sábado, 28 de novembro de 2015

L. RUAS - APARIÇÃO DO CLOWN




APARIÇÃO DO CLOWN








desejo que este poema seja

um ato de adoração ao Cristo quando Herodes o chamar de louco

um gesto de amor a minha mãe, meu pai e às mães de todos os poetas

um laço de amizade mais forte entre mim, o Pedro, o Orígenes e a Luiza

um agradecimento sincero e fraterno ao Óscar e ao Clube da Madrugada.


L. Ruas

















descoberta



foi no tempo do luar pois não existe sol
no velho parque − tempo não maduro – 
que encontrei o sempiterno clown. 
queria ver-lhe a face. e sua face 
era imenso lago azul parado
onde a lua se repetia. lua.
queria ver seu corpo – um chafariz
era seu corpo de barro modelado 
aljofrando de estrelas e de pérolas
o céu e o chão banhados em azul.
apenas vi o velho clown beijando
uma boneca. e beijando-a chorava.
e ria ao mesmo tempo que
o destino dos palhaços é fundir
à luz da lua o alegre riso e o triste pranto.

e vendo ser inútil o meu esforço
de descobrir integralmente o clown
eu suplicante lhe falei assim





















discurso



faz mistério palhaço
e ri teu riso esbandalhado.
gargalha palhaço e faz sofrer
os que contigo riem e sofrem
e vivem.
canta a tua ideologia tirânica 
ó clown sentenciado
para fazer chorar os que riem.
ninguém entende tua vida mascarado
que se esconde atrás da cortina
das pinturas e das vestes.
onde está tua face palhaço onde?
além do além do horizonte
nas nuvens ou atrás da máscara?
onde está teu riso palhaço onde?
no pranto que improvisas
ou na dor que não gargalhas?
palhaço.
interrogação verde no cenário de carmim.
palhaço. olha o palhaço.
havia inocência e terror pureza e crime
em teus olhos abertos para o mundo.
luzes.
as luzes da ribalta não revelam
o que não dizem também
nem as cores nem os saltos nem as cambalhotas


que fazes no trapézio longínquo.
palhaço. quem já viu tua face
tua única face?
aquela que não é partida
aquela que não é pintada?
quem já beijou tua boca verdadeira?
as bailarinas beijam a boca mentirosa
a que canta a que ri a que chora
mas ninguém beijará o teu silêncio.
e tuas mãos palhaço e tuas mãos rosa
tuas mãos disfarce que nos enganam e alegram.
a bailarina lhe disse chorando – eu te amo.
ele riu. palmas. a cortina cerrou-se.
e se vestiu de nobre e deu esmola
para encobrir com seda e ouro o adultério.
palhaço. ri teu riso e oferece-nos teu almoço.
dá-nos o ridículo banquete onde comemos
rosas e suspiros e sorrisos.
e deixa-nos sonhar depois e depois chorar
tudo aquilo que não nos revelaste
a flor ainda em botão
não desabrochada não vituperada.
ninguém te vaia palhaço
todos riem somente da face mentirosa
da escandalosa face que nos ofereces
dizendo que é vinho.

todos beberiam porém teu sangue
seiva das árvores água dos rios lama das sarjetas
e comeriam tua carne que não ofereces.
carne de elefante néctar de bonina alma de passarinho.
a estrela pousou – sombra de sonho – em seu ombro
– venho do céu. vi o mundo nascer. sou como tu 
eterna. 
sou a mais antiga das estrelas de todas as estrelas.
dou-te todo o meu brilho se disseres
porque ris tanto se és tão triste assim.


– ora. vamos dançar.

e saiu para o palco dançando e cantando.
ninguém viu a lágrima que lhe molhou os olhos 
ocultos. 

palhaço.
flor-de-lis onde bimbalham chocalhos.
inocência e maldade água e sangue
azul e preto
lama e sapo.
ri palhaço que ansiamos por te ver no picadeiro
árvore estranha esquisita flor
não sabemos de que país ou de que planeta.
de onde vens palhaço? quê nos queres dizer?
fala que te espiamos cientista da vida.
tu gargalhas no palco o que choramos na vida.
embora te odiemos te amamos
pois te pareces com o menino que somos
e com o inferno que não deixamos de ser.
poeta de risos e de cabriolas
diametralmente opostas
teus trejeitos são a mais perfeita rima
que já encontrei para os poemas
que não escreverei.
somos crianças palhaço diante de ti
sou criança que não aprendi ainda
o que é o belo e o feio
o pranto e a galhofa.
o que é ser e o que é não ser.
pois tu és homem palhaço tu és homem.
clown desengraçado


bicho fantasiado de deus
em quem não assentam
nem
rabo de macaco
nem
auréola de arcanjo.
tu és verdadeiramente homem
pois tu somente revelas o segredo
honra e vergonha
que todos ocultamos.
palhaços dos anjos e dos homens
mito de farsa e de verdade
palco e vida
gargalhada e pranto
seres partidos
dois olhos
duas pernas
duas mãos
paralíticos
cegos e loucos.
apagaram-se as luzes?
ou as rosas morreram?









resposta 




apenas vemos sombras
sem conhecermos a luz.
percebemos a chaga
não tocamos a alma.
brasa em negro fogo consumida
semente bipartida.
julgas possuir toda ciência
se sabes rir apenas
quando é preciso rir
é mister no entanto descobrir
que também no muito riso há pranto.
a máscara sustem dois olhos
um é cego porém. de fato
só um olho vê. por isso
conheces silhuetas
e não a dimensão total
aquela dimensão que
por ser transdimensional
entre todas
é mais constante e mais real.
a caverna de platão.
que sabes das rosas renascidas?
Das estrelas em luz desfalecidas?
da liberdade e do amor?
ser livre em essência é ser cativo.





aviso


quando vires o pássaro ferido
vagando antes que surja a madrugada
não o tanjas nem o chames
deixa-o voar. não te apiades
deixa o pássaro voar.
ele comeu a estrela
e conserva no desenho do seu vôo
as dimensões incontidas
dos humildes gestos perdidos para sempre.
não chames o pássaro ferido.
não te ouvirá pois não sabes os seus nomes.
e ninguém há de estancar o vôo
que jorra eternamente
de suas vísceras fecundadas
pela essência intocada da estrela
sua prisioneira e amor.
uma estrela de fogo e de basalto.
de basalto e fogo, não esqueças.
e o pássaro mais ferido pela luz
do que pelas cinco pontas da estrela
sempre voará.
deixa o pássaro voar. quando ouvires
o tatalar – apenas ritmo – cansado
mas não vencido
de suas penas molhadas de arrebol
deixa o pássaro voar. não tentes


prendê-lo. a ilusão é mais mortífera
do que a desesperança.
o pássaro é essencialmente livre
muito embora suas penas estejam prenhes
de luz e sangue misturados. 
se vires por acaso o pássaro voando 
não o chames para o teu silêncio 
pois o pássaro é muito bom – é bom demais – 
para que tu sombra e demência 
o possas possuir. 
nem te deixes seduzir pelo seu canto 
que o canto das sereias de ulisses 
diante do cantar do pássaro ferido
é apenas ritmo – apenas esboçado.
mas não odeies o pássaro 
ama-o de longe. pois é forte
apenas um amor de morte.
puccini ouviu o pássaro cantar. 
e eu também eu palhaço o ouvi.
ouvi sua lenda e seu martírio 
a tortura da estrela e saí
no ontem no hoje e no amanhã
a procurá-lo.
fruto do bem e do mal.


romance


a estrela de fogo e de basalto tem cinco
chifres e se parece com a rosa.
de sangue.
aberta ferida gotejante 
no peito espalmado e branco deste pássaro em vôo.
de ouro e de basalto.
de basalto da etiópia e de neve da antártida.
quando o pássaro raptou a estrela 
ela estava sendo devorada por um peixe.
que adianta mais? ser comida por um peixe 
ou amada por um pássaro. ser ou não ser comido.
esta é a questão. hamlet tinha razão.
para além para muito além de todo sonho 
o pássaro levou a estrela devorada 
e mais alto do que as águias o pássaro voou. 
mas quando o pássaro quis partir 
para a aventura sem rota 
por mares nunca antes navegados 
por espaços nunca antes habitados 
para plantar no barro e na luz 
um reino instável e efêmero 
onde imperaram 
o gênio, a arte, a poesia e a flor 
foi então que nasceu o mais profundo humor –
– o pássaro devorou a estrela 
e a estrela o pássaro gerou. o palhaço dos homens.


martírio

a serpente a maçã a figueira e o lírio 
todos cantaram pela voz do pássaro 
nascido prometeu.
não prometeu acorrentado um dia 
no deserto e na montanha.
prometeu não morre é apenas devorado.
continuamente devorado prometeu continuamente vivo.
comem-lhe o sexo e a alma 
a carne e o sangue e prometeu não morre 
prometeu acorrentado um dia 
do amor na eterna penedia.
o amor nos prende e nos tortura. mas não mata.
o pássaro ferido tem sete bicos 
sete línguas de fogo sete olhos sete chagas.
tem olhos e não vê. ouvidos e não ouve. está ferido. 
suas asas sangrando sempre banham o mundo inteiro.
às vezes é de mansinho que eles chegam 
os sete amores filhos do amor.
ágape feriu eros letalmente. terminou a comédia. 
júpiter destronado. mas beethoven está cantando.
ou é o pássaro ferido? 
os trigais estão maduros para a ceifa. 
que importa a primavera?
mefistófeles zombou do doutor fausto 
e o venceu. mistério e luz.
ouve o pranto da estrela solitária
que se desfaz em canto.

canção

se eu chorasse
estas sombras
e estes símbolos
morreriam 

os diamantes quebrariam
as arestas
e os vulcões se extinguiriam 

se eu chorasse
dormiria logo
e cedo sonharia
o lago dos cisnes

se eu chorasse
o cavalo branco
que cavalga morto
comeria as rosas

e a rosa de barro
murcharia no jarro
em ângulos obtusos

não digais ao mar
a dor das pedras frias
não digais à mariposa 
a tortura da luz

o meu amado é
um pássaro ferido
não choro sua dor
nem curo seu amor

a maçã é muito branca
o peixe é muito branco
o lírio é muito branco
não é branco o amor

eu cantei uma canção
baixinho ao meu amado 
– “não chores pequenino
não chores que eu te amo” –

eu andei por longas ruas 
e por cidades perdidas
em busca do meu amor 
procurava uma rosa
so encontrei dissabor

perguntei aos que passavam
onde andava meu amor

mas todos olhavam atentos
para as mãos de um senhor
que fazia jogos engraçados
e ninguém me respondeu
onde estava meu amor

eu andei por teus caminhos
em busca do meu amor
os palhaços tristemente
despetalavam uma flor.

viagem

foi então que cheguei ao cais 
e as barcaças estavam todas 
amarradas ancoradas.
caronte me disse amargamente 
– “não voltarão mais nem dante nem virgílio. 
nem será dado a orfeu
ir salvar eurídice
a passagem está vedada
e as barcaças ancoradas
não mais navegarão por mares ignotos” – 
quando olhei para o mar vi na praia
os escombros da batalha. 
pontas de lança arcos flechas
corpos destroçados almas insepultas. 
uma criança brincava com as conchas 
e com a caveira de um herói 
– se não me engano era de aquiles – 
seus olhos eram de fogo 
e suas mãos de lírio.
a criança então me disse – “depois
que a serpente me feriu no calcanhar 
nunca mais fui ao deserto nem
ao mar.
as águas não me sustentam mais
e somente caminho na praia
pois temo naufragar.

espero o pássaro ferido 
e se quiseres esperar comigo 
senta-te na praia e não vás ao mar.
o mar é muito vasto e fera enraivecida.
já engoliu noivos e pescadores
e seduziu o pássaro ferido.
não te lembras do mar de suas pompas
e de seus sedutores artifícios?
de seus cantos falazes e dos apelos sedutores
com os quais arrasta para o abismo
do seu próprio nada os navegantes
inexperientes e desprevenidos? 
não procures no mar no buliço das vagas 
a sombra do teu amor.
eu mandei prender as barcas
e aguardo o pássaro ferido.
canta uma canção ao teu amor.”
como cantarei cantos de amor
nesta solidão? 
os cantos nascem apenas da união
do brilho da estrela com o ritmo do vôo.
como hei de cantar canções de amor
se ainda estou peregrinando
por essas praias de vidro?
a criança então cantou assim – 



apóstrofe

em vão hás de voar pássaro triste 
buscando o fruto verde não sepulto
nas praias naufragadas onde existe
a concha nacarada – peixe inculto

além de tuas patas espalmadas
o mar é brisa calma e mata bruta
as asas que se abrem limitadas
mergulham sem tocar na doce fruta

em curvas linhas retas canto e arte
te vejo entre o céu e o barro forte
comendo espaço e tempo sul e norte

buscando em vão o fruto que te farte.
quem sabe? pode ser que noutros mares
sacies teu desejo. é bom tentares.



o dragão e a flor

vi que a criança fabricava
uma espada que cortava suas mãos.
perguntei-lhe – por que fazes esta espada?
respondeu-me – é para matar o cordeiro 
que será servido no banquete
do encontro da estrela com o pássaro.
o mar tranqüilo e frio como o desamor
a praia de vidro. caronte preso.
cupido sem flechas na aljava
a antiga simetria de vênus lamentava
que a beleza da estrela avantajava.
então compreendi porque a esperar 
estava a criança tão sozinha
o regresso do pássaro ferido.
neste momento entre fumo e fogo de inferno 
surgiu do mar profundo um dragão.
o mar como gigante enfurecido
uivava em contorções
espadanando seus peixes e todas suas pérolas
que vinham espatifar-se loucamente
na polida face da praia de cristal.
ó desencanto das palavras que não chegam.
uivava o mar qual leão acorrentado
sob o peso imponderável do amor
do dragão que perseguia a flor.
a flor tinha redolências de mulher




e era pura como um anjo.
oh. as flores que aninhei em minhas mãos
trêmulas como úteros maternos.
oh. as flores perdidas para sempre
nos longínquos perfumes ressequidos.



“– não mais verás o encanto fenecido 
do dia e da noite
não mais terás ó lírio amortecido
as brisas leves do teu vale.
não mais.
não mais que vênus está extinta
e a estrela rediviva”.


assim cantou o dragão enraivecido 
então a criança correu para meus braços
gritando – “não deixes o dragão me seduzir”.
“– que posso fazer criança que não sou
poderei salvar por acaso o eterno jogo 
se habitas a praia sem dimensões
sem sol e sem luar?
por que me buscas se possues espada
e mãos de sonho e olhos de rubi?
sou apenas sopro vento vaidade nada
pó perfume cor sonoridade luz.
que mistério é este que sugeres
tentando penetrar nestas entranhas
fecundadas pelo canto do pássaro ferido?
então o mar partiu-se lado a lado
como um véu por invisíveis mãos rasgado
e engoliu o dragão.


prelúdio 

quatro cavalos passaram galopando 
em asas de águias sustentados
relinchando como se fossem trombetas sua voz
ou ribombar de trovões enlouquecidos.
olhei. estava só na praia. o mar quieto.
uma brisa dançava sobre as ondas
o prelúdio que chopin tocava soluçando.
depois vieram ninfas volitando
ao som de músicas ligeiras.
sumiram-se depois nas gotas do orvalho.
oh. a crosta espessa das palavras
que mal revelam o fulcro luminoso
da consistência do mistério vislumbrado.
quem está cantando perguntei são as rosas?
rosas?
quem está cantando é o coro dos palhaços.

coral

vigiai vigiai. 
preparai a veste
acendei o círio
acendei a ribalta
ressuscitai as rosas
e aguardai no amor
que o pássaro virá.



nênia

mas se o pássaro não vier como será? 
os trigais deixarão cair – inútil esmola –
os grãos de ouro no chão incandescido.
as flores murcharão – flores de pedra –
pontiagudas como espinhos secos.
as fontes coalharão suas águas
e teu sorriso morrerá qual fruto podre.
se o pássaro não vier
será a noite sem estrelas
e o sol não bordará mais de ouro e púrpura
as régias fímbrias do manto da aurora.
tuas mãos inutilmente chamarão os pirilampos
para os bailes feéricos no seio da floresta
se o pássaro não vier
a musica silenciará
na última corda partida
de paganini.
o basilisco e as víboras dominarão os caminhos
e ficará deserto e frio o último dos ninhos.
não mais
não mais terás o meu carinho
pois teu rosto de mármore será
estulto como estátua de museu.
se o pássaro não vier
inutilmente serás.

serás o quê? ser o quê se o pássaro não vem? 
ser o quê se não há mais flor?
ser o quê se não há mais ninho?




ressurreição do baile

mas
escuta
que vozes serão essas? 
de onde vêm? para onde vão?
olha.
as flores ressuscitam.
olha.
as estrelas se acendem.
olha o mar. olha a estrela de basalto e ouro
olha.
não vês ó triste cego o deserto reflorido
e as amendoeiras do japão e as borboletas?
olha o exército pronto para a guerra.
olha os coros dos serafins e dos arcanjos.
olha os noivos enfeitados para as bodas.
olha a brisa dançando na folhagem.
é na brisa que o pássaro virá.
virá com as línguas de fogo
e os cornos septiformes. olha as luzes.
vê as cores. ouve os sons.
tudo recomeça a vibrar e a dançar.
é o tempo.
olha a estrela de ouro e de basalto.
o pássaro ferido está chegando.



retorno


ele voltou dançando o mesmo balé antigo.
“– quem és tu esquisito ser luxuriante?
e estes guizos pendentes de teus dedos 
e estas chamas febris em teu olhar de ave?
quem és tu? perguntei – “e o fantasma
não me olhou sequer. subia e descia
em ritmo veloz e às vezes calmamente.
“– quem és tu? –“ perguntei impaciente
que o medo o pavor o riso a loucura
já de mim se apossavam. e o demente
anjo respondeu-me indiferentemente
“– de onde venho não sei nem mesmo sei
se algum dia nasci ou se apenas sempre nasço.
quem sou? rosa anjo fagulha do inferno 
semideus apenas gesto luz ou noite?
por que perguntas isso? por que queres saber
quem sou se eu mesmo não o sei? repara.
quando aqui chegaste a noite era nova
e já a estrela da manhã desfolha
uma a uma humildemente suas pétalas de luz.
não te direi quem sou. dorme e sonha.
acorda viaja estuda raciocina dorme.
não és homem por acaso não possues 
uma centelha divina ardendo viva
dentro do teu mais misterioso mar?
não direi meu nome a homem algum porém 
podes muito bem descobri-lo. sabes que a lua
é um satélite da terra. que o sol é uma estrela.
que tudo é relativo e três as dimensões do espaço.
que os corpos se compõem de átomos e moléculas.
conheces a inflexível lei da gravidade
que arrasta para o chão o barro do teu corpo.
descobriste no âmago das coisas íons e elétrons
o positivo e o negativo
forças que se atraem e se repelem.
conheces as rotas dos planetas e o caminho
das marítimas correntes dos ventos e das aves
e não sabes ainda balbuciar meu nome verdadeiro.
e eu não direi. espia bem esta paisagem.
lê de novo o poema. desce. vai ao fundo.
sobe depois. evola-te. transforma-te
depois em fumaça e em luz. não te afadigues.
o ritmo do meu nome é longo. majestoso.
quando souberes quantas rosas floriram
na paisagem perdida e de novo descobrires
o sonho inquieto e a aurora pranteada
alegra-te então. pois caminhas certo
rumo ao mistério inexprimível do meu nome.
agora olha bem para dentro de meus olhos.
que são eles? abismos caricias ou perdição?
fogo água tranqüilidade ou medo? 
e meus pés? vês? são pés de fauno grego
ou de arcanjo bizantino? não sabes?
não sabes decifrar o indevassável enigma
dos meus pés sempre velados?
não sabes entender a linguagem dos meus olhos?
sou demente sim. sou ilógico. hiperlógico. paralógico.
sou problema e sombra. queres saber meu nome?
queres me amar talvez ou odiar talvez.
sou vida esperdiçada ou morte indesejável.
e meu corpo se corpo chamar se pode
a esta mistura de feno e melodia
é tão instável como a dança histérica das chamas.
sou ar fogo umidade terra e água.
os quatro elementos? ah. os infinitos elementos.
sou móvel motor força motriz mobilidade extrema
e ao mesmo tempo sou suprema paz e quietude.
olha a lagoa onde revoam pássaros cansados.
olha as canaranas frágeis baloiçando 
e os aguapés dormindo brancamente.
olha as águas das lagoas diluídas
os cetáceos as serpes os palmípedes
e as ondas profundas que despertam
e uma a uma vão morrer nas margens.
e perguntas meu nome. sabê-lo não desejes.
à noite venho ver-te e te acalento 
no sono solitário e tão estrangulado.
fabrico sonhos e ao meu rude comando
as estrelas despenham-se e os planetas giram
na luminosidade sempre nova das noites consteladas.
não percebes o uivar dos ventos nas mangueiras
e na bonina que se abre como o ventre
da primeira mãe ainda virgem que já foi?
e meu nome não sabes. fui presente
nas metamorfoses de virgílio e na comédia de dante
iluminei camões e lorde byron
shakespeare foi meu fâmulo. joão da cruz meu senhor.
ensinei davi a dedilhar a lira
o outro joão eu visitei em patmos
e o bateau ivre era meu. dei-o a rimbaud.
sou chama e alma rio e danço
no fogo rubro amarelo azul e verde.
quando olhares o fogo observa bem
que lá estou como também estou
na palidez da lua sempre fria
e dentro de ti mesmo a conduzir
tua mão quando escreves os poemas
e sentes a tortura de dizer belezas.
pareço mau às vezes quando prendo a pena
e estrangulo a luz justamente no momento
em que começa a palpitar dentro de ti. 
mas se o faço é para despertar em ti
a sede onímoda de conseguir o mais.
agora vê. me vou. deixo-te agora.
vou como vim. apaga a luz
fecha os olhos e me verás no sonho 
o mesmo balé inicial dançando.



foi assim que partiu o tresloucado 
pois como os amantes é hostil
à luz do sol. é sombra seu império.
não trevas. mas a luz azul
que não é dia não é noite.
é luar.

legado

asas somente isso. angústia 
de fugir ao destino das raízes.
túrgidas velas singrando aberto espaço.
velas do destino de colombo
partindo em quilhas quase loucas para
o mistério das virgens descobertas.
asas de ícaro vencidas pelo sol
incauto icaro não sabias que
não é dado a palhaços ver o sol?
ah. o vôo de icaro presente
na dança de nijinski.
asas, somente isso. desespero
de ser barro e ao mesmo tempo seta.
asas apenas sugeridas
nas curvas nos voejos nas volutas
nos mantos e nas vestes do barroco.
asas de anjos de querubins de touros
assírios. asas custódias da arca da aliança.
asas nos calcanhares de mercúrio.
asas romanas. gregas. bizantinas asas.
asas egípcias. asas de papel crepon
dos anjinhos meninas das procissões.
asas até sim asas de avião.
asas do padre bartolomeu de gusmão.
asas em queda.
pois até para cair é mister possuí-las.
belzebu tem asas. sim. belzebu tem asas.
no céu e no inferno ruído de asas tatalando.

asas nos pés da bailarina tola do café noturno. 
antigo sonho. desejo antigo. eterna tentação.
asas. panos soltos ao vento. gazes leves.
e os braços que se erguem as mãos que gesticulam
asas as torres ogivais as fadas e as bruxas.
asas sonoras sibilando esses
verdes azuis amarelas incolores
brilhantes e opacas grandes e pequenas
das borboletas das garças das abelhas
das plumas dos polens do orvalho
asas imponderáveis e asas de granito
dos arcanjos que guardam mausoléus.
asas. geometria rude esboço mal riscado
pelos bandos erradios de pássaros selvagens.
asas no chão. asas no céu.
asas ensaiando vôo. é somente isso
o rebento verdolengo ao romper
a espessa placenta da terra dura e seca.
asas de águia em vôos altaneiros.
asas quietas pousadas em silêncio.

doutrina

sou cativo do pássaro ferido 
pois ouvindo sua lenda e seu martírio
por legado recebi este desejo
e da estrela tornei-me companheiro.
ó poeta não queiras pois é morte
e cativeiro conhecer a face do palhaço.
há milênios caminho sem cessar
sem ver o sol. apenas o luar
e a luz indecisa das estrelas
recriam esta máscara e fonte
do riso e da tristeza que oculta 
o meu rosto e corpo verdadeiros.
e assim caminharei eternamente
peregrino sempre sempre marinheiro
carregando meu fado torturante 
– semente feto messe em promissão –
de ser ave sem poder voar
de ser clown isto é ser e não ser.
mas tu poeta enquanto não puderes
te unir totalmente com o mistério
que te foge das mãos feitas de som 
une-te intensamente
às formas aos sons e às cores simples.
modela sem cessar
a chama que te queima a alma e as mãos.
não deixes que se perca uma só
destas fagulhas.
pois uma delas pode ser a luz
que salvará tua face passageira
quando raiar o sempiterno dia.













despedida


e o velho clown partiu beijando ainda
o brinquedo que a criança abandonara
no velho palco parque ou tempo sem memória.

sábado, 21 de novembro de 2015

GENESINO BRAGA - CRÔNICAS





GENESINO BRAGA por ROGEL SAMUEL


Nas mais antigas lembranças que guardo de G. B. eu era criança e ouvia a voz e suas sonoras gargalhadas já deitado no meu quarto no meio da noite: ele e sua esposa Dinoralva iam jogar cartas na casa de meus pais até tarde da noite – algumas vezes eles vinham, outras vezes eram meus pais que iam na casa dos Bragas.
Ainda hoje guardo (e uso) a caneta Parker 51 que me deu como padrinho de crismas. No meu aniversário ele não trazia brinquedos como todo mundo, mas livros de Monteiro Lobato e mais tarde a antologia que prezo ate hoje – “Obras primas da poesia universal”, de Sergio Milliet da Editora Martins.    
Fui um dos revisores tipográficos da primeira edição do seu “Fastigio e sensibilidade do Amazonas de ontem”. 
Ele era um homem extraordinário, tocava cavaquinho e gostava dos amigos. Dava grandes festas, a que acorria muita gente e era um anfitrião animado. Foi diretor do Rio Negro. 
Escreveu muito, mais de 1100 crônicas que ainda estão nos jornais de Manaus e correm o risco de se perder. Principalmente no “Jornal do Comércio”. Algumas são pura poesia. 
Ele era um homem que abria um vasto sorriso com facilidade. Era meu pai espiritual e eu o acompanhei durante sua vida literária e jornalística. Com 18 anos vim para o Rio de Janeiro, mas sempre o visitava quando ia a Manaus.  Estive presente no Rio de Janeiro quando ele recebeu a Medalha de Mérito da Ordem dos Velhos Jornalistas; estive no hospital em Belo Horizonte quando operou os olhos; e o visitei perto do fim de sua vida, quando já não falava, vítima de um AVC. Ele nasceu em 6 de dezembro de 1906 em Santarém, no Pará; e faleceu com 81 anos de idade em Manaus, em 19 de junho de 1988.
Foi jornalista, cronista, professor universitário, bibliotecário, diretor da Biblioteca Pública do Estado por muitos anos, membro do Conselho Estadual de Cultura e da Comissão Permanente de Defesa do Patrimônio Histórico e Artístico do Amazonas, redator oficial do Gabinete do Governador do Estado e integrante do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - Inpa. 
Curiosamente, em 1935 elegeu-se Deputado à Assembléia Legislativa do Estado. 
É nome de rua, desde aquela época, no Japiim, em Manaus; membro da Academia Amazonense de Letras (desde 1951/1952); membro da  comissão de reforma do Teatro Amazonas no  governo João Walter de Andrade (1971-1974), de cujo gabinete era redator especial. 
Como jornalista começou em 1927, no Jornal do Comércio, onde escreveu por mais de vinte anos. Recebeu a Medalha do Mérito Jornalístico (1971), participou da fundação da Associação Amazonense de Imprensa (1937), e foi escolhido jornalista do ano em 1965 e 1973, em eleição pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Amazonas. 
Recebeu está a Medalha Machado de Assis da  Academia Brasileira de Letras. Sua biblioteca pessoal tinha livros autografados por grandes nomes da literatura brasileira e ele era amigo de Álvaro Maia. 
Escreveu: “Nascença e vivência da Biblioteca do Amazonas”, (1957), que eu digitalizei e está integralmente online no nosso LIVROS ON-LINE e no nosso blog; “Fastígio e sensibilidade do Amazonas de ontem” (1960), editora Sérgio Cardoso; “Chão e graça de Manaus”, (1975) ; “Assim nasceu o Ideal Clube”; e “Lampejos de um cronista” (post-mortem), compilado pelo filho Carlos Genésio em 1992. 
Faleceu em Manaus em 19 de junho de 1988, aos 81 anos de idade.
Ele amava a vida. Quando vinha ao Rio, fazia questão de tomar um chopp no Amarelinho na Cinelândia com sua esposa, onde o acompanhei.


GENESINO BRAGA - CRÔNICAS





Danae e a chuva de oiro




Era uma vez linda princesa...
A lenda é meiga, ingênua e doce...
...e meiga ingênua e doce era melíflua Danae, filha única de Acrísiø, Rei de Argos, vivendo em sonhos a existência que os deuses bons lhe conferiam.
Num promontório sobre o Inacos, - o rio das fábulas dormidas — a virgem hauria os bens da vida, tinha a seus pés os rapsodos, tinha a suas mãos fadas benignas... Nobre e sensível castelã, de suas janelas ogivais olhava os pássaros alados, ouvia cítaras plangentes, ouvia épicos heróicos, que os ventos sísmicos das Cícladas traziam, em músicas vibráteis, a seus anímicos cismares...
Danae sorria e era feliz...
Seu negro olhar de noite flébil pousava brando nas paisagens que os nobres muros do castelo rispidamente circundavam. Seus lábios doces só se abriam a balbúcies pueris, Vênus de corpo escultural, sangue sem apelos nem desejos, não tinha ardor no coração. Não tinha Príncipe Encantado, não tinha anseios de noivado, não tinha dor, não tinha amor...
Danae era um sopro de blandície...
Danae era a paz da Criação...


Um dia, oráculo ardiloso, — prossegue o lúcido raconto — ao Rei prediz: morte inopina, às mãos de um neto, ele teria, em dia infausto do porvir.
O Rei medita e pensa em Danae, a linda e fúlgire princesa, a virgem e casta flor do Reino, a filha amada...
Mas, - rei é rei e a vida augusta, a realeza e o trono invicto devem ser logo preservados...

Toda de bronze, exposta aos ventos, ereta, altíssima, imponente, a torre-cárcere se ergueu no promontório sobre o golfo de ondas mansas, fugidias... Mandara o Rei edificá-la para encofrar a castidade da meiga e cândida princesa... Bem alto, em cela luxuosa, entre janelas gradeadas, no extremo andar da torre heril, a moça penitenciava a inibição de amor provável e de pecado original...
O velho eunuco-carcereiro trazia-lhe flores e frugais, contava lendas melancólicas de rapsodos passionais...
Danae, em seus pérfidos desígnios, - flor de inocência e de indulgência! – cumpria sem mágoas seu fadário...

Danae, em silêncio, meditava, fitava o muito azul do céu, errando em sonhos e quimeras, pedindo aos deuses proteção... Recorda Zeus em seus noivados, pensa em Semele fecundada, pensa em
Latona, mãe de Apolo, pensa Diana, Ceres, Io, em Mnemosina, em Alemena...
Virá do Olimpo a redenção!...

Eis que, em noite silenciosa, de ventos calmos, sem fragor, de pulcra ronda sideral, estranha chuva a torre envolve...
E chuva de oiro, luzidia, de fios aurifulgentes, joiando o âmago da noite, doirando o céu, doirando o ar...
Os fios luzentes, insolentes, penetram as grades da prisão e caem em volúpia sobre a virgem noite, explêndida, a dormir...

Compreensão... Revelação...

É Zeus, na sua metamorfose, divinamente enamorado, que, em seu poder de encantação, em oiro todo transformado, a bela moça enlaça e ameiga, em posse olímpica e sensual!...
Danae é o abandono sensorial, em seu estado de doçura, entregue ao ímpeto do deus, na graça íntima do amor...
Consumação... Concepção...
...e a lenda fúlgure prossegue: nasce Perceu e o Rei, irado, Danae e o filho atira ao mar ...
As ondas levam os renegados a terras outras do sem—fim, aonde se salvam e são felizes e vivem muito até que, um dia, os vaticínios do advinho se cumpram em fórmulas fatais...
A história mítica de Danae define símbolos morais. Transportam as ânsia dos milênios, esquemam lúgubres desígnios rememorados na consciência do fabulário emocional.
Danae reclusa e a chuva de oiro...
Danae passiva em doce oferenda de amor aos deuses vontadosos, para que, assim, de suas entranhas, surjam outros deuses protetores, ou nasçam ídolos e heróis.

Seiva do céu é a chuva de oiro em solo virgem, fecumdante, gerando safras e plantéis...
Pluviável bênção aurifulgente, que acorda os gênios e inspira os poetas, na enunciação da voz de Deus...
A chuva de oiro é a emanação da graça lírica do amor, essenciada de poesia, na ingênua lenda original...

Danae é o esplendor das germinais, nas férteis dádivas do amor, a reflorir pelas idades em mudas ânsias sublimadas nas espirais dos sonhos vãos.

Dai chuvas de oiro a Danaes outras, na torre altíssima dos sonhos, - e eis triunfal o ardil dos homens na trama poética das lendas, que se renovam pelos tempos e multiplicam-se no mundo, em tempestades hibernais de trovas, crônicas e cânticos de amor, de sonho e poesia...


SE TU PERDESSES A BELEZA...





Se tu perdesses a beleza... e o olhar intenso e a fala musicalizada, - ficarias sendo, não a mutilação da Obra Perfeita, mas a transfiguração da Obra Perfeita.
A pacificação da carne ansiosa, a sombra de êxtase nos olhos áridos, a suave tristura de uma boca sem canções, - tudo acordaria em ti uma alma sensorial de superfícies brandas, com a reprodução calada dos ecos todos que afirmam a força e a energia da Criação.
Irias gravar, nas cicatrizes dos pensamentos apaziguados, a doçura das noites de veludo que abrandaram as tuas ânsias. Afloraria, na tua saudade, a memória das imagens recalcadas no clamor dos apelos, para que as sombras dos instantes imperecíveis se transfundissem no respeito humano que a integridade de teus desígnios obrigaria.
Então, feito milagre de transmigração, a singeleza de tua nova consciência daria à vida a excelsa explicação do teu amor. Seria a libertação da alma postiça que teu corpo vestia, ficando-lhe a delícia de poder absorver, para indulgência e redenção, as essências da beleza incorpórea.
Ascenderias à Perfeição! Decifrarias no perdão do teu corpo sem desejo, o imutável segredo da composição estética da vida. E o doloroso fundo da tua natureza melancólica teria a participação da felicidade imaterial.
... e uma outra espécie de formosura – a Harmonia Interior – surgiria em teu destino, como um fluxo de redenção espiritual...
Oh!, se tu perdesses a beleza...




O SONHO DE ANO-BOM DA MOÇA LOIRA





A Moça-Loira entra na boite e os acordes do primeiro blue a arrebatam para a quintessência de seus doces devaneios...
A música é uma pasta melódica que escorre sons indolentes e sem pressa sobre o tablado da imaginação. Fermata infinita celebrando a suave tristura de algum recalque sem remédio... Sopro consolador da alma aflita, que suscita delitos impossíveis e gera o eflúvio dos pensamentos proibidos... Recado de todas as distâncias, no tempo, que a trompa emite e a alma capta no epitáfio dos ritmos desfalecentes... Solo exausto e sensual dos desesperos de sobreviver...
A Moça-Loira dança o blue no esvazamento da sua interioridade emocional. Dança e sonha... Uma espécie de êxtase votivo apazigua-lhe a carne ansiosa, em sua orgulhosa veemência de pecar. As sombras dos desejos insatisfeitos atropelam-se em fugas sensoriais, como imagens recalcadas da última tormenta. Sua alma é a paz; seu espírito é a indulgência dos apelos dilacerados; seu sangue a desmemória dos impulsos superados...
A Moça Loira sente, na nota elástica da música, a lenta filtração da mocidade. Os alaridos da entrada do Ano-Bom acordam-lhe os pensamentos sensatos na determinação do tempo. Há folhas de outono, já, moisacando paisagens à sua frente. A tênue penumbra ambiente traz-lhe a intimidade das vozes sentenciosas da vida... Mas, a Moça Loira é toda uma aceitação do irremediável, e seu fortuito pensamento de Ano-Bom. Dança e sonha... aos braços vigorosos que a enleiam, intencionais, outros mais sucederão, em líames táteis de volúpia, na impetuosa desintegração do plasma. Esquece, assim, os sopros rígidos do tempo e refugia-se na idéia vã de perpetuar o seu enternecido devaneio. As notas longas e lascivas daquele blue desapressado bem poderão suprimir todas as tintas da lembrança e deixarem-na parar naquele sonho, distanciada, em nostálgico recuo, dos festivos silvos e alaridos que saudavam, sim, a fuga de sua mocidade.
Ah!, o sonho de Ano Bom da Moça-Loira, no doce enlevo daquele lânguido blue de notas mansas...


A VALSA DAS DEBUTANTES






As debutantes dançam a sua primeira valsa....
A ronda alígera dos corpos harmoniosos acorda uma esperança ideal de vida nova...
As notas lentas debulham sonhos, desfiam rosários de carícias mansas, acendem as lâmpadas de oiro do primeiro amor...
Tudo refulge no deslumbramento desta noite maravilhosa!
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As luzes põem lampejos de cristal nos ornatos geométricos da pista...
Ágeis, frágeis, adejáveis, os pés mimosos descrevem a fuga das borboletas inebriadas pela fragrância dos nectários...
Parece que a alma da valsa se desagrega na tonteação dos pés em pontas; e à forma volta, donairosa, pelo ritmo das plásticas aladas...
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As debutantes dançam a sua primeira valsa...
Rodam, rodeiam, rodopiam, giro-girando em braços afetivos, na louçania dos movimentos graciosos...
A felicidade tem sorrisos de sol pelos seus olhos fulgurais...
Por suas cabecinhas inquietas passam procissões de sonhos em silêncio...
Nasce a primeira ilusão, em sua infinita pureza.
Brota o Enlevo!
Surge a Emoção!
... e eis o amor!...
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Todo o ambiente é de fascinação paradisíaca.
Na pauta das três essências do mundanismo – a Elegância, o Cavalheirismo, a Euforia – sobreexcele o espírito da Beleza.
A festa é uma divinização da “menina-moça”, glorificação pagã do “entreaberto botão e entrefechada rosa”. É o noivado da graça e do Amor!...
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Das cabecinhas tontas esvoaçam as painas dos pensamentos felizes...
A debutante dança... Dança e sonha... A dança é o sonho rítmico dos movimentos; o sonho é a dança azul dos devaneios...
Bailar é um vôo impossível que o corpo ensaia pelos rosais da Vida...
Sonhar é a suprema respiração da alma...
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A debutante dança... Deslumbrada, absorta, feliz...
Lá em casa ficara a última boneca; e a dormir sobre ela o último beijo de criança...
Agora, é a ditosa senhorinha de olhos ternos e coração aberto para os anelos do amor...
Sobrevoa-lhe o espírito ingênuo, em seu enlevo sideral, a esperança de uma felicidade perene...
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Povoai de graça e bênçãos, meu Senhor e meu Deus, a valsa e o sonho bom da debutante!


O SAMBA







Tem toda a cadência das falas, dos modos, da alma e da vida do estrênuo Brasil!...
Tem todos os ecos que afirmam os anseios, as dores e as mágoas da raça caldeada no sangue tapuio, na alma dorida do negro cativo, na lusa saudade do desbravador!...
Tem todas as vozes da faina dos morros, o ar dos barracos, o gingo das “negas”, a gíria solerte dos “cabras” matreiros, a ingênua crendice das velhas mucamas!...
O samba é o Brasil!...

Brasil que gemeu nas torpes senzalas e agora nos canta os hinos de glória da sua liberdade!...
Brasil de arco e flecha, que impou nas “entradas” do branco insolente e hoje se alteia, domina e triunfa nos prélios olímpicos; e faz, nas ciências, nas letras, nas artes, robustas conquistas de nobres lauréis!...
Brasil das “Bandeiras”, dos “Fortes” invictos, das lutas sem tréguas ao guapo invasor, que hoje repete façanhas heróicas em Monte Cassino, Castelo e Suez!...
O samba é bem todo esse alçado Brasil dos nossos poetas, dos mártires nossos, dos nossos heróis, que, em líricos versos, em vero holocausto, em feitos audazes, fincaram alicerces de paz e progresso, de impávida força, de orgulho e riqueza da altiva Nação!...
Brasil de Fernão Dias e Castro Alves!...
Brasil de Paraguassu e Maria Quitéria!...
Brasil de Marcílio Dias e Tiradentes!...
... de Ajuricaba e Felipe Camarão!...
Brasil da Princesa Izabel!...
E todos os vultos, viris, altaneiros, e todos os feitos augustos da pátria resplendem no samba seus dias de glória, seu vivo esplendor, no cívico canto de brasilidade, que o samba engrandece, que o samba enriquece, que o samba traduz!...
O samba referve cadências mulatas no sangue, nos pés, na alma, nos braços, no sonho, nas veias e no coração da grei brasileira!...O samba é o Brasil!...

Brasil verdadeiro, que mora nos morros, que corre nas praias, que sua nos roçados, que laça nos pagos, que corta seringa, que tange boiadas, que rema no mar...
... que cata garimpos, que doma sertões, que sonda petróleo, que ordenha, que pesca, que colhe e canta poemas de imensa ternura, em anelos de amor!...
Cantando e dançando, mexendo e movendo, bolindo e tinindo, repondo e compondo, - o samba é o Brasil!...
Brasil na glorificação da liberdade!...
Brasil na exaltação da nacionalidade!...



LUZES DE NATAL







Sobre os róseos berços de Gisele e de Monique, divinizadas na ressonância das éclogas pacíficas, refulgem as luzes de Natal. Vêm de noites estelares, na ronda cósmica dos séculos, clareando tempos e distâncias, levando ao céu ânsias e dores, trazendo à terra bênção e paz. São graças fúlgidas de amor, mensagens fúlgures de Deus, que brilham em súplicas e preces, que argentam sonhos, que doiram anelos, que expõem revérberos candentes no chão brunido dos caminhos, que, - auspiciosos, luminosos – conduzem à graças do perdão.
Monique e Gisele dormem e sonham, em seu berço de idílica pureza. Dormem e sonham, nesta noite de cânticos e hosanas, - no ar o aroma das apoteoses. Dormem sorrindo o afeto da inconsciência, sonham habitando em céu de doce enlevo. São os sonhos frágeis da inocência, sonhos azuis da puerícia; sonhos que vagam em mundos transcendentes e buscam à vida rumos de lindeza, - rumos que ficam em nossas ânsias de divindade e perfeição, gratos refúgios na tormenta, suaves abrigos no infortúnio, nosso conforto e proteção.
Os cursos lépidos de vida, que, sobre os meses de Gisele e sobre os meses de Monique, contam o bater do coração, somam nirvânicos desvelos, falam das horas de vigília, dizem do amor que mais sublima, revelam angústias e paixões. São dias de cândida existência, horas alíferas, fugaces, que se defluem em bem de graça, entre rosais e madrigais, sob apanágios de candura, nutrindo ricos cabedais de segurança e de esperança, - horas de frágil existência, robustecidas nas canções de acalentar, purificadas no calor dos colos santos e dos regaços veneráveis, maternais.
Na noite mansa de Natal, na noite-paz da cristandade, as meigas primas dormem e sonham... Flores recentes, lâmpadas novas, ornatos últimos da velha árvore de Natal, deram-lhe seiva, deram-lhe força e exuberância...
Deram-lhe a luz da estrela-guia, de céus distantes, da noite avoenga, - a graça e o bem da virginal concepção... Trouxeram o fulgor do oiro de Baltazar, a fragrância do incenso de Gaspar e a untura da mirra de Melchior.
Ah!, mas, dentro em pouco, nesta noite de cânticos e hosanas, Monique e Gisele acordarão... Meigos sorrisos de criança unir-se-irão ao todo harmônico da noite, - e seus olhos brilharão como as estrelas, e a seus ouvidos chegarão os estribilhos das preces leais que saem do coração, pelos votivos cânticos de amor, pelas ingênuas éclogas erguidas nas ladainhas e nas pastorais, - e pelos salmos de louvor e glória, - balsâmicos, anímicos, sublimes, - que dão beleza, amor e poesia à contrição universal.


NO “DIA DAS MÃES”








Estas pompas, estas festas, estes risos, compõem poemas invioláveis nas cicatrizes de velhas ânsias mal saradas. Elegem toasts ao Amor Materno, - manancial dos bens da vida, árvore de fronde rica pródiga em abrigo, jardim que a Mão Divina procriou para a germinação do afeto e da bondade!
Estas pompas, estas festas, estes risos, salmam e saúdam o Coração Materno, - emanação das bem-aventuranças que pacificam os conflitos da razão... veio do perdão e da doçura, em ricas dádivas, nas entranhas dos séculos... voz de renúncia e desistência, que aconselha e define com as sentenças de todos os instintos e as vozes sábias do pressentimento...
Mãe-Afeto!
Mãe-Ternura!
Mãe-Amor!
É em teus seios de veludo morno que se dissipam os pensamentos sem pureza e se refrescam as frontes fatigadas, batidas por cruéis desesperanças. É de teus olhos de perenes preces, úmidos, mansos, compassivos, que emanam os ungüentos lenientes para as horas de angústia e depressão... Tuas mãos são as asas do perdão supremo! Teus lábios soltam a música da vida e a poesia maior da criação!
Tu és Arrimo!
Tu és Consolo!
Tu és Amor!


O INSTANTE DIVINO







Daquela púcara de água fresca, que era a boca ansiosa de Danielle, rolavam as bagas da última carícia. Na sôfrega mitigação de mórbida sede de ternura, que a envolvia em posse extrema, todos os instintos se refinavam para a consumação do grande momento.
Na madrugada clara, da varanda de bambus debruçada sobre a praia, sombras de palmeiras esguias decalcavam as vozes do silêncio na paisagem fria. As ondas acordavam velhas canções dolentes que as saudades marujas eternizaram em fermatas sem fim... E o luar punha brunidos de faiança num céu antigo, sempre presente.
Vinha do dancing, pela preguiça elástica do último bolero, uma sensação de inércia e de fadiga, que lá fora os ventos refrescavam. A música parecia fixar a imagem daquele instante, sob a incitação reticente de seu nome: “O momento do amor...” Havia nela um sonoro desejo de explicar os ímpetos da carne pelo conflito dos graves e agudos que se intercontundiam nos sopros metalizados. Notável de epigramas estéreis, fastidiosa e vazia de comunicação, saturada de moleza e indolência, - elucidava, entretanto, a objetividade daquela misteriosa fascinação dos sentidos.
Danielle vivia todos os fragmentos de seu próprio devaneio na imobilidade do transporte interior. Em estado langue de graça e consentimento, deixava repousar, ao colo pando, a cabeça em abandono do Bem-Amado. Fruía a posse plástica da sua #andolatria, na capacidade integral de todos os sentidos, com os grandes bens da sensibilidade. Aquele instante de onírica ternura, hauria-o em gotas, a jovem enternecida, como se protraísse de si própria, para a perpetuação daquele anelo, a filtração de seus gratos anseios.
A doce interpretação daquele idílio oferecia alguma coisa de místico e profundo para o cansaço imenso de sua alma. Eram fusões de gravidade imperativa integrada no contacto poroso, com a adesão da matéria, para o curso livre das imagens sem percussão. A expansão dionisíaca do amor surgia e oscilava entre o espírito ferido pelo efêmero e a idéia misteriosa da eternidade.
O fundo lírico da paisagem – o mar, as sombras vãs, o luar, o vento e a música lasciva – tudo ainda conspirava a precipitação do choque definitivo das revelações quando ocorreu o desmoronamento da resistência física que o retardava.
- Danielle...
E houve, então, no Espaço, no Tempo e na Forma, o colapso fatal do macrocosmo no microcosmo do amor...



TUDO ISTO É DEZEMBRO...








Se nada mais restasse do que essa música sem memória, que anda nas falas, nos baques e nos toques de todas as coisas, neste multíssono Dezembro, - só isso bastaria para compensação de nossos íntimos conflitos, de nossas dores sem remédio, de nossas lutas sem grandeza.
A lírica ressonância que sobrevoa o mês último do ano, acomoda-nos em um álveo de ingênua beleza, sem resposta e sem eco para as vozes perdidas, sem imagens ajustadas para os gestos de aflição.
Esse alarido de cores, que veste a estatuária feminina; essas vozes, que estridulam cristais de preço nos votos de felicidade; esses ritmos santos, que emanam, ingênuos, das pastorais, essa fragrância, que vem das árvores e da terra, ao nupcial das chuvas de verão, - tudo isto é Dezembro!...
É Dezembro o riso da criança pobre a mirar o triciclo do menino rico; é Dezembro uma estrela caudata fulgindo sobre o mundo; é Dezembro o olhar sem brilho do homem-sem-pão frente as vitrinas das confeitarias...
Dezembro está na soma do mundo, no cômputo, da vida, na integral de todos os movimentos. Está na gris saudade do ancião e no sonho jovial do adolescente; está nos ganhos do mercador de brinquedos e na súplica fatigada dos mendigos; está no frêmito apressado das ruas e na doçura ambiente dos lares mansos.
Dezembro canta nos anelos dos moços, sorri no contentamento das crianças, revive sonhos nos pensamentos exaustos, murmura preces no entre-lábios dos ascetas; e grita, brada, zune, tine, rufla e soa, perene e alegórico, na ronda lírica e orquestral de todos os ruídos da faina universal.
Tudo isto, agora, é Dezembro! Depois... será Janeiro...



DO ROMANCE DE GLAURA...







Certa vez, encontrei-a em depressão de ares sombrios, como se estivesse a declamar, em compunção, a “oração sobre a Acrópole”, de Renan.
Confrangia ouvir-lhe a voz de cantochão, naquele infinito clamor de dolorosa contingência humana, celebrando, talvez, o rapto de sua alma, em tarde gris, numa curva do mundo.
Olhar manso e parado, expressão anêmica da Forma e da Emoção, imagem fixa de um instante da extese, - Glaura gerava uma geometria de ângulos místicos, em pura harmonia com a Obra Criada.
Levara-o o Amor a esse refinamento lírico da sensibilidade. Mas, o orgulho do seu último pecado incapacitara-a para o exangue estado de doçura; e o travo insidioso do primeiro consentimento abrira-lhe as cortinas do seu mundo interior, bem antes de se lhe extinguir o fulgor da adolescência.
Na sábia justa do coração, a ingênua amorosa turificara os altares das mercês com os incensos da volúpia acolhedora. A renúncia, a confiança, a compreensão, - todas as vestes níveas da anuência fizeram ao alto os sopros do íntimo recato, naquela doce e purificada oferenda de ternura.
Mas, Glaura esquecera as dádivas sagradas que atendem aos apelos do instinto. Seu corpo moço, de suscitáveis linhas harmoniosas, não participara daquela oblata; e os deuses mais justos lhe recusavam as bem-aventuranças do Amor.
O sonho morto, a alma inundada de aflição, Glaura sentira o peso do ideal insatisfeito, naquela paisagem viva do seu dilaceramento de solitária.
Não chorou.
Não clamou.
Por que chorar e clamar dentro da angústia e do tormento com que assistira à negação da sua lúbrica osmose?...
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Agora que Glaura está morta e que, da sua lembrança, resta apenas esse desdém, esse fastio indisfarçável para todas as formas de redenção, - tudo se conclui daquela completa desistência de Deus que o ricto amargo de sua boca oferecia, diante da Vida, diante do Amor, diante da morte...



DO CANCIONEIRO DA ETERNA SAUDADE









Lembro-me bem de suas cantigas... Ainda marulham, rente à saudade dos meus ouvidos, muitas canções que ela cantava e se infiltravam docemente nos sentimentos da minha adolescência. Algumas, ternas, de comovente evocação; outras, alegres, de glosas ricas de facécia, - de quase todos esses ritmos do velho cancioneiro ficaram trechos esquecidos esvoaçando nas paisagens da minha recordação. Dessas canções, porém, uma penetrou fundo em meu espírito e veio comigo, pelos tempos, com a imagem mais viva que conservo no sacrário do afeto filial. Foi a que ouvi, certo dia, ao fim suave de uma tarde sem recalques, a escapar-se em tom estranho dos lábios santos de minha mãe. Passeava, ela, pela praia, eu a seu lado, no espairecimento das suas lides rotineiras. Soprava da baía de fundo glauco um vento lépido, que segredava mensagens de carícia às ondas mansas; e a paisagem se estendia para outros céus, como a encampar mais amplos horizontes para a ilimitação dos seus deslumbramentos.
Naquele painel de tintas variegadas, edênico em sua grandeza primitiva, minha mãe pôs-se a cantar. Começou baixinho, em tom de prece, quase em sussurro, batendo os lábios fartos como em leves contatos de asas malferidas, o olhar perdido nos longes das distâncias. Depois, ergueu a voz em escala ascencional, alheiou-se das formas de vida que a cercavam e saiu a caminhar na areia úmida, rente à água, livre e leve, como se alçasse um vôo para o Infinito, em busca de algo que dela houvesse em algum tempo se escapado com o alar das suas últimas quimeras.
Minha mãe cantava alto, com um travo de mágoa e de ternura na voz sentida. As palavras saíam-lhe da garganta como gemidos de gaivota ferida, arrancados do fundo de alguma frustração, que só ela conhecia. Não eram de pranto, porque traziam a secura dos desencantos cicatrizados; não tinham lágrimas, porque se desprendiam enxutas das gotas de desengano que haviam banhado o seu exausto coração. Eram mais, talvez, a libertação de velhas ânsias nos cofres da alma acumuladas como reservas de anelos e esperanças, em auspícios bons dos bens da vida.
Adolescente, ainda, no gosto de vê-la sempre afável e prazenteira, fiquei a contemplá-la, meio aturdido, naquele instante de arrebatamento de sua alma. Era de seu natural uma alegre conceituação da vida, que ela prodigalizava no jovial amor aos filhos. Amava as plantas e cultivava os roseirais com a orgulhosa paixão de uma deusa inexorável Muitas madrugadas de verão surgiram de seus olhos de tâmara seca, entre alaridos e canções, para o afã das regas no jardim. Exultava no contentamento de ver se abrirem as rosas nas roseiras que sua mãos boníssimas cuidavam; e o mais desgracioso dos enfados, que lhe pungiam o coração, vinha de ver colhida uma, sequer, das flores de suas plantas, que nestas deveriam cumprir seus ciclos de beleza.
Naquele fim de tarde, porém, minha mãe surgia para mim como uma estranha revelação. Como me parecera extraordinária em seu enlevo! Que fronte pura! Que olhos cheios de enigmas! Que traços nobres e altivos! Seus cabelos volumosos e espessos cobriam-lhe a cabeça em novelos assimétricos como os das estátuas de atletas da escola florentina. Seu passo era o de uma Ninfa que saísse a cantar na areia das praias do Tirreno. Do seu todo emanava alguma coisa que era como a respiração da alma através das linhas austeras de seu corpo.
Com aquele canto secreto do seu coração, a sua efêmera evasão do mundo palpável, o encanto de mistério que se adivinhava em sua expressão emocional, - guardei para sempre a sua imagem daquele instante no meu coração. Por muito que eu viva, nunca poderei esquecer aquela expressão helênica de seu rosto, a um tempo forte e terna, em recorte de camafeu na amplidão da paisagem crepuscular. Mas, nunca também poderei compreender a sua linguagem daquele momento, o grito dilacerado que a sua doce alma de santa soltara naquela tarde, não sei para quais rumos do Nirvana, através daquela dolorida melodia, que ficou perene, com a sua imagem, na minha eterna saudade.




CANTIGAS DE FRANÇA







Venho de ouvir canções de França, que um chansonnier do mundo alto deixou escapar pela filtração de sua garganta de musgos brandos. Agora, eu trago mais um pouco daquela espiritualidade que iluminou Sarah Bernhardt e Mounet-Sully, que sublimou Musset e Flaubert e que deu a euforia das cores a Renoir e o segredo dos sons a Massenet. Agora, eu sinto mais soberba a força espiritual daquele “Allons enfants de la patrie” que o cântico heróico universalizou em compassos imortais.
O cantor nos transmite, pelos vitrais da sua voz, a luz coada de uma França povoada de imagens felizes. Suas canções estão cheias da ternura e da ironia daqueles vetustos recantos de chão querido, por onde vagaram santos e poetas, distribuindo, entre os homens e as coisas, muito vidro translúcido de Evangelho e os mosaicos de sol da Poesia. Falam-nos de paisagens singelas da campanha, do espírito de um provérbio cheio de bom senso, de algum cenário de porcelana rente ao Loire, de velhas fábulas e canções na boca dos paysannes – e tudo isso num modo de contar e de cantar que é o mais doce e o mais ático do mundo.
Porque, no repertório outado do chansonnier, desfilam as coisas belas, as coisas boas e as coisas amadas da amada França: desde o donaire dos figurinos de Lanvin e de Patou ao cosmopolitismo da Praça Pigalle; desde a suavidade dos perfumes de Guerlain e de Chanel ao formigamento das midinettes descendo das praças para o métro; desde o bouquet dos vinhos de Bourgogne – o Chambertim, o Pommard, os Rosés, o Chablis – ao intrincado das vielas do Templo ou das rampas de Montmartre. Paris está presente naquelas blagues, naquelas estrofes, naquelas boutades do “Ce Soir”, do “C’est si bon”, do “Pigalle”. Toda Paris, absorvente e seducente, com seus teatros, seus cafés, seus cabarés, seus boulevards; a Paris das perspectivas, dos cais do Sena, dos jardins, dos bois, dos museus, da mocidade alegre da Sorbonne e das modas femininas em linhas gráceis e volúveis; a jovem Paris eterna, Paris do amor, do espírito, do trabalho, do gênio, da poesia, da arte, da ciência, da razão de viver; a Paris das mulheres caindo como andorinhas e pétalas sobre a Praça Vendôme e a Concórdia; a Paris das noites feéricas alteando as letras lucifúlgures do “Moulin Rouge”, do “Bal Tabarim”, do “Shéhérazade”, com coristas e vedettes de todas as pátrias, suas cançonetas maliciosas, suas folias...
Toda a França, que tanto amamos e cultuamos, escorre e transborda nas canções que venho de ouvir. A teia de encanto e de afeto, que envolve de longe a saudade do cantor, é a líquida encarnação do mais puro e do mais alto lirismo que emana e esvaza daquelas estrofes sensitivas, plasmando a graça e a verve do encantador espírito de França.
Cantigas de França sempre me embalam e acalentam o coração...




O VIAGEIRO DA BELEZA






Na caminhada para o Adiante, perdeu-se o Apóstolo, na busca ansiosa da Perfeição.
Andou, andou, andou... como nos falam dos príncipes medievais, os racontos azuis dos irmãos Grimm.
Enamorado da forma harmoniosa, desejava a estesia artística da alma, para o refinamento do aspecto da vida,
Fez-se Bom. Cobriu de graça o mundo para a passagem das sombras inquietas... Minorou as dores do sofrimento humano com os ungüentos da Sua misericórdia... Derramou lindezas no Seu rumo e esparziu esperanças por todos os caminhos, objetivando aformosear os dias da humanidade...
Fez-se Poeta. E, Poeta, cantou, em parábolas sensíveis, por vales e montanhas, os poemas sos sentimentos generosos transfundidos no Amor... Amou as crianças, os pássaros, a natureza... Semeou alentos e otimismos entre os enfermos, os de alma triste e os sem fé... E o pugilo de iniciados, que agremiu ou em torno de Sua irradiação luminosa, transformou-os em argonautas de um ideal...
Fez-se santo e obrou milagres: deu aos cegos o variegado das paisagens, aos surdos a orquestração multíssona do Universo, aos mortos a eurritmia da vida. As vozes divinas, que emanaram de Sua boca, santificaram todas as áreas da Terra, séculos a forma, numa perene propagação da Felicidade...
Então, proclamaram-no Deus!
... e crucificaram-no...



EX-LIBRIS PARA POETA








Mirna joga basquete e impele a esfera com a agilidade de um felídeo. Salta, enrija as espáduas queimadas, empina o busto escultóreo e ergue a fronte para o céu, como a atirar uma oferenda de ritmos elásticos contra o sol. A cabeça é um pênsil cinzelado no sentido da energia criadora. Seus braços ágeis lembram “rowers” e dançarinos, malabaristas e arlequins, correndo um páreo de números destros; e os pés, alígeros, insubmissos, descrevem polioramas esquisitos na tonteação dos movimentos.
No acaso dos prélios decisivos, Mirna sente que suas mãos são fortes, que seus músculos são de ferro e poderiam, se ela quisesse, cortar o mármore duro, quebrar e percutir com violência, empurrar montanhas e deter o mar. Mas, a sua delícia estética está na maleabilidade da técnica de impelir a substância palpável, na exatidão do golpe, que a força bruta anula e só a inteligência precisa. Aqui, o impulso é certo, o passe é medido, e bem calculada é a impulsão da bola. Há um apuro consciente na economia dos movimentos, como se quisesse afirmar a tese da força educada e da coragem equilibrada.
Mirna joga basquete inaugurando regras básicas no código da estatuária. Lesto e vivo, seu corpo é o corte rápido e incisivo de um golpe de florete, na pleniposse do espaço. Nas linhas suaves de sua forma, tudo é equilíbrio e harmonia: equilíbrio de energia e propulsão, harmonia de movimento e destreza. Inato à estrutura de seu físico, há uma correta declinação de curvas, que se alongam em seqüências donairosas, com a consciência e o sentido da agilidade retrátil.
Mirna é uma festa de movimentos corpóreos ao ar livre. Seu riso é alegre e matinal, seus olhos refletem as imagens de um cenário de brinquedo, sua presença insinua um plano interior de ímpetos felizes. O busto ereto, as coxas lisas, os seios em pontas, a cabeça em postura viril, o perfil de acentuado recorte, poderiam sugerir uma criação da estatuária grega, talvez o Apolo de Belvedere, se no olhar de Mirna não houvesse uma chama viva, ora doce, ora meiga, denunciando a presença de um coração ferido.
Bonita idéia, toda ela, no recorte da silhueta impetuosa, para o ex-libris de um poeta surrealista.




CONDESSA








Só se pode imaginá-la, coerentemente, na figura daquela estela do Cerâmico, tão ressumante de vitalidade. Seu busto heril, de aristocráticos contornos, impõe o trato de reverências bem cuidadas, como se um brasão de velha estirpe se insinuasse naquele olhar de graciosa austeridade.
Chamemo-la Condessa!... Senhora Condessa!... Porque o seu porte, seu busto e seu orgulho são de Condessa. Por sortilégio da formosura e da coerência, o clima de emoção que ela suscita, banha-o o hálito longínquo de austeras cortes, prisioneiras de regras e etiquetas.
Condessa é bem uma imagem senhoril numa balada nobre de Rostand. Beleza altiva, mas de olhar suavemente faisandé, seus traços, sua estatura, condizem com as linhas áticas do espírito, na expressão forte da personalidade. É toda graça e dignidade, sem discrepância do que lhe vem da alma romântica, nas justas hábeis do amor.
Toda a sua vida tem a beleza heróica de um romance. E, com o desencanto das borboletas sem horizontes, anseia pelo retorno à crisálida. Por muito alto sonhar, solteira permanece, aceitando sem tristeza que se dissipem, no tumulto das emoções, as tintas vivas da primeira mocidade.
No Amor, como na Arte e na Vida, Condessa apostoliza a interpretação lírica do silêncio. Mantendo o sentimento singularmente impassível, - sem derrame, sem sensualidade, - deixa que os arroubos de volúpia se deformem em imagens abstratas, dando a impressão de haver amordaçado os próprios nervos para reter a felicidade dentro de si mesma.
O raconto de Narciso ainda é a mais humana das concepções lendárias... Pegai Condessa, salpicai-a de amor e ansiedade, deixai-a mirar-se, oculta, ao espelho de um lago sossegado, - e eis Narciso!, enamorado de seus sonhos, de sua beleza, de seu orgulho...




NO CAMINHO DAS ESTRELAS




No chão reflexo, sob o cone de luz pênsil do teto, salta das trevas a silhueta da bailarina. Não é mais que a tênue pluma de Verlaine, vestindo a imagem da fragilidade; nem menos que a emoção plástica palpável gerada em seiva de cristal. É o jogo rítmico da Forma, a geometria sensorial dos movimentos, com que a etérea figurinha de Tánagra coreografa, na pista luzidia, o sentido escultório do equilíbrio.
Graça volátil, envolta em fúmeu véu de bisso, virgem e leve como um lírio, a lesta wilis meneia alíferos anseios, doma o espaço e se espirala em airoso voluteios, na argêntea faixa luminosa. Baila em oração: a expressão doce, os olhos súplices, nos lábios rictos a flor de um beijo de perdão. Suas mãos têm frêmitos de prece: flaflam tremuras de misericórdia, adejam acenos de mea-culpa, grafam sinais de contrição. Os pés deslizam, giram e correm, - flexíveis, alígeros, fluidais, - pétalos destros da cadência, plantas macias em tatos de veludo. Duas serpentes de carne rósea e elástica são seus braços, em harmônicos volteios pelo ar, como raízes de um caule teso e fléxil buscando os sumos da sobrevivência. De ventre esguio, de busto ereto, de coxas lisas, todo o seu corpo, esbelto e lépido, inspira o ideal da estatuária. Dança! e, na dança, ao som dos ritmos sensíveis do ballet, tem toda a movimentação da natureza: nada e voa, salta e coleia, rebenta e excita; é peixe e pássaro, gato e serpente, arbusto e mulher. Seus músculos se enrijam à flor da cútis nívea, suas veias refervem o plasma árdego e infrene da emoção. Toda ela é a voragem da posse exclusiva da matéria, a alma inflamada de êxtases e ardores veementes, em decalque na sua plástica harmoniosa.
Súbito, a música finda, a bailarina se imobiliza, a luz se esvai. Da mensagem de beleza que ela nos trouxe ficaram esvoaçando em nosso pensamento, como uma ave cativa, os fragmentos daquele prisma de faces multivárias que o bailado refletia, - fascinante painel de arte emocional, imperecível de genialidade na razão estética do eterno espetáculo.
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Agora, a bailarina está prostrada. Na quietação do camarim, fechada e só, dorme em hipnose. É toda o abandono da força irrefreável que lhe agitara o corpo e o sangue; é toda o silêncio do tumulto em que, momentos antes, se fundiam os grandes apelos de seus músculos elásticos. O doce apaziguamento de sua carne marca limites entre a concepção reflexa da vida e o gosto exótico da morte.
Mas, o espírito da bailarina não repousa. No imenso dulçor da queda física, desvia-se para o efêmero. Tem sede de infinito e adeja, em ronda insatisfeita, pelos caminhos das estrelas. Liberto do corpo em letargia, continua a dança que este interrompera. Desloca-se para os prados e, colibri sôfrego, vai, de corola em corola, haurindo néctares acídulos. Oscula as relvas, afaga as fontes, vence as paisagens, beija as ramagens, dançando sempre, bailando tonta, em desvairada busca do Impossível, do Intangível, do Inatingível. Galga as montanhas, atinge os picos e pula para Via-Láctea; e vai, de estrela em estrela, em saltos rítmicos e doidos rodopios, bailando sempre, dançando sôfrega e alucinadamente, na ânsia de encontrar e de atingir, como na própria miragem de sua arte, talvez o fim do Infinito!
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No morno recesso do camarim, fechada e só, a bailarina desperta. Restituída dos cansaços que a extenuavam, retoma a posse da inteligência, - viçosa e esbelta flor de carne, nua e impalpável como no sonho de um fauno. E surge-lhe, então, do fundo espesso da penumbra, como em racontos de Grimm, o espectro fúmeo do Ballet. Já da orquestra, à distância, vinham os primeiros agoirais acordes da Dança Macabra, de Saint-Saens, sugerindo a impressão vertiginosa de um turbilhão aéreo em fuga da terra, para voltear, no espaço, como os planetas.
- Que queres mais de mim? – indaga, espavorida, a bailarina.
- A fluidificação do que, em ti, ainda é matéria apodrecível. Carne, sangue, pus e lágrimas são insidiosas degradações das graças sagradas que recebeste para os milagres da interpretação da vida. No que há, em ti, de luz e unidade interior vivificam as grandes concepções do ideal artístico. És o instante de uma retirada harmoniosa para o transcendentalismo puro, o misterioso refinamento de uma vocação que encontrou a sua outra face na luz da tua predestinação. Fonte cristalina e marulhenta da criação divina, só teu espírito perdurará no mundo da suprema e eterna claridade. Porque reténs, dentro de ti, o clarão privativo dos seres para os quais a dança é a mais pura expressão da beleza. Não há um fim na trajetória do sentimento artístico, nem limites, no sobrenatural, para as aspirais da genialidade. À inteligência humana é obscura a decifração dos pólos magnéticos da arte, onde sempre se confundem as perspectivas da imaginação.
- Vai e dança! Teu sonho foi panorâmico do curso infinito e luminoso em que se ampliam as razões estéticas da tua arte. Vai e dança!, - até que o teu espírito se acenda, pelos caminhos das estrelas, na paixão das potestades que te lançaram em seus desígnios! E terás, então, - luz e essência! – o milagre excelso da tua metempsicose em criatura sagrada, ungida com o íon divino que emana dos arcanos altíssimos e eternos do Nirvana.





Missa ao grande morto









Amanhecera o dia oitavo do pesar imenso. A enormidade daquele óbito ainda contundia o sentimento da cidade. Todos os ruídos, os mais sutis murmúrios perdidos no espaço, traziam a força harmonizadora da grande dor, -- dessa dor que não grita, que não vocifera, que não reclama, porque macerada pela brutalidade dos desfechos cruéis, porque esmagada pela violência dos desenlaces inesperados. Os lamentos lânguidos, os fundos vagidos sem remédio, a desolação quieta e - tudo se pronunciava discretamente através dos sons plangentes dos sinos da Catedral, ao amanhecer do dia 22 de outubro do ano primeiro deste Século.

Era a missa ao Grande Morto: Eduardo Ribeiro! A cidade muito o amava, muito o povo o admirava; e esse amor tinha raízes naquela espécie de comunicação secreta que se difundia no seio das massas como fluidos da uma natural compreensão entre o homem e o povo. A consciência dessa afinidade de pensamento brotara de uma aura de simpatia e solidariedade ao tenente que fora punido com a transferência para a guarnição do Amazonas, por seus arroubos republicanos; e já se manitestara em 1891, quando o povo amazonense, reunido em cívico pronunciamento, na Praça da República, o aclamara «Governador Efetivo do Estado do Amazonas», em altiva represália à sua demissão, «traiçoeiramente conseguida do Governo Geral pelos inimigos da República». O desprezo à vontade popular, de parte das autoridades da Nação, resultara no robustecimento de sua popularidade, consagrada naquele pleito de 1892, que o conduzira à governação do Estado, no período de julho desse ano a julho de 1896. Eduardo Ribeiro deixara de ser, aí, o tenente de Floriano. A missão conferida pelo «Marechal de Ferro» no sentido de restaurar a ordem no Estado, as relações estabelecidas com as necessidades públicas, e aquele insistente clamor de súplica, derredor ao seu nome, que ele bem compreendia ser mais o apelo a um porvir melhor, tudo isso contribuíra para amadurecer no idealista republicano a consciência da democracia. Ele era, agora, o eleito de um povo que se agigantara na hora amarga da reação, para entregar-lhe o comando de seu próprios destino. Cumpria-lhe, pois, tudo fazer pela felicidade dessa grei.


O «Pensador» - assim a gente do povo se referia, muito afetivamente, ao antigo diretor do jornal maranhense "O Pensador" executara um governo justo e de afirmativas reali - zadoras. A grandeza de sua obra ficara perpetuada na suntuosidade do Teatro Amazonas, na imponência do Palácio da Justiça, nas fidalgas linhas estruturais da ponte de ferro da Cachoeirinha. A cidade de Manaus teve a sua expansão urbana com a abertura e construção de novas ruas e nivelamento e calçamento das já existentes. Praças nuas e desertas receberam o adorno de jardins, fontes e monumentos.Construiu-se reservatório de imponência arquitetônica para a água do abastecimento geral, e novos bairros fizeram a cidade para as florestas que a circundavam.
Eduardo Ribeiro fez mais: reorganizou e levantou o nível da instrução pública; incrementou a navegação para o interior e para a Europa; deu impulso às indústrias incipientes; e, ele mesmo, toda a legislação estadual nas bases do novo regime. Uma idade de ouro foi inaugurada para os amazonenses, naquele quadriênio
fecundo, em cujo decurso as rendas se elevaram de cinco para dez mil contos de réis ("Não exagero em dizer-vos que as fontes de receita deste Estado são inesgotáveis"). Encerrado período de sua gestão, sentira-se à vontade para exclamar com ufania: «Encontrei uma grande aldeia e fiz dela uma cidade moderna!» E era esta cidade moderna que agora lhe chorava a morte (« em circunstâncias um tanto misteriosas»...), através dos sinos plangentes da Catedral, convocando-a para a missa ao Grande Morto, naquela manha de 22 de outubro de 1900. Havia oito dias que, aquela mesma hora, a notícia brutal entorpecera a cidade, deflagrando de porta em porta, em todos os lares, no centro, nos subúrbios, no litoral: «O Pensador morreu !» Lá, à margem da Estrada de Flores, em meio à desolação, ficara a aprazível chácara que abrigara o corpo fatigado do grande lidador. O renque de árvores frondosas, desde o portão até o edifício no alto da pequena colina, deixara passar, em procissão, a multidão pesarosa. Pelos jardins bem cuidados floriam as roseiras que ele plantara. Ao lado, o igarapé murmurava queixas brandas em sua corredeira interminável. Lá ficara o chalé com as bombas para a elevação da água e, mais adiante, o pequeno depósito do gazômetro. Ao fundo, as baias com o alazão predileto, o galinheiro e, sob arvoredo sombrio, aquele barracão de madeira, coberto de lona, tendo ao centro uma grande mesa em forma de U, para os repastos domingueiros, com os amigos. Lá ficara, em prantos, d. Isabel Maria de Sousa Leal, a fiel governanta de muitos anos; lá ficaram, consternados e chorosos, pelo muito que o amavam, a criada Manuela, o cozinheiro Alanco e os jardineiros Emilio e Joaquim.

Oito dias iam decorridos e a mágoa era intensa. Por isso, os sinos plangiam, ao amanhecer daquela segunda-feira, anunciando a missa ao Grande Morto.
A Catedral apresentava pomposa decoração interior, toda forrada de veludo negro, o chão totalmente atapetado, pendendo dos púlpitos cortinas pretas franjadas de prata. Austeros escudos, com o monograma EGR, fixavam-se nas paredes, entrelaçados de palmas, combinando com outro maior no arco principal do templo. Ao centro da nave ostentava-se o catafalco, do qual erguia imponente coluna, envolta em crepe, e, caído, ao lado, o pedaço quebrado. Nos quatro cantos do catafalco, ardiam lâmpadas comburentes, oferecendo o símbolo da purificação; e, derredor, estavam as armas ensarilhadas em funeral, clarins e tambores silenciosos, uma metralhadora, um canhão-revólver, um teodolito envolto de crepe, a mira-falante e outros apetrechos do engenheiro-militar.


Pouco antes das oito horas, a igreja não mais comportava a multidão, que se derramava pelas áreas circunvizinhas, enchendo ruas e jardins.O comércio fechara, permanecendo também sem funcionar as fábricas e as repartições. Os sinos não cessavam de emitir gemidos pungentes pelo ar. Ia, agora, começar a missa. Já o prebistério estava lotado de autoridades, cônsules, militares, sacerdotes, representantes de associações de classe, imprensa.

A banda de música do Regimento Policial tomara posição à porta de entrada e no coro, já se encontravam a orquestra «Carlos Gomes» e os componentes do Círculo Musical Religioso «Dom Antônio de Macedo Costa», ambos sob a regência do maestro Joaquim Franco. Compunham a orquestra os violinos Marsicano, Alípio, Salvador, Albano, Ildefonso, Turino e Granjeiro; a viola Belfort; o violoncelo Vesce; o contrabaixo Palácio; as flautas Campos e Sobreira; os pistões Rodrigues e Sarmento; os trombones Tenório e Lisímaco; o tímpano Antunes; o tambor Silva. O coro estava constituído das senhoras Lavor e Matilde Schiavinato e senhores Lavor, F. Fava, A. Soares, N. Tangerini e J. Bernardo.

Precisamente às oito horas, o governador Silvério Nery deu entrada no templo. Dez minutos após, monsenhor Benedito da Fonseca Coutinho, acolitado por monsenhor Hipólito e pelo padre Vicente Peres, deu início ao cerimonial. À porta, a banda de música rompeu em comovente marcha fúnebre e no coro, a seguir, a «mezzo-soprano» senhora Schiavinatto entoou a «Ária de Igreja» de Stradella, com acompanhamento de órgão e violoncelo. Prosseguiram os rituais da encomendação, e, em momento exato, a orquestra «Carlos Gomes» executou a «Marcha Fúnebre», de Petrella. Mais logo, foi o coro do Círculo Musical que ergueu o "Libera-me" de Cagliero, acompanhado pela orquestra, que finalizou a cerimônia com outra comovente marcha fúnebre.

Silenciosa e recolhida, a multidão deixou o templo. Havia uma espécie de atonia, de apatia moral, de desalento e indiferença nas atitudes de resignação daquela gente. O povo tinha a consciência exata da perda que sofrera com o desaparecimento de Eduardo Ribeiro; sabia que estava extinta a chama poderosa do grande visionário que lhe conduzira os destinos pelos caminhos da prosperidade. Aquele cérebro insatisfeito,que tantos pensamentos alimentara, que abrigara opulentos sonhos de grandeza para o Amazonas, que antevira o fastígio de uma civilização através das artes, das letras, do comércio, da navegação, servida por leis justas e magnânimas, liderada por homens de espírito sadio e intenções puras, - aquele cérebro estava agora dentro da terra, inerte, inútil, paralizado, extinto, morto! Mas, o nome de Eduardo Ribeiro, nunca ninguém o poderia arrancar, por todos os tempos, por todas as gerações, daquele monumento que para sempre ficara plantado no coração dos amazonenses: a Gratidão!