sábado, 1 de outubro de 2011

EUCLIDES DA CUNHA - OS SERTÕES 3


A jurema
As juremas, prediletas dos caboclos — o seu haxixe capitoso, fornecendo-lhes, grátis, inestimável beberagem, que os
revigora depois das caminhadas longas, extinguindo-lhes as fadigas em momentos, feito um filtro mágico — derramam-se
em sebes, impenetráveis tranqueiras disfarçadas em folhas diminutas; refrondam os marizeiros raros — misteriosas árvores
que pressagiam a volta das chuvas e das épocas aneladas do verde e o termo da magrém1 — quando, em pleno flagelar da
seca, lhes porejam na casca ressequida dos troncos algumas gotas d’água; reverdecem os angicos; lourejam os juás em
moitas; e as baraúnas de flores em cachos, e os araticuns à ourela dos banhados... mas, destacando-se, esparsos pelas
chapadas, ou no bolear dos cerros, os umbuzeiros, estrelando flores alvíssimas, abrolhando em folhas, que passam em
fugitivos cambiantes de um verde pálido ao róseo vivo dos rebentos novos, atraem melhor o olhar, são a nota mais feliz do
cenário deslumbrante.
O Sertão é um paraíso
E o sertão é um paraíso...
Ressurge ao mesmo tempo a fauna resistente das caatingas: disparam pelas baixadas úmidas os caititus esquivos; passam,
em varas, pelas tigüeras, num estrídulo estrepitar de maxilas percutindo, os queixadas de canela ruiva; correm pelo tabuleiros
altos, em bandos, esporeando-se com os ferrões de sob as asas, as emas velocíssimas; e as seriemas de vozes lamentosas, e
as sericóias vibrantes, cantam nos balsedos, à fímbria dos banhados onde vem beber o tapir estacando um momento no seu
trote brutal, inflexivelmente retilíneo, pela caatinga, derribando árvores; e as próprias suçuaranas, aterrando os mocós
espertos que se aninham aos pares nas luras dos fraguedos, pulam, alegres, nas macegas altas, antes de quedarem nas tocaias
traiçoeiras aos veados ariscos ou novilhos desgarrados...
Manhãs sertanejas
Sucedem-se manhãs sem par, em que o irradiar do levante incendido retinge a púrpura das eritrinas e destaca melhor,
engrinaldando as umburanas de casca arroxeada, os festões multicores das bignônias. Animam-se os ares numa palpitação
de asas, céleres, ruflando. — Sulcam-nos notas de clarins estranhos. Num tumultuar de desencontrados vôos passam, em
bandos, as pombas bravas que remigram, e rolam as turbas turbulentas das maritacas estridentes... enquanto feliz, deslembrado
de mágoas, segue o campeiro pelos arrastadores, tangendo a boiada farta, e entoando a cantiga predileta...
Assim se vão os dias.
Passam-se um, dous, seis meses venturosos, derivados da exuberância da terra, até que surdamente, imperceptivelmente,
num ritmo maldito, se despeguem, a pouco e pouco, e caiam, as folhas e as flores, e a seca se desenhe outra vez nas ramagens
mortas das árvores decíduas...
V
Uma categoria geográfica que Hegel não citou
Resumamos; enfeixemos estas linhas esparsas.
Hegel delineou três categorias geográficas como elementos fundamentais colaborando com outros no reagir sobre o
homem, criando diferenciações étnicas:
As estepes de vegetação tolhiça, ou vastas planícies áridas; os vales férteis, profusamente irrigados; os litorais e as ilhas.
Os llanos da Venezuela: as savanas que alargam o vale do Mississippi, as pampas desmedidas e o próprio Atacama
desatado sobre os Andes — vasto terraço onde vagueiam dunas — inscrevem-se rigorosamente nos primeiros.
Em que pese aos estios longos, às trombas formidáveis de areia, e ao saltear de súbitas inundações não se incompatibilizam
com a vida.
Mas não ficam o homem à terra.
A sua flora rudimentar, de gramíneas e ciperáceas, reviçando vigorosa nas quadras pluviosas, é um incentivo à vida
pastoril, às sociedades errantes dos pegureiros, passando móveis, num constante armar e desarmar de tendas, por aqueles
plainos — rápidas, dispersas aos primeiros fulgores do verão.
Não atraem. Patenteiam sempre o mesmo cenário de uma monotonia acabrunhadora, com a variante única da cor: um
oceano imóvel, sem vagas e sem praias.
Têm a força centrífuga do deserto: repelem; desunem; dispersam. Não se podem ligar à humanidade pelo vínculo
nupcial do sulco dos arados. São um isolador étnico como as cordilheiras e o mar, ou as estepes da Mongólia, varejadas, em
corridas doudas, pelas catervas turbulentas dos tártaros errabundos.
Aos sertões do Norte, porém, que à primeira vista se lhes equiparam, falta um lugar no quadro do pensador germânico.
Ao atravessá-los no estio, crê-se que entram, de molde, naquela primeira subdivisão; ao atravessá-los no inverno,
acredita-se que são parte essencial da segunda.
Barbaramente estéreis; maravilhosamente exuberantes...
Na plenitude das secas são positivamente o deserto. Mas quando estas não se prolongam ao ponto de originarem
penosíssimos êxodos, o homem luta como as árvores, com as reservas armazenadas nos dias de abastança e, neste combate
feroz, anônimo, terrivelmente obscuro, afogado na solidão das chapadas, a natureza não o abandona de todo. Ampara-o
muito além das horas de desesperança, que acompanham o esgotamento das últimas cacimbas.
Ao sobrevir das chuvas, a terra, como vimos, transfigura-se em mutações fantásticas, contrastando com a desolação
anterior. Os vales secos fazem-se rios. Insulam-se os cômoros escalvados, repentinamente verdejantes. A vegetação recama
de flores, cobrindo-os, os grotões escancelados, e disfarça a dureza das barrancas, e arredonda em colinas os acervos de
blocos disjungidos — de sorte que as chapadas grandes, intermeadas de convales, se ligam em curvas mais suaves aos
tabuleiros altos. Cai a temperatura. Com o desaparecer das soalheiras anula-se a secura anormal dos ares. Novos tons na
paisagem: a transparência do espaço salienta as linhas mais ligeiras, em todas as variantes da forma e da cor.
Dilatam-se os horizontes. O firmamento, sem o azul carregado dos desertos, alteia-se, mais profundo, ante o expandir
revivescente da terra.
E o sertão é um vale fértil. É um pomar vastíssimo, sem dono.
Depois tudo isto se acaba. Voltam os dias torturantes; a atmosfera asfixiadora; o empedramento do solo; a nudez da
flora; e nas ocasiões em que os estios se ligam sem a intermitência das chuvas — o espasmo assombrador da seca.
A natureza compraz-se em um jogo de antíteses.
Eles impõem por isto uma divisão especial naquele quadro. A mais interessante e expressiva de todas — posta, como
mediadora, entre os vales nimiamente férteis e os estepes mais áridos.
Relegando a outras páginas a sua significação como fator de diferenciação étnica, vejamos o seu papel na economia da
terra.
A natureza não cria normalmente os desertos. Combate-os, repulsa-os. Desdobram-se, lacunas inexplicáveis, às vezes
sob as linhas astronômicas definidoras da exuberância máxima da vida. Expressos no tipo clássico do Saara — que é um
termo genérico da região maninha dilatada do Atlântico ao Índico, entrando pelo Egito e pela Síria, assumindo todos os
aspectos da enorme depressão africana ao platô arábico ardentíssimo e Nedjed e avançando daí para as areias do bejabãs, na
Pérsia — são tão ilógicos que o maior dos naturalistas lobrigou a gênese daquele na ação tumultuária de um cataclismo, uma
irrupção do Atlântico, precipitando-se, águas revoltas, num irresistível remoinhar de correntes, sobre o norte da África e
desnudando-a furiosamente.
Esta explicação de Humboldt, embora se erija apenas como hipótese brilhante, tem um significado superior.
Extinta a preponderância do calor central e normalizados os climas, do extremo norte e do extremo sul, a partir dos
pólos inabitáveis, a existência vegetativa progride para a linha equinocial. Sob esta ficam as zonas exuberantes por excelência,
onde os arbustos de outras se fazem árvores e o regime, oscilando em duas estações únicas, determina uniformidade favorável
à evolução dos organismos simples, presos diretamente às variações do meio. A fatalidade astronômica da inclinação da
eclíptica, que coloca a Terra em condições biológicas inferiores às de outros planetas, mal se percebe nas paragens onde uma
montanha única sintetiza, do sopé às cumeadas, todos os climas do mundo.
Entretanto, por elas passa, interferindo a fronteira ideal dos hemisférios, o equador termal, de traçado perturbadíssimo
de inflexões vivas, partindo-se nos pontos singulares em que a vida é impossível; passando dos desertos às florestas, do
Saara, que o repuxa para o norte, à Índia opulentíssima, depois de tangenciar a ponta meridional da Arábia paupérrima;
varando o Pacífico num longo traço — rarefeito colar de ilhas desertas e escalvadas — e abeirando, depois, em lento
descambar para o sul, a Hylaea portentosa do Amazonas.
Da extrema aridez à exuberância extrema...
É que a morfologia da Terra viola as leis gerais dos climas. Mas todas as vezes que o facies geográfico não as combate
de todo, a natureza reage. Em luta surda, cujos efeitos fogem ao próprio raio dos ciclos históricos, mas emocionante, para
quem consegue lobrigá-la ao través dos séculos sem conto, entorpecida sempre pelos agentes adversos, mas tenaz, incoercível,
num evolver seguro, a Terra, como um organismo, se transmuda por intuscepção, indiferente aos elementos que lhe tumultuam
à face.
De sorte que se as largas depressões eternamente condenadas, a exemplo da Austrália, permanecem estéreis, se anulam,
noutros pontos, os desertos.
A própria temperatura abrasada acaba por lhe dar um mínimo de pressão atraindo o afluxo das chuvas; e as areias
móveis, riscadas pelos ventos, negando largo tempo a pega à planta mais humilde, imobilizam-se, a pouco e pouco, presas
nas radículas das gramíneas; o chão ingrato e a rocha estéril decaem sob a ação imperceptível dos líquens, que preparam a
vinda das lecídeas frágeis; e, por fim, os platôs desnudos, llanos e pampas de vegetação escassa, as savanas e as estepes mais
vivazes da Ásia central surgem, num crescendo, refletindo sucessivas fases de transfigurações maravilhosas.
Como se faz um deserto
Ora, os sertões do Norte, a despeito de uma esterilidade menor, contrapostos a este critério natural, figuram talvez o
ponto singular de uma evolução regressiva.
Imaginamo-los há pouco, numa retrospecção em que, certo, a fantasia se insurgiu contra a gravidade da ciência, a
emergirem, geologicamente modernos, de um vasto mar terciário.
À parte essa hipótese absolutamente instável, porém, o certo é que um complexo de circunstâncias lhes tem dificultado
regime contínuo, favorecendo flora mais vivaz.
Esboçamos anteriormente algumas.
Esquecemo-nos, todavia, de um agente geológico notável — o homem.
Este, de fato, não raro reage brutalmente sobre a terra e entre nós, nomeadamente, assumiu, em todo o decorrer da
História, o papel de um terrível fazedor de desertos.
Começou isto por um desastroso legado indígena.
Na agricultura primitiva dos silvícolas era instrumento fundamental — o fogo.
Entalhadas as árvores pelos cortantes djis de diorito; encoivarados, depois de secos, os ramos, alastravam-lhes por
cima, crepitando, as caiçaras, em bulcão de fumo, tangidas pelos ventos. Inscreviam, depois, nas cercas de troncos combustos
das caiçaras, a área em cinzas onde fora a mata exuberante. Cultivavam-na. Renovavam o mesmo processo na estação
seguinte, até que, de todo exaurida aquela mancha de terra, fosse, imprestável, abandonada em caapuera — mato extinto —
como a denuncia a etimologia tupi, jazendo dali por diante irremediavelmente estéril porque, por uma circunstância digna
de nota, as famílias vegetais que surgiam subsecutivamente no terreno calcinado eram sempre de tipos arbustivos enfezados,
de todo distintos dos da selva primitiva. O aborígine prosseguia abrindo novas roças, novas derrubadas, novas queimas,
alargando o círculo dos estragos em novas caapueras, que ainda uma vez deixava para formar outras noutros pontos,
aparecendo maninhas, num evolver enfezado, inaptas para reagir com os elementos exteriores, agravando, à medida que se
ampliavam, os rigores do próprio clima que as flagelava, e entretecidas de carrascais, afogados em macegas, espelhando
aqui o aspecto adoentado da caatanduva sinistra, além a braveza convulsiva da caatinga brancacenta.
Veio depois o colonizador e copiou o mesmo proceder. Engravesceu-o ainda com o adotar, exclusivo, no centro do país,
fora da estreita faixa dos canaviais da costa, o regime francamente pastoril.
Abriram-se desde o alvorecer do século XVII, nos sertões abusivamente sesmados, enormíssimos campos, compáscuos
sem divisas, estendendo-se pelas chapadas em fora.
Abria-os, de idêntico modo, o fogo livremente aceso, sem aceiros, avassalando largos espaços, solto nas lufadas violentas
do nordeste. Aliou-se-lhe ao mesmo tempo o sertanista ganancioso e bravo, em busca do silvícola e do ouro. Afogado nos
recessos de uma flora estupenda que lhe escurentava as vistas e sombreava perigosamente as tocaias do tapuia e as tocas do
canguçu temido, dilacerou-a golpeando-a de chamas, para desafogar os horizontes e destacar bem perceptíveis, tufando nos
descampados limpos, as montanhas que o norteavam, balizando a marcha das bandeiras.
Atacou a fundo a terra, escarificando-a nas explorações a céu aberto; esterilizou-a com os lastros das grupiaras; feriua
a pontaços de alvião; degradou-a corroendo-a com as águas selvagens das torrentes; e deixou, aqui, ali, em toda a parte,
para sempre estéreis, avermelhando nos ermos com o intenso colorido das argilas revolvidas, onde não medra a planta mais
exígua, as grandes catas, vazias e tristonhas, com a sua feição sugestiva de imensas cidades mortas, derruídas...
Ora estas selvatiquezas atravessaram toda a nossa História. Ainda em meados deste século, no atestar de velhos habitantes
das povoações ribeirinhas do S. Francisco, os exploradores que em 1830 avançaram, a partir da margem esquerda daquele
rio, carregando em vasilhas de couro indispensáveis provisões de água, tinham, na frente, alumiando-lhes a rota, abrindolhes
a estrada e devastando a terra, o mesmo batedor sinistro, o incêndio. Durante meses seguidos viram, eles, no poente,
entrando pelas noites dentro, o reflexo rubro das queimadas.
Imaginem-se os resultados de semelhante processo aplicado, sem variantes, no decorrer de séculos...
Previu-os o próprio governo colonial. Desde 1713 sucessivos decretos visaram opor-lhes paradeiros. E ao terminar a
seca lendária de 1791-1792, a grande seca, como dizem ainda os velhos sertanejos, que sacrificou todo o Norte, da Bahia ao
Ceará, o governo da metrópole figura-se tê-la atribuído aos inconvenientes apontados estabelecendo desde logo, como
corretivo único, severa proibição ao corte das florestas.
Esta preocupação dominou-o por muito tempo. Mostram-no-lo as cartas régias de 17 de março de 1796, nomeando um
juiz conservador das matas; e a 11 de junho de 1799, decretando que “se coíba a indiscreta e desordenada ambição dos
habitantes (da Bahia e Pernambuco) que têm assolado a ferro e fogo preciosas matas... que tanto abundavam e já hoje ficam
a distâncias consideráveis, etc.”
Aí estão dizeres preciosos relativos diretamente à região que palidamente descrevemos.
Há outros, cômpares na eloqüência.
Deletreando-se antigos roteiros dos sertanistas do Norte, destemerosos catingueiros que pleiteavam parelhas com os
bandeirantes do Sul, nota-se a cada passo uma alusão incisiva à bruteza das paragens que atravessavam, perquirindo as
chapadas, em busca das “minas de prata” de Melchior Moréia — e passando quase todos à margem do sertão de Canudos,
com escala em Monte Santo, então o Piquaraçá dos tapuias. E falam nos “campos frios (certamente à noite, pela irradiação
intensa do solo desabrigado) cortando léguas de caatinga sem água nem caravatá que a tivesse e com raízes de umbu e
mandacaru, remediando a gente” no penoso desbravar das veredas.1
Já nessa época, como se vê, tinham função proverbial as plantas, para as quais, hoje, apelam os nossos sertanejos.
É que o mal é antigo. Colaborando com os elementos meteorológicos, com o nordeste, com a sucção dos estratos, com
as canículas, com a erosão eólia, com as tempestades subitâneas — o homem fez-se uma componente nefasta entre as forças
daquele clima demolidor. Se o não criou, transmudou-o, agravando-o. Deu um auxiliar à degradação das tormentas, o
machado do catingueiro; um supletivo à insolação, a queimada.
Fez, talvez o deserto. Mas pode extingui-lo ainda, corrigindo o passado. E a tarefa não é insuperável. Di-lo uma
comparação histórica.
Como se extingue o deserto
Quem atravessa as planícies elevadas da Tunísia, entre Beja e Bizerta, à ourela do Saara, encontra ainda, no desembocar
dos vales, atravessando normalmente o curso caprichoso e em torcicolos dos uedes, restos de antigas construções romanas.
Velhos muradais derruídos, embrechados de silhares e blocos rolados, cobertos em parte pelos detritos de enxurros de vinte
séculos, aqueles legados dos grandes colonizadores delatam a um tempo a sua atividade inteligente e o desleixo bárbaro dos
árabes que os substituíram.
Os romanos, depois da tarefa da destruição de Cartago, tinham posto ombros à empresa incomparavelmente mais séria
de vencer a natureza antagonista. E ali deixaram belíssimo traço de sua expansão histórica.
Perceberam com segurança o vício original da região, estéril menos pela escassez das chuvas do que pela sua péssima
distribuição adstrita aos relevos topográficos. Corrigiram-no. O regime torrencial que ali aparece, intensíssimo em certas
quadras, determinando alturas pluviométricas maiores que as de outros países férteis e exuberantes, era, como nos sertões
do nosso país, além de inútil, nefasto. Caía sobre a terra desabrigada, desarraigando a vegetação mal presa a um solo
endurecido; turbilhonava por algumas semanas nos regatos transbordantes, alagando as planícies; e desaparecia logo, derivando
em escarpamentos, pelo norte e pelo levante, no Mediterrâneo, deixando o solo, depois de uma revivescência transitória,
mais desnudo e estéril. O deserto ao sul, parecia avançar, dominando a paragem toda, vingando-lhe os últimos acidentes que
não tolhiam a propulsão do simum.
Os romanos fizeram-no recuar. Encadearam as torrentes; represaram as correntezas fortes, e aquele regime brutal,
tenazmente combatido e bloqueado, cedeu, submetido inteiramente, numa rede de barragens. Excluído o alvitre de irrigações
sistemáticas dificílimas, conseguiram que as águas permanecessem mais longo tempo sobre a terra. As ravinas recortandose
em gânglios estagnados dividiram-se em açudes abarreirados pelas muralhas que trancavam os vales, e os uedes, parando,
intumesciam-se entre os morros, conservando largo tempo as grandes massas líquidas, até então perdidas, ou levando-as, no
transbordarem, em canais laterais aos lugares próximos mais baixos, onde se abriam em sangradouros e levadas, irradiantes
por toda a parte, e embebendo o solo. De sorte que este sistema de represas, além de outras vantagens, criara um esboço de
irrigação geral. Ademais, todas aquelas superfícies líquidas, esparsas em grande número e não resumidas a um Quixadá
único — monumental e inútil — expostas à evaporação, acabaram reagindo sobre o clima, melhorando-o. Por fim a Tunísia,
onde haviam aproado os filhos prediletos dos fenícios, mas que até então se reduzira a um litoral povoado de traficantes ou
númidas erradios, com suas tendas de tetos curvos branqueando nos areais como quilhas encalhadas — se fez, transfigurada,
a terra clássica da agricultura antiga. Foi o celeiro da Itália; a fornecedora, quase exclusiva, de trigo, dos romanos.
Os franceses, hoje, copiam-lhe em grande parte os processos, sem necessitarem alevantar muramentos monumentais e
dispendiosos. Represam por estacadas, entre muros de pedras secas e terras, à maneira de palancas, os uedes mais bem
dispostos, e talham pelo alto das suas bordas, em toda a largura das serranias que os ladeiam, condutos derivando para os
terrenos circunjacentes, em redes irrigadoras.
Deste modo as águas selvagens estavam, remansam-se, sem adquirir a força acumulada das inundações violentas,
disseminando-se, afinal, estas, amortecidas, em milhares de válvulas, pelas derivações cruzadas. E a histórica paragem,
liberta da apatia do muslim inerte, transmuda-se volvendo de novo à fisionomia antiga. A França salva os restos da opulenta
herança da civilização romana, depois desse declínio de séculos.
Ora, quando se traçar, sem grande precisão embora, a carta hipsométrica dos sertões do Norte, ver-se-á que eles se apropriam
a uma tentativa idêntica, de resultados igualmente seguros.
A idéia não é nova. Sugeriu-a há muito, em memoráveis sessões do Instituto Politécnico do Rio, em 1877, o belo
espírito do conselheiro Beaurepaire Rohan, talvez sugestionado pelo mesmo símile, que acima apontamos.
Das discussões então travadas, onde se enterreiraram os melhores cientistas do tempo — da sólida experiência de
Capanema à mentalidade rara de André Rebouças — foi a única cousa prática, factível, verdadeiramente útil que ficou.
Idearam-se, naquela ocasião, luxuosas cisternas de alvenarias; miríades de poços artesianos, perfurando as chapadas;
depósitos colossais, ou armazéns desmedidos para as reservas acumuladas; açudes vastos, feitos cáspios artificiais; e por
fim, como para caracterizar bem o desbarate completo da engenharia, ante a enormidade do problema, estupendos alambiques
para a destilação das águas do Atlântico!...
O alvitre mais modesto, porém, efeito imediato de um ensinamento histórico, sugerido pelo mais elementar dos exemplos,
suplanta-os. Porque é, além de prático, evidentemente o mais lógico.
O martírio secular da terra
Realmente, entre os agentes determinantes da seca se intercalam, de modo apreciável, a estrutura e a conformação do
solo. Qualquer que seja a intensidade das causas complexas e mais remotas que anteriormente esboçamos, a influência
daquelas é manifesta desde que se considere que a capacidade absorvente e emissiva dos terrenos expostos, a inclinação dos
estratos, que os retalham, e a rudeza dos relevos topográficos, agravam, do mesmo passo, a crestadura dos estios e a
degradação intensiva das torrentes. De sorte que, saindo das insolações demoradas para as inundações subitâneas, a terra,
mal protegida por uma vegetação decídua, que as primeiras requeimam e as segundas erradicam, se deixa, a pouco e pouco,
invadir pelo regime francamente desértico.
As fortes tempestades que apagam o incêndio surdo das secas, em que pese à revivescência que acarretam, preparam de
algum modo a região para maiores vicissitudes. Desnudam-na rudemente, expondo-a cada vez mais desabrigada aos verões
seguintes; sulcam-na numa molduragem de contornos ásperos; golpeiam-na e esterilizam-na; e ao desaparecerem, deixamna
ainda mais desnuda ante a adusão dos sóis. O regime decorre num intermitir deplorável, que lembra um círculo vicioso de
catástrofes.1
Deste modo a medida única a adotar-se deve consistir no corretivo destas disposições naturais. Pondo de lado os fatores
determinantes do flagelo, oriundos da fatalidade de leis astronômicas ou geográficas inacessíveis à intervenção humana,
são, aquelas, as únicas passíveis de modificações apreciáveis.
O processo que indicamos, em breve recordação histórica, pela sua própria simplicidade dispensa inúteis pormenores
técnicos.
A França copia-o hoje, sem variantes, revivendo o traçado de construções velhíssimas.
Abarreirados os vales, inteligentemente escolhidos, em pontos pouco intervalados, por toda a extensão do território
sertanejo, três conseqüências inevitáveis decorreriam: atenuar-se-iam de modo considerável a drenagem violenta do solo, e
as suas conseqüências lastimáveis; formar-se-lhes-iam à ourela, inscritas na rede das derivações, fecundas áreas de cultura;
e fixar-se-ia uma situação de equilíbrio para a instabilidade do clima, porque os numerosos e pequenos açudes uniformemente
distribuídos e constituindo dilatada superfície de evaporação, teriam, naturalmente, no correr dos tempos, a influência
moderadora de um mar interior, de importância extrema.
Não há alvitrar-se outro recurso. As cisternas, poços artesianos e raros, ou longamente espaçados lagos como o de
Quixadá, têm um valor local, inapreciável. Visam, de um modo geral, atenuar a última das conseqüências da seca — a sede;
e o que há a combater e a debelar nos sertões do Norte — é o deserto.
O martírio do homem, ali, é o reflexo da tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da Vida.
Nasce do martírio secular da Terra...
O HOMEM
I .Complexidade do problema etnológico no Brasil. Variabilidade