quarta-feira, 14 de setembro de 2011

MIRIAN DE CARVALHO







MIRIAN DE CARVALHO





Cantos do visitante


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ENTRE AS VASILHAS E AS CHAMAS







Farinha, leite, água ... já sei de cor o livro de receitas.
O que procuro não está escrito:
a gestação da vida
no ventre de ferro das panelas.
Meus pensamentos colhem nas flores de mosaico
a parte viva que faz jorrar da terra uma estória atual
escrita pelo fogo.

Sempre igual e diferente,
o fogo brilha e me atrai,
ave dançante na trempre do meu fogão,
a libertar-se rubro em línguas verticais.

Meu estômago invade esses espaços do desejo
entre as vasilhas e as chamas
onde os deuses habitam e preparam o alimento e os sonhos.
Todos os dias meus dentes compartilham com eles
as nozes e o pão.




INSONE







A lua negra rastreia o quarto adormecido.
Encontro pela escuridão frestas no eu que sobrou da véspera.
Acho o que não procurava: o acaso é parte de mim.

Insone preparo a festa do dia vindouro. No leito,
misturo ao mel da manhã o perfume das violetas
e recolho numa fotografia
a cabeleira do sol a roçar os ombros do mundo.






NO CORTEJO DAS ÁGUAS







Seguem meus olhos e pensamentos
pequenos cisnes a deslizar pelo verde da parede.
Contemplo o sossego do nado se imersa em mim
embalo meus rios de memória
no cortejo das águas e aves de azulejo
enquanto lambem a minha pele regatos transitórios.

O corpo não assume o suor da fadiga.
No banho, um pouco de nós se vai.





A MESA POSTA







No brancor da toalha a noite encena a mesa posta
e a louça da véspera brilha por obrigação no encontro familiar.

Desejo mais; quero o que se esconde
na memória e no tato dos talheres
quando pressentem o toque dos dedos e da boca.
No dia comum, desejo a festa.

Do convidado sentado à cabeceira,
das mãos entrelaçadas, eu sei,
pensam comigo o sentimento e a origem das coisas:
incenso da Índia, papoulas da China,
hortelã do meu quintal, passos de agora
sob telhas de vidro que pontuam de céu
a luz desta noite.


Junto ao visitante, me apego aos sentidos
das coisas que vivem. Em nossas mãos
o cálice aguarda o gosto dos lábios e da menta.






NA SOLIDÃO DOS OBJETOS



Antes da noite à flor da terra, o porão adormece
no leito de outro tempo que se encrava nas coisas antigas.
Nesse lugar poucas coisas me falam, mas todas elas
são o passado que pressinto meu.

A escada me convida à ascese. Da lâmpada acesa
doces tentáculos descem ao jardim de transparências
atravessando a vida virtual e bela das rosas do vitral.
Vermelho nas corolas
o ímpeto da vida se derrama na sala
e desconhece os sentidos da véspera.

Sob o chão, nada é perda ou reencontro.
Na solidão dos objetos a poeira tinge de cinza
a dor do inútil.










AS ÁGUAS ENDURECIDAS NO ESPELHO







O olhar do cristal em meus olhos revê na escuridão
o duplo
não mais ilusório.
Meus pensamentos deslizam pela noite em esquiva,
mas no espaço ambíguo do corpo e do reflexo
no espelho,
a luz não pode mudar
o percurso das águas endurecidas.

Dentro das águas, o fôlego da imagem se entranhou
nos recortes do passado.
Ao rastrear o que se foi, surpreendo em mim
olhos aguçados de cristal
a decantar no breu da terra
as coisas intangíveis
habitantes
da imagem e do olhar.








O VISITANTE



Os pássaros passavem em bando,
eu os relembro ainda.
Súbitas aves da noite, devaneios do visitante ...
Lembrança que fere.
Lembrança que anima.


Pássaros de cristal, eu os vejo reluzindo
nos dedos da noite
a coroar de esquecimento
o canto uníssono do tempo:
“mia morte sodes, que me fazedes morrer!”




A PRESENÇA DOS OBJETOS


Os ponteiros reiniciam a canção do outro dia
marcado nas fendas da meia noite.

Abrindo a janela para reunir fragmentos da paisagem,
o cheiro da madrugada me renova das perdas e danos
deste dia de grandes e pequenas coisas.
O olhar do retrato não se dirige a mim, mas a moldura é bela.
Os meus sapatos ficaram velhos e macios,
e a caneta sinaliza os poemas que um dia quis escrever.

Ao caminhar pelo mundo o relógio de pulso
é a minha estrela das horas de desapego.










O RÁDIO LIGADO







O outro lado da luz derrama no corredor
uma noite maior que o mundo
nos cortes das tábuas do assoalho
a resmungar a presença imóvel das coisas não havidas.

Não pressinto passos, não há descompasso
e os loucos da casa habitam o cone de sombras
dos eclipses.

No quarto dos fundos
o pássaro de palha marca o lugar da morte
em neutralidade,
ao som de um monólogo:
o rádio ligado retém a fala
do último habitante da casa.









A ESCRITA DO CORPO



Adormece no quarto o sonho do outro
sonhado por mim.
Ao desamparo do silêncio
cai sobre meu corpo a noite que não desejei.


Esquecido da linguagem,
o instante em fuga
reúne em minhas mãos a matéria da vida.
Com a migração do tempo, o que se foi não era desejo
– não era nada.
O que se encontrou no ardil da palavra morta
esqueceu-se da fala. Direta
e pulsante, a escrita do corpo
expõe seus dizeres na pele desarmada.







A POLPA DA FRUTA



A polpa da maçã em meus dentes
nada sabe da casca inerte no prato.

Murcha e opaca, a casca da fruta
se esqueceu das sementes jogadas ao acaso
e do matiz vermelho-luz de antes
esquecido da lâmina que ignora o tempo
a esvaziar-se
inteiro inteiro inteiro. . .









A CATEDRAL IMAGINÁRIA







A catedral recicla o surgimento do mundo
no fluir das horas evadidas do silêncio,
quando os sinos libertam o tempo detido nas torres
e as curvas da luz germinam a matéria dos vitrais.

Concha de som e luzes,
o teto em ogiva acolhe o dia e a noite,
segue o visitante pelas naves
onde o impulso de ir ou de volta
não se esgota no esforço dos pés.
Nesse caminhar,
os sentidos imprecisos da paixão
abrem entre-espaços inconclusos
de céu e chão.

Se há noite sempre nas curvas dos arcos,
pelas paredes o universo floresce
na simplicidade do vidro iluminado,
e a palavra culpa, ausente de cores,
desce das sineiras
e adormece sem peso no coração das pedras.









O SEMEADOR NO JARDIM



Lavrada a terra meus desejos são raízes
tingindo de verde primevo a haste nascente
que suaviza a tarefa das mãos em dias de escassez.

No ofício da beleza as glicínias balbuciam em azul
o verbo das águas geratrizes.
Uma só flor, cratera de luz no espaço negro da noite,
reproduz a vida sobre inércia e medo.







NA TOALHA DA MESA O VERSO DE DRUMMOND







Rédeas largas aos cavalinhos velozes
no tabuleiro azul e branco da toalha de xadrez!

Um pouquinho de café ... mais leite ...

A rainha agita os cabelos e sem mesuras passo pelo rei,
a caminho da minha torre aberta para o mundo.

Os cavalinhos de açúcar rodopiam e dançam
em volta das damas e piões de biscoito
que se desfazem com o primeiro olhar da cidade.
Na toalha esvaziada de seres dançantes,
o verso de Drummond se inscreve nas linhas retas do tecido:
Neste país é proibido sonhar.








O CORPO



Iniciado o amor ante o sono da esfinge,
búzios entreabertos a revelar a vida
desvelam o perfume da pele enternecida.

Por que perguntas a quem sonha?

Súbito recolhimento, o amor,
concha fechada em mar aberto
preamar de luas a cavalgar o azul
na várzea de espumas e espera
entre o corpo e a linguagem.









PÁSSAROS, LIMO E SERES IMAGINÁRIOS



Junto aos camelos e cogumelos
de nuvem
nascidos no telhado,
o vermelho de um coração pulsante cobre a minha casa,
esmaece em sombras e
com o ritmo das horas se refaz.
Sobre caibros e lendas guardo a minha coleção de pássaros,
limo e seres imaginários. Uma parte dela já se perdeu
nas hachuras deixadas pelo tempo.

Nesses meandros de carmim e nervos
a vida do barro agoniza comigo
em cada peça que se foi.











NO ENTREABERTO DAS GAVETAS



No entreaberto das gavetas
as coisas sofrem de paixão
e a solitude se recria nas cores do lenço,
nas dobras do vestido fixado no retrato
entre flores, desejos e folhas secas.
O que restou da morte respira comigo
o cheiro de guardados e madeira.
O que resta revela veios e encaixes
no lenho de florestas imaginárias
em vigília no quarto de dormir.

Ao abrir clareiras
em meio a rendas com cheiro de sândalo,
este camafeu e eu sentimos vivo
o rosto da mulher adormecida
em marfim.














E TUDO CHEGA AO PONTO DE PARTIDA



A linha do tempo transcorre circular
dando ritmo ao precavido instrumento
nas andanças de cada hora nascida antes
em relógios de areia, água e sol.
Dos movimentos do grão e da água
à direção das sombras projetadas,
a poesia da matéria do mundo
realiza-se em mutação e quietude.

Súbito, meus pensamentos
embrenhados na exatidão
seguem a volta dos ponteiros ao momento preciso
dos astros
e tudo chega ao ponto de partida
quando o passar se recolhe em seu casulo de metal
e o tempo auto-flagela o corpo invisível.













O RUMOR DA CONCHA



Ao rumor da concha ouço a canção das marés,
me vejo a sonhar-me oceano em cavernas de coral,
a vida represada nas artérias do silêncio
filtra o passado das águas no coração do mar.

Dentro da concha em minhas mãos
a auréola da noite me faz perguntar:
“QUE JAZ no abysmo sob o mar que se ergue?”

No abismo me ponho a sonhar ...





A CASA REVISITADA





As minhas chaves abrem e fecham
os dois lados do vazio
encravado nas portas semi-abertas. Ao entrar,
abro as janelas para sentir
dentro e fora das vidraças
o que se passa
ante o mundo dividido em transparência.

Minhas chaves e dedos giram e jogam
o ambíguo jogo de amar o que se foi
e o que ficou sem corpo e nome:
nas grades, a vida entre curvas e retas
de uma forja enternecida,
flores vivas nos vitrais
inda úmidas de chumbo, luz
e noite.

Ao movimento das portas entreabertas,
livre de fantasmas e exílios
a casa pressente comigo
a ante-linguagem das coisas da vida
engastada na aldrava do desejo.



CONTRA-MÃO
Escribas do tédio em dias sem remédio
são carros mordendo a contra-mão. À vermelha
maçã! Seguir ou comer? Eis a questão.





SARÇAS D'ÁGUA

Sarças d'água longe e perto, vai-se a nave
a jogar o mar no porto. Quem viu o náufrago?
Quem viu o sal salgando o lábio do morto?



PEDRA-DE-ARRIMO






Nos muros da cidade o sol solando bolos e lesmas
grava fundo lápide lapso lâmina entrincheirando
o cio da luz em farinha de tempo limo pedra-de-arrimo.













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CRÔNICA DE UMA LEITURA DE IMAGENS RITMADAS
EM BARRO E SOPRO


Mirian de Carvalho





         Em Frauta de Barro, a poesia tem início no título deflagrador de imagens e cadências. Frauta  em vez de flauta  não é obra do acaso. A sonoridade induziu o poeta à recorrência fonética, integrando imagística, ritmo, prólogo e tema, como por metáfora podemos ler na figuração do cantar emanado dessa frauta: Em menino achei um dia/ bem no fundo de um surrão/ um frio tubo de argila/ e fui feliz desde então;/ rude e doce melodia/ quando me pus a soprá-lo/ jorrou límpida e tranqüila/ como água por um gargalo . Insurgente intróito dessa obra, nestes versos de Variações sobre um prólogo encontramos os sentidos da matéria da frauta desvelando-se numa fricativa sonoridade, saltando gargalo a fora, ao conceber desse instrumento a melodia, jorrando  límpida e tranqüila. Esse cantar, por metamorfose do mundo, abre fremente caminho d'água a jorrar, trazendo em si o que se esvai, e permanece, no afinado canto, dando vida aos seres nascidos do barro. Com o referido poema anunciando variações sobre um tema, Luiz Bacellar se apresenta para ouvir e dar ressonância à voz dos seres encantados no dia-a-dia, pulsando, ao alcance da lira, cabendo com relação a essa obra afirmar-se uma das poucas coisas que podem ser ditas sobre a Poesia: a originalidade de um poema, ou seja, a diferença poética emerge através de recursos imagéticos e rítmicos, enriquecedores dos dizeres poéticos contidos no acervo da língua vernacular do poeta, com valores de universalidade.

Por isso, quando tentamos classificar a poesia dentro de um estilo de época, há poetas e poéticas que sobressaem, trazendo-nos uma apreensão original do versejar: imagem e ritmo ressaltam a diferença / diferenças no inusitado do dizer, se procuramos a similitude classificatória. Dito de outro modo, urdindo a trama rítmico-imagística renovadora da linguagem no curso da poesia, o verso sobrepuja o verbo, enquanto os sentidos sobrepujam o significado. Criam-se novos seres e referenciais, para amparar aquilo que sentimos e / ou sabemos do mundo aos nossos olhos. Nesse caso, imagem e ritmo têm uma acepção própria, expressam diferenças em meio à similitude, singularidades na ordem da repetição. As diferenças poéticas, pontuando tensões entre o esconder e o mostrar, revelam instâncias da ante-linguagem e da pós-linguagem, dando peso ao não-dito como emergência e fluxo do poético. Desse modo, rastreando na leitura da poesia as sugestões esboçadas na metodologia de Gaston Bachelard, imagem e ritmo ganham acepções singulares se apreendidos numa abordagem fenomenológica , isto é, no momento ressonante de um verso, ou de um poema, quando apreendido na sua imagística e ritmo, definido-se desse modo um método de leitura da poesia.

Como ponto de partida da construção do método criado por Bachelard, podemos estabelecer os seguinte princípios: a noção de imagem poética  entendida como processo de desvelamento do inusitado, surpreendido pela imaginação do poeta, ao captar os sentidos do mundo  reunida à noção de ritmo, como cadência qualitativa e sistêmica das sonoridades marcantes no poema. Dádiva da imaginação ativa, produto da criação poética apreendida, também, pelo leitor, a imagem é origem, nunca reprodução ideativa ou pós-perceptual, nem substitutivo, nem fantasma mnemônico das coisas ou situações, outrora vividas ou presenciadas. Com sua força criante, a imagem tem poder ontogenético. Ao desvelar seres singulares, ela instaura uma ontologia, a partir da qual a poesia deve ser lida como partejante imagística ritmada. Nessa leitura, não só as repetições pertinentes às formas isométricas e / ou fixas de versejar, mas também as repetições de outra natureza  no verso livre  engendram, na eclosão da imagem, cadências qualitativas, que ultrapassam as regularidades formais para realizar o poético, criando modulações que transcendem as quantidades e recorrências de ordem morfológica.

Seguindo tais princípios de apreensão da poesia, em Frauta de Barro as diferenças enriquecedoras do acervo poético da língua e da linguagem são elaboradas na tessitura temática do cotidiano, poetizado em ritmos engendrados por recorrências isométricas, rímicas e, por vezes, pelas formas fixas  como o soneto e o sonetilho , construindo cadências inusitadas através de um sistema imagístico original.

Trata-se de um sistema de imagens inventivas da amorosidade das coisas ao alcance do tato. E dos sapatos galgando espaços na cidade natal do poeta. Eclode, assim, uma ontogênese: surgem imagens que atuam como matrizes, dando origem a outras imagens e articulações rítmico-lingüísticas capazes de criar sentidos para as coisas e lugares, que não conhecemos e / ou julgávamos conhecer. Tais imagens não descrevem, não pretendem substituir os objetos, nem se referem à memória das relíquias perdidas no tempo. Em Frauta de Barro, a imagética atualiza o mundo diante de nós, expressando a singularidade das experiências vividas pela primeira vez, nos poemas ritmados nesse instrumento de argila. Inusitadas, inconfundíveis e criantes, as imagens surgem e sonorizam-se despertadas pela fala, pelos sentidos, pele, nervos e meandros das coisas e lugares animizados pelo olhar do poeta. Desse modo, as imagens se põem a ultrapassar a sintaxe dos versos, revelando-nos âmago e superfície do mundo concebido pela amorosidade lírica, pelo cuidado do poeta na sua versão qualitativa do ritmo e da linguagem, transitando em animus e anima: forças fortes e forças tênues a criar a poética daquilo que pulsa em torno de nós. Imagem e ritmo realizam a poesia contida  e incontida  em Frauta de Barro, jorrando temas e motivos de argila e sopro.

Relendo Frauta de Barro, dentre baladas, sonetos, e outras formas de versejar, o autor não cedeu aos arroubos experimentais que dão notícia na mídia, mas ousou reinventar a isometria na musicalidade da redondilha, acolheu o decassílabo, visitou a regularidade de outros metros. Rimou, cadenciou a medida, transformando-a em qualidades imagístico-sonoras de um fluir rítmico, que não se perde um instante no todo desta obra, em que o título já é poesia a tonalizar o prenúncio de outros cantares, animizando utensílios, urdindo o nome das ruas e dos becos dos subúrbios de Manaus, com seus moradores e estórias de mito, cotidiano, morte e encantamento, numa epopéia com recortes líricos. Sendo prevalentemente lírica a sonoridade dessa frauta, seu sopro espalha desígnios de um eu atento, a criar lugares, coisas e seres viventes vislumbrados pelo poeta, caminhando, sofrendo e "saudoseando-se", ao modular a temática nascida do barro. Nessa poética, o eu se revela nostalgia do esquecido, abandonado ou morto, revivendo o despertar entre nascedouro e finitude das coisas renascidas na poesia. Em amorosidade, visitando o dia-a-dia, o eu  sofrendo e registrando sua presença e circunstância  vive e funda lugares, enquanto "seus personagens" agem, vivem, e alguns morrem, rodeados pela poética do mundo na quietude turbulenta de sua Manaus. E logo alcançamos o sentido do seguinte dito filosófico: "A poesia é uma metafísica instantânea" . Na fugacidade de um verso ou de um poema, ela reúne o eu e a imensidão cósmica (ou amazônica, dizemos) das coisas, vivendo intimidade e vastidão de um fluir e extasiar-se no instante poético. Em Frauta de Barro, eu e kósmos se encontram, seja na rua ou no beco, seja em estrondoso caso de um crime beirando a lenda ou no dorso de um monstro mandado por Ogum-São Jorge, ou na imensidão recôndita de um objeto de bolso: no grafite do lápis, na alada caneta-fonte, registrando a vida dessa frauta plasmada em barro e sopro, assim como nos diz o poeta, ao fazer o inventário do mundo: É o tema recomeçado/ na minha vária canção. Ou, de outro modo dito, se o poeta nos perdoar esta licença: Imagem soprando o barro/ poesia em recomeço/ ritmando nostalgia/ frauteado solo e som.

Frauta  em vez de flauta  não é obra do acaso, dissemos no início. Instrumento musical e ouvidos, voltemos às primeiras notas melódicas: Em menino achei um dia/ bem no fundo de um surrão/ um frio tubo de argila/ e fui feliz desde então;/ rude e doce melodia/ quando me pus a soprá-lo/ jorrou límpida e tranqüila/ como água por um gargalo.

Como água fluindo, desse achado de sonoridades jorram memórias imemoriais, agonias e cadências  despertadas pelo sopro  realizando-se fonte de descobertas na dualidade ritmada de rude e doce melodia. Uma dualidade ambígua do existir, como as coisas perdidas e encontradas, nostalgia da presença e da ausência, a burlar o tempo em fuga nos acontecimentos instantâneos, presentificando no poema aquilo que ninguém nunca viu e/ou não crê sonoro: E mesmo que toda a gente/ fique rindo, duvidando/ destas estórias que narro, /não me importo: vou contente/ toscamente improvisando/ na minha frauta de barro.

Com o trabalho das mãos, em tempos remotos, essa frauta se moldou em argila. Não poderia ter sido feita de outro modo. Que outra matéria registraria tanta musicalidade em rude e doce melodia? Que outra matéria poderia extrair de si mesma a sua própria matéria e sopro, arcaísmo e atualidade, poesia e existência? Desdobrando-se em ritmos e motivos, assim nos lembra o refrão a origem dos matizes musicais desse instrumento: É o tema recomeçado/ na minha vária canção. Essas variações, essas canções temáticas, seguem a desdobrar-se no mesmo poema, numa espécie de prelúdio para outras canções entreabrindo-se à poética vindoura, então anunciada: Jorre a módula toada/ com seu churriante humor/ que sempre com ar de magia/ sai o canto do cantor. Da matéria da frauta o poeta vai urdindo a sua magia, vai registrando as surpresas do olho numa inscrição sobre o muro, a reter a memória arcaica: Nos longes da infância paro;/ há uma inscrição sobre o muro:/ Frauta clara, arroio escuro,/ frauta escura arroio claro. [...] Tudo volta de monturo/ da memória em rebuliço./ Mas tudo volta tão puro!...
Em verdade, nada volta, bem sabe o poeta. Mas na imagem nascente a colorir o ritmo, isto  que ao cantor volta tão puro  não é nem a infância, nem a memória reprodutora da infância, mas o primeiro instante de vida das coisas transpirando, vivas, em lugares arcaicos e hodiernos, quando tocá-las significa descobrir a primeira experiência do mundo. Então, nossa infância pode realizar-se aqui e agora, no maravilhar-se das coisas no nascedouro. Surrão, frauta, argila, ao vê-los pela primeira vez, com o primeiro olhar de uma consciência ingênua, e perspicaz, eles assumem uma primeva existência, livres da dúvida ou do riso, relembremos: E mesmo que toda gente/ fique rindo, duvidando/ destas estórias que narro,/ não me importo: vou contente/ toscamente improvisando/ na minha frauta de barro. Improvisando, nos sugere o poeta a magia confirmada nessas estórias: as coisas nos olham, se descobrirmos seu destino de casulo, crisálida e poesia. Ao ver as coisas pela primeira vez, estamos não na nossa infância biológica, mas numa infância revelada pela poesia em ato. O poeta vê, ouve, acaricia e sofre o mundo. Anticonceituais, oníricas, sem pecado, assim ele nos revela as coisas desdobrando-se de si mesmas para o tempo do poema. O tempo poético se torna para nós o impulso da instantaneidade que se vai  e permanece  na poesia, no momento em que tudo é descoberta e consciência da finitude do ser. E da finita infinitude da poesia. Desconhecendo o transcurso da sucessão temporal, o arcaísmo se faz instante, presença e permanência. Poesia, temporalidade alheia ao tempo cronológico.

Em Frauta de Barro, o tempo da poesia  um tempo instantâneo  nos conduz à trajetória das coisas inventadas pelo sopro moldando o barro, pelo barro direcionando o sopro em imagem e ritmo  colhidos em nativo solo de rubro fruto: Se vires, leitor, o que há de/ agreste no que aqui trouxe/ com estas canções que colhi,/ sentirás minha saudade/ povoando o gosto agridoce/ das amoras que colhi[...].

Lançando ao tempo poético os lugares, as coisas, e as gentes, o som dessa frauta de argila inaugura seu kósmos telúrico harmonizando instrumento e arte, fôlego e barro, a moldar a sonoridade na sua própria matéria. Nesta matéria, a terra é o elemento poético da imaginação nascente em imagens que não reproduzem a realidade sensorial, mas instauram uma ontologia acolhedora dos seres emanados do sopro poético. Nessa canção, a terra se reconhece planeta, solo, elemento arcaico das mitologias, matéria da frauta e do canto, e substrato poético de uma epopéia do cotidiano vivido pelas incursões líricas do poeta: É o tema recomeçado/ na minha vária canção , lembremos.

Tendo o poeta encontrado sua frauta e fonte, o mundo estremece de indagações: E esse cavalo capenga?/ E esse espelho espedaçado?/ E a cabra? E o velho soldado? E essa cara solarenga? . Perguntas para si e para a vida, prossegue o cantor: São temas recomeçados/ na minha vária canção. [...] . Repetindo este refrão, ele retoma seu tema  fardo e quinhão de quem sai pela vida com olhos de ver. Para sair, ele se veste: Com seu paletó de brumas/ e suas calças de pedra,/ vai o poeta. Mas antes de sair, junta seus objetos de estimação e os guarda bem guardados e cadenciados em Dez Sonetos de Bolso. Primeiro, separa o lenço. Depois, o canivete. Do imemorial surrão, do bolso e das gavetas, o poeta extrai seus pertences, revelando-nos pulsações e "desutilidades" no fôlego dos utensílios de formato pequeno, que consigo habitam. Nestes dez sonetos dedicados a objetos do afeto, além do lenço e do canivete, são focos de cuidado: o relógio de bolso, o porta-níqueis, a caixa de fósforos, o lápis, o cigarro, a caneta-fonte, o chaveiro e o isqueiro. Cantados no metro da redondilha maior, vão eles girando líricos, girando como astros de um sistema solar, com dez planetas de quatorze luas de sete fases sonoras. E prossegue o poeta levando no bolso seus pertences de inestimável amorosidade: papafigo sem verga, rosa do tempo, âmago de grafite, algema de estanho...
Nosso poeta saiu de casa para rever sua cidade. Ao caminhar, tudo é antigo e atual, enquanto ele passeia pelos lugares, pelos nomes e lendas dos recantos, onde construiu seu Romanceiro Suburbano: um romanceiro de antigos becos, casas e ruas habitados por gente de hoje e do passado. Lugares de antigamente, e de agora  tudo está ali. Pessoas de outros tempos, e de agora  todas estão ali. Tudo. Todos. Presença, saudade e memória vivem a epopéia dos muros, paredes e logradouros poéticos. Quanta estória de rua e poesia! Balada da Rua da Conceição: balada com motivo e ofertório, cantando as casas derrubadas naquela rua. Os ratos, a saparia, o lixo, o sobrado da viúva, o circo, os urubus... Tanta coisa perdida: Onde irão os jornais velhos?/ Onde? E as garrafas quebradas? Ao perguntar-se, o poeta se põe a ouvir as mangueiras sussurrando pelas folhas suas mazelas, e surpreende o ocaso da mangueira casimiriana: Ai que saudades que tenho/ do tempo em que não sofria/ reumatismo nas raízes/ e não tinha cicatrizes [...]. Cantando memórias de animais, vegetais e "gentes", o mundo do subúrbio renasce em cirandas e baladas, para ouvir outras árvores, para contar das brigas do Crube "Todos os Santo"/ donde Cristo é jogadô,/ é centravante de time [...]. É o tema recomeçado/ na minha vária canção.

Embrenhando-se pelos meandros dos bairros, o poeta descobre que as casas antigas foram reformadas e descaracterizadas: São 13 casas unidas,/ são 13 casas nascidas/ no mesmo lance de rua, [...] Das 13 só restam 11:/ 2 foram demolidas [...]. Com a inexorável destruição dessas moradias, restam, entretanto, nos logradouros seus oralizantes nomes, que vão sendo trocados de acordo com as estórias do lugar: E o beco da Gameleira/ desta data pra diante/ Beco do Saco-do-Alferes/ conhecido se tornou [...] É o beco "Saco-do-Alferes"/ "Chora-Vintém" desde então. Entre personagens, lendas e histórias que fizeram o nome dos lugares, nessa ambiência situa-se, igualmente, o fantástico na assombrosa estória da Neca , por castigo carregada pelo monstro: E São Jorge Ogum mandou.../ (Saiu das águas um bicho/ coberto de limo negro/ que com a Neca carregou.)[...]. E quem quiser saber o porquê, que trate de ler o poema.

Esse cancioneiro prossegue com estórias de virgens santas e, passando pelos milagres, podemos assistir ao torneio de papagaios, empinando no azul este brinquedo e encantamento de menino, de gente grande, e de poeta: Na liça das nuvens/ a justa do azul:/ estrelas e arraias/ sóis e paparolas/ pipas e pandorgas [...]. Dando continuidade às andanças pelo subúrbio, o estômago recria seus motivos com ingredientes e temperos na Receita de Tacacá: Ponha, numa cuia açu/ ou numa cuia mirim/ burnida de cumatê:/ camarões secos, com casca,/ folhas de jambu cozido/ e goma de tapioca. Repasto do céu ou do inferno, terminada a refeição, no passeio do poeta não faltou a visita às Paróquias. Em algumas delas, o humor de fescenino escárnio: Seja paróquia ou piroca/ tudo vem a dar no mesmo/ pros padres redentorista.

Crimes. Toponímia. Personagens, Costumes. Sátira. Em Romanceiro Suburbano, o tom épico recebe acentos líricos, lirismo que se expande na medida dos sonetos decassilábicos, colhendo outros motivos e inaugurando lugares poetizados em Sonetos Provincianos e em Três Noturnos Municipais. No poema Porta para o Quintal, a porta, este objeto de direções e desejos ambíguos, se abre para o poeta. Sol, brisa, folhas da sapotilheira, calhas de lata: coisas de chuva e vento conversando/ quais velhinhas comadres; nos varais/ a roupa brinca de navio de velas/ minha perdida infância reinventando... Da imagem ao ritmo, tecendo qualidades de reinvenção nas coisas prosaicas, encontramos o poeta entre azul e vento, céu e sopro, partilhando o ofício de espera, quando o trabalho é tempo e expectativa nas mãos das lavadeiras: A roupa nos varais panda flutuando,/ com seus laivos de anil coando a brisa,/ até parece ávida nau cortando/ o mar azul que a leve espuma frisa.

Do quintal aos becos, das ruas ao campo-santo, o som dessa frauta se torna acentuadamente grave, na entreluz das tumbas, guardando a distância dos mortos adormecidos em noturnos de saudades e mistérios: As águas encrespadas pela brisa/ gravam na praia úmida do pranto/ das órfãs de afogados o seu canto.

Continuando nossa leitura, chegamos a Dois Escorços, conjunto de poemas que assinalam momento e surpresa das coisas e lugares entrando outra vez em cena. Dessa vez: o vaso de barro, o armário do pintor, a escada. Da mesma matéria de sua frauta, o pote tem trejeitos humanos: o velho pote poroso/ longo bocejo dilata/ e esfrega as ancas de argila. A seguir, em tom de enlevo sensual, entra em cena o amor a uma senhora, na paisagem de mangues e praias de oralizante confissão em redondilha maior: Ah quanto! nas noites frias/ com as nossas mãos enlaçadas/ nós pervagamos sozinhos/ em mútua contemplação. Dando continuidade à temática do amor, temos outro encontro de alongado verso marcando o peso e a longitude do tempo em solidão: [...] Os trapos da paixão drapejavam triunfantes,/ (os ventos do pudor contra mim conspiravam/ a erosão da recusa  ó insurreição de mitos!) [...] como as valvas de uma ostra se fechando entre espumas/ e eu caminhei sedento contra o sol poente. Entre a ambiência de romântico erotismo em Rimance Praiano e o sensual amor impossível de Estudo de Marinha em coral, ébano e marfim  poemas representados, respectivamente, através das duas últimas citações , a sugestão de sensualidade ganha outro colorido no acento erótico de Anacreôntica, instante das sonoridades metamorfoseando os signos convencionais, para saudar o amor carnal em versos de quatro sílabas, ritmando a respiração de curto fôlego, ao furtivo encontro: urnadesândalo/ conchainsonora/ laivodeaurora/ cristaldeescândalo [...] nácarbivalve/ tâmaralouca o/ tomar-te-à-boca o/ anjo me salve [...] a mim me baste/ teu brilho esquivo/ no próprio engaste/ de coral vivo[...].

Prosseguindo nos motivos de mar, o poeta entalha a caravela das viagens do grumete: A caravela pequena/ bóia no mar infinito [...] . Segue-se a essa viagem a mítica do número "sete", a assinalar todas as imagens do poema: São sete canções de mito,/ são sete campos de gritos/ congelados  são medusas[...] São sete imortais pecados[...] São sete cores no céu, [...] Sete bruxos blasfemando, [...] . Nessa magia do "sete", cumprem-se três seqüências de sete tercetos com versos de sete sílabas, até chegarmos ao motivo da escada fundando sua "poética do espaço" , em outro poema. É o tema recomeçado/ na minha vária canção . Ouvindo repetir-se o refrão do poeta, seguimos a poesia a transitar pelas imagens da vida e do desconhecido, galgando degraus de pedra: A escada nasce do sonho/ pelo sono revelada. Com relação a este motivo, lembramos a observação de Bachelard, registrando: por ofícios da poesia, algumas escadas sobem sempre e outras sempre descem  como a do porão e a do sótão , respectivamente. Mas, na poética da frauta, a escada sonorizada é reversível, convive com dois vetores, sendo duplamente poética. Direcionando-se entre ascese e descese, dois nortes escolhem aquele que deverá percorrê-la, subindo ou descendo: Vejo-a, neste momento, exata e ampla./ E um menino, vestindo um camisão/ branco, a subir por ela, mansamente,/ vai. Com uma estrela na mão... Porém, assinalando outra direção, o poeta registrou: A escada desce também:/ para os anjos rebelados/ que não temeram fitar/ a face feita de raios [...]. Nos sentidos de poesia e asas, os arcanjos podem escolher as duas direções: descem e sobem por ela,/ por ela sobem e descem[...] . Concluindo Dois Escorços, o poeta compõe canções de lâmpada e luz. A seguir  conduzindo seu barquinho de papel , ele direciona o pequeno brinquedo da infância: Vai barquinho de papel/ pelo enxurro da sarjeta, [...] . Esse barquinho navega improvisado mar de chuva, leva o destino do cantor, e conduz a existência, assim referida: Sim, abjeta e repelente/ existência que se abate,/ contra quem tudo contesta,/ contra quem tudo combate.

Por fim, a sonoridade dessa frauta recomeça seu tema nas sete canções de Poemas Dedicados, sete poemas compostos com metro e motivos vários de canto e louvor, abrangendo: o diálogo com a engenheira poética de Cabral; a visão de sono e serpe na ambiência da morte divinizada por Dante; a rosa da dúvida, no poema para Rilke; para Hölderlin, percurso e perder-se dos deuses na Montanha; com vestígios camonianos,  para Ricardo Reis  uma reflexão sobre a existência e a liberdade; no canto dedicado à poesia cênica de Chaplin, o riso  e lágrima  dando claridade à existência. E, à guisa de fecho de uma epopéia do sentimento do mundo, em tom mais grave, com o canto do funeral o poeta faz a saudação a Lorca : Ay, ben no mei dun trigal/ enterraron meu poeta![...] Nun canteiro de papoilas/ e ben no mei dun trigal! [...] Ay, esse trigal  seu povo!/ esse vento  a tirania!/ papoila do seu martírio!/ fonte da sua canzón!

Entre seus pares de fôlego e arte, Bacellar  com senso crítico, humor, e lirismo  registra seu cantar no acervo universal do desvelamento do mundo no instante da imagem ritmada: no instante poético, instauram-se o ser e o devir das coisas transeuntes ante o eu e o mundo. Para desvelar este ser / devir da vida e do dizer, o poeta não tirou a roupa nem na rua, nem no palco. Simplesmente, vestiu-se e, atento, pés no chão, caminhou pela sua cidade: com seus sapatos de musgo/ (camurça verde dos muros)/ com seu chapéu de abas largas (grande cumulus escuro).[...]. Vestiu-se para acolher a poesia insurgente, gravando-a em saudade e primevo canto: É o tema recomeçado/ em minha vária canção.

Atual, ainda que escrita há mais de quarenta anos, esta obra nos revela a diferença poética  a originalidade rítmico-imagística da poesia  através das sonoridades eclodindo por ofício melódico. Nesse cantar, contrariando os arroubos sígnicos esvaziadores do universo poético, percebemos que o metro, o recurso rímico e a forma fixa não significam obediência à tradição, mas insurgência e opção estético-estilística, para gravar na argila da frauta o sopro adequado a cada tema, ao poetizar-se a perplexidade do poeta diante dos sentidos do prosaico. Recorrentes, as imagens das coisas e dos lugares simbolizam o corpo, sendo elas matizadas pelo cantor inaugurando uma "poética do espaço" , a pontuar o seu estado anímico ante as circunstâncias da vida e da cidade: Frauta clara, arroio escuro,/ frauta escura, arroio claro.

Em meio a demolições, ao lixo, aos ratos e urubus, em meio ao lirismo que resta para referendar sua cidade e poetizar os objetos, com afinado instrumento musical o poeta vai soprando a cor cinza da poeira que tinge as coisas do dia-a-dia. Épica e lírica, barro e melodia, essa frauta vem rastreando o pensar poético: um pensamento dinâmico que vai ao fundo das coisas e da linguagem, refletindo-se no fazer poético.

No fazer arquetípico inscrito em Frauta de Barro, observamos uma consciência desse fazer, uma instauração de vários núcleos significados engastados no universo temático dessa obra. Em tais núcleos, entre variações de imagística e ritmo, percebemos que tais diferenças variacionais refletem uma dialética do nativo e do importado, como herança dos "tempos de borracha e ouro", a tangenciar tensões alusivas aos contrapontos: "povo e elite detentora do poder," "província e metrópole", escrevendo histórias na cidade do poeta, hoje. E ao considerarmos o hodierno momento histórico das "globalizações" unilaterais, essa frauta nos faz perceber que, em terras do Brasil, a província está em quase todos os lugares. Poesia do âmago das coisas trazido à pele das coisas, Frauta de Barro tonaliza sua atualidade poética e ideativa.

Da argila ao sopro, do tema ao som, há lugar para o aludido pensar poético, aquele que desvela o fundo da linguagem e das coisas, porque a poesia não deve estar a serviço de passadismos alienantes, nos sugere Manuel Bandeira: O poema deve ser como a nódoa no brim:/ Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero./ Sei que a poesia é também o orvalho/ Mas esta fica para as menininhas, as estrelas alfas,/ as virgens cem por cento e as/ amadas que envelheceram sem maldade. E, ao contextualizar a obra de Bacellar, Tenório Telles registra: "Sua poesia funda-se no compromisso com uma percepção da realidade e do homem".

Na poética dessa frauta, barro e fôlego, lixo e nuvens, urubus e cadáver, ato e devir repetem no refrão o íntimo motivo desse cantar: São temas recomeçados/ em minha vária canção. No desenho regular desses poemas, a poesia se renova a cada verso, oferendo-nos parâmetros críticos de pensamento sobre o fazer poético, e sobre o mundo, como parte desse ofício realizado entre chão e fôlego. Entre silêncio e linguagem.


Mirian de Carvalho é Doutora em Filosofia, leciona Estética na UFRJ, membro da ABCA/Associação Brasileira de Críticos de Arte, membro da AICA/Associação Internacional de Críticos de Arte.

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