domingo, 25 de setembro de 2011

ALENCAR E SILVA (1930-2011)








Os Sonetos Reunidos de Alencar e Silva, uma simples apresentação


POR


Jorge Tufic*


Escrever sobre o poeta Alencar e Silva, sobretudo quando o tema recai nos sonetos reunidos neste volume, somatório de uma vida inteira dedicada à poesia, antes de ser uma tarefa que nos empolga, é um dever que nos desarma diante de tantas facetas de sua vida e de seus múltiplos recursos de escritor preocupado em fixar pormenores da história cultural da geração madrugada, de cujos primórdios datam as primeiras estrofes de sua pena versátil.

Ainda jovem, em Manaus, escrevia e publicava sonetos, poemas, artigos e crônicas nos matutinos e vespertinos de maior circulação, inclusive na revista de Anísio Mello, “Amazonas Ilustrado”, de 1952, ano que marca sua estréia na poesia, com o livro Painéis. Em 1951 participou de uma caravana de poetas que demandara o sul, sudeste e extremo-sul do País, com paradas obrigatórias no Rio de Janeiro e São Paulo, estando esse grupo constituído pelos seus amigos de então e de sempre Farias de Carvalho, Antísthenes Pinto e Jorge Tufic. Numa segunda viagem dessa caravana, passaria a integrá-la o inesquecível Guimarães de Paula. Segundo historiadores, estas duas incursões dos “caravaneiros”, também chamados de “monges”, se inscrevem nos antecedentes do movimento madrugada, surgido em 1954, ou seja, um ano após seu retorno definitivo a Manaus, em cuja praça do Pina deu-se o encontro da geração que tomaria seu nome: a “geração madrugada”.

Um raro depoimento sobre Alencar e Silva é de Arimathéa Cavalcante, completamente avesso a qualquer manifestação desse tipo. Segundo esse mestre, também poeta e dos bons, “ALENCAR E SILVA é um Midas admirável. Moderno. Tem o Dom mágico de transformar, não no ouro que não tem importância para ele, mas em poesia tudo aquilo que toca. Respira poesia, e é dela que o mundo de hoje mais precisa, porque sendo mescla de prazer e dor, é sobretudo natureza, amor, vida, é Deus que vem para dar um novo alento ao mundo em rotação.” (Território Noturno, Coleção Madrugada, 2003). Para Max Carphentier, no prefácio de Noturno Após o Mar, livro de crônicas e poemas em prosa, “Alencar e Silva pertence a essa corporação restrita de reveladores-salvadores do divino-humano, dos que, esperançosamente sós, se fortaleceram e se consumaram, e se aceitaram majestosamente tristes, sabiamente sombrios, numa estratégia apostolar milimetrada, para poderem preparar, a partir mesmo do cerco das sombras, a hora da alegria.”

Acha-se também, e com justiça, incluído na antologia de André Seffrin, Roteiro da Poesia Brasileira – Anos 50, Global Editora, SP, 2007, sob a direção de Edla van Steen –, parte de uma série que trata das raízes até o ano 2000, um instrumento auxiliar e da maior valia para o estudo das fases e dos processos criativos de nossa literatura. “Os anos 50 foram dos períodos mais férteis da poesia brasileira do século XX.” Tempo de grandes aventuras formais, suplementos literários, debates, performances. Fazendo coro às mudanças e inovações, Alencar e Silva foi um dos teóricos da “poesia de muro”, apoiada pelo Clube da Madrugada, e outras correntes estéticas que fizeram história.

Poesia Reunida é de 1987, com três livros, apenas, de sua laboriosa oficina, editados entre 1965 e 1986. Apresentando-a, discursa o poeta e cronista L. Ruas, de saudosa memória: “Gostaríamos apenas de dizer que Alencar e Silva comprova, na edição desta obra conjunta, que permanece fiel a si mesmo, o que equivale dizer que permanece fiel à sua singular vocação poética”. E Elson Farias, no prefácio à primeira edição de Lunamarga, não deixa por menos: “O livro que temos em mãos, além do timbre pessoal característico da expressão autêntica, traz as melhores qualidades da atual poética brasileira: profundidade mítica, angústia, a palavra existindo livre dos luxos supérfluos e do comum, dolorosamente sofrida e recriada no espaço vital do seu mundo.” A fortuna crítica tonteia pelas celebridades: José Alcides Pinto, Ramayana de Chevalier, Arthur Engrácio, Antísthenes Pinto, Genesino Braga, Guimarãs de Paula, Anísio Mello...

Na qualidade de homem público e braço de Governo, sobressai-se como Diretor-Presidente da Imprensa Oficial do Estado, fazendo editar o Suplemento Literário Amazonas, que circula de novembro de 1986 a outubro de 1988. Nada disso por conta do Estado, senão através de um acordo feito junto aos assinantes do Diário Oficial, com alguns centavos a mais nas respectivas assinaturas. Foram, na verdade, vinte e quatro edições e uma distribuição nunca vista antes por toda a América do Sul. Além disso, pagavam-se as colaborações selecionadas pela Comissão Editorial e a ninguém, que eu saiba, negara-se acolhida em suas páginas abertas, quer para todos os amazonenses, quer para escritores de outros Estados brasileiros. Por falta de maiores aproximações ou tempo para isso, valeu-se o Diretor-Presidente daqueles companheiros do Clube da Madrugada que aparecem no expediente, sem, contudo, discriminar ou cercar a iniciativa de normas ou preconceitos temáticos ou linguísticos, muito menos grupais ou pessoais. Em tão pouco tempo à frente do órgão, nem por isso deixara, também, de apor o seu visto favorável à publicação de obras importantes da literatura amazônica.

Assis Brasil, no volume “A Poesia Amazonense no Século XX”, relembra que Astrid Cabral haveria de destacar o veio romântico e “o equilíbrio clássico” da poesia de Alencar e Silva, toda vazada em “dicção despojada e serena”. Enfim, “amazonense e brasileiro por circunstâncias biográficas, podendo aplicar-se a Alencar e Silva a verdade pessoana: sua pátria é a língua portuguesa”. E vai mais longe na pesquisa a que sabe imprimir o calor da descoberta: “Escrevendo desde adolescente, entre poemas e primeiros livros publicados, ativa colaboração nos jornais de Manaus, “A Tarde”, de Aristóphano Antony, e “A Crítica”, de Umberto Calderaro Filho. O jornalismo literário foi feito em “O Jornal”, onde o Clube da Madrugada mantinha um importante suplemento e no “Jornal-Cultura”, da Fundação Cultural do Amazonas, de que foi secretário e editor”. Digressões necessárias, já que o nosso Alencar é, antes do mais ou do menos, poeta. Um poeta universal desde que nascera, e mais que universal, cósmico, já que até mesmo o ponto geográfico de seu nascimento, em Fonte Boa-AM, as enchentes cíclicas arrastaram para o oceano atlântico.

Mas foi o professor e crítico Arimathéa Cavalcanti o autor que melhor estudara o poeta no livro citado linhas atrás, estudo que, pela extensão e planejamento, tem-nos encaminhado para uma compreensão global de sua obra poética. Deste modo, esclarece: “Pude agora ultimar a análise, sem caráter definitivo, mas de modesta contribuição, na certeza de uma verdade insofismável: a obra enriquece espiritualmente a quem quer que a folheie. Pois o livro Território Noturno, de Alencar e Silva, propõe amplas reflexões, eis que abrange aquelas regiões oníricas onde nem sempre mergulham escafandristas neófitos, na tentativa de desvendar-lhe quando não o hermetismo, pelo menos a aura de enigma criada pelos símbolos, ajudados do próprio autor, em comparações e confrontos textuais”. Ressalta o lírico, percebe vagamente a presença de um neomisticismo em algumas de suas escritas, dando-nos, afinal, uma investigação crítica dificilmente encontrada em monografias da espécie.

Poeta maior, escritor extensivo aos mais difíceis gêneros literários, memorialista que faz a história de sua geração e do Clube da Madrugada, Alencar e Silva conta com os seguintes livros publicados, entre prosa e poesia: Painéis, poesia, 1952; Lunamarga, poesia, 1965; Território Noturno, poesia, 1982; Sob Vésper, poesia, 1986; Poesia Reunida, 1987; Noturno Após o Mar (crônicas e poemas em prosa), 1988; Sob o Sol de Deus, poesia, 1992; Ouro, Incenso e Mirra (poema em cinco segmentos e cinquenta sonetos), l994; Solo do Outono, poesia, 2000; Jorge Tufic: As Tendas do Caminho, ensaio, 2004; Crepuscularium, poesia, 2006. A sair, tem o Autor os seguintes títulos: Prosa Vária, ensaios, e Poetas e Figuras na Paisagem, ensaios. Entretanto, como um de seus velhos companheiros, sou testemunha das inumeráveis ocasiões em que a Musa lhe dera aquele sopro extra para compor sonetos e poemas, satíricos ou não, com o único objetivo de exercitar as falanges, expor deformidades ou tirar-nos de certos apertos em nossos caminhos pelo mundo. Um fato no mínimo grandioso, ocorrido em São Paulo (1951), ao ensejo da visita que fazíamos à sede da Prudência e Capitalização, na tentativa de obtermos apoio às nossas viagens de Caravaneiros da Cultura, foi Ramayana de Chevalier, secretário particular de Adalberto Vale, Superintendente da empresa seguradora, quem nos sugeriu a idéia de formularmos o pedido que tínhamos a fazer, através de um soneto. Sem demora, Alencar e Silva tomou a si o desafio, redigiu, com a maior tranquilidade, os quatorze versos solicitados, e, assim, com este “passaporte”, oficializamos palestras e contatos em Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre.

A obra de que estamos nos ocupando reúne todos ou quase todos os sonetos do autor, recolhidos das páginas de oito títulos, com mais alguns avulsos, sem falar nos improvisos e nas circunstâncias poéticas ou de foro íntimo. Sem falar, também, nos rejeitos que vamos deixando nas cestas do lixo, nem sempre merecedores desse trágico destino. Egresso do rigor parnasiano, do neossimbolismo e dos versos livres que trazíamos conosco do sul do País, a estrutura do soneto alencarino é simples, funcional e profundamente sugestiva, quando retarda ou deixa ao leitor a fruição da beleza e da verdade. “Quero enxuto o meu verso e muito simples”, em O Soneto no Amazonas (pag. 22), eu destaco esse verso de um soneto de Lunamarga como exemplo de “linhas calmas e transparentes, despojado de lugares-comuns e dos artifícios postos em prática, na ânsia de inovação, por certos autores da corrente futurista.”

Já é hora, contudo, de entregar ao leitor este livro do poeta, representativo, como se verá, de uma de suas paixões literárias, talvez a maior, que é a arte do soneto. Mas Alencar e Silva é poeta em qualquer situação, gênero ou categoria. Um belíssimo poema ele carrega, também, no afeto e na convivência humana, de que nunca, jamais, enquanto vivermos, podemos nos esquecer.

(*) Apresentação do livro Sonetos Reunidos, de Alencar e Silva, a sair.





SONETO DE EVOCAÇÃO

Alencar e Silva

Que me fez evocar tua face ausente
e teus olhos e encantos já mudados
e cantar este canto em que ressurges
esculpida em martírio e solidão?
Foi a flor que colhi sem cheiro algum?
O som que me chegou anoitecendo?
A lua que lembrando uma outra Ofélia
me fez buscar tua face de afogada?
Pobre amada, o mistério se desvenda
e se faz claro como o fio de prantos
que abre rios de luas em teu rosto:
esta canção nasceu de tua presença
de fonte dolorosa e ave ferida
que canta enquanto mais lhe punge a vida.

(Território noturno)



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Poética I

Alencar e Silva



Não o poema-verso simplesmente,
mas o poema-coisa, sim: substância
inefável, sim: coisa que funcione
como relógio e o que ele preconiza.

Assim, sem asco aceito-o integral
como uma pedra ou coisa-viva incômoda
que fere e entanto dá-se em forma e gosto
à natureza que a urdiu. Poema:

eia! deserto povoado. Fruto
onde a fome espreitava a presa. Chuva
onde a sede lavrava seu incêndio.

Incessante doar-se em ponte e veículo
ao evento da coisa – corpo vivo
intato sobre as águas do poema.


Tríptico do espanto



Alencar e Silva



I


Tudo traz sob a pele a sua morte:
a rosa e o sonho dançam sobre o abismo
as formas de uma só fatalidade
trabalhada em equívocos. Sereno,
contudo, é o meu semblante: este e o mesmo
que passeio entre as gentes. A amargura
é disposta em murais pelas paredes
do eu profundo – e me espia. Duro é vê-la
contemplando os meus gestos: de seus olhos
flui um rio de sono, um rio sem barcos,
onde bóia meu rosto repartido
em cartazes de espanto... Chove cinzas
sobre as asas de uma ave: e o canto, ausente,
talvez mudo se cumpra eternamente.



II


Amargar o teu peso e nunca mais
o sorriso que vem de não saber-te,
de ignorar teu mistério, de sentir-te
no que apenas supomos e não és.
Ah! o riso não cabe – e é vão o gesto
para colher o sonho decepado:
a mão ergue-se fria contra o vácuo
onde as sombras tropeçam seus enganos.
Nunca mais – e nos olhos e nas mãos
uma calma de angústias concentradas
ante barcos inúteis que se vão
sobre as águas do Letes... Resta apenas
a invenção de outros mitos: como um fruto
que um dia secará sobre um chão bruto.



III


Um rio corre surdo sob as horas
com seu lastro de cinzas e agonias.
Pesa-lhe sobre o curso um astro doido
que governa suicídios e naufrágios.
Uma lua também, por noite funda,
pende a face amarela sobre as águas
onde boiam pesados de silêncio
restos do que já foi – coisas que dormem
ou só derivam na corrente muda
seus corpos, ora belos, ora corpos
de mágoa e medo – sombras penduradas
em vértices de espantos... Nada conta
nesse rio que rola irreversível
carregado de sonho e de impossível.




Soneto de espera ou o 1º da morte


Alencar e Silva


De espera e espera sofro-te em meu canto,
em meu verso e nas coisas que te anseiam.
E mais sofrera se te não sonhara
nem crera em tua vinda, anjo noturno
que virás sobre o mar – pássaro, estrela
ou rosa a se elevar na noite pura –
sem outro anúncio a preceder-te, além
do teu hálito fresco sobre o vale
e esta certeza para além do sonho
de que teus olhos de mistério e flamas
descerão de repente em minha espera
e me destruirás para salvar-me:
que os noturnos jardins florescerão
e nos ventos da noite fugiremos.



Cantar de andarilho



Alencar e Silva

Não tenho pátria
determinada
nem tenho pressa
nesta jornada:

só esta sede
que têm meus olhos
de ver e ver

e este incontido
impulso de asas
sobre meus pés.

Minhas sandálias
cobrindo o mundo
que descobriram
pé ante pé,
minhas sandálias
vão-se ficando
pelos caminhos
de minha fé.

Arde em meu rosto
o sol de todos
os continentes.

Todos os ventos
já visitaram
minhas narinas.
Todas as águas
já circularam
dentro de mim.

Em minha fala
todas as falas
se misturaram.

E nos meus olhos
os céus mais vários
se despejaram.

Não tenho pátria
determinada
nem tenho pressa
nesta jornada:

só esta sede
que têm meus olhos
de ver e ver

e este incontido
impulso de asas
sobre meus pés.



Desce a noite no vale e as sombras cantam



Alencar e Silva

Desce a noite no vale e as sombras cantam
trescalantes canções de fim de dia.
Nada pode igualar-se à nostalgia
das luzes mortas que ainda se levantam
e andam na noite e à própria noite encantam
com marcados compassos de agonia,
enquanto a brisa vai ficando fria
e as sombras soltas pela noite cantam.
Fez-se noite no vale e agora é a hora
de recolher ao ninho o coração
entre as notas longínquas da canção
que em doces vozes o embalara outrora.

Vão-se os últimos pássaros do outono.
Fecha-se a noite. E já me apaga o sono.


Sob Vésper



Alencar e Silva

Antes que o grande vendaval me afaste
do teu corpo de pássaros e rosas,
deixa que eu cante uma canção sonâmbula
sob as luas ciganas de teus olhos.
Antes que o grande vendaval me arraste,
deixa-me ter-te como um lírio aberto
na hora crepuscular da tarde ardente
numa varanda toda de jasmins.
Antes que o grande vendaval quebre a haste
das rosas últimas e só espinhos
cerquem-me a fronte - deixa que me mirem
teus olhos, como sempre me miraste.
E eu canto, amor, uma canção de outono
para inundar de pássaros teu sono.



--- Poemas encontrados no Blog O fingidor


SONETO DE SETEMBRO


Eis que volve setembro e traz nos ombros
as clâmides azuis da primavera.
Vem como vinha e como virá sempre:
ressuscitando o verde pelas tardes.
Eis que volve setembro e novamente
o azul amplia o céu e o mar profundo
enquanto o amor retece uma coroa
de flores para a fronte constelada.
Eis que volve setembro e são quarenta
e sete vezes que ele a mim retorna,
e suas asas e seu hausto suave
ainda me aquecem neste claro agora.
Eis que volve setembro. A tarde larga
é ainda a mesma, só que um tanto amarga.


Prefácio de L.Ruas ao livro LUNAMARGA:

Lunamarga é um livro de maturidade, ou melhor, de maturação. Alencar e Silva é um homem voltado para as grandes realidades interiores. É um reflexivo por natureza. É um meditativo. Até o seu modo de falar nos diz isso claramente. Não é um extrovertido. Um
palrador.

Fala como se estivesse sussurrando, confessando um segredo. Há sempre um silêncio envolvendo cada palavra que ele profere. O silêncio é o seu "habitat". Ninguém pode deixar de comungar com a realidade. Mas isto pode ser feito de duas maneiras.

Há indivíduos que, por assim dizer, se deixam devorar pela realidade externa. Outros, ao contrário, se transformam em receptáculos e absorvem, na sua interioridade, o mundo exterior. Alencar e Silva é assim. A realidade, para ele, é apenas pretexto para manifestar seu universo interior. Não se transforma na paisagem. A paisagem se transforma nele. (...)

O homem mergulhado no seu próprio mistério, que é vida e morte, angústia e canto, inconsistência e rosa, não para explicá-lo, mas para vivê-lo ou sofrê-lo que é a mesma coisa. O homem diante de seu mistério, conscientemente diante dele, poeticamente diante dele, maravilhadamente diante dele:

o meu rosto se move horrorizado
sem se encontrar em qualquer dos espelhos.


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Noturno do eu profundo


Adrino Aragão



Talvez o título lembre o poeta Fernando Pessoa. Não seria pra menos, acho que, de algum modo, somos todos descendentes do vate lusitano. Mas, no caso do presente artigo, o título nasceu mesmo da leitura que fiz de Lunamarga, livro de Alencar e Silva, grande poeta brasileiríssimo, lamentavelmente ainda longe dos holofotes da mídia. Como disse Mário de Andrade: “os brasileiros não conhecem o Brasil”. Parafraseando o mestre, diríamos: o Brasil não conhece os seus poetas. Espalhados por estes brasis, esses poetas tecem e enriquecem, anonimamente, o que se faz de melhor na poesia brasileira.

De fato, existe algo de eternidade na poesia de Alencar e Silva, que, por vezes, nos faz pensar no genial Fernando Pessoa. Não que isto comprometa a sua obra poética. Ao contrário, eleva-a, enriquece-a. E por uma razão: Alencar e Silva tem personalidade de poeta maduro, advinda de leituras constantes, sérias, profundas, conscientes, de grandes poetas, como Pessoa, Drummond, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Cruz e Sousa.

O livro, publicado em 1965, foi reeditado ao término de 2005, numa feliz iniciativa da Editora Valer. O tempo, entretanto, em nada envelheceu o discurso poético do poeta. A começar do título Lunamarga, de forte simbolismo, já anuncia um universo de denso conteúdo existencial. O mundo real se configura no texto sob o aspecto noturno da subjetividade. “Tudo traz sob a pele a sua morte:/ a rosa e o sonho dançam sobre o abismo/ as formas de uma só fatalidade/ trabalhada em equívocos. Sereno,/ contudo, é o meu semblante: este e o mesmo/ que passeio entre as gentes. A amargura/ é disposta em murais pelas paredes/ do eu profundo – e me espia.”

O poema “Tríptico do espanto”, do qual extraímos os versos acima, como que funda os rumos que a obra poética de Alencar e Silva haveria de seguir em livros posteriores.

Ler Alencar e Silva é um deslumbramento para a inteligência e para a emoção do leitor. Mas o poeta não se entrega fácil. É preciso descobri-lo por trás “dos frágeis cristais embaçados” e captar-lhe a imagem em cada filigrana do poema. E isto exige atenção, sensibilidade e saber. Não o saber que exibe erudição. Mas, principalmente, o saber do pensar. Do refletir. Senão, será perder-se pelos caminhos de um rio profundo que ora corre sereno ora corre veloz. Como o poeta confessa: “Neste barco passageiro/ maldisposto a viajar/ eu me invento rotas novas/ rotas de nunca chegar”.

Mas há momentos de absoluta, ou quase, transparência dos cristais: “Não sei, só sei que eu entrei/ em muitas casas de livros/ como quem vai para o cais...”. É quando os elementos do poema surgem luminosos, fulgurantes: o rio, a lua, a noite, o sonho, a solidão, a morte... – todos envolvidos na pele do tempo, que é medida, corte corrosivo a expor a finitude de tudo. Só a poesia é perene. E através do poema o poeta pode sobreviver.

Essa certeza se me anuncia com a leitura atenta e emocionada de Lunamarga. Tomo de empréstimo os versos do poeta. E canto: “não tenho pátria/ determinada/ nem tenho pressa/ nesta jornada”. 



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Um comentário:

  1. Cantar de andarilho é uma obra prima de Alencar e Silva, lembra uma despedida. Comovente.

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