sábado, 10 de setembro de 2011

HUMBERTO DE CAMPOS


POEIRA...


Poeira leve, a vibrar as moléculas: poeira
Que um pobre sonhador, à luz da Arte, risonho,
Busca fazer faiscar: pó, que se ergue à carreira
Do Mazepa do Amor pela estepe do Sonho.


Para ver-te subir, voar da crosta rasteira
Da terra, a trabalhar, todas as forças ponho:
E a seguir teu destino, enlevada, a alma inteira
O teu ciclo fará, seja suave ou tristonho.


Não irás, com certeza, alto ou distante. O insano
Pó não és que, a turvar o céu claro da Itália,
Traz o vento, a bramir, do Deserto africano:


Que és o humílimo pó duma estrada sem povo,
Que, pisado uma vez, pelo ambiente se espalha,
Sente um raio de Sol, cai na terra de novo.


DOR

Há de ser uma estrada de amarguras
a tua vida. E andá-la-ás sozinho,
vendo sempre fugir o que procuras
disse-me um dia um pálido advinho.


No entanto, sempre hás de cantar venturas
que jamais encontraste... O teu caminho,
dirás que é cheio de alegrias puras,
de horas boas, de beijos, de carinho..."


E assim tem sido... Escondo os meus lamentos:
É meu destino suportar sorrindo
as desventuras e os padecimentos.


E no mundo hei de andar, neste desgosto,
a mentir ao meu íntimo, cobrindo
os sinais destas lágrimas no rosto!


MIRITIBA

É o que me lembra: uma soturna vila
olhando um rio sem vapor nem ponte;
Na água salobra, a canoada em fila...
Grandes redes ao sol, mangais defronte...


De um lado e de outro, fecha-se o horizonte...
Duas ruas somente... a água tranqüila...
Botos no prea-mar... A igreja... A fonte
E as grandes dunas claras onde o sol cintila.


Eu, com seis anos, não reflito, ou penso.
Põem-me no barco mais veleiro, e, a bordo,
Minha mãe, pela noite, agita um lenço...


Ao vir do sol, a água do mar se alteia.
Range o mastro... Depois... só me recordo
Deste doido lutar por terra alheia!




Brasil


-

Verde pátria que, em sono profundo,

Escondias teu régio esplendor,

Vem mostrar, para espanto do mundo,

Teus tesouros de força e de amor.

-

Salve, terra dos rios enormes,

– Virgem berço da raça tupi!

Anda, acorda, desperta, se dormes,

Que teus filhos já chamam por ti!

-

Se teus rios que empolam as águas,

À distância as do Oceano comtêm,

Saberemos, poupando-te mágoas,

Repelir o estrangeiro, também.

-

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

-

Se nas cores que tremem nos mastros

As estrelas enfeitam teu véu,

Hás de tê-las bem alto, entre os astros,

Entre as outras estrelas do Céu!

-

Salve, terra dos rios enormes,

– Virgem berço da raça tupi!

Anda, acorda, desperta, se dormes,

Que teus filhos já chamam por ti!







A FUNDA
(SALVADOR RUEDA)

O verso é a funda de uma idéia. À teia
Dos fios trá-la, sem calhaus, pendida;
Mas, se a tomares, que lhe emprestes vida,
E a tornes digna da atenção alheia.


Funda é o verso. Faiscando, balanceia
No ígneo cérebro a pedra encandescida;
E ao futuro, de súbito impelida,
Caminhando veloz, relampagueia.


O verso é a funda que uma idéia lança.
A pedra passa pela nossa frente
E no giro dos séculos não cansa.


E tu, que és poeta e sonhador austero,
Lembra as pedras em funda resistente
Alto lançadas pela mão de Homero!


ÁFRICA

Na partilha das sáfaras conquistas
Desta Líbia de mouros rancorosos,
O Deserto foi dado aos Poderosos
E o Oásis, florido e mínimo, aos Artistas.


E os felizes, quais são? Os mil sofistas
Da Ventura, a pedir, de olhos gulosos,
Terra e mais terra? Ou o que limita os gozos
E em sete palmos acomoda as vistas?


Certo, não sereis vós, ó Donatários
Do alvo Deserto, que velais, em guerra,
A áurea carga dos vossos dromedários.


Mas, tu, ó Poeta, que, por onde fores,
Teus sete palmos hás de achar na terra
Abrindo em trigo, rebentado em flores!


O Irapuru


Dizem que o irapuru, quando desata
A voz - Orfeu do seringal tranqüilo -
O passaredo, rápido, a segui-lo,
Em derredor agrupa-se na mata.

Quando o canto, veloz, muda em cascata,
Tudo se queda, comovido, a ouvi-lo:
O canoro sabiá susta a sonata,
O canário sutil cessa o pipilo.

Eu próprio sei quanto esse canto é suave;
O que, porém, me faz cismar bem fundo
Não é, por si, o alto poder dessa ave:

O que mais no fenômeno me espanta,
É ainda existir um pássaro no mundo
Que se fique a escutar quando outro canta!

Humberto de Campos


1


“Que se fique a escutar quando outro canta”
Assim num ato nobre e tão gentil,
Pudesse renovar-se o que partiu
Gerando sobre a sorte, rara manta.
Aos píncaros eleva-se tal sonho
E nele se permite um novo templo,
Além do que em verdade já contemplo,
Usando da emoção, assim proponho.
Versando sobre a glória de quem sabe
E vive a poesia com alento,
Por vezes, solitário me atormento,
No quanto uma ilusão, tola, desabe.
Assim quando te leio, caro amigo,
O que há dentro de mim; sentir. Consigo...

2


“É ainda existir um pássaro no mundo”
Que possa traduzir em raro canto,
O quanto a vida gerando encanto
E dele com certeza já me inundo,
Canora fantasia traça o todo,
E deixa para trás o sofrimento,
No quanto ao percebê-lo, enfim me alento,
Diverso do que eu vivo; imenso lodo,
Saber ser mais plausível do que quando
Negara ao meu caminho a boa sorte,
Ouvindo o passarinho que conforte
Meu mundo noutra senda se tomando,
Percebo quão real a divindade,
No som que mavioso; tudo invade.


3


“O que mais no fenômeno me espanta,”
Da vida refazendo da vida
Na eternidade assim já percebida,
Mutável caminhar em força tanta.
Alenta-me pensar na primavera
Após a primavera do passado,
O sonho noutro sonho recriado,
É mais do que talvez uma alma espera,
Pretensas emoções, dias sombrios,
Mortalha do viver em tais granizos,
Mas quando se percebem paraísos,
Reato da paixão, diversos fios.
E tento após a chuva e o temporal,
Momento mais feliz, no meu final.


4


“Não é, por si, o alto poder dessa ave”
Levando aos mais diversos sonhos que
Ainda se transborda quando vê
O encanto que jamais nada inda trave,
Assim ao perceber quão soberano
O canto diluído pelos ares,
É como se pudesse nos altares
Viver além do medo e desengano,
Singrando os mais sobejos mares belos
Rasgando os céus em naves fabulosas,
Sorvendo este perfume, raras rosas,
Tomando a consciência de castelos
Traçados pelas notas musicais
Além do que pensara. Magistrais!

5


“O que, porém, me faz cismar bem fundo”
Além de um tão perfeito caminhar,
Vencendo esta distância a se mostrar
Nas ânsias mais sutis das quais me inundo,
Bebendo em tal fartura, esta beleza
Realça-se deveras cada sonho,
E quando ao mais sobejo me proponho,
Percebo quão divina esta grandeza.
Escassas luzes tive no passado,
E agora ao perceber tanta fartura,
Já não concebo a vida tão escura,
Caminho com bravura desvendado,
Proclamo em voz suave o quanto quero
De um mundo mais audaz, porém sincero.

6


“Eu próprio sei quanto esse canto é suave;”
E dele me entranhando maravilhas,
Aonde com certeza sei que brilhas
Felicidade além de simples nave.
O gesto ritual de uma amizade
Permite que se veja claramente
Beleza sem igual, nada desmente,
E nela com certeza uma alma brade
Além do quanto pude conceber,
Numa ânsia maviosa em luzes feita,
Assim a soberana e mais perfeita
De tantas fantasias posso ver,
Sabendo da existência deste canto,
E dele desfrutando todo encanto.

7

“O canário sutil cessa o pipilo”
Ouvindo o bardo em canto incomparável,
Assim sorvendo além do imaginável,
Suprema maravilha em ti destilo,
E crendo ser possível magnitude
Suprema no teu canto sedutor,
Vencido pelas ânsias de um amor,
Permito que meu rumo se transmude
E sinto ser feliz quem ouve enfim
A magistral canção que agora entoas,
Gerando maravilhas nestas loas
A florescência toma o meu jardim,
E a lua emoldurando este cenário,
Acompanhando o encanto do canário.

8


“O canoro sabiá susta a sonata,”
Tocado por tamanha sedução
Beleza se aflorando desde então
Tomando num momento toda a mata,
Soberana e sobeja fantasia
Tocando o coração de cada ser,
Transcende à própria essência do prazer
E nela toda a sorte se porfia,
Deidade se percebe a cada canto,
Enternecida voz se entorna e toma,
Enquanto a fria fera já se doma,
Sorvendo cada gota deste encanto,
E toda a Natureza embevecida
Aplaude a divindade feita em vida.

9


“Tudo se queda, comovido, a ouvi-lo”
Amigo quando entoas cada verso
Tomando em luzes fartas o universo,
O próprio sol de ti, mero pupilo.
Ainda se percebe no teu canto
O quanto Deus se fez além do todo,
Por mais que a vida trace algum engodo,
Em ti de farta luz, eu me agiganto,
Pudesse eternizar cada segundo
Sentindo a raridade feita em som,
Sabendo quão raríssimo tal dom,
Tocando em plenitude todo o mundo,
Magnânimo cantor, vate sobejo,
Contigo um novo tempo em paz prevejo.

10


“Quando o canto, veloz, muda em cascata,”
O templo se refaz como se fosse
Além de um tempo claro, manso e doce,
A sorte do passado se desata
E gera este futuro em glórias tantas
E bebo cada gota da esperança
Na qual minha alma agora já se lança
Enquanto em perfeição sublime cantas.
Pudesse ter somente este momento
E nada mais bastando para mim,
Ao florescer divino este jardim,
De toda a tempestade me apascento,
Abençoada voz tomando conta
Para uma eternidade em luz aponta.

11

“Em derredor agrupa-se na mata”
Fartando-se do brilho desta lua,
Catuliana imagem rara e nua,
Divina fantasia desbarata,
E quando eu a percebo em rara luz,
Teu canto em magnitude plena traça
Sobeja maravilha aonde escassa
Outrora e agora alquímica produz
A soberana glória do existir,
Toando uma viola sertaneja,
Além do que talvez ainda veja,
Pressinto a divindade no porvir,
Traçada pelas notas sob o brilho
Da deusa em cujo rastro, prata, trilho...

12


“O passaredo, rápido, a segui-lo,”
Qual fossem mil falenas vendo a luz,
Fantástica emoção que me conduz
Tocado pelo belo deste estilo,
E vendo a fonte rara deste encanto,
Traçando cada passo rumo a um Deus
Matando os velhos dias quando ateus,
Não pude perceber divino canto,
E tento redimir os meus enganos,
Mudando num momento minha sorte
E tendo em tal beleza novo Norte,
Já não concebo mais antigos planos
E sinto ser perpétua esta expressão
Tornando o que eu vivera outrora vão.

13


“A voz - Orfeu do seringal tranqüilo –“
De um bardo que ora entoa esta cantiga
Permite quanta paz onde prossiga
Vencendo qualquer dor que inda destilo,
Servindo ao mais perfeito sedutor,
Minha alma se demonstra embevecida,
E vendo para os medos a saída
Percebo a magnitude de um amor,
A flórea senda expressa esta certeza
E dela se gerando etérea luz,
À sideral beleza me conduz,
Levado pela imensa correnteza.
Traçando com meu verso mais singelo
Usando da emoção, sutil rastelo.


14


“Dizem que o irapuru, quando desata”
Seu canto sob a lua magistral
Domina com certeza todo o astral,
E invade com ternura a imensa mata,
Assim também ouvindo a tua voz,
Percebo a maravilha deste encanto,
E bebo a fantasia e me agiganto
Atando com os deuses firmes nós.
Vencendo os meus temores, eternizo
A sorte de poder estar contigo,
Singrando este oceano que persigo,
Deixando no passado algum granizo,
E quando me mostrando inteiro a nu,
Concebo-te qual fora um irapuru...




O MAPUÁ





Serpente negra, de aparência bela,
Do coração de Mapuá fluindo,
Desce o escuro Mapuá, na úmida tela,
Da água o verde das margens refletindo.

Tudo é alegre em redor. Nele, florindo,
Mira-se a parasita. E a árvore, a umbela,
Sobre ele aberta, as flores sacudindo,
A superfície plácida lhe estrela.

Entretanto, outra cena se desdobra,
Na água profunda: no saturno leito,
Movem-se o boto, e a pirara, e a cobra ...

Que o sombrio Mapuá, negro e profundo,
De face lisa, é um símbolo perfeito,
De muito coração que há neste mundo ...




Envelhecer

Na manhã da existência ouvindo o peito
Que previa teu vulto no caminho
Dentro em minh'alma construí teu ninho
E nesse ninho preparei teu leito.

Desceu a tarde inda me vi sozinho.
Murcham as flores que, de leve, ajeito;
De novas rosas tua colcha enfeito,
E o travesseiro, novamente, alinho.

Cai tristonho o crepúsculo na estrada,
Alongo os olhos atirando um beijo
A forma vaga do teu corpo... E nada!

Recompondo as palavras que não disse
E, apagando a candeia do Desejo
Adormeço na noite da Velhice.




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