram, todos, muito louros, patenteando, mesmo, alguns, o tipo de europeu do norte. De modo que, somando todos esses fatores, e especialmente as qualidades negativas, que me caracterizam, eu chego à seguinte conclusão: sou, física, moral e intelectualmente, o produto de quatro ou cinco famílias portuguesas que o tempo e o meio vêm debilitando, e que se aclimatou, sem se integrar, no ambiente americano.


Isso explica, talvez, as tendências disciplinadas e disciplinadoras do meu espírito, a minha paixão pela ordem clássica, e a feição puramente europeia do meu gosto. Tenho horror à insubmissão e à desordem, que assinalam os homens cujos antepassados foram escravos.


Vibram automaticamente, no meu sangue e nos meus nervos, oito séculos de civilização.


DINDINHA


DOS MEUS avós paternos e maternos, foi o único que eu conheci. Era mãe de meu pai, e chamava-se Emídia. Mas todos nós, seus netos, lhe dávamos o tratamento de Dindinha.
Conheci-a em 1893, ao chegar, pequeno e órfão, a Parnaíba. Era uma velha gorda, limpa, alegre e branca. Dava aquela impressão que Fialho de Almeida tivera diante de outra figura feminina, de uma honrada senhora esculpida em toucinho. Estando com todos os filhos sobreviventes em boas condições de fortuna, tinha vida farta e sossegada. Vivia, por esse tempo, com meu tio Emídio, cuja família a tratava com desvelo e carinho. Todos os dias meu tio Feliciano e meu tio Franklin, já encanecidos, iam vê-la e pedir-lhe a bênção. Morava em um quarto espaçoso, que se comunicava com a sala de jantar. Deitada em uma rede branca e de varandas largas, conservava sempre ao lado, armada paralelamente, outra rede, destinada à neta, ou cria caseira, que lhe fazia companhia. O seu maior encanto era escutar a leitura de romances, feita pelas pessoas da casa. Interessava-se pelos personagens dos dramas, como se fossem gente do seu conhecimento e da sua amizade. E assim era que, à custa dos olhos alheios, conhecia quase toda a obra, até então editada, e traduzida, de Júlio Verne, de Ponson, de Escrich, de Alexandre Dumas, de Richebourg, de Adolphe Melot. O seu quarto era, por isso mesmo, um pequeno centro literário, povoado de sombras felizes ou desgraçadas, saídas de romances líricos ou tormentosos, e cuja existência era ali comentada e discutida. Isso atraía as netas já moças, ou pouco mais que meninas, que se alternavam na leitura, transmitindo umas às outras o assunto do capítulo porventura lido na sua ausência.


Nós, os netos pequenos, tínhamos, também, uma atração especialíssima naquele quarto em que a velhice aguardava a mansa visita da morte. É que os meus tios levavam sempre, para a velha mãe, frutas e guloseimas, que ela não raro distribuía pelos visitantes miúdos. Foi ali, no seu quarto, que travei relações com a doce e tenra marmelada portuguesa, que vinha em pequeninas latas redondas, e que era partida em talhadas flexíveis e morenas. Essa marmelada, e algumas frutas, levavam-me a tomar a bênção à pesada senhora duas e, não raro, três vezes por dia.



Não me lembro se, além dessas manifestações de prodigalidade que me seduziam, essa minha avó me dava a mim, seu neto órfão, outra demonstração de carinho. Parece-me que não. Minha memória infantil guardou, apenas, a lembrança da sua figura, do seu quarto, dos seus romances e da sua marmelada. Depois, só me recordo que, indo um dia, à tarde, à casa de meu tio Emídio, encontrei-a com as janelas todas abertas e, na sala, um grande caixão preto, com enfeites de galão dourado. Não havia lágrimas nem soluços. Apenas tristeza, e conversas em voz baixa. Meu tio, vestido de preto, espalhava pela sala e pelos compartimentos próximos uma esquisita mistura de aguarrás e ácido fênico, destinada, parece, a disfarçar o mau cheiro do corpo em decomposição.


Não sei de que morreu, nem como. Parece-me, porém, que foi do coração. Eu tinha oito anos e no cérebro não cabia tudo. Sei, apenas, e com certeza, que, a mandado de minha mãe, fui me sentar na pedra da calçada e que, metido na minha roupinha nova, olhava dali com uma superioridade orgulhosa os meninos do sr. Antônio Martins Ribeiro, morador da casa fronteira, os quais deviam estar com enorme inveja de mim, pois a avó que tinha morrido era a minha, e não a deles.


E assim foi que, embora por pouco tempo, eu tive uma avó.


MEU PAI


QUANDO meu pai morreu, eu tinha seis anos e vinte e dois dias. Mas lembro-me, ainda, perfeitamente, dos seus modos e da sua figura.
Era um homem de estatura acima de mediana, ágil, airoso e elegante. Claro e corado, olhos azuis, cabeleira farta e ondulada, de ouro queimado, quase vermelha; bigode da mesma cor; e umas suíças baixas, que lhe chegavam até ao meio da face. Olhando neste momento o retrato que dele me resta, encontro, entre a sua fisionomia e a de Pedro I, curiosa semelhança. Apenas, em meu pai, os traços são mais finos, graciosos e corretos: o nariz bem feito, e sem as bochechas do primeiro Imperador. Um belo tipo de homem, em suma, no porte e nas linhas – ideia que me é confirmada pelas pessoas que o conheceram.

Guapo, alegre, sempre disposto e em movimento, era o que se chama hoje um tipo esportivo. Bom cavaleiro, fazia constantemente viagens de centenas de léguas, em que consumia semanas ou meses, comprando gado e cereais que exportava para São Luís. Quando permanecia em Miritiba, saía, quase todas as manhãs, em cavalos fogosos e inquietos, nos quais gostava de experimentar a sua destreza arrogante e jovial. Quando eu nasci, tinha ele vinte e nove anos; e trinta e cinco quando morreu, pois que havia nascido em 1857. Na sua casa comercial, jamais saía do interior do estabelecimento pela portinhola a isso destinada: espalmava a mão na tábua do balcão, e saltava por cima com extrema agilidade.


A sua figura me vem à lembrança, hoje, apenas em meia dúzia de quadros, que a memória fixou com tintas claras e precisas, sobre fundo brumoso. Vejo-o, primeiro, em nossa casa antiga, apeando-se do cavalo, o chicote na mão, entrando pelo pequeno jardim que há ao lado, e em que floresce grande roseira, todo-o-ano, sempre enfeitada de rosas. Eu e minha irmã – eu com quatro anos ou cinco, ela com dois ou três – montamos cada um o seu cavalo humano: ela, a negra Bárbara, a sua Babu; eu, a negra Antônia – amas de nós ambos. Entrando no jardim, e encontrando as pretas de quatro pés, e nós montados, meu pai descarregava alegremente o seu chicote sobre as nossas cavalgaduras, que logo se erguem e disparam na carreira, arrebatando-nos nos seus braços amigos... Vejo-o pulando o balcão da loja, num salto rápido e firme. Vejo-o, ainda, chegando de viagem, estirado na sua rede branca e larga, armada no meio do quarto. Minha mãe acorre, solícita, com um prato de carne seca, picadinha, misturada com ovos, preparada na ocasião e de que ele se serve, deitado mesmo, com farinha d’água amarela – ceia da sua predileção e que lhe era trazida todas as noites no quarto, à hora de dormir... E vejo-o no instante mais trágico do seu destino. Ele havia saído a passeio em um cavalo árdego, que exigia espora de fidalgo e pulso de cavaleiro. De regresso, com o animal coberto de espuma, vai estacar diante da porta num puxão repentino das rédeas, quando minha irmã, que tinha apenas dois anos e vestia uma simples camisinha de rendas, sai na carreira de casa e cai, na rua, sob as patas do animal em marcha. Meu pai sofreia o cavalo e solta um grito. Olha para baixo, e vê: a filha está no chão, de braços, entre as patas do animal, que lhe pisam a roupa ligeira. A aproximação de qualquer pessoa é impossível. O quadrúpede resfolega impaciente, mordendo o freio. Um movimento qualquer, e, sentando-lhe uma das patas na espinha frágil, pode matar a menina. Vem, então, a meu pai, uma ideia súbita e desesperada: crava de repente, e com violência, as esporas no ventre do animal, que dá um arranco, saltando longe. A filha estava salva, mas ele estava morto: ao apear-se, muito pálido, pediu um copo d’água. A datar, porém, desse dia, não teve mais saúde. Ano e meio, ou dois anos depois, morria do coração.


Tudo nele era atividade febril, inteligente e irrequieta. Emigrado da Tutóia, onde nascera, chegara a Miritiba ainda rapazola. Antes disso, fora ao Maranhão, tentar a vida. Espírito aventureiro, meteu-se em um navio, que tocava em São Luís, e rumou para o sul, como simples marinheiro e, no ventre do barco, onde avermelhavam as chamas, deu comida às fornalhas famintas. Esteve no Rio de Janeiro como um louro vagabundo de Gorki. E aos dezenove anos encontrava-se, de novo, na sua terra, com um curso completo de ensinamentos do mundo.


Em 1877, achando-se ele, já, estabelecido, teve começo no Ceará o flagelo da seca. Centenas ou milhares de famílias tomaram o caminho do exílio, espalhando-se pelas províncias mais próximas não atingidas pela calamidade. Na sua inclemência, o sol nivelara, ali, os homens de todas as condições. O rico e o pobre tornaram-se, todos, miseráveis. E é uma família outrora afortunada, mas reduzida à miséria extrema, que vai ter, então, a Miritiba.


Era a família Mendonça Furtado, que tivera as suas fazendas prósperas, para as bandas do Sobral ou do Ipu. O chefe morrera em caminho, de dor e de fome. Os filhos homens tinham-se dispersado, na travessia do Piauí. De modo que apenas chegaram aí, como despojos preciosos de um naufrágio que o oceano atira a praias longínquas, duas pobres moças de excepcional formosura, acompanhadas de uma velha senhora aniquilada pelo tormento da vida. Meu pai era jovem e solteiro. E passou a viver com uma das moças. Um seu sobrinho, quase da sua idade, José Veras Machado, filho da sua irmã Felicidade, assumiu a responsabilidade do destino da outra.


Em março de 1880 nascia o primeiro fruto dessa união que a lei considerava ilícita, mas que meu pai, com seu espírito sem preconceitos, achava naturalíssima. Era uma menina, e foi levada à pia por meu pai e pela moça com que[m] vivia.
– O nome da menina? – pergunta o padre.
– Prosérpina – respondeu meu pai.
– É nome de santo?
– Não, senhor. Prosérpina é mulher de Plutão, rei dos Infernos.


O sacerdote propõe outro nome, mas meu pai recusa. E o padre batiza a menina mesmo com esse nome, o qual define, com outros episódios da sua vida breve, o que era, em um ambiente acanhado e de aldeia, o espírito livre e, mesmo, irreverente, de meu pai.


Na mesma ocasião, o sobrinho e companheiro que vivia com a outra moça, batizou, também, uma filha nascida nas mesmas circunstâncias. E deu-lhe, por inspiração do tio, o nome de Eurídice, que igualmente habitava o Inferno grego. Do que se conclui, talvez, que meu pai, meio século antes do filho, e habitando uma remota vila de uma província do norte, mostrava, já, um pronunciado interesse pela mitologia.
Meu pai possuía um gosto inequívoco pelas letras. Não sei, nem posso avaliar, os limites da sua cultura. Lembro-me, porém, que, ao começar a ler, encontrei, entre os papéis de minha mãe, dois velhos cadernos amarrotados, com letras dele. Eram versos que havia escrito: não versos de amor, líricos e piegas, mas dois poemas no metro dos Lusíadas, em oitavas ou décimas rimadas, que eu lia alto, embalando-me em uma grande rede doméstica. Um deles cantava uma viagem a um “sítio São João”, e falava em mangueiras e laranjeiras, num canto virgiliano à natureza mansa da sua terra. O assunto do outro apagou-se na minha memória. Com a minha ida, aos treze anos, para o Maranhão, esses versos, a que minha mãe não emprestava grande importância, desapareceram. A lembrança deles é bastante, entretanto, para que eu reconheça, hoje, que, se o meu gosto pelas letras é hereditário, devo-o, na sua maior parte, a meu pai.

As outras filhas que lhe vieram depois, e das mesmas ligações com a moça cearense, não ficaram mais, todavia, sob o patrocínio de entidades mitológicas, mas sob o de excelentes santos católicos: uma, nascida em 1882, foi batizada com o nome de Lourença; a outra, vinda ao mundo em 1884, tomou o de Raimunda. Nesse ano, morreu a mulher com quem meu pai vivia e tivera essa prole, e que era, segundo o depoimento dos que a conheceram, dedicada e boa.


E um ano depois, a 23 de agosto de 1885, ele casava com uma das filhas do falecido professor Campos, que viria a ser minha mãe.

IV


MINHA MÃE


É DIGNO de nota que eu tenha de meu pai recordações muito mais antigas e precisas do que de minha mãe. Em épocas em que a figura dele me aparecia nítida, concreta, definida, a imagem dela é ainda, apenas, uma nebulosa, uma sombra, uma nuvem sem contorno e sem forma. Isso é, todavia, explicável. Meu pai morreu logo, quando eu era pequeno; as impressões primitivas que eu dele tinha não foram substituídas por outras mais frescas. Ao passo que minha mãe há quarenta e seis anos me acompanha na vida, superpondo o seu vulto e as suas atitudes novas às imagens mais remotas. A memória é um grande museu de fotografias, em cujos muros consagramos determinado espaço a cada criatura querida. Uma vez cheio esse espaço, temos que retirar os retratos mais antigos, pondo no lugar outros mais recentes, da mesma pessoa. Meu pai não deixou retratos bastantes para povoar o trecho de muro que lhe estava destinado no meu coração; de modo que conservei todos, mesmo os mais tênues, que dele tive nos seis anos que passamos juntos na terra.


A ideia mais recuada que tenho de minha mãe é a de fins de 1892, isto é, após a morte de meu pai. É, precisamente, da época em que ela o chorava. Tinham ido os dois a São Luís consultar os médicos e tratar de negócios comerciais, quando ele morreu. Ela regressou sozinha para Miritiba. E é, então, que ela me aparece, e grava-se na minha lembrança. Vejo-a chegada da capital na tristeza da sua viuvez. É um quarto espaçoso e fechado, da nossa casa nova, que meu pai construíra antes de partir. A um dos cantos, uma rede, em que minha mãe se acha sentada, os olhos vermelhos de chorar. Os cabelos negros, longos e soltos. Amigas, sentadas em torno, em cadeiras, ouvem-na contar como se deu o desenlace. Ela conta, e chora.


Minha mãe tinha, então, trinta anos, pois que nascera em 1862. Não me parece que tivesse tido, jamais, algum traço especial de beleza. Morena, longos cabelos negros, olhos castanho-escuros, havia tido varíola, quando menina, possuindo, por isso, a pele marcada, mas muito fina. Estatura regular, dava-me a impressão de perfeição plástica, e de certa graça natural nos movimentos. Creio, mesmo, que não foi a sua fisionomia, mas a sua elegância, a harmonia do seu tipo, que encantou meu pai. Ele era, todavia, mais bonito do que ela; o que não impedia, no entanto, que vivessem felizes, e que ela se conformasse com as extensas e constantes viagens que ele fazia, e nas quais dava liberdade ao seu gênio folgazão e ao seu gosto pelas amáveis cousas da vida. Minha mãe foi, em síntese, na sua mocidade, uma senhora sem altos atributos de graça feminina, casada com um homem moço e bonito, mas que soube prendê-lo com a sua solicitude, com o seu instinto doméstico, perdoando-lhe as faltas, as pequenas e possíveis infidelidades, em nome da harmonia conjugal. O gênio de meu pai, alegre, festivo, brincalhão, facilitava, aliás, a minha mãe, esse sentimento de renúncia e de resignação, que era uma das virtudes específicas das mulheres do seu meio e do seu tempo.


Define esse feitio a sua atitude em relação às filhas ilegítimas de meu pai; após o seu casamento, minha mãe consentiu não só que ele as reconhecesse, mas, ainda, que delas cuidasse. As duas mais novas foram confiadas a duas senhoras das relações de minha mãe; e a mais velha, ficou minha mãe com ela, tratando-a como se fora fruto do seu sangue e do seu leito, e de tal modo, que teve, sempre, nela, em todas as circunstâncias, amiga solícita, filha carinhosa, e companheira dedicada e leal.
Viúva, moça, com dois filhos, e com essa filha que adotara, minha mãe enfrentou a vida com heroísmo sereno e silencioso, e com um tranquilo espírito de decisão. Liquidou os negócios comerciais de meu pai; vendeu as casas, o gado, a fazenda, apurou o que pôde, e pelo preço da liquidação e do custo da vida do interior, não ia além de uma dezena de contos de réis. E com os filhos legítimos e a filha adotiva, mudou-se para Parnaíba, no Piauí, onde já se haviam fixado os seus cunhados e irmãos. Do dinheiro apurado, depositou na Caixa Econômica do Maranhão um conto de réis para mim e minha irmã legítima – pois que a parte das ilegítimas foi em gado, que elas venderam com lucro quando se casaram. Com a parte que lhe coube, adquiriu um terreno, construiu uma casa. E aí passou a viver conosco e com as suas irmãs e irmãos solteiros, trabalhando, lutando, batalhando pela conquista do pão.
Mentalmente, era, talvez, entre as irmãs, o espírito culminante da família. Filha de professor público, e irmã de professor, a quem auxiliara até os 23 anos, idade em que constituíra o seu lar, possuía caligrafia bonita e enérgica, em que fixava os seus pensamentos com clareza e relativa correção. Gostava de romances e modinhas tristes, que cantava baixinho, nas horas de trabalho. Conversava com alegria, e não desdenhava uma risada boa e sadia. Estas foram, porém, se tornando cada vez mais raras, sendo substituídas pelos suspiros. O tempo e a vida fizeram do vinho doce, que extravasava dos cântaros em Caná, o vinagre amargo e ingrato, que encheu a esponja de Cristo no Gólgota.


O resto da sua vida, após a nossa chegada a Parnaíba, acha-se entrelaçado com a minha. As duas aparecerão, assim, unidas, juntas, confundidas, no correr destes capítulos.





XXV



PEDRA DO SAL
HUMBERTO DE CAMPOS, MEMÓRIAS




COM a presença dos meus tios maternos ainda em Parnaíba, em 1895, fomos passar alguns meses na Pedra do Sal, ponto desabrigado e rochoso do estreito litoral piauiense em que fica situado o farol desse nome, e que figura, nas cartas marítimas, sob o nome de Farol da Amarração. Sobre uma pedra, que desafia o mar, levantava-se a torre de ferro, cuja ascensão era feita por uma escada interior, em espiral. Sobre outra pedra, coberta de telha, e caiada, a casa do faroleiro, cuja cozinha era lavada, às vezes, pelas ondas mais fortes. Em frente ao farol, o oceano largo e vário, raramente riscado por um navio costeiro, que se arrastava pela superfície verde como uma lagarta escura e insignificante sobre uma folha de bananeira. À direita e à esquerda as linhas de rochedos altos, que orlavam a praia arenosa. E, para trás de tudo isso, as dunas alvas, ligeiramente vestidas de cajueiros, e em cujas depressões se agasalhavam pequenas casas de palha, humildes habitações de pescadores.
Chegamos aí ao anoitecer, a cavalo. Horas depois chegavam os cargueiros com a bagagem. Muitas famílias de Parnaíba tinham ido veranear ali naquele ano, de modo que nos foi impossível conseguir uma casa me­nos desconfortável. Aque meus tios haviam alugado devia ser coberta, ainda, de palmas de carnaúba, no dia seguinte: de modo que tivemos de nos contentar, por aquela noite, com uma esburacada em torno, a poucos metros do mar. Para podermos dormir, tivemos de amarrar lençóis nos grandes rombos abertos na palha, pelos quais entrava, assobiando como garotos e cortando como navalhas, o vento salitroso e inclemente. Obarulho do oceano, rugindo ao largo e estourando nas pedras, era, mesmo, tão profundo e alto, que se tornava necessário gritar para ser ouvido, a dois metros de distância.
Lembro-me, entretanto, que, nessa mesma noite, minha mãe nos tomou pela mão, a minha irmã e a mim, e saiu a passear pela praia. O oceano rolava e guinava, na sombra, atirando-nos ao rosto seu hálito úmido de gigante bêbado. E o vento gritava, gemia, repuxava-nos para trás as roupas e os cabelos, como se nos quisesse arrastar para longe. Minha mãe caminhava e cantava. Ela que sempre cantara baixinho, levantava, agora, a voz acima das vozes do mar e do vento. Canto de dor e de saudade. Grito de gaivota viúva pedindo ao oceano mergulhado na noite que lhe restitua o companheiro sepultado nas ondas. Lamento de mulher moça e solitária no mundo; gemido de mãe aflita, de andorinha do mar que se vê sozinha, e fraca, e desamparada, numa anfractuosidade de rochedo, cobrindo com as asas frágeis duas avezitas implumes. Vencendo o vento e o mar, a sua voz me chega ao ouvido, em dois versos que nele ficaram em toda a pureza de sua toada nostálgica e dolorida:
Com o sangue das minhas veias
Sete cartas te escrevi...
No dia seguinte, mudávamos para a casa que nos estava destinada. Era um albergue novo, de chão de barro batido, coberto e cercado de palha de carnaúba. Ficava longe do farol, mas dispunha, embora a alguma distância, de praia melhor para banho. Nessa praia, inteiramente aberta, existiam cavaletes mais altos do que um homem, os quais eram sumariamente cobertos de palha e serviam de barraca em que as senhoras mudavam a roupa. O vento era, porém, aí, tão rijo e permanente, que virava e revirava essas pequenas construções, fazendo-se mister ir buscá-las cada dia a grande distância, não obstante o seu volume e o seu peso. E esse vento, que arrastava barracas e assobiava e corria à noite como um louco em liberdade, era o mesmo que me aplicava nas pernas violentas surras de areia, fazendo-me invejar as mulheres de saia longa e os homens de calças compridas.
Situada na última trincheira de dunas, mais perto da várzea que se estendia para o interior do que do mar, a nossa casa possuía nos fundos, a três dezenas de metros, uma pequena lagoa em que viviam alguns peixes miúdos, característicos da água doce e parada. Armado de um caniço que trazia na ponta da linha de costura um anzol improvisado com um alfinete torcido, eu ia, todos os dias, a essa pescaria, voltando com alguns peixes achatados e negros a que davam, ali, a denominação de cará. Certo dia, porém, minha mãe me recomendou que não fosse à lagoa. Era Sexta-Feira Santa, dia consagrado ao jejum e à oração. Dia nublado, escuro, triste, como se o céu inteiro se tivesse coberto de um véu polvilhado de cinza. Uma das minhas virtudes era, no entanto, a desobediência. Ao ver que a família se achava entregue aos cuidados caseiros, tomei o caniço e corri para a lagoa. Alguns peixes beliscaram, mas não vieram. Os peixes sabem, parece, quando os meninos estão pescando sem a permissão dos pais, e não lhes dão o prazer de engolir a isca. Eu insisti, todavia. Se Deus não quisesse que o homem apanhasse o peixe não teria consentido que ele inventasse o anzol. Em determinado momento, porém, senti que vinha alguma cousa volumosa e pesada. Puxei a linha, aos poucos, desconfiado, e com cautela. De repente, emerge a presa. Olho e esfrio. Vinha no anzol uma botina velha!
É desnecessário dizer que abandonei botina, anzol, caniço, e até o meu chapéu de carnaúba, à margem da lagoa, e que desandei na carreira, apavorado, rumo de casa. Chamei minha mãe à parte, e contei-lhe o ocorrido, os olhos fora das órbitas. E ela:
– Eu não te disse? É castigo... Eenchendo-me de terror:
– Quem pesca em lagoa Sexta-Feira Santa, o anzol só apanha sapato de defunto...
Situada perto da várzea, nossa casa era uma das primeiras do arraial, à entrada deste, e o caminho natural de quem vinha de Parnaíba. As pessoas que procediam da cidade, e que eram portadores de encomendas –- café, açúcar, cereais ou carne, pois que aí não havia nenhuma casa de comércio –, chegavam à Pedra do Sal já noite fechada. Mas a aproximação desses emissários, que haviam partido pela madrugada a vender o produto da sua pescaria, era anunciada de longe pelos téu-téus, o indiscreto quero-quero das coxilhas do Sul, o qual é, no norte, o guarda infatigável das várzeas adormecidas. Ao perceberem, com os seus olhos que varam a sombra, vulto de cavaleiro ou de peão, essas aves erguem em bando o seu voo, em gritaria assustada. E com uma precisão tal que, pelo grito delas, se sabia, em casa, em que várzea e a que distância vinha o viajante.
A maior curiosidade do lugarejo marítimo eram, entretanto, os seus rochedos. Havia pedras enormes, de feitios bizarros, de dez e mais metros de altura. Algumas constituíam, mesmo, a reprodução da fisionomia humana. E eu ainda me lembro de uma, grande e alta como uma casa, que possuía dois olhos, e nariz, e a boca imensa, rota em uma das extremidades. A onda vinha de longe, e atirava-se à cara do monstro. Ele bebia-a; engolia-a; mas vomitava-a de novo com asco e com estrondo, repelindo o resto pelo rasgão de pedra, que a água cavara durante séculos.
Na Pedra do Sal, vivi cerca de três meses, dos meus nove anos, sem saber, sequer, se existia, com as suas largas folhas, o livro do Destino. Olhava o oceano durante o dia, e escutava, à noite, gritar assustadora­mente os téu-téus da várzea. Eencontrei, também, ali, a síntese da minha atividade no mundo.
Que tenho eu feito, em verdade, na vida, senão pescar sapato de defunto!

VII

O ÚLTIMO ESTIO DE ATENAS

Enquanto eu, no balcão da Casa Trasmontana, embrulhava açúcar e pesava batatas, ou, no seu tanque, lavava garrafas para encher do mais vermelho e genuíno vinho português, a quinze metros de mim se elaborava, sem que o suspeitasse, a destino literário do Maranhão. Diante da formiga anônima, e sem que ela as ouvisse, cantavam as primeiras cigarras do último estio de Atenas.

O Maranhão ressonava, desde o crepúsculo vesperal da monarquia, quando haviam emigrado para o sul e para o norte os mais belos espíritos que a província então produzira, num fundo sono, vizinho da morte. De súbito, aparece-lhe, cercado da sua glória risonha e nascente, em visita ao seu berço natal, em 1899, Coelho Neto. À sua voz de pastor, as ovelhas se levantam. A juventude maranhense, vencida antes de combater, toma-se de coragem. Um sopro ardente de vida e de esperança congrega os atenienses, que já haviam esquecido os grandes vultos da pátria. E funda-se a Oficina dos Novos, destinada a operar, num milagre, a ressurreição do espírito literário, e que veio a oferecer, efetivamente, ao Maranhão, a sua última geração de escritores com projeção fora do Estado.

Quando, em 1900, eu entrei, como caixeiro, para a mercearia na rua da Paz, germinava, precisamente no edifício fronteiro, a semente que a mão de Coelho Neto lançara. Do meu balcão, ou do meu tanque, nos momentos em que me punha de pé, a fim de reanimar a musculatura cansada, eu via entrar todas as tardes, ou à noite, os lavradores encarregados de fazer fecundar aquela semeadura. Eram eles, além de outros menos expressivos na ação e na figura, Antônio Lobo, Fran Pachêco, Francisco Serra e Antônio Marques, aos quais devia caber, especialmente aos dois primeiros, a missão de galvanizar para as letras, numa tentativa suprema e heroica, o velho Maranhão de Odorico e de João Lisboa, de Gomes de Souza e de Sotero, de Gonçalves Dias e de Henriques Leal.

[...]

(CAMPOS, 1935, p.59-61)

[...]

XIV

A HORA SAGRADA

Foi por esse tempo que surgiu, e verdadeiramente, em mim, a paixão literária. É possível que eu a tivesse trazido do Maranhão, escondida nas camadas subterrâneas do espírito. No discurso com que me recebeu na Academia Brasileira de Letras, na noite de 8 de maio de 1920, Luiz Murat, examinando a passagem da minha oração em que eu atribuía a influência de Coelho Neto à modificação do meu destino, opinou pela falsidade dessa suposição. O sentimento literário estava em mim; e quaisquer que fossem os fatores externos, eu viria a ser, tarde ou cedo, prosador e poeta. O que eu supunha causa desse fenômeno, constituíra, e apenas, um pretexto para a revelação, que se daria, em qualquer circunstância.

É possível que, durante a minha permanência no Maranhão, eu tivesse lançado às leiras profundas do cérebro, ignoradamente, o gosto da criação. Ele ficara, todavia, no subconsciente, como a semente d’anunziana, que os gelos do inverno escondem, mas que germina tempos depois, quando lhe é propício o clima da primavera. O que é verdade é que, um dia, eu me sentei em uma pedra tosca, na ponta da calçada de nossa casa, na parte que dava para o quintal, tendo à mão dois jornaiszinhos literários, publicados em São Luís. Intitulava-se um Os Novos, e era órgão da Oficina dos Novos, associação constituída pela geração moça, orientada por Antônio Lobo e Fran Pacheco. Renascença, denominava-se o outro, e reunia uma dissidência combativa e heroica, sob a chefia de Nascimento Morais. O primeiro era sereno, ponderado, mergulhado em sonho e meditação. Trazia versos de Francisco Serra, Costa Gomes, e outro, cujo nome se me apagou na memória; e prosa de Godofredo Viana, Domingos Barbosa, Viriato Corrêa, João Quadros, e Astolfo Marques. A. J. Alves de Farias, que foi mais tarde, no Rio, diretor do Lloyd Brasileiro e era, então, chefe do distrito telegráfico no Maranhão, assinava uns alexandrinos severos, em que havia tamareiras debruçadas no Deserto. O outro periódico era mais variado e mais vivo. Nascimento Morais, professor de português, criticava a língua d’Os Novos, arremetendo de palmatória em punho contra os rapazes do outro grupo. O que, porém, caracterizava a Renascença era a fartura de sonetos. Nas suas seis páginas amplas, espalhavam-se mais de trinta, cada um dos quais assinado por um poeta novo. Desses poetas, ao que parece, não vingou um só. À semelhança do que sucede, às vezes, as ninhadas de peru, desapareceram todos. Eu, porém, os achava, a todos, admiráveis. O que mais me impressionou foi, todavia, um de nome Otávio Galvão, autor de quatorze decassílabos realistas, de que faziam parte estes, num terceto, que nunca mais me desapareceu da lembrança:

“E, enquanto lá por fora cai a chuva,

A carne agrilhoada de desejos

Treme de gozo ao lado da viúva!”

Nos trinta e dois anos que rolaram sobre essa tarde parnaibana em que, na calçada do quintal de nossa casa, mergulhei na leitura d’ Os Novos e da Renascença, eu li grandes poemas, as obras capitais de quase todos os gênios da Humanidade. Li Homero e Virgílio; Hesíodo e Ovídio; Dante e Petrarca; Ariosto e Tasso; Shakespeare e Klopstock; Lope de Vega e Camões; Schiller e Goethe; Longfellow e Vitor Hugo. Milhões de versos passaram sob os meus olhos, entraram pelo meu entendimento, fixaram-se na minha memória, viveram na minha imaginação. Nenhum deles conseguiu, entretanto, jamais, apagar no meu cérebro esses três decassílabos de Otávio Galvão. Viva eu um século e eles viverão comigo. E quem sabe se, abusando da minha inconsciência, não serão eles as palavras que me virão à boca, profanando a santa hora da minha morte?...

Maranhão Sobrinho colaborava nos dois jornais, emprestando a cada um deles, com um punhado de versos, uma das asas da sua inspiração. Lembro-me, ainda, de dois sonetos seus, que vinham, se bem me lembro, n’”Os Novos”. Tinham por título Símbolos.

Concluída a leitura das duas folhas maranhenses, quedei-me quieto, os olhos perdidos no horizonte, que os coqueiros de Dona Páscoa enfeitavam de aranhas buliçosas. Seria difícil fazer versos? Evidentemente, não; porque, se fosse, aqueles jornaiszinhos não estariam repletos. Quem, porém, me ensinaria a fazê-los?

Resolvi examinar mais profundamente o assunto, consultando os almanaques, viveiro inesgotável de poetas. E levantei-me. O primeiro raio de sol havia tocado a semente. Ia começar, no meu coração e no meu cérebro, o milagre da germinação. Soara, para mim, a hora sagrada.

(Id. ibid., p. 119-123)

(CAMPOS, Humberto de. Memórias Inacabadas. Rio de Janeiro: Livrara José Olympio Editora, 1935)



quarta-feira, 14 de setembro de 2011

MIRIAN DE CARVALHO







MIRIAN DE CARVALHO





Cantos do visitante


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ENTRE AS VASILHAS E AS CHAMAS







Farinha, leite, água ... já sei de cor o livro de receitas.
O que procuro não está escrito:
a gestação da vida
no ventre de ferro das panelas.
Meus pensamentos colhem nas flores de mosaico
a parte viva que faz jorrar da terra uma estória atual
escrita pelo fogo.

Sempre igual e diferente,
o fogo brilha e me atrai,
ave dançante na trempre do meu fogão,
a libertar-se rubro em línguas verticais.

Meu estômago invade esses espaços do desejo
entre as vasilhas e as chamas
onde os deuses habitam e preparam o alimento e os sonhos.
Todos os dias meus dentes compartilham com eles
as nozes e o pão.




INSONE







A lua negra rastreia o quarto adormecido.
Encontro pela escuridão frestas no eu que sobrou da véspera.
Acho o que não procurava: o acaso é parte de mim.

Insone preparo a festa do dia vindouro. No leito,
misturo ao mel da manhã o perfume das violetas
e recolho numa fotografia
a cabeleira do sol a roçar os ombros do mundo.






NO CORTEJO DAS ÁGUAS







Seguem meus olhos e pensamentos
pequenos cisnes a deslizar pelo verde da parede.
Contemplo o sossego do nado se imersa em mim
embalo meus rios de memória
no cortejo das águas e aves de azulejo
enquanto lambem a minha pele regatos transitórios.

O corpo não assume o suor da fadiga.
No banho, um pouco de nós se vai.





A MESA POSTA







No brancor da toalha a noite encena a mesa posta
e a louça da véspera brilha por obrigação no encontro familiar.

Desejo mais; quero o que se esconde
na memória e no tato dos talheres
quando pressentem o toque dos dedos e da boca.
No dia comum, desejo a festa.

Do convidado sentado à cabeceira,
das mãos entrelaçadas, eu sei,
pensam comigo o sentimento e a origem das coisas:
incenso da Índia, papoulas da China,
hortelã do meu quintal, passos de agora
sob telhas de vidro que pontuam de céu
a luz desta noite.


Junto ao visitante, me apego aos sentidos
das coisas que vivem. Em nossas mãos
o cálice aguarda o gosto dos lábios e da menta.






NA SOLIDÃO DOS OBJETOS



Antes da noite à flor da terra, o porão adormece
no leito de outro tempo que se encrava nas coisas antigas.
Nesse lugar poucas coisas me falam, mas todas elas
são o passado que pressinto meu.

A escada me convida à ascese. Da lâmpada acesa
doces tentáculos descem ao jardim de transparências
atravessando a vida virtual e bela das rosas do vitral.
Vermelho nas corolas
o ímpeto da vida se derrama na sala
e desconhece os sentidos da véspera.

Sob o chão, nada é perda ou reencontro.
Na solidão dos objetos a poeira tinge de cinza
a dor do inútil.










AS ÁGUAS ENDURECIDAS NO ESPELHO







O olhar do cristal em meus olhos revê na escuridão
o duplo
não mais ilusório.
Meus pensamentos deslizam pela noite em esquiva,
mas no espaço ambíguo do corpo e do reflexo
no espelho,
a luz não pode mudar
o percurso das águas endurecidas.

Dentro das águas, o fôlego da imagem se entranhou
nos recortes do passado.
Ao rastrear o que se foi, surpreendo em mim
olhos aguçados de cristal
a decantar no breu da terra
as coisas intangíveis
habitantes
da imagem e do olhar.








O VISITANTE



Os pássaros passavem em bando,
eu os relembro ainda.
Súbitas aves da noite, devaneios do visitante ...
Lembrança que fere.
Lembrança que anima.


Pássaros de cristal, eu os vejo reluzindo
nos dedos da noite
a coroar de esquecimento
o canto uníssono do tempo:
“mia morte sodes, que me fazedes morrer!”




A PRESENÇA DOS OBJETOS


Os ponteiros reiniciam a canção do outro dia
marcado nas fendas da meia noite.

Abrindo a janela para reunir fragmentos da paisagem,
o cheiro da madrugada me renova das perdas e danos
deste dia de grandes e pequenas coisas.
O olhar do retrato não se dirige a mim, mas a moldura é bela.
Os meus sapatos ficaram velhos e macios,
e a caneta sinaliza os poemas que um dia quis escrever.

Ao caminhar pelo mundo o relógio de pulso
é a minha estrela das horas de desapego.










O RÁDIO LIGADO







O outro lado da luz derrama no corredor
uma noite maior que o mundo
nos cortes das tábuas do assoalho
a resmungar a presença imóvel das coisas não havidas.

Não pressinto passos, não há descompasso
e os loucos da casa habitam o cone de sombras
dos eclipses.

No quarto dos fundos
o pássaro de palha marca o lugar da morte
em neutralidade,
ao som de um monólogo:
o rádio ligado retém a fala
do último habitante da casa.









A ESCRITA DO CORPO



Adormece no quarto o sonho do outro
sonhado por mim.
Ao desamparo do silêncio
cai sobre meu corpo a noite que não desejei.


Esquecido da linguagem,
o instante em fuga
reúne em minhas mãos a matéria da vida.
Com a migração do tempo, o que se foi não era desejo
– não era nada.
O que se encontrou no ardil da palavra morta
esqueceu-se da fala. Direta
e pulsante, a escrita do corpo
expõe seus dizeres na pele desarmada.







A POLPA DA FRUTA



A polpa da maçã em meus dentes
nada sabe da casca inerte no prato.

Murcha e opaca, a casca da fruta
se esqueceu das sementes jogadas ao acaso
e do matiz vermelho-luz de antes
esquecido da lâmina que ignora o tempo
a esvaziar-se
inteiro inteiro inteiro. . .









A CATEDRAL IMAGINÁRIA







A catedral recicla o surgimento do mundo
no fluir das horas evadidas do silêncio,
quando os sinos libertam o tempo detido nas torres
e as curvas da luz germinam a matéria dos vitrais.

Concha de som e luzes,
o teto em ogiva acolhe o dia e a noite,
segue o visitante pelas naves
onde o impulso de ir ou de volta
não se esgota no esforço dos pés.
Nesse caminhar,
os sentidos imprecisos da paixão
abrem entre-espaços inconclusos
de céu e chão.

Se há noite sempre nas curvas dos arcos,
pelas paredes o universo floresce
na simplicidade do vidro iluminado,
e a palavra culpa, ausente de cores,
desce das sineiras
e adormece sem peso no coração das pedras.









O SEMEADOR NO JARDIM



Lavrada a terra meus desejos são raízes
tingindo de verde primevo a haste nascente
que suaviza a tarefa das mãos em dias de escassez.

No ofício da beleza as glicínias balbuciam em azul
o verbo das águas geratrizes.
Uma só flor, cratera de luz no espaço negro da noite,
reproduz a vida sobre inércia e medo.







NA TOALHA DA MESA O VERSO DE DRUMMOND







Rédeas largas aos cavalinhos velozes
no tabuleiro azul e branco da toalha de xadrez!

Um pouquinho de café ... mais leite ...

A rainha agita os cabelos e sem mesuras passo pelo rei,
a caminho da minha torre aberta para o mundo.

Os cavalinhos de açúcar rodopiam e dançam
em volta das damas e piões de biscoito
que se desfazem com o primeiro olhar da cidade.
Na toalha esvaziada de seres dançantes,
o verso de Drummond se inscreve nas linhas retas do tecido:
Neste país é proibido sonhar.








O CORPO



Iniciado o amor ante o sono da esfinge,
búzios entreabertos a revelar a vida
desvelam o perfume da pele enternecida.

Por que perguntas a quem sonha?

Súbito recolhimento, o amor,
concha fechada em mar aberto
preamar de luas a cavalgar o azul
na várzea de espumas e espera
entre o corpo e a linguagem.









PÁSSAROS, LIMO E SERES IMAGINÁRIOS



Junto aos camelos e cogumelos
de nuvem
nascidos no telhado,
o vermelho de um coração pulsante cobre a minha casa,
esmaece em sombras e
com o ritmo das horas se refaz.
Sobre caibros e lendas guardo a minha coleção de pássaros,
limo e seres imaginários. Uma parte dela já se perdeu
nas hachuras deixadas pelo tempo.

Nesses meandros de carmim e nervos
a vida do barro agoniza comigo
em cada peça que se foi.











NO ENTREABERTO DAS GAVETAS



No entreaberto das gavetas
as coisas sofrem de paixão
e a solitude se recria nas cores do lenço,
nas dobras do vestido fixado no retrato
entre flores, desejos e folhas secas.
O que restou da morte respira comigo
o cheiro de guardados e madeira.
O que resta revela veios e encaixes
no lenho de florestas imaginárias
em vigília no quarto de dormir.

Ao abrir clareiras
em meio a rendas com cheiro de sândalo,
este camafeu e eu sentimos vivo
o rosto da mulher adormecida
em marfim.














E TUDO CHEGA AO PONTO DE PARTIDA



A linha do tempo transcorre circular
dando ritmo ao precavido instrumento
nas andanças de cada hora nascida antes
em relógios de areia, água e sol.
Dos movimentos do grão e da água
à direção das sombras projetadas,
a poesia da matéria do mundo
realiza-se em mutação e quietude.

Súbito, meus pensamentos
embrenhados na exatidão
seguem a volta dos ponteiros ao momento preciso
dos astros
e tudo chega ao ponto de partida
quando o passar se recolhe em seu casulo de metal
e o tempo auto-flagela o corpo invisível.













O RUMOR DA CONCHA



Ao rumor da concha ouço a canção das marés,
me vejo a sonhar-me oceano em cavernas de coral,
a vida represada nas artérias do silêncio
filtra o passado das águas no coração do mar.

Dentro da concha em minhas mãos
a auréola da noite me faz perguntar:
“QUE JAZ no abysmo sob o mar que se ergue?”

No abismo me ponho a sonhar ...





A CASA REVISITADA





As minhas chaves abrem e fecham
os dois lados do vazio
encravado nas portas semi-abertas. Ao entrar,
abro as janelas para sentir
dentro e fora das vidraças
o que se passa
ante o mundo dividido em transparência.

Minhas chaves e dedos giram e jogam
o ambíguo jogo de amar o que se foi
e o que ficou sem corpo e nome:
nas grades, a vida entre curvas e retas
de uma forja enternecida,
flores vivas nos vitrais
inda úmidas de chumbo, luz
e noite.

Ao movimento das portas entreabertas,
livre de fantasmas e exílios
a casa pressente comigo
a ante-linguagem das coisas da vida
engastada na aldrava do desejo.



CONTRA-MÃO
Escribas do tédio em dias sem remédio
são carros mordendo a contra-mão. À vermelha
maçã! Seguir ou comer? Eis a questão.





SARÇAS D'ÁGUA

Sarças d'água longe e perto, vai-se a nave
a jogar o mar no porto. Quem viu o náufrago?
Quem viu o sal salgando o lábio do morto?



PEDRA-DE-ARRIMO






Nos muros da cidade o sol solando bolos e lesmas
grava fundo lápide lapso lâmina entrincheirando
o cio da luz em farinha de tempo limo pedra-de-arrimo.













%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%








CRÔNICA DE UMA LEITURA DE IMAGENS RITMADAS
EM BARRO E SOPRO


Mirian de Carvalho





         Em Frauta de Barro, a poesia tem início no título deflagrador de imagens e cadências. Frauta  em vez de flauta  não é obra do acaso. A sonoridade induziu o poeta à recorrência fonética, integrando imagística, ritmo, prólogo e tema, como por metáfora podemos ler na figuração do cantar emanado dessa frauta: Em menino achei um dia/ bem no fundo de um surrão/ um frio tubo de argila/ e fui feliz desde então;/ rude e doce melodia/ quando me pus a soprá-lo/ jorrou límpida e tranqüila/ como água por um gargalo . Insurgente intróito dessa obra, nestes versos de Variações sobre um prólogo encontramos os sentidos da matéria da frauta desvelando-se numa fricativa sonoridade, saltando gargalo a fora, ao conceber desse instrumento a melodia, jorrando  límpida e tranqüila. Esse cantar, por metamorfose do mundo, abre fremente caminho d'água a jorrar, trazendo em si o que se esvai, e permanece, no afinado canto, dando vida aos seres nascidos do barro. Com o referido poema anunciando variações sobre um tema, Luiz Bacellar se apresenta para ouvir e dar ressonância à voz dos seres encantados no dia-a-dia, pulsando, ao alcance da lira, cabendo com relação a essa obra afirmar-se uma das poucas coisas que podem ser ditas sobre a Poesia: a originalidade de um poema, ou seja, a diferença poética emerge através de recursos imagéticos e rítmicos, enriquecedores dos dizeres poéticos contidos no acervo da língua vernacular do poeta, com valores de universalidade.

Por isso, quando tentamos classificar a poesia dentro de um estilo de época, há poetas e poéticas que sobressaem, trazendo-nos uma apreensão original do versejar: imagem e ritmo ressaltam a diferença / diferenças no inusitado do dizer, se procuramos a similitude classificatória. Dito de outro modo, urdindo a trama rítmico-imagística renovadora da linguagem no curso da poesia, o verso sobrepuja o verbo, enquanto os sentidos sobrepujam o significado. Criam-se novos seres e referenciais, para amparar aquilo que sentimos e / ou sabemos do mundo aos nossos olhos. Nesse caso, imagem e ritmo têm uma acepção própria, expressam diferenças em meio à similitude, singularidades na ordem da repetição. As diferenças poéticas, pontuando tensões entre o esconder e o mostrar, revelam instâncias da ante-linguagem e da pós-linguagem, dando peso ao não-dito como emergência e fluxo do poético. Desse modo, rastreando na leitura da poesia as sugestões esboçadas na metodologia de Gaston Bachelard, imagem e ritmo ganham acepções singulares se apreendidos numa abordagem fenomenológica , isto é, no momento ressonante de um verso, ou de um poema, quando apreendido na sua imagística e ritmo, definido-se desse modo um método de leitura da poesia.

Como ponto de partida da construção do método criado por Bachelard, podemos estabelecer os seguinte princípios: a noção de imagem poética  entendida como processo de desvelamento do inusitado, surpreendido pela imaginação do poeta, ao captar os sentidos do mundo  reunida à noção de ritmo, como cadência qualitativa e sistêmica das sonoridades marcantes no poema. Dádiva da imaginação ativa, produto da criação poética apreendida, também, pelo leitor, a imagem é origem, nunca reprodução ideativa ou pós-perceptual, nem substitutivo, nem fantasma mnemônico das coisas ou situações, outrora vividas ou presenciadas. Com sua força criante, a imagem tem poder ontogenético. Ao desvelar seres singulares, ela instaura uma ontologia, a partir da qual a poesia deve ser lida como partejante imagística ritmada. Nessa leitura, não só as repetições pertinentes às formas isométricas e / ou fixas de versejar, mas também as repetições de outra natureza  no verso livre  engendram, na eclosão da imagem, cadências qualitativas, que ultrapassam as regularidades formais para realizar o poético, criando modulações que transcendem as quantidades e recorrências de ordem morfológica.

Seguindo tais princípios de apreensão da poesia, em Frauta de Barro as diferenças enriquecedoras do acervo poético da língua e da linguagem são elaboradas na tessitura temática do cotidiano, poetizado em ritmos engendrados por recorrências isométricas, rímicas e, por vezes, pelas formas fixas  como o soneto e o sonetilho , construindo cadências inusitadas através de um sistema imagístico original.

Trata-se de um sistema de imagens inventivas da amorosidade das coisas ao alcance do tato. E dos sapatos galgando espaços na cidade natal do poeta. Eclode, assim, uma ontogênese: surgem imagens que atuam como matrizes, dando origem a outras imagens e articulações rítmico-lingüísticas capazes de criar sentidos para as coisas e lugares, que não conhecemos e / ou julgávamos conhecer. Tais imagens não descrevem, não pretendem substituir os objetos, nem se referem à memória das relíquias perdidas no tempo. Em Frauta de Barro, a imagética atualiza o mundo diante de nós, expressando a singularidade das experiências vividas pela primeira vez, nos poemas ritmados nesse instrumento de argila. Inusitadas, inconfundíveis e criantes, as imagens surgem e sonorizam-se despertadas pela fala, pelos sentidos, pele, nervos e meandros das coisas e lugares animizados pelo olhar do poeta. Desse modo, as imagens se põem a ultrapassar a sintaxe dos versos, revelando-nos âmago e superfície do mundo concebido pela amorosidade lírica, pelo cuidado do poeta na sua versão qualitativa do ritmo e da linguagem, transitando em animus e anima: forças fortes e forças tênues a criar a poética daquilo que pulsa em torno de nós. Imagem e ritmo realizam a poesia contida  e incontida  em Frauta de Barro, jorrando temas e motivos de argila e sopro.

Relendo Frauta de Barro, dentre baladas, sonetos, e outras formas de versejar, o autor não cedeu aos arroubos experimentais que dão notícia na mídia, mas ousou reinventar a isometria na musicalidade da redondilha, acolheu o decassílabo, visitou a regularidade de outros metros. Rimou, cadenciou a medida, transformando-a em qualidades imagístico-sonoras de um fluir rítmico, que não se perde um instante no todo desta obra, em que o título já é poesia a tonalizar o prenúncio de outros cantares, animizando utensílios, urdindo o nome das ruas e dos becos dos subúrbios de Manaus, com seus moradores e estórias de mito, cotidiano, morte e encantamento, numa epopéia com recortes líricos. Sendo prevalentemente lírica a sonoridade dessa frauta, seu sopro espalha desígnios de um eu atento, a criar lugares, coisas e seres viventes vislumbrados pelo poeta, caminhando, sofrendo e "saudoseando-se", ao modular a temática nascida do barro. Nessa poética, o eu se revela nostalgia do esquecido, abandonado ou morto, revivendo o despertar entre nascedouro e finitude das coisas renascidas na poesia. Em amorosidade, visitando o dia-a-dia, o eu  sofrendo e registrando sua presença e circunstância  vive e funda lugares, enquanto "seus personagens" agem, vivem, e alguns morrem, rodeados pela poética do mundo na quietude turbulenta de sua Manaus. E logo alcançamos o sentido do seguinte dito filosófico: "A poesia é uma metafísica instantânea" . Na fugacidade de um verso ou de um poema, ela reúne o eu e a imensidão cósmica (ou amazônica, dizemos) das coisas, vivendo intimidade e vastidão de um fluir e extasiar-se no instante poético. Em Frauta de Barro, eu e kósmos se encontram, seja na rua ou no beco, seja em estrondoso caso de um crime beirando a lenda ou no dorso de um monstro mandado por Ogum-São Jorge, ou na imensidão recôndita de um objeto de bolso: no grafite do lápis, na alada caneta-fonte, registrando a vida dessa frauta plasmada em barro e sopro, assim como nos diz o poeta, ao fazer o inventário do mundo: É o tema recomeçado/ na minha vária canção. Ou, de outro modo dito, se o poeta nos perdoar esta licença: Imagem soprando o barro/ poesia em recomeço/ ritmando nostalgia/ frauteado solo e som.

Frauta  em vez de flauta  não é obra do acaso, dissemos no início. Instrumento musical e ouvidos, voltemos às primeiras notas melódicas: Em menino achei um dia/ bem no fundo de um surrão/ um frio tubo de argila/ e fui feliz desde então;/ rude e doce melodia/ quando me pus a soprá-lo/ jorrou límpida e tranqüila/ como água por um gargalo.

Como água fluindo, desse achado de sonoridades jorram memórias imemoriais, agonias e cadências  despertadas pelo sopro  realizando-se fonte de descobertas na dualidade ritmada de rude e doce melodia. Uma dualidade ambígua do existir, como as coisas perdidas e encontradas, nostalgia da presença e da ausência, a burlar o tempo em fuga nos acontecimentos instantâneos, presentificando no poema aquilo que ninguém nunca viu e/ou não crê sonoro: E mesmo que toda a gente/ fique rindo, duvidando/ destas estórias que narro, /não me importo: vou contente/ toscamente improvisando/ na minha frauta de barro.

Com o trabalho das mãos, em tempos remotos, essa frauta se moldou em argila. Não poderia ter sido feita de outro modo. Que outra matéria registraria tanta musicalidade em rude e doce melodia? Que outra matéria poderia extrair de si mesma a sua própria matéria e sopro, arcaísmo e atualidade, poesia e existência? Desdobrando-se em ritmos e motivos, assim nos lembra o refrão a origem dos matizes musicais desse instrumento: É o tema recomeçado/ na minha vária canção. Essas variações, essas canções temáticas, seguem a desdobrar-se no mesmo poema, numa espécie de prelúdio para outras canções entreabrindo-se à poética vindoura, então anunciada: Jorre a módula toada/ com seu churriante humor/ que sempre com ar de magia/ sai o canto do cantor. Da matéria da frauta o poeta vai urdindo a sua magia, vai registrando as surpresas do olho numa inscrição sobre o muro, a reter a memória arcaica: Nos longes da infância paro;/ há uma inscrição sobre o muro:/ Frauta clara, arroio escuro,/ frauta escura arroio claro. [...] Tudo volta de monturo/ da memória em rebuliço./ Mas tudo volta tão puro!...
Em verdade, nada volta, bem sabe o poeta. Mas na imagem nascente a colorir o ritmo, isto  que ao cantor volta tão puro  não é nem a infância, nem a memória reprodutora da infância, mas o primeiro instante de vida das coisas transpirando, vivas, em lugares arcaicos e hodiernos, quando tocá-las significa descobrir a primeira experiência do mundo. Então, nossa infância pode realizar-se aqui e agora, no maravilhar-se das coisas no nascedouro. Surrão, frauta, argila, ao vê-los pela primeira vez, com o primeiro olhar de uma consciência ingênua, e perspicaz, eles assumem uma primeva existência, livres da dúvida ou do riso, relembremos: E mesmo que toda gente/ fique rindo, duvidando/ destas estórias que narro,/ não me importo: vou contente/ toscamente improvisando/ na minha frauta de barro. Improvisando, nos sugere o poeta a magia confirmada nessas estórias: as coisas nos olham, se descobrirmos seu destino de casulo, crisálida e poesia. Ao ver as coisas pela primeira vez, estamos não na nossa infância biológica, mas numa infância revelada pela poesia em ato. O poeta vê, ouve, acaricia e sofre o mundo. Anticonceituais, oníricas, sem pecado, assim ele nos revela as coisas desdobrando-se de si mesmas para o tempo do poema. O tempo poético se torna para nós o impulso da instantaneidade que se vai  e permanece  na poesia, no momento em que tudo é descoberta e consciência da finitude do ser. E da finita infinitude da poesia. Desconhecendo o transcurso da sucessão temporal, o arcaísmo se faz instante, presença e permanência. Poesia, temporalidade alheia ao tempo cronológico.

Em Frauta de Barro, o tempo da poesia  um tempo instantâneo  nos conduz à trajetória das coisas inventadas pelo sopro moldando o barro, pelo barro direcionando o sopro em imagem e ritmo  colhidos em nativo solo de rubro fruto: Se vires, leitor, o que há de/ agreste no que aqui trouxe/ com estas canções que colhi,/ sentirás minha saudade/ povoando o gosto agridoce/ das amoras que colhi[...].

Lançando ao tempo poético os lugares, as coisas, e as gentes, o som dessa frauta de argila inaugura seu kósmos telúrico harmonizando instrumento e arte, fôlego e barro, a moldar a sonoridade na sua própria matéria. Nesta matéria, a terra é o elemento poético da imaginação nascente em imagens que não reproduzem a realidade sensorial, mas instauram uma ontologia acolhedora dos seres emanados do sopro poético. Nessa canção, a terra se reconhece planeta, solo, elemento arcaico das mitologias, matéria da frauta e do canto, e substrato poético de uma epopéia do cotidiano vivido pelas incursões líricas do poeta: É o tema recomeçado/ na minha vária canção , lembremos.

Tendo o poeta encontrado sua frauta e fonte, o mundo estremece de indagações: E esse cavalo capenga?/ E esse espelho espedaçado?/ E a cabra? E o velho soldado? E essa cara solarenga? . Perguntas para si e para a vida, prossegue o cantor: São temas recomeçados/ na minha vária canção. [...] . Repetindo este refrão, ele retoma seu tema  fardo e quinhão de quem sai pela vida com olhos de ver. Para sair, ele se veste: Com seu paletó de brumas/ e suas calças de pedra,/ vai o poeta. Mas antes de sair, junta seus objetos de estimação e os guarda bem guardados e cadenciados em Dez Sonetos de Bolso. Primeiro, separa o lenço. Depois, o canivete. Do imemorial surrão, do bolso e das gavetas, o poeta extrai seus pertences, revelando-nos pulsações e "desutilidades" no fôlego dos utensílios de formato pequeno, que consigo habitam. Nestes dez sonetos dedicados a objetos do afeto, além do lenço e do canivete, são focos de cuidado: o relógio de bolso, o porta-níqueis, a caixa de fósforos, o lápis, o cigarro, a caneta-fonte, o chaveiro e o isqueiro. Cantados no metro da redondilha maior, vão eles girando líricos, girando como astros de um sistema solar, com dez planetas de quatorze luas de sete fases sonoras. E prossegue o poeta levando no bolso seus pertences de inestimável amorosidade: papafigo sem verga, rosa do tempo, âmago de grafite, algema de estanho...
Nosso poeta saiu de casa para rever sua cidade. Ao caminhar, tudo é antigo e atual, enquanto ele passeia pelos lugares, pelos nomes e lendas dos recantos, onde construiu seu Romanceiro Suburbano: um romanceiro de antigos becos, casas e ruas habitados por gente de hoje e do passado. Lugares de antigamente, e de agora  tudo está ali. Pessoas de outros tempos, e de agora  todas estão ali. Tudo. Todos. Presença, saudade e memória vivem a epopéia dos muros, paredes e logradouros poéticos. Quanta estória de rua e poesia! Balada da Rua da Conceição: balada com motivo e ofertório, cantando as casas derrubadas naquela rua. Os ratos, a saparia, o lixo, o sobrado da viúva, o circo, os urubus... Tanta coisa perdida: Onde irão os jornais velhos?/ Onde? E as garrafas quebradas? Ao perguntar-se, o poeta se põe a ouvir as mangueiras sussurrando pelas folhas suas mazelas, e surpreende o ocaso da mangueira casimiriana: Ai que saudades que tenho/ do tempo em que não sofria/ reumatismo nas raízes/ e não tinha cicatrizes [...]. Cantando memórias de animais, vegetais e "gentes", o mundo do subúrbio renasce em cirandas e baladas, para ouvir outras árvores, para contar das brigas do Crube "Todos os Santo"/ donde Cristo é jogadô,/ é centravante de time [...]. É o tema recomeçado/ na minha vária canção.

Embrenhando-se pelos meandros dos bairros, o poeta descobre que as casas antigas foram reformadas e descaracterizadas: São 13 casas unidas,/ são 13 casas nascidas/ no mesmo lance de rua, [...] Das 13 só restam 11:/ 2 foram demolidas [...]. Com a inexorável destruição dessas moradias, restam, entretanto, nos logradouros seus oralizantes nomes, que vão sendo trocados de acordo com as estórias do lugar: E o beco da Gameleira/ desta data pra diante/ Beco do Saco-do-Alferes/ conhecido se tornou [...] É o beco "Saco-do-Alferes"/ "Chora-Vintém" desde então. Entre personagens, lendas e histórias que fizeram o nome dos lugares, nessa ambiência situa-se, igualmente, o fantástico na assombrosa estória da Neca , por castigo carregada pelo monstro: E São Jorge Ogum mandou.../ (Saiu das águas um bicho/ coberto de limo negro/ que com a Neca carregou.)[...]. E quem quiser saber o porquê, que trate de ler o poema.

Esse cancioneiro prossegue com estórias de virgens santas e, passando pelos milagres, podemos assistir ao torneio de papagaios, empinando no azul este brinquedo e encantamento de menino, de gente grande, e de poeta: Na liça das nuvens/ a justa do azul:/ estrelas e arraias/ sóis e paparolas/ pipas e pandorgas [...]. Dando continuidade às andanças pelo subúrbio, o estômago recria seus motivos com ingredientes e temperos na Receita de Tacacá: Ponha, numa cuia açu/ ou numa cuia mirim/ burnida de cumatê:/ camarões secos, com casca,/ folhas de jambu cozido/ e goma de tapioca. Repasto do céu ou do inferno, terminada a refeição, no passeio do poeta não faltou a visita às Paróquias. Em algumas delas, o humor de fescenino escárnio: Seja paróquia ou piroca/ tudo vem a dar no mesmo/ pros padres redentorista.

Crimes. Toponímia. Personagens, Costumes. Sátira. Em Romanceiro Suburbano, o tom épico recebe acentos líricos, lirismo que se expande na medida dos sonetos decassilábicos, colhendo outros motivos e inaugurando lugares poetizados em Sonetos Provincianos e em Três Noturnos Municipais. No poema Porta para o Quintal, a porta, este objeto de direções e desejos ambíguos, se abre para o poeta. Sol, brisa, folhas da sapotilheira, calhas de lata: coisas de chuva e vento conversando/ quais velhinhas comadres; nos varais/ a roupa brinca de navio de velas/ minha perdida infância reinventando... Da imagem ao ritmo, tecendo qualidades de reinvenção nas coisas prosaicas, encontramos o poeta entre azul e vento, céu e sopro, partilhando o ofício de espera, quando o trabalho é tempo e expectativa nas mãos das lavadeiras: A roupa nos varais panda flutuando,/ com seus laivos de anil coando a brisa,/ até parece ávida nau cortando/ o mar azul que a leve espuma frisa.

Do quintal aos becos, das ruas ao campo-santo, o som dessa frauta se torna acentuadamente grave, na entreluz das tumbas, guardando a distância dos mortos adormecidos em noturnos de saudades e mistérios: As águas encrespadas pela brisa/ gravam na praia úmida do pranto/ das órfãs de afogados o seu canto.

Continuando nossa leitura, chegamos a Dois Escorços, conjunto de poemas que assinalam momento e surpresa das coisas e lugares entrando outra vez em cena. Dessa vez: o vaso de barro, o armário do pintor, a escada. Da mesma matéria de sua frauta, o pote tem trejeitos humanos: o velho pote poroso/ longo bocejo dilata/ e esfrega as ancas de argila. A seguir, em tom de enlevo sensual, entra em cena o amor a uma senhora, na paisagem de mangues e praias de oralizante confissão em redondilha maior: Ah quanto! nas noites frias/ com as nossas mãos enlaçadas/ nós pervagamos sozinhos/ em mútua contemplação. Dando continuidade à temática do amor, temos outro encontro de alongado verso marcando o peso e a longitude do tempo em solidão: [...] Os trapos da paixão drapejavam triunfantes,/ (os ventos do pudor contra mim conspiravam/ a erosão da recusa  ó insurreição de mitos!) [...] como as valvas de uma ostra se fechando entre espumas/ e eu caminhei sedento contra o sol poente. Entre a ambiência de romântico erotismo em Rimance Praiano e o sensual amor impossível de Estudo de Marinha em coral, ébano e marfim  poemas representados, respectivamente, através das duas últimas citações , a sugestão de sensualidade ganha outro colorido no acento erótico de Anacreôntica, instante das sonoridades metamorfoseando os signos convencionais, para saudar o amor carnal em versos de quatro sílabas, ritmando a respiração de curto fôlego, ao furtivo encontro: urnadesândalo/ conchainsonora/ laivodeaurora/ cristaldeescândalo [...] nácarbivalve/ tâmaralouca o/ tomar-te-à-boca o/ anjo me salve [...] a mim me baste/ teu brilho esquivo/ no próprio engaste/ de coral vivo[...].

Prosseguindo nos motivos de mar, o poeta entalha a caravela das viagens do grumete: A caravela pequena/ bóia no mar infinito [...] . Segue-se a essa viagem a mítica do número "sete", a assinalar todas as imagens do poema: São sete canções de mito,/ são sete campos de gritos/ congelados  são medusas[...] São sete imortais pecados[...] São sete cores no céu, [...] Sete bruxos blasfemando, [...] . Nessa magia do "sete", cumprem-se três seqüências de sete tercetos com versos de sete sílabas, até chegarmos ao motivo da escada fundando sua "poética do espaço" , em outro poema. É o tema recomeçado/ na minha vária canção . Ouvindo repetir-se o refrão do poeta, seguimos a poesia a transitar pelas imagens da vida e do desconhecido, galgando degraus de pedra: A escada nasce do sonho/ pelo sono revelada. Com relação a este motivo, lembramos a observação de Bachelard, registrando: por ofícios da poesia, algumas escadas sobem sempre e outras sempre descem  como a do porão e a do sótão , respectivamente. Mas, na poética da frauta, a escada sonorizada é reversível, convive com dois vetores, sendo duplamente poética. Direcionando-se entre ascese e descese, dois nortes escolhem aquele que deverá percorrê-la, subindo ou descendo: Vejo-a, neste momento, exata e ampla./ E um menino, vestindo um camisão/ branco, a subir por ela, mansamente,/ vai. Com uma estrela na mão... Porém, assinalando outra direção, o poeta registrou: A escada desce também:/ para os anjos rebelados/ que não temeram fitar/ a face feita de raios [...]. Nos sentidos de poesia e asas, os arcanjos podem escolher as duas direções: descem e sobem por ela,/ por ela sobem e descem[...] . Concluindo Dois Escorços, o poeta compõe canções de lâmpada e luz. A seguir  conduzindo seu barquinho de papel , ele direciona o pequeno brinquedo da infância: Vai barquinho de papel/ pelo enxurro da sarjeta, [...] . Esse barquinho navega improvisado mar de chuva, leva o destino do cantor, e conduz a existência, assim referida: Sim, abjeta e repelente/ existência que se abate,/ contra quem tudo contesta,/ contra quem tudo combate.

Por fim, a sonoridade dessa frauta recomeça seu tema nas sete canções de Poemas Dedicados, sete poemas compostos com metro e motivos vários de canto e louvor, abrangendo: o diálogo com a engenheira poética de Cabral; a visão de sono e serpe na ambiência da morte divinizada por Dante; a rosa da dúvida, no poema para Rilke; para Hölderlin, percurso e perder-se dos deuses na Montanha; com vestígios camonianos,  para Ricardo Reis  uma reflexão sobre a existência e a liberdade; no canto dedicado à poesia cênica de Chaplin, o riso  e lágrima  dando claridade à existência. E, à guisa de fecho de uma epopéia do sentimento do mundo, em tom mais grave, com o canto do funeral o poeta faz a saudação a Lorca : Ay, ben no mei dun trigal/ enterraron meu poeta![...] Nun canteiro de papoilas/ e ben no mei dun trigal! [...] Ay, esse trigal  seu povo!/ esse vento  a tirania!/ papoila do seu martírio!/ fonte da sua canzón!

Entre seus pares de fôlego e arte, Bacellar  com senso crítico, humor, e lirismo  registra seu cantar no acervo universal do desvelamento do mundo no instante da imagem ritmada: no instante poético, instauram-se o ser e o devir das coisas transeuntes ante o eu e o mundo. Para desvelar este ser / devir da vida e do dizer, o poeta não tirou a roupa nem na rua, nem no palco. Simplesmente, vestiu-se e, atento, pés no chão, caminhou pela sua cidade: com seus sapatos de musgo/ (camurça verde dos muros)/ com seu chapéu de abas largas (grande cumulus escuro).[...]. Vestiu-se para acolher a poesia insurgente, gravando-a em saudade e primevo canto: É o tema recomeçado/ em minha vária canção.

Atual, ainda que escrita há mais de quarenta anos, esta obra nos revela a diferença poética  a originalidade rítmico-imagística da poesia  através das sonoridades eclodindo por ofício melódico. Nesse cantar, contrariando os arroubos sígnicos esvaziadores do universo poético, percebemos que o metro, o recurso rímico e a forma fixa não significam obediência à tradição, mas insurgência e opção estético-estilística, para gravar na argila da frauta o sopro adequado a cada tema, ao poetizar-se a perplexidade do poeta diante dos sentidos do prosaico. Recorrentes, as imagens das coisas e dos lugares simbolizam o corpo, sendo elas matizadas pelo cantor inaugurando uma "poética do espaço" , a pontuar o seu estado anímico ante as circunstâncias da vida e da cidade: Frauta clara, arroio escuro,/ frauta escura, arroio claro.

Em meio a demolições, ao lixo, aos ratos e urubus, em meio ao lirismo que resta para referendar sua cidade e poetizar os objetos, com afinado instrumento musical o poeta vai soprando a cor cinza da poeira que tinge as coisas do dia-a-dia. Épica e lírica, barro e melodia, essa frauta vem rastreando o pensar poético: um pensamento dinâmico que vai ao fundo das coisas e da linguagem, refletindo-se no fazer poético.

No fazer arquetípico inscrito em Frauta de Barro, observamos uma consciência desse fazer, uma instauração de vários núcleos significados engastados no universo temático dessa obra. Em tais núcleos, entre variações de imagística e ritmo, percebemos que tais diferenças variacionais refletem uma dialética do nativo e do importado, como herança dos "tempos de borracha e ouro", a tangenciar tensões alusivas aos contrapontos: "povo e elite detentora do poder," "província e metrópole", escrevendo histórias na cidade do poeta, hoje. E ao considerarmos o hodierno momento histórico das "globalizações" unilaterais, essa frauta nos faz perceber que, em terras do Brasil, a província está em quase todos os lugares. Poesia do âmago das coisas trazido à pele das coisas, Frauta de Barro tonaliza sua atualidade poética e ideativa.

Da argila ao sopro, do tema ao som, há lugar para o aludido pensar poético, aquele que desvela o fundo da linguagem e das coisas, porque a poesia não deve estar a serviço de passadismos alienantes, nos sugere Manuel Bandeira: O poema deve ser como a nódoa no brim:/ Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero./ Sei que a poesia é também o orvalho/ Mas esta fica para as menininhas, as estrelas alfas,/ as virgens cem por cento e as/ amadas que envelheceram sem maldade. E, ao contextualizar a obra de Bacellar, Tenório Telles registra: "Sua poesia funda-se no compromisso com uma percepção da realidade e do homem".

Na poética dessa frauta, barro e fôlego, lixo e nuvens, urubus e cadáver, ato e devir repetem no refrão o íntimo motivo desse cantar: São temas recomeçados/ em minha vária canção. No desenho regular desses poemas, a poesia se renova a cada verso, oferendo-nos parâmetros críticos de pensamento sobre o fazer poético, e sobre o mundo, como parte desse ofício realizado entre chão e fôlego. Entre silêncio e linguagem.


Mirian de Carvalho é Doutora em Filosofia, leciona Estética na UFRJ, membro da ABCA/Associação Brasileira de Críticos de Arte, membro da AICA/Associação Internacional de Críticos de Arte.