terça-feira, 16 de agosto de 2011
MICHEL FOUCAULT - VIGIAR E PUNIR II
Que a reclusão pudesse como hoje, entre a morte e as penas leves, cobrir todo o espaço médio da punição, é uma
idéia que os reformadores não podiam ter imediatamente.
Ora, eis o problema: depois de bem pouco tempo, a detenção se tornou a forma essencial de castigo. No Código
Penal de 1810, entre a morte e as multas, ela ocupa, sob um certo número de formas, quase todo o campo das punições
possíveis.
Que é o sistema de penalidades admitido pela nova lei? É o encarceramento sob todas as suas formas. Comparai
com efeito as quatro penas principais que restam no Código Penal. Os trabalhos forçados são uma forma de
encarceramento. O local desse castigo é uma prisão ao ar livre. A detenção, a reclusão, o encarceramento correcional não
passam, de certo modo, de nomes diversos de um único e mesmo castigo.(29)
E esse encarceramento, pedido pela lei, o Império resolvera transcrevê-lo logo para a realidade, segundo uma
hierarquia penal, administrativa, geográfica: no grau mais baixo, associada a cada justiça de paz, delegacia municipal; em
cada distrito, prisões; em todos os departamentos, uma casa de correção; no cume, várias casas centrais para os
condenados criminosos ou os correcionais que são condenados a mais de um ano; enfim, em alguns portos, prisão com
trabalhos forçados. É programado um grande edifício carceral, cujos níveis diversos devem-se ajustar exatamente aos
andares da centralização adminis95
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trativa. O cadafalso onde o corpo do supliciado era exposto à força ritualmente manifesta do soberano, o teatro punitivo
onde a representação do castigo teria sido permanentemente dada ao corpo social, são substituídos por uma grande
arquitetura fechada, complexa e hierarquizada que se integra no próprio corpo do aparelho do Estado. Uma materialidade
totalmente diferente, uma física do poder totalmente diferente, uma maneira de investir o corpo do homem totalmente
diferente. A partir da Restauração e sob a monarquia de julho, encontraremos, por pequenas diferenças, entre 40 e 43.000
detentos nas prisões francesas (mais ou menos um prisioneiro para cada 600 habitantes). O muro alto, não mais aquele
que cerca e protege, não mais aquele que manifesta, por seu prestígio, o poder e a riqueza, mas o muro cuidadosamente
trancado, intransponível num sentido e no outro, e fechado sobre o trabalho agora misterioso da punição, será bem perto e
às vezes mesmo no meio das cidades do século XIX, a figura monótona, ao mesmo tempo material e simbólica, do poder
de punir. Já sob o Consulado, o ministro do interior fora encarregado de investigar sobre os diversos lugares de segurança
que já funcionavam ou que podiam ser utilizados nas diversas cidades. Alguns anos mais tarde, haviam sido previstos
créditos para construir, à altura do poder que deviam representar e servir, esses novos castelos da ordem civil. O Império
os utilizou, na realidade, para uma outra guerra.(30) Uma economia menos suntuária mas mais obstinada acabou
construindo-os, pouco a pouco, no século XIX.
Em todo caso em menos de vinte anos, o princípio tão claramente formulado na Constituinte, de penas específicas,
ajustadas, eficazes, que formassem, em cada caso, lição para todos, tornou-se a lei de detenção para qualquer infração
pouco importante, se ela ao menos não merecer a morte. Esse teatro punitivo, com que se sonhava no século XVIII, e que
teria agido essencialmente sobre o espírito dos cidadãos, foi substituído pelo grande aparelho uniforme das prisões cuja
rede de imensos edifícios se estenderá por toda a França e a Europa. Mas dar vinte anos como cronologia para esse passe
de mágica é talvez ainda excessivo. Pode-se dizer que foi quase instantâneo. Basta examinar com atenção o projeto de
Código Criminal apresentado por Lê Peletier à Constituinte. O princípio formulado no início é que são necessárias
"relações exalas entre a natureza do delito e a natureza da punição": dores para os que foram ferozes, trabalho para os que
foram preguiçosos, infâmia para aqueles cuja alma está degradada. Ora, as penas aflitivas efetivamente propostas são três
formas de detenção: a masmorra onde a pena de encarceramento é agravada por diversas medidas (referentes à solidão, à
privação de luz, às restrições de comida); a "limitação", em que essas medidas anexas são atenuadas, enfim a prisão
propriamente dita, que se reduz ao encarceramento puro e simples. A diversidade, tão solenemente prometida, reduz-se
finalmente a essa penalidade uniforme e melancólica. Houve, aliás, no momento, deputados que se espanta-
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ram de que, em vez de estabelecer uma relação entre delitos e penas, se houvesse seguido um plano totalmente diferente:
De maneira que se eu traí meu país, sou preso; se matei meu pai, sou preso; todos os delitos imagináveis são punidos
da maneira mais uniforme. Tenho a impressão de ver um médico que, para todas as doenças, tem o mesmo remédio.(31)
Pronta substituição que não foi privilégio da França. Encontramo-la, igual em tudo, nos países estrangeiros. Quando
Catarina II, nos anos que se seguiram imediatamente ao tratado "Dos delitos e das penas", manda redigir um projeto para
um "novo código das leis", a lição de Beccaria sobre a especificidade e a variedade das penas não foi esquecida; é
repetida quase palavra por palavra:
É o triunfo da liberdade civil, quando as leis criminais tiram cada pena da natureza particular de cada crime. Então
cessa qualquer arbitrariedade; a pena não depende em nada do capricho do legislador, mas da natureza da coisa; não é de
modo algum o homem que faz violência ao homem, mas a própria ação do homem.(32)
Alguns anos mais tarde os princípios gerais de Beccaria ainda fundamentam o novo código toscano e o que José II
deu à Áustria; e no entanto essas duas legislações fazem do encarceramento - modulado segundo a duração e agravado em
certos casos pelo ferrete ou pelas algemas, uma pena quase uniforme; trinta anos pelo menos de detenção por atentado
contra o soberano, por falsificação de moeda e por assassinato complicado com roubo; de quinze a trinta anos por
homicídio voluntário ou por roubo a mão armada; de um mês a cinco anos por roubo simples, etc.(33)
Mas se essa colonização da penalidade pela prisão é de surpreender, é porque esta não era, como se imagina, um
castigo que já estivesse solidamente instalado no sistema penal, logo abaixo da pena de morte, e que teria naturalmente
ocupado o lugar deixado vago pelo desaparecimento dos suplícios. Na realidade a prisão - e muitos países, nesse ponto,
estavam na mesma situação da França - tinha apenas uma posição restrita e marginal no sistema das penas. Os textos o
provam. A ordenação de 1670, entre as penas aflitivas, não cita a detenção. A prisão perpétua ou temporária havia, sem
dúvida, figurado entre as penas em certos costumes.(34) Mas pretende-se que ela está caindo em desuso como outros
suplícios:
Havia antigamente penas que nào se praticam mais na França, como escrever na testa ou rosto de um condenado sua
pena, e a prisão perpétua, assim como não se deve condenar um criminoso a ser exposto às feras nem às minas.(35)
De fato, é certo que a prisão subsistira de maneira tenaz, para sancionar as faltas sem gravidade, e isto segundo os
costumes ou hábitos locais. Nesse sentido Soulatges fala das "penas leves" que a ordenação de 1670 não mencionara: o
anátema, a admoestação, a abstenção de lugar, a satisfação à pessoa ofendida e a prisão temporária. Em certas regiões,
principalmente as que
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haviam melhor conservado seu particularismo judiciário, a pena de prisão tinha ainda uma grande extensão, mas a coisa
tinha suas dificuldades, como no Roussillon, recentemente anexado.
Mas através dessas divergências os juristas defendem firmemente o princípio de que a "prisão não é vista como uma
pena em nosso direito civil.(36) Seu papel é de ser uma garantia sobre a pessoa e sobre seu corpo: ad continendos
homines, non adpuniendos, diz o adágio: nesse sentido, o encarceramento de um suspeito tem um pouco o mesmo papel
que o de um devedor. A prisão assegura que temos alguém, não o pune.(37) É este o princípio geral. E se às vezes a prisão
desempenha o papel de pena mesmo, e em casos importantes é essencialmente a título do substituto: substitui as galés
para aqueles - mulheres, crianças, inválidos - que nelas não podem servir:
A condenação a ser encarcerado temporária ou definitivamente numa casa de força é equivalente à das galés.(38)
Nessa equivalência, vemos bem esboçar-se uma possível substituição. Mas, para que ela se realizasse, foi preciso
que a prisão mudasse de estatuto jurídico.
Foi preciso também superar um segundo obstáculo que, para a França pelo menos, era considerável. Com efeito, a
prisão era ainda mais desqualificada porque estava, na prática, diretamente ligada ao arbítrio real e aos excessos do poder
soberano. As "casas de força", os hospitais gerais, as "ordens do rei" ou as do chefe de polícia, as cartas timbradas obtidas
pêlos notáveis ou pelas famílias haviam constituído toda uma prática repressiva, justaposta à "justiça regular" e ainda
mais frequentemente oposta a ela. E esse encarceramento extrajudiciário era rejeitado tanto pêlos juristas clássicos quanto
pêlos reformadores. Prisões, feito do príncipe, dizia um tradicionalista como Serpillon que se abrigava por trás da
autoridade do presidente Bouhier:
Embora os príncipes por razões de Estado cheguem às vezes a infligir esta pena, a justiça ordinária não utiliza esses
tipos de condenação.(39)
Detenção, figura e instrumento privilegiado do despotismo, dizem os reformadores, em inúmeras declarações:
Que se dirá dessas prisões secretas imaginadas pelo espírito fatal do monarquismo, reservadas principalmente ou
para os filósofos em cujas mãos a natureza colocou seu facho e que ousam iluminar seu século, ou para essas almas
orgulhosas e independentes que não têm a covardia de calar os males de sua pátria: prisões cujas portas funestas são
abertas por misteriosas cartas, para aí sepultar para sempre suas infelizes vítimas? Que se dirá mesmo dessas cartas, obraprima
de uma misteriosa tirania, que invertem o privilégio que tem qualquer cidadão de ser ouvido antes de ser julgado, e
que são mil vezes mais perigosas para os homens que a invenção das Phalaris...(40)
Sem dúvida que esses protestos vindos de horizontes tão diversos se referem não ao encarceramento como pena
legal, mas à utilização "fora da lei"
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da detenção arbitrária e indeterminada. Nem por isso a prisão deixava de aparecer, de uma maneira geral, como marcada
pêlos abusos do poder. E muitos rejeitam-na por incompatível com uma boa justiça. Quer em nome dos princípios
jurídicos clássicos:
As prisões, na intenção da lei, sendo destinadas não a punir mas a garantir a presença das pessoas...(41)
Quer em nome dos efeitos da prisão que já pune os que ainda não estão condenados, que comunica e generaliza o
mal que deveria prevenir e que vai contra o princípio da individualização da pena, sancionando toda uma família; diz-se
que
a prisão é uma pena. A humanidade se levanta contra esse horrível pensamento de que não é uma punição privar um
cidadão do mais precioso dos bens, mergulhá-lo ignominiosamente no mundo do crime, arrancá-lo a tudo o que lhe é
caro, precipitá-lo talvez na ruína e retirar-lhe, não só a ele mas à sua infeliz família todos os meios de subsistência.(42)
E os cahiers, por várias vezes, pedem a supressão dessas casas de internação:
Pensamos que as cadeias devem ser arrasadas...(43)
E realmente o decreto de 13 de março de 1790 ordena que se ponha em liberdade todas as pessoas detidas nos
castelos, nas casas religiosas, cadeias, delegacias ou quaisquer outras prisões por cartas de prego ou por ordem dos
agentes do poder executivo.
Como pôde a detenção, tão visivelmente ligada a esse ilegalismo que é denunciado até no poder do príncipe, em tão
pouco tempo tornar-se uma das formas mais gerais dos castigos legais?
A explicação mais freqüente é a formação durante a época clássica de alguns grandes modelos de encarceramento
punitivo. Seu prestígio, ainda maior dado o fato de que os mais recentes vinham da Inglaterra e principalmente da
América, teria permitido superar o duplo obstáculo constituído pelas regras seculares do direito e o funcionamento
despótico da prisão. Muito rapidamente, teriam afastado as maravilhas punitivas imaginadas pêlos reformadores, e
imposto a realidade séria da detenção. A importância desses modelos foi grande, não se deve duvidar. Mas são justamente
eles que antes de fornecer a solução trazem problemas: o de sua existência e o de sua difusão. Como puderam nascer e
principalmente como puderam ser aceitos de maneira tão geral? Pois é fácil mostrar que, se apresentam um certo número
de pontos em comum com os princípios gerais da reforma penal, em muitos pontos são inteiramente heterogêneos a ela, e
às vezes mesmo incompatíveis.
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O mais antigo desses modelos, o que passa por ter, de perto ou de longe, inspirado todos os outros, é o Rasphuis de
Amsterdam, aberto em 1596.(44) Destinava-se em princípio a mendigos ou a jovens malfeitores. Seu funcionamento
obedecia a três grandes princípios: a duração das penas podia, pelo menos dentro de certos limites, ser determinada pela
própria administração, de acordo com o comportamento do prisioneiro (essa latitude podia, aliás, ser prevista pela
sentença: em 1597 um detento era condenado a doze anos de prisão, que podiam se reduzir a oito, se seu comportamento
fosse satisfatório). O trabalho era obrigatório, feito em comum (aliás a cela individual só era utilizada a título de punição
suplementar; os detentos dormiam 2 ou 3 em cada cama, em celas que continham 4 a 12 pessoas); e pelo trabalho feito, os
prisioneiros recebiam um salário. Enfim um horário estrito, um sistema de proibições e de obrigações, uma vigilância
contínua, exortações, leituras espirituais, todo um jogo de meios para "atrair para o bem" e "desviar do mal", enquadrava
os detentos no dia-a-dia. Pode-se tomar o Rasphuis de Amsterdam como exemplo básico. Historicamente, faz a ligação
entre a teoria, característica do século XVI, de uma transformação pedagógica e espiritual dos indivíduos por um
exercício contínuo, e as técnicas penitenciárias imaginadas na segunda metade do século XVIII. E deu às três instituições
que são então implantadas os princípios fundamentais que cada uma desenvolverá numa direção particular.
A cadeia de Gand organizou o trabalho penal em torno principalmente de imperativos econômicos. A razão dada é
que a ociosidade é a causa geral da maior parte dos crimes. Um levantamento - um dos primeiros sem dúvida -feito sobre
os condenados na jurisdição de Alost, em 1749, mostra que os malfeitores não eram
artesões ou lavradores (os operários só pensam no trabalho que os alimenta), mas vagabundos que se dedicavam à
mendicância.(45)
Daí a idéia de uma casa que realizasse de uma certa maneira a pedagogia universal do trabalho para aqueles que se
mostrassem refratários. Quatro vantagens: diminuir o número de processos criminais que custam caro ao Estado (poderse-
iam assim economizar mais de 100.000 libras em Flandres); não ser mais necessário adiar os impostos para os
proprietários dos bosques arruinados pêlos vagabundos; formar uma quantidade de novos operários, o que "contribuiria,
pela concorrência, a diminuir a mão-de-obra"; enfim permitir aos verdadeiros pobres ter os benefícios, sem divisão, da
caridade necessária. Essa pedagogia tão útil reconstituirá no indivíduo preguiçoso o gosto pelo trabalho, recolocá-lo-á por
força num sistema de interesses em que o trabalho será mais vantajoso que a preguiça, formará em torno dele uma
pequena sociedade reduzida, simplificada e coercitiva onde aparecerá claramente a máxima: quem quer viver tem que
trabalhar. Obrigação do trabalho, mas
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também retribuição que permite ao detento melhorar seu destino durante e depois da detenção.
O homem que não encontra sua subsistência deve absolutamente ser levado ao desejo de procurá-la pelo trabalho;
ela lhe é oferecida pela polícia e pela disciplina; de alguma maneira, ele é obrigado a se entregar; a atração do ganho o
excita, em seguida: corrigido em seus hábitos, acostumado a trabalhar, alimentado sem inquietação com alguns lucros que
reserva para a saída [ele aprendeu uma profissão] que lhe garante uma subsistência sem perigo.(47)
Reconstrução do Homo oeconomicus, que exclui a utilização de penas muito breves - o que impediria a aquisição
das técnicas e do gosto pelo trabalho, ou definitivas - o que tomaria inútil qualquer aprendizagem.
O prazo de seis meses é curto demais para corrigir os criminosos, e levá-los ao espírito de trabalho; [em
compensação] o prazo perpétuo os desespera; ficam indiferentes à correção dos hábitos e ao espírito de trabalho; só se
ocupam com projetos de evasão e de revolta; e já que não foram julgados quanto a serem privados da vida, por que
procurar torná-la insuportável?(48)
A duração da pena só tem sentido em relação a uma possível correção, e a uma utilização econômica dos criminosos
corrigidos.
Ao princípio do trabalho, o modelo inglês acrescenta, como condição essencial para a correção, o isolamento. O
esquema fora dado em 1775, por Hanway, que o justificava em primeiro lugar por razões negativas: a promiscuidade na
prisão dá maus exemplos e possibilidades de evasão no imediato, de chantagem ou de cumplicidade para o futuro. A
prisão se pareceria demais com uma fábrica deixando-se os detentos trabalhar em comum. As razões positivas em
seguida: o isolamento constitui "um choque terrível", a partir do qual o condenado, escapando às más influências, pode
fazer meia-volta e redescobrir no fundo de sua consciência a voz do bem; o trabalho solitário se tornará então tanto um
exercício de conversão quanto de aprendizado; não reformará simplesmente o jogo de interesses próprios ao homo
oeconomicus, mas também os imperativos do indivíduo moral. A cela, esta técnica do monarquismo cristão e que só
subsistia em países católicos, torna-se nessa sociedade protestante o instrumento através do qual se podem reconstituir ao
mesmo tempo o homo oeconomicus e a consciência religiosa. Entre o crime e a volta ao direito e à virtude, a prisão
constituirá um "espaço entre dois mundos", um lugar para as transformações individuais que devolverão ao Estado os
indivíduos que este perdera. Aparelho para modificar os indivíduos que Hanway chama um "reformatório".(49) São esses
princípios gerais que Howard e Blackstone põem em prática em 1779 quando a independência dos Estados Unidos
impede as deportações e se prepara uma lei para modificar o sistema de penas. O encarceramento, com a finalidade de
transformação da alma e do comportamento, faz sua entrada no sistema das leis civis. O preâmbulo da lei, redigido por
Blackstone e Howard, descreve o encarceramento individual em
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sua tríplice função de exemplo temível, de instrumento de conversão e de condição para um aprendizado: submetidos
a uma detenção isolada, a um trabalho regular e à influência da instrução religiosa [certos criminosos poderiam] não
só assustar aqueles que ficassem tentados a imitá-los, mas ainda eles mesmos se corrigirem e contrair o hábito do
trabalho.(50)
Donde a decisão de construir duas penitenciárias, uma para os homens, outra para as mulheres, onde os detentos
isolados seriam obrigados "aos trabalhos mais servis e mais compatíveis com a ignorância, a negligência e a obstinação
dos criminosos": andar numa roda para movimentar uma máquina, fixar um cabrestante, polir mármore, bater cânhamo,
raspar pau-campeche, retalhar trapos, fazer cordas e sacos. Na realidade só uma penitenciária foi construída, a de
Gloucester, e que só parcialmente correspondia ao esquema inicial: confinamento total para os criminosos mais perigosos;
para os outros, trabalho em comum durante o dia e separação à noite.
Enfim, o modelo de Filadélfia. O mais famoso, sem dúvida, porque surgia ligado às inovações políticas do sistema
americano e também porque não foi votado, como os outros, ao fracasso imediato e ao abandono; foi continuamente
retomado e transformado até às grandes discussões dos anos 1830 sobre a reforma penitenciária. Em muitos pontos, a
prisão de Walnut Street, aberta em 1790, sob a influência direta dos meios quaker, retomava o modelo de Gand e de
Gloucester.(51) Trabalho obrigatório em oficinas, ocupação constante dos detentos, custeio das despesas da prisão com
esse trabalho, mas também retribuição individual dos prisioneiros para assegurar sua reinserção moral e material no
mundo estrito da economia; os condenados são então
constantemente empregados em trabalhos produtivos para fazê-los suportares gastos da prisão, para não deixá-los na
inação e para lhes preparar alguns recursos para o momento em que deverá cessar seu cativeiro.(52)
A vida é então repartida de acordo com um horário absolutamente estrito, sob uma vigilância ininterrupta: cada
instante do dia é destinado a alguma coisa, prescreve-se um tipo de atividade e implica obrigações e proibições:
Todos os prisioneiros se levantam cedo de madrugada, de maneira que depois de terem feito as camas, se terem
lavado e atendido a outras necessidades, começam o trabalho geralmente ao nascer do sol. A partir desse momento,
ninguém pode entrar nas salas ou outros lugares que não sejam as oficinas e locais designados para seus trabalhos... No
fim do dia, toca um sino que os avisa para deixar o trabalho... Eles têm meia hora para arrumar as camas, e depois disso
não lhes é mais permitido conversar alto e fazer o mínimo ruído.(53)
Como em Gloucester, o confinamento solitário não é total: é para certos condenados que em outras épocas teriam
recebido a morte, e para aqueles que no interior da prisão merecem uma punição especial:
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Lá, sem ocupação, sem nada para distraí-lo, à espera e na incerteza do momento em que será libertado [o prisioneiro
passa] longas horas ansiosas, trancado em pensamentos que se apresentam ao espírito de todos os culpados.(54)
Como em Gand, enfim, a duração do encarceramento pode variar com o comportamento do detento: os inspetores da
prisão, depois de consultar o processo, obtêm das autoridades - e isso sem dificuldades até pêlos anos 1820 - o perdão
para os detentos que se comportarem bem.
Walnut Street comporta além disso um certo número de traços que lhe são específicos, ou pelo menos que
desenvolvem o que estava virtualmente presente nos outros modelos. Em primeiro lugar o princípio da não-publicidade da
pena. Se a condenação e o que a motivou devem ser conhecidos por todos, a execução da pena, em compensação, deve ser
feita em segredo; o público não deve intervir nem como testemunha, nem como abonador da punição; a certeza de que,
atrás dos muros, o detento cumpre sua pena deve ser suficiente para constituir um exemplo: terminados aqueles
espetáculos de rua criados pela lei de 1786, quando impôs a certos condenados obras públicas a executar nas cidades ou
estradas.(55) O castigo e a correção que este deve operar são processos que se desenrolam entre o prisioneiro e aqueles
que o vigiam. Processos que impõem uma transformação do indivíduo inteiro - de seu corpo e de seus hábitos pelo
trabalho cotidiano a que é obrigado, de seu espírito e de sua vontade pêlos cuidados espirituais de que é objeto:
São fornecidas Bíblias e outros livros de religião prática; o clero das diversas obediências que se encontrar na cidade
e nos arrabaldes realiza o serviço religioso uma vez por semana e qualquer outra pessoa edificante pode ter acesso aos
prisioneiros todo o tempo.(56)
Mas a própria administração tem o papel de empreender essa transformação. A solidão e o retorno sobre si mesmo
não bastam; assim tampouco as exortações puramente religiosas. Deve ser feito com tanta freqüência quanto possível um
trabalho sobre a alma do detento. A prisão, aparelho administrativo, será ao mesmo tempo uma máquina para modificar
os espíritos. Quando o detento entra, o regulamento lhe é lido:
ao mesmo tempo, os inspetores procuram fortalecer nele as obrigações morais onde ele está; demonstram-lhe a
infração em que caiu em relação a eles, o mal que disso conseqüentemente resultou para a sociedade que o protegia e a
necessidade de fazer uma compensação por seu exemplo e ao se emendar. Fazem-no em seguida comprometer-se a
cumprir seu dever com alegria, a se comportar decentemente, prometendo-lhe, ou fazendo-o esperar, que antes da
expiração do termo da sentença poderá obter seu relaxamento, se se comportar bem... De vez em quando os inspetores,
sem falta, conversam com os criminosos um depois do outro, relativamente a seus deveres como homens e como
membros da sociedade.(57)
Mas o mais importante sem dúvida é que esse controle e essa transformação do comportamento são acompanhados -
ao mesmo tempo condição e conseqüência - da formação de um saber dos indivíduos. Ao mesmo tempo
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que o próprio condenado, a administração de Walnut Street recebe um relatório sobre seu crime, as circunstâncias em que
foi cometido, um resumo de interrogatório do culpado, notas sobre a maneira como ele se conduziu antes e depois da
sentença. Outros tantos elementos indispensáveis se queremos "determinar quais serão os cuidados necessários para
destruir seus hábitos antigos".(58) E durante todo o tempo da detenção ele será observado; seu comportamento será
anotado dia por dia, e os inspetores - doze notáveis da cidade designados em 1795 - que, dois a dois, visitam a prisão toda
semana, deverão se informar do que se passou, tomar conhecimento da conduta de cada condenado e designar aqueles
para os quais será pedida a graça. Esses conhecimentos dos indivíduos, continuamente atualizados, permitem reparti-los
na prisão menos em função de seus crimes que das disposições que demonstram. A prisão torna-se uma espécie do
observatório permanente que permite distribuir as variedades do vício ou da fraqueza. A partir de 1797, os prisioneiros
estavam divididos em quatro classes: a primeira para os que foram explicitamente condenados ao confinamento solitário,
ou que cometeram faltas graves na prisão; outra é a reservada aos que são
bem conhecidos por serem velhos delinqüentes... ou cuja moral depravada, temperamento perigoso, disposições
irregulares ou conduta desordenada [se manifestaram durante o tempo em que estavam na prisão; outra para aqueles] de
quem o caráter e as circunstâncias, antes e depois da condenação, fazem pensar que não são delinqüentes comuns.
Existe enfim uma seção especial, uma classe de prova para aqueles cujo temperamento ainda não é conhecido, ou
que, se são mais bem conhecidos, não merecem entrar na categoria anterior.(59) Organiza-se todo um saber
individualizante que toma como campo de referência não tanto o crime cometido (pelo menos em estado isolado) mas a
virtualidade de perigos contida num indivíduo e que se manifesta no comportamento observado cotidianamente. A prisão
funciona aí como um aparelho de saber.
Entre este aparelho punitivo proposto pêlos modelos flamengo, inglês, americano - entre esses "reformatórios" e
todos os castigos imaginados pêlos reformadores, podem-se estabelecer pontos de convergência e disparidades.
Pontos de convergência. Em primeiro lugar, o retorno temporal da punição. Os "reformatórios" se dão por função,
também eles, não apagar um crime, mas evitar que recomece. São dispositivos voltados para o futuro, e organizados para
bloquear a repetição do delito.
O objeto das penas não é a expiação do crime cuja determinação deve ser deixada ao Ser supremo; mas prevenir os
delitos da mesma espécie.(60) [E na Pensilvânia Buxton afirmava que os princípios de Montesquieu e de Beccaria deviam
ter agora] "força de axiomas", a prevenção dos crimes é o único fim do castigo.(61)
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Não se pune portanto para apagar um crime, mas para transformar um culpado (atual ou virtual); o castigo deve
levar em si uma certa técnica corretiva. Ainda nesse ponto, Rush está bem próximo dos juristas reformadores - não fora,
talvez, a metáfora que utiliza - quando diz: inventaram-se sem dúvida máquinas que facilitam o trabalho; bem mais se
deveria louvar aquele que inventasse
os métodos mais rápidos e mais eficazes para trazer de volta à virtude e à felicidade a parte mais viciosa da
humanidade e para extirpar uma parte do vício que está no mundo.(62)
Enfim os modelos anglo-saxões, como os projetos dos legisladores e dos teóricos, utilizam processos para
singularizar a pena: em sua duração, sua natureza, sua intensidade, na maneira como se desenrola, o castigo deve ser
ajustado ao caráter individual, e ao que este comporta de perigo para os outros. O sistema das penas deve estar aberto às
variáveis individuais. Em seu esquema geral, os modelos mais ou menos derivados do Rasphuis de Amsterdam não
estavam em contradição com o que propunham os reformadores. Poder-se-ia mesmo pensar, à primeira vista, que eram
apenas os desenvolvimentos - ou o esboço - dessa proposta ao nível das instituições concretas.
E no entanto a disparidade salta aos olhos desde que se trata de definir as técnicas dessa correção individualizante.
Onde se faz a diferença, é no procedimento de acesso ao indivíduo, na maneira como o poder punitivo se apossa dele, nos
instrumentos que utiliza para realizar essa transformação; é na tecnologia da pena, não em seu fundamento teórico; na
relação que ela estabelece no corpo e na alma, e não na maneira como ela se insere no interior do sistema do direito.
Vejamos o método dos reformadores. Será o ponto a que se refere a pena, aquilo com que ela tem poder sobre o
indivíduo? As representações: representação de seus interesses, representação de suas vantagens, suas desvantagens, seu
prazer, e seu desprazer; e se acontece que o castigo se aposse do corpo, lhe aplique técnicas que não tem nada a invejar
aos suplícios, é na medida em que esse corpo é - para o condenado e para os espectadores - um objeto de representação. O
instrumento com o qual se age sobre as representações? Outras representações, ou antes as duplas de idéias (crimepunição,
vantagem imaginada do crime-desvantagem percebida dos castigos); esses emparelhamentos só podem funcionar
no elemento da publicidade: cenas punitivas que os estabelecem ou os reforçam aos olhos de todos, discursos que os
fazem circular e revalorizam a cada instante o jogo dos sinais. O papel do criminoso na punição é reintroduzir, diante do
código e dos crimes, a presença real do significado -ou seja, dessa pena que, segundo os termos do código, deve estar
infalivelmente associada à infração. Produzir com abundância e com evidência esse significado, reativar desse modo o
sistema significante do código, fazer funcionar a
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idéia de crime como um sinal de punição, é com essa moeda que o malfeitor paga sua dívida à sociedade. A correção
individual deve então realizar o processo de requalificação do indivíduo como sujeito de direito, pelo reforço dos sistemas
de sinais e das representações que fazem circular.
O aparelho da penalidade corretiva age de maneira totalmente diversa. O ponto de aplicação da pena não é a
representação, é o corpo, é o tempo, são os gestos e as atividades de todos os dias; a alma, também, mas na medida em
que é sede de hábitos. O corpo e a alma, como princípios dos comportamentos, formam o elemento que agora é proposto à
intervenção punitiva. Mais que sobre uma arte de representações, ela deve repousar sobre uma manipulação refletida do
indivíduo:
Qualquer crime tem sua cura na influência física e moral: [é necessário então para determinar os castigos] conhecer
o princípio das sensações e das simpatias que se produzem no sistema nervoso.(63)
Quanto aos instrumentos utilizados, não são mais jogos de representação que são reforçados e que se faz circular;
mas formas de coerção, esquemas de limitação aplicados e repetidos. Exercícios, e não sinais: horários, distribuição do
tempo, movimentos obrigatórios, atividades regulares, meditação solitária, trabalho em comum, silêncio, aplicação,
respeito, bons hábitos. E finalmente, o que se procura reconstruir nessa técnica de correção não é tanto o sujeito de direito,
que se encontra preso nos interesses fundamentais do pacto social: é o sujeito obediente, o indivíduo sujeito a hábitos,
regras, ordens, uma autoridade que se exerce continuamente sobre ele e em torno dele, e que ele deve deixar funcionar
automaticamente nele. Duas maneiras, portanto, bem distintas de reagir à infração: reconstituir o sujeito jurídico do pacto
social - ou formar um sujeito de obediência dobrado à forma ao mesmo tempo geral e meticulosa de um poder qualquer.
Tudo isso não passaria talvez de uma diferença bem especulativa - pois no total trata-se, nos dois casos, de formar
indivíduos submissos - se a penalidade "de coerção" não trouxesse consigo algumas conseqüências capitais. O
treinamento do comportamento pelo pleno emprego do tempo, a aquisição de hábitos, as limitações do corpo implicam
entre o que é punido e o que pune uma relação bem particular. Relação que não só torna simplesmente inútil a dimensão
do espetáculo: ela o exclui.(64) O agente de punição deve exercer um poder total, que nenhum terceiro pode vir perturbar;
o indivíduo a corrigir deve estar inteiramente envolvido no poder que se exerce sobre ele. Imperativo do segredo. E,
portanto, também autonomia pelo menos relativa dessa técnica de punição: ela deverá ter seu funcionamento, suas
técnicas, seu saber; ela deverá fixar suas normas, decidir de seus resultados: descontinuidade, ou em todo caso
especificidade em relação ao poder judiciário que declara a culpa e fixa os
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limites gerais da punição. Ora, essas duas conseqüências — segredo e autonomia no exercício do poder de punir - são
exorbitantes para uma teoria e uma política de penalidade que se propunha dois objetivos: fazer todos os cidadãos
participarem do castigo do inimigo social; tornar o exercício do poder de punir inteiramente adequado e transparente às
leis que o delimitam publicamente. Castigos secretos e não codificados pela legislação, um poder de punir que se exerce
na sombra de acordo com critérios e instrumentos que escapam ao controle - é toda a estratégia da reforma que corre o
risco de ser comprometida. Depois da sentença é constituído um poder que lembra o que era exercido no antigo sistema.
O poder que aplica às penas ameaça ser tão arbitrário, tão despótico quanto aquele que antigamente as decidia.
No total, a divergência é a seguinte: cidade punitiva ou instituição coercitiva? De um lado, funcionamento do poder
penal repartido em todo o espaço social; presente em toda parte como cena, espetáculo, sinal, discurso; legível como um
livro aberto; que opera por uma recodificação permanente do espírito dos cidadãos; que realiza a repressão do crime por
esses obstáculos colocados à ideia do crime; que age de maneira invisível e inútil sobre as "fibras moles do cérebro",
como dizia Servan. Um poder de punir que correria ao longo de toda a rede social, agiria em cada um de seus pontos, e
terminaria não sendo mais percebido como poder de alguns sobre alguns, mas como reação imediata de todos em relação
a cada um. De outro, um funcionamento compacto do poder de punir: ocupação meticulosa do corpo e do tempo do
culpado, enquadramento de seus gestos, de suas condutas por um sistema de autoridade e de saber; uma ortopedia
concertada que é aplicada aos culpados a fim de corrigi-los individualmente; gestão autônoma desse poder que se isola
tanto do corpo social quanto do poder judiciário propriamente dito. O que se engaja no aparecimento da prisão é a
institucionalização do poder de punir, ou mais precisamente: o poder de punir (com o objetivo estratégico que lhe foi dado
no fim do século XVIII, a redução dos ilegalismos populares) será mais bem realizado escondendo-se sob uma função
social geral, na "cidade punitiva", ou investindo-se numa instituição coercitiva, no local fechado do "reformatório"?
Em todo caso, pode-se dizer que os encontramos no fim do século XVIII diante de três maneiras de organizar o
poder de punir. A primeira é a que ainda estava funcionando e se apoiava no velho direito monárquico. As outras se
referem, ambas, a uma concepção preventiva, utilitária, corretiva de um direito de punir que pertenceria à sociedade
inteira; mas são muito diferentes entre si, ao nível dos dispositivos que esboçam. Esquematizando muito, poderíamos
dizer que, no direito monárquico, a punição é um cerimonial de soberania; ela utiliza as marcas rituais da vingança que
aplica sobre o corpo do condenado; e estende sob os olhos dos espectadores um efeito de terror ainda mais intenso
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por ser descontínuo, irregular e sempre acima de suas próprias leis, a presença física do soberano e de seu poder. No
projeto dos juristas reformadores, a punição é um processo para requalificar os indivíduos como sujeitos de direito;
utiliza, não marcas, mas sinais, conjuntos codificados de representações, cuja circulação deve ser realizada o mais
rapidamente possível pela cena do castigo, e a aceitação deve ser a mais universal possível. Enfim no projeto de
instituição carcerária que se elabora, a punição é uma técnica de coerção dos indivíduos; ela utiliza processos de
treinamento do corpo - não sinais - com os traços que deixa, sob a forma de hábitos, no comportamento; e ela supõe a
implantação de um poder específico de gestão da pena. O soberano e sua força, o corpo social, o aparelho administrativo.
A marca, o sinal, o traço. A cerimónia, a representação, o exercício. O inimigo vencido, o sujeito de direito em vias de
requalificação, o indivíduo submetido a uma coerção imediata. O corpo que é supliciado, a alma cujas representações são
manipuladas, o corpo que é treinado; temos aí três séries de elementos que caracterizam os três dispositivos que se
defrontam na última metade do século XVIII. Não podemos reduzi-los nem a teorias de direito (se bem que eles lhes
sejam paralelos) nem identificá-los a aparelhos ou a instituições (se bem que se apoiem sobre estes), nem fazê-los derivar
de escolhas morais (se bem que nelas encontrem eles suas justificações). São modalidades de acordo com as quais se
exerce o poder de punir. Três tecnologias de poder.
O problema é então o seguinte: como é possível que o terceiro se tenha finalmente imposto? Como o modelo
coercitivo, corporal, solitário, secreto, do poder de punir substitui o modelo representativo, cênico, significante, público,
coletivo? Por que o exercício físico da punição (e que não é o suplício) substituiu, com a prisão que é seu suporte
institucional, o jogo social dos sinais de castigo, e da festa bastarda que os fazia circular?
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NOTAS
CAPITULO I
1. É assim que a chancelaria em 1789 resume a posição geral dos cahiers de doléances quanto aos suplícios. V.E.
Selligman, La Justice sous Ia Révolution, t. l, 1901, e A. Desjardin, Lês Cahiers dês Etats généraux et Ia justice
criminelle, 1883, p. 13-20.
2. Cahiers de doléances, cadernos dos delegados aos Estados Gerais de 1789 em que se registravam seus pedidos (N.T.).
3. J. Petion de Villeneuve, Discurso na Constituinte. Archives parlementaires, t. XXVI, p. 641.
4. A. Boucher d'Argis, Observations sur lês lois criminelles, 1781, p. 125.
5. Lachèze, Discurso na Constituinte, 3 de junho de 1791, Archives Parlementaires, t. XXVI.
6. V. particularmente a polémica de Muyart de Vouglans contra Beccaria. Réfutation du Traité dês délits et dês peines,
1766.
7. P. Chaunu, Annales de Normandie, 1962, p. 236, e 1966, p. 107-108.
8. E. Lê Roy-Ladurie, in Contrepoint, 1973.
9. N.W. Mogensen: Aspects de Ia société augeronne aux XVIIe et XVIII* siècles, 1971. Tese datílografada, p. 326. O
autor mostra que, na região de Auge, os crimes de violência são quatro vezes menos numerosos nas vésperas da
Revolução que no fim do reinado de Luís XIV. De uma maneira geral os trabalhos dirigidos por Pierre Chaunu sobre a
criminalidade na Normandia demonstram esse aumento da fraude às custas da violência. V. Artigos de B. Boutelet, de J.
Cl. Gégot e V. Boucheron nos Annales de Normandie de 1962, 1966 e 1971. Para Paris, v. P. Petrovitch in Crime er
criminalité en France aux XVIIe et XVIIIe siècles, 1971. Mesmo fenómeno, parece, na Inglaterra; v. Ch. Hibbert, The
roots of evil, 1966, p. 72; e J. Tobias, Crime and industrial society, 1967, p. 37.
10. P. Chaunu, Annales de Normandie, 1971, p. 56.
11. Thomas Fowell Buxton, Parliamentary Debate, 1819, XXXIX.
12. E. Lê Roy-Ladurie, Contrepoint, 1973. O estudo de A. Farge, sobre o roubo de alimentos em Paris no século XVIII Lê
vol Paliments à Paris au XVIII6 siècle, 1974, confirma essa tendência: de 1750 a 1755, 5% das sentenças baseadas nisso
levam às galés, mas 15% de 1775 a 1790: "a severidade dos tribunais se acentua com o tempo... pesa uma ameaça sobre
os valores úteis à sociedade que se pretende organizada e respeitadora da propriedade" (p. 130-142).
13. G. Lê Trosne, Mémoires sur lês vagabonds, 1764, p. 4.
14. V, por exemplo, C. Dupaty, Mémoire justificatif pour trois hommes condamnés à Ia roue, 1786, p. 247.
15. Um dos presidentes da Câmara de Ia Tournelle, dirigindo-se ao rei, em 2 de agosto de 1768, citado in Arlette Farge, p.
66.
16. P. Chaunu, Anales de Normandie, 1966, p. 108.
17. A expressão é de N.W. Mogensen, loc. cit.
18. Archives parlementaires, t. XII, p. 344.
19. Sobre esse assunto pode-se consultar, entre outros, S. Linguet, Necessite d'une reforme dans 1'admi-nistrationde Ia
justice, 1764, ou A. Boucher d'Argis, Chaier d'un magistral, 1789.
20. A respeito dessa crítica sobre o "excesso de poder" e sua má distribuição no aparelho judiciário, v. particularmente C.
Dupaty, Lettres sur Ia procédure criminelle, 1788. P.L. de Lacretelle, Dissertation
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sur lê ministère public, in Discours sur lê préjugé dês peines infamantes, 1784. G. Target, L'Esprit dês cahiers presentes
aux Etats généraux, 1789.
21. Cf. N. Bergasse, a respeito do poder judiciário: "É preciso que, desprovido de qualquer atividade contra o regime
político do Estado, e não tendo nenhuma influência sobre as vontades que concorrem para formar esse regime ou para
mante-lo, ele disponha, para proteger todos os indivíduos e todos os direitos, de tal força que. todo-poderosa para
defender e socorrer, ela se torne absolutamente nula, logo que, mudando seu objetivo. se tenderá utilizá-la para oprimir"
(Rapport à Ia Constituante sur lê pouvoir judiciaire, 1789, p. 11-12).
22. Lê Trosne, Mémoire sur lês vagabonds, 1764, p. 4.
23. Y.-M. Bercé, Croquants et nupieds, 1974, p. 161.
24. Droit de vaine pâture: direito de levar o gado a pastar nos pastos naturais e não cercados dos outros, depois da
primeira colheita do feno (N.T.).
25. V.O. Festy, Lês délits ruraux et leur répression sous Ia Révolution et lê Consulat, 1956. M. Agulhon, La vie sociale en
Provence (1970).
26. P. Colquhoun, Traité sur Ia police de Londres, tradução de 1807. t. 1. Nas páginas 153-182 e 292-339, Colquhoun
expõe muito detalhadamente esses recursos.
27. Ibid., p. 297-298.
28. G. Lê Trosne, Mémoire sur lês vagabonds, 764, p. 8, 50, 54, 61-62.
29. G. Lê Trosne, Vues sur Ia justice criminelle, 1777, p. 31, 103-106.
30. J.-J. Rousseau, Contrai Social, livro II, cap. V. Deve-se notar que essas ideias de Rousseau foram usadas na
Constituinte por certos deputados que queriam manter um sistema de penas muito rigoroso. E curiosamente os princípios
do Contrat puderam servir para sustentar a velha correspondência de atrocidade entre crime e castigo. "A proteção devida
aos cidadãos exige que as penas sejam medidas de acordo com a atrocidade dos crimes e que não se sacrifique, em nome
da humanidade, a própria humanidade" (Mougins de Roquefort que cita a passagem em questão do Contrat Social,
Discurso na Constituinte, Archives Parlementaires, t. XXVI, p. 637).
31. Beccaria, Dês délits et dês peines, ed. 1856, p. 87.
32. P.L. de Lacretelle, Discours sur lê préjugé dês peines infamantes, 1784, p. 129.
33. Ibid., p. 131.
34. A. Duport, Discurso na Constituinte, 22 de dezembro de 1789, Archives parlementaires, t. X, p. 744. Poderíamos no
mesmo sentido citar os vários concursos propostos no fim do século XVIII pelas sociedades e academias científicas:
como fazer "que a suavidade das instruções e das penas se concilie com a certeza de um castigo pronto e exemplar e que a
sociedade civil encontre a maior segurança possível, para a liberdade e a humanidade" (Société économique de Berne,
1777). Marat respondeu com seu Plan de législation criminelle. Quais são os "meios de suavizar o rigor das leis penais na
França sem prejudicar a segurança pública" (Academia de Châlons-sur-Marne, 1780; os premiados foram Brissot e
Bernardi); "tenderá a extrema severidade das leis a diminuir o número e a enormidade dos crimes numa nação
depravada?" (Academia de Marselha, 1786; o premiado foi Eymar).
35. G. Target, Observations sur lê projet du Code penal, in Locré, La Législation de Ia France, t. XXIX,
p. 7-8. Encontrado numa forma invertida em Kant.
36. C.E. de Pastoret, Dês lois pénales, 1790, vol. II, p. 21.
37. G. Filangieri, La Science de Ia législation, trad. 1786, t. IV, p. 214.
38. Beccaria, Dês délits et dês peines, 1856, p. 87.
39. A. Barnave, Discurso na Constituinte: "A sociedade não vê nas punições que inflige o gozo bárbaro de fazer sofrer um
ser humano; vê nelas a precaução necessária para prevenir crimes semelhantes, para afastar da sociedade os males que
ameaçam atentar contra ela" (Archives parlementaires, t. XXVII, 6 jun. 1791, p. 9).
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40. Beccaria, Traité dês délits et dês peines, p. 89.
41. Beccaria, Dês délits et dês peines, p. 87.
42. J.P. Brissot, Théorie dês lois criminelles, 1781, t. l, p. 24.
43. Beccaria, Dês délits et dês peines, p. 26.
44. Beccaria. ibid. V. também Brissot: "Se a misericórdia é justa, a lei é má; onde a legislação é boa, as misericórdias não
passam de crimes contra a lei" (Théorie dês lois criminelles, 1781, t. l, p. 200).
45. G. de Mably, De Ia législation, Ocuvres completes, 1789, t. IX, p. 327. V. também Vattel: "É menos a atrocidade das
penas qe a exatidão na exigência que retém todos no dever" (Lê Droit dês gens, 1768, p. 163).
46. A. Duport, Discurso na Constituinte, Archives parlementaires, p. 45, t. XXI.
47. G. de Mably, De Ia législation, Oeuvres completes, 1789, t. IX, p. 348.
48. G. Seigneux de Correvon, Essai sur Pusage de Ia torture, 1768, p. 49.
49. P. Risi, Observations de jurisprudence criminelle, trad. 1758, p. 53.
50. Sobre esse tema ver, entre outros, S. Linguer, Necessite d'une reforme de l'administration de Ia justice criminelle,
1764, p. 8.
51. P.-L. de Lacretelle, Discours sur lês peines infamamantes, 1784, p. 144.
52. J.-P. Marat, Plan de législation criminelle, 1780, p. 34.
53. Sobre o caráter não individualizante da casuística, ver P. Cariou, Lês Idéalités casuistiques (tese datilografia).
54. P.L. de Lacretelle, Réflexions sur Ia législation pénale, in Discours sur lês peines infamantes, 1784, p. 351-352.
55. Contrariamente ao que disseram Carnot ou F. Helie e Chauveau, a reincidência era muito claramente sancionada em
bom número de leis no Antigo Regime. A ordenação de 1549 declara que o malfeitor que recomeça é "um ser execrável.
infame, eminentemente pernicioso, à coisa pública"; as reincidências de blasfémia, de roubo, de vadiagem, etc., eram
passíveis de penas especiais.
56. Lê Peletier de Saínt-Fargeau, Archives parlementaires, t. XXVI, p. 321-322. No ano seguinte, Belart pronuncia o que
pode ser considerada a primeira defesa por um crime passional. É o caso Gras. v. Annales du barreau moderne, 1823, t.
III, p. 34.
57. J.M. Servan, Discours sur l'administration de Ia justice criminelle, 1767, p. 35.
CAPÍTULO II
1. Beccaria, Dês délits et dês peines, ed. de 1856, p. 119.
2. Ihid.
3. J.-P. Marat, Plan de législation criminelle, 1780, p. 33.
4. F.M. Vermeil, Essai sur lês reformes à faire dans notre législation criminelle, 1781, p. 68-145. Cf. também Ch. E.
Dufriche de Valazé, Dês lois pénales, 1784, p. 349.
5. Lê Peletier de Saint-Fargeau, Archives parlementaires, t. XXVI. p. 321-322.
6. Beccaria, Dês délits et dês peines, 1856, p. 114.
7. Ibid., p. 135.
8. Mably, De Ia législation, Oeuvres completes, vol. IX, p. 246.
9. J.-P. Brissot, Théorie dês lois criminelles, 1781, vol. I, p. 258.
10. P.L. de Lacretelle, Réflexions sur Ia législation pénale, in Discours sur lês peines infamantes, 1784, p. 361.
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11. Beccaria. Dês délits et dês peines, p. 113.
12. G.E. Pastoret, Dês lois pénales, 1790, vol. I, p. 49.
13. Lê Peletier de Saint-Fargeau, Archives parlementaires, t. XXVI. Os autores que renunciam à pena de morte prevêem
algumas penas definitivas: J.P. Brissot, Théorie dês lois criminelles, 1781, p. 29-30. Ch. E. Dufriche de Valazé, Dês lois
pénales, 1784, p. 344: prisão perpétua para os que foram julgados "irremediavelmente maus".
14. Lê Peletier de Saint-Fargeau, Archives parlementaires, t. XXVI, p. 329-330.
15. Ch. E. Dufriche de Valazé, Dês lois pénales, 1784, p. 346.
16. A. Boucher d'Argis. Observations sur lês lois criminelles, 1781, p. 139.
17. Ver L. Masson, La rcvolution pénale en 1791, p. 139. Contra o trabalho penal objetava-se entretanto que ele implicava
no recurso à violência (Lê Peletier) ou na profanação do caráter sagrado do trabalho (Duport). Rabaud Saint-Etienne
chama a atenção para a expressão "trabalhos forçados" em oposição a "trabalhos livres que pertencem exclusivamente aos
homens livres", Archives parlementaires, t. XXVI, p. 710s.
18. J.M. Servan, Discourssur 1'administration de Ia justice criminelle, 1767, p. 35-36.
19. Dufau, Discurso à Constituinte, Archives parlementaires, t. XXVI, p. 688.
20. Ibid., p. 329-330.
21. S. Bexon, Code de süreté publique, 1807, 2a parte, p. 24-25. Tratava-se de um projeto apresentado ao rei da Baviera.
22. J.-P. Brissot, Thérie dês lois criminelles, 1781.
23. Archives parlementaires, t. XXVI, p. 322.
24. J.M. Servan, Discours sur 1'administration de Ia justice criminelle, 1767, p. 37.
25. F.M. Vermeil, Essai sur lês reformes àfairedans notre législation criminelle, 1781, p. 148-149.
26. Cf. Archives parlementaires, t. XXVI, p. 712.
27. G. de Mably, De Ia législation, Oeuvres completes, 1789, t. IX, p. 338.
28. Ch. E. Dufriche de Valazé, Dês lois pénales, 1784, p. 344-345.
29. C.F.M. de Rémusat, Archives parlementaires, t. LXXII, l dez., 1831, p. 185.
30. Cf. E. Deca7.es, Relatório ao Rei sobre as prisões, in Lê Moniteur, 11 abr. 1819.
31. Ch. Chabroud, Archives parlementaires, t. XXVI, p. 618.
32. Catarina II. Instructions pour Ia commission chargce de dresser lê projet du nouveau code dês lois,
art. 67.
33. Uma parte desse Código foi traduzida na introdução à P. Colquhoun, Traité sur Ia police de Londres,
tradução francesa, 1807, vol. I, p. 84.
34. Cf. por exemplo Coquillc, Coutume du Nivernais.
35. G. du Rousseaud de Ia Combe, Traité dês matières criminelles, 1741, p. 3.
36. F. Serpillon, Code criminei, 1767, t. Ill, p. 1095. Encontramos entretanto em Serpillon a ideia de que o rigor da prisão
é um começo de pena.
37. É assim que se devem compreender os numerosos regulamentos referentes às prisões e que tratam do rigor dos
carcereiros, da segurança dos locais e da impossibilidade dos prisioneiros se comunicarem. Por exemplo, a decisão do
parlamento de Dijon de 21 de setembro de 1706. Cf. também F. Serpillon, Code criminei, 1767, t. III, p. 601-647.
38. É o que determina a declaração de 4 de março de 1724 sobre as reincidências de roubo ou a de 18 de julho de 1724 a
respeito da vadiagem. Um rapazinho, que não tivesse idade para ir para as galés, ficava
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numa casa de detenção até o momento em que podia ser enviado para lá, às vezes para purgar a totalidade da pena. Cf.
Crime et criminalité en France sous 1'Ancien Regime, 1971, p. 266s.
39. F. Serpillon, Code criminei, 1767, t. III, p. 1095.
40. J.P. Brissot, Théorie dês lois criminelles, 1781,1.1, p. 173.
41. Paris intra muros (Nobreza) citado in A. Desjardin, Lês cahiers de doléance et Ia justice criminelle,
p. 477.
42. Langres, Trois Ordres, citado ibid., p. 483.
43. Briey, "Tiers Etat", citado ibid., p. 484. Cf. P. Goubert e M. Denis, Lês Français ont Ia parole, 1964, p. 203.
Encontram-se também nos Cahiers pedidos para a manutenção de casas de detenção que as famílias pudessem utilizar.
44. Cf. Thorsten Sellin, Pioneering in Penology, 1944, que dá um estudo exaustivo do Rasphuis e do Spinhuis de
Amsterdam. Podemos deixar de lado um outro "modelo" frequentemente citado no séeulo XVIII. É o proposto por
Mabillon nas Réflexions sur lês prisions dês ordres religieux, reeditado em 1845. Parece que esse texto foi exumado no
século XIX no momento em que os católicos disputavam com os protestantes o lugar que estes haviam tomado no
movimento da filantropia e em certas repartições. O opúsculo de Mabillon, que parece ter ficado pouco conhecido e sem
influência, mostraria que "o primeiro pensamento do sistema penitenciário americano" é um "pensamento totalmente
monástico e francês, a despeito do que se possa ter dito para lhe atribuir uma origem genebrina ou pensilvaniana" (L.
Faucher).
45. Vilan XIV, Memoire sur lês moyens de corriger lês malfaiteurs, 1773, p. 64; esta memória, que é ligada à fundação da
casa de força de Gand, permaneceu inédita até 1841. A frequência das penas de banimento acentuava ainda as relações
entre crime e vadiagem. Em 1771, os Estados de Flandres constatavam que "as penas de banimento editadas contra os
mendigos permanecem sem efeito, já que os Estados se enviam reciprocamente os indivíduos que acham perniciosos em
seu território. Resulta disso que um mendigo assim mandado de um lugar para o outro terminará sendo enforcado,
enquanto que se houvesse sido acostumado ao trabalho não chegaria a esse mau caminho" (L. Stoobant, in Annales de Ia
Société d'histoirc de Gand, t. III, 1898, p. 228. Cf. figura n° 15.
46. Vilan XIV, Memoire, p. 68.
47. Ibid., p. 107.
48. Ibid., p. 102-103.
49. J. Hanway, The Defects of Police, 1775.
50. Preâmbulo do Bill de 1779, citado por Julius, Leçonssurles prisons, trad. francesa 1831, vol. I, p. 299.
51. Os quakers com toda certeza também conheciam o Rasphuis e o Spinhuis de Amsterdam. Cf. T. Sellin, Pioneering in
Penology, p. 109-110. De qualquer modo a prisão de Walnut Street se situava na continuação da Almhouse aberta em
1767 e da legislação penal que os quakers haviam querido impor apesar da administração inglesa.
52. G. de La Rochefoucauld-Liancourt, Dês prisons de Philadelphie, 1796, p. 9.
53. J. Turnbull, Visite à Ia prison de Philadelphie, trad. francesa, 1797, p. 15-16.
54. Caleb Lownes, in N.K. Teeters, Cradle of Penitentiary, 1955, p. 49.
55. Sobre as desordens provocadas por essa lei, cf. B. Rush, An Inquiry Into the Effects of Public Punishment, 1787, p. 5-
9, e Roberts Vaux, Notices, p. 45. Deve-se notar que no relatório de J.-L. Siegel, que inspirara o Rasphuis de Amsterdam,
era previsto que as penas não seriam proclamadas publicamente, que os prisioneiros seriam levados à casa de correção à
noite, que os guardiães se comprometeriam sob juramento a não lhes revelar a identidade e não seria permitida nenhuma
visita (T. Sellin), Pioneering in Penology, p. 27-28).
56. Primeiro relatório dos inspetores de Walnut Street, citado por Teeters, p. 53-54.
57. J. Turnbull, Visite à Ia prison de Philadelphie, trad. 1797, p. 27.
113 ▲
58. B. Rush, que foi um dos inspetores, nota o seguinte depois de urna visita a Walnut Street: "Cuidados morais:
pregação, leitura de bons livros, limpeza das roupas e dos quartos, banhos; fala-se em voz baixa, pouco vinho, o mínimo
de fumo, pouca conversa obscena ou profana. Trabalho constante: horta bem cuidada; está bonita: l .200 cabeças de
repolho". In N.K. Teeters, The cradle of penitentiary, 1935, p. 50.
59. Minutes of the Board, 16 de junho de 1797, citado in N.K. Teeters, op. cit., p. 59.
60. W. Blackstone, Commentaire sur lê Code criminei d'Angleterre, trad. francesa, 1776, p. 19.
61. W. Bradford, An Inquiry How Far thc Punishment of Death Is Necessary in Pennsylvania, 1793, p. 3.
62. B. Rush, An Inquiry into the Effects of Public Punishments, 1787, p. 14. Esta ideia de um aparelho para transformar já
se encontra em Hanway no projeto de um "reformatório": "A ideia de hospital e a de malfeitor são incompatíveis; mas
tentemos fazer da prisão um reformatório (reformatory) autêntico e eficaz, em vez de que seja como as outras uma escola
de vício" (Defects of Police, p. 52).
63. B. Rush, An Inquiry into thc Effects of Public Punishments, 1787, p. 13.
64. Cf. as críticas que Rush fazia aos espetáculos punitivos, particularmente aos que imaginara Dufriche de Valazé, An
Inquiry into the Effects or Public Punishments, 1787, p. 5-9.
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Terceira Parte
DISCIPLINA
CAPÍTULO I
OS CORPOS DÓCEIS
Eis como ainda no início do século XVII se descrevia a figura ideal do soldado. O soldado é antes de tudo alguém
que se reconhece de longe; que leva os sinais naturais de seu vigor e coragem, as marcas também de seu orgulho: seu
corpo é o brasão de sua força e de sua valentia; e se é verdade que deve aprender aos poucos o ofício das armas -
essencialmente lutando - as manobras como a marcha, as atitudes como o porte da cabeça se originam, em boa parte, de
uma retórica corporal da honra:
Os sinais para reconhecer os mais idôneos para esse ofício são a atitude viva e alerta, a cabeça direita, o estômago
levantado, os ombros largos, os braços longos, os dedos fortes, o ventre pequeno, as coxas grossas, as pernas finas e os
pés secos, pois o homem desse tipo não poderia deixar de ser ágil e forte: [tornado lanceiro, o soldado] deverá ao marchar
tomar a cadência do passos para ter o máximo de graça e gravidade que for possível, pois a Lança é uma arma honrada e
merece ser levada com um porte grave e audaz.(1)
Segunda metade do século XVIII: o soldado tornou-se algo que se fabrica; de uma massa informe, de um corpo
inapto, fez-se a máquina de que se precisa; corrigiram-se aos poucos as posturas; lentamente uma coação calculada
percorre cada parte do corpo, se assenhoreia dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em
silêncio, no automatismo dos hábitos; em resumo, foi "expulso o camponês" e lhe foi dada a "fisionomia de soldado".(2)
Os recrutas são habituados a
manter a cabeça ereta e alta; a se manter direito sem curvar as costas, a fazer avançar o ventre, a salientar o peito, e
encolher o dorso; e a fim de que se habituem, essa posição lhes será dada apoiando-os contra um muro, de maneira que os
calcanhares, a batata da perna, os ombros e a cintura encostem nele, assim como as costas das mãos, virando os braços
para fora, sem afastá-los do corpo... ser-lhes-á igualmente ensinado a nunca fixar os olhos na terra, mas a olhar com
ousadia aqueles diante de quem eles passam... a ficar imóveis esperando o comando, sem mexer a cabeça, as mãos nem os
pés... enfim a marchar com passo firme, com o joelho e a perna esticados, a ponta baixa e para foram...(3)
Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente
sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo - ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece,
responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam. O grande livro do Homem-máquina foi escrito simultaneamente
em dois registros: no anátomo-metafísico, cujas primeiras páginas haviam sido escritas por Descartes e que os médicos,
os filósofos continuaram; o outro, técnico-político, constituído por
117 ▲
um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por processos empíricos e refletidos para controlar ou
corrigir as operações do corpo. Dois registros bem distintos, pois tratava-se ora de submissão e utilização, ora de
funcionamento e de explicação: corpo útil, corpo inteligível. E entretanto, de um ao outro, pontos de cruzamento. "O
Homem-máquina" de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução materialista da alma e uma teoria geral do
adestramento, no centro dos quais reina a noção de "docilidade" que une ao corpc analisável o corpo manipulável. É dócil
um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado. Os famosos
autômatos, por seu lado, não eram apenas uma maneira de ilustrar o organismo: eram também bonecos políticos, modelos
reduzidos de poder: obsessão de Frederico II, rei minucioso das pequenas máquinas, dos regimentos bem treinados e dos
longos exercícios.
Nesses esquemas de docilidade, em que o século XVIII teve tanto interesse, o que há de tão novo? Não é a primeira
vez, certamente, que o corpo é objeto de investimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está
preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações. Muitas coisas
entretanto são novas nessas técnicas. A escala, em primeiro lugar, do controle: não se trata de cuidar do corpo, em massa,
grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável mas de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma
coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica — movimentos, gestos atitude, rapidez: poder infinitesimal
sobre o corpo ativo. O objeto, em seguida, do controle: não, ou não mais, os elementos significativos do comportamento
ou a linguagem do corpo, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; a coação se faz mais
sobre as forças que sobre os sinais; a única cerimônia que realmente importa é a do exercício. A modalidade enfim:
implica numa coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se
exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos. Esses métodos
que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes
impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as "disciplinas". Muitos processos disciplinares
existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer
dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação. Diferentes da escravidão, pois não se fundamentam numa
relação de apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa relação custosa e violenta obtendo efeitos
de utilidade pelo menos igualmente grandes. Diferentes também da domesticidade, que é uma relação de dominação
constante, global, maciça, não analítica, ilimitada e estabelecida sob a forma da vontade singular do patrão, seu
"capricho". Diferentes da vassalidade que é
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uma relação de submissão altamente codificada, mas longínqua e que se realiza menos sobre as operações do corpo que
sobre os produtos do trabalho e as marcas rituais da obediência. Diferentes ainda do ascetismo e das "disciplinas" de tipo
monástico, que têm por função realizar renúncias mais do que aumentos de utilidade e que, se implicam em obediência a
outrem, têm como fim principal um aumento do domínio de cada um sobre seu próprio corpo. O momento histórico das
disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas
habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna
tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho
sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano
entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma "anatomia política", que é também
igualmente uma "mecânica do poder", está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não
simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a
eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos "dóceis". A disciplina
aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de
obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma "aptidão", uma "capacidade" que
ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de
sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar
estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada.
A "invenção" dessa nova anatomia política não deve ser entendida como uma descoberta súbita. Mas como uma
multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se
repetem, ou se imitam, apóiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em
convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral. Encontramo-los em funcionamento nos colégios,
muito cedo; mais tarde nas escolas primárias; investiram lentamente o espaço hospitalar; e em algumas dezenas de anos
reestruturam a organização militar. Circularam às vezes muito rápido de um ponto a outro (entre o exército e as escolas
técnicas ou os colégios e liceus), às vezes lentamente e de maneira mais discreta (militarização insidiosa das grandes
oficinas). A cada vez, ou quase, impuseram-se para responder a exigências de conjuntura: aqui uma inovação industrial, lá
a recrudescência de certas doenças epidêmicas, acolá a invenção do fuzil ou as vitórias daPrússia. O que não impede que
se inscrevam, no total, nas transformações gerais e essenciais que necessariamente serão determinadas.
119 ▲
Não se trata de fazer aqui a história das diversas instituições disciplinares, no que podem ter cada uma de singular.
Mas de localizar apenas numa série de exemplos algumas das técnicas essenciais que, de uma a outra, se generalizaram
mais facilmente. Técnicas sempre minuciosas, muitas vezes íntimas, mas que têm sua importância: porque definem um
certo modo de investimento político e detalhado do corpo, uma nova "microfísica" do poder; e porque não cessaram,
desde o século XVII, de ganhar campos cada vez mais vastos, como se tendessem a cobrir o corpo social inteiro.
Pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão, arranjos sutis, de aparência inocente, mas profundamente
suspeitos, dispositivos que obedecem a economias inconfessáveis, ou que procuram coerções sem grandeza, são eles
entretanto que levaram à mutação do regime punitivo, no limiar da época contemporânea. Descrevê-los implicará na
demora sobre o detalhe e na atenção às minúcias: sob as mínimas figuras, procurar não um sentido, mas uma precaução;
recolocá-las não apenas na solidariedade de um funcionamento, mas na coerência de uma tática. Astúcias, não tanto de
grande razão que trabalha até durante o sono e dá um sentido ao insignificante, quanto da atenta "malevolência" que de
tudo se alimenta. A disciplina é uma anatomia política do detalhe.
Para advertir os impacientes, lembremos o marechal de Saxe:
Aqueles que cuidam dos detalhes muitas vezes parecem espíritos tacanhos, entretanto esta parte é essencial, porque
ela é o fundamento, e é impossível levantar qualquer edifício ou estabelecer qualquer método sem ter os princípios. Não
basta ter o gosto pela arquitetura. É preciso conhecer a arte de talhar pedras.(4)
Dessa "arte de talhar pedras" haveria uma longa história a ser escrita -história da racionalização utilitária do detalhe
na contabilidade moral e no controle político. A era clássica não a inaugurou; ela a acelerou, mudou sua escala, deu-lhe
instrumentos precisos, e talvez tenha encontrado alguns ecos para ela no cálculo do infinitamente pequeno ou na descrição
das características mais tênues dos seres naturais. Em todo caso, o "detalhe" era já há muito tempo uma categoria da
teologia e do ascetismo: todo detalhe é importante, pois aos olhos de Deus nenhuma imensidão é maior que um detalhe, e
nada há tão pequeno que não seja querido por uma dessas vontades singulares. Nessa grande tradição da eminência do
detalhe viriam se localizar, sem dificuldade, todas as meticulosidades da educação cristã, da pedagogia escolar ou militar,
de todas as formas, finalmente, de treinamento. Para o homem disciplinado, como para o verdadeiro crente, nenhum
detalhe é indiferente, mas menos pelo sentido que nele se esconde que pela entrada que aí encontra o poder que quer
apanhá-lo. Característico, esse hino às "pequenas coisas" e à sua eterna importância, cantado por Jean-Baptiste de La
Salle, em seu Tratado sobre as Obrigações dos Irmãos das Escolas Cristãs. A mística do cotidiano aí se associa à
disciplina do minúsculo.
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Como é perigoso negligenciar as pequenas coisas. É um pensamento bem consolador para uma alma como a minha,
pouco indicada para as grandes ações, pensar que a fidelidade às pequenas coisas pode, por um progresso insensível,
elevar-nos à mais eminente santidade: porque as pequenas coisas nos dispõem às grandes... Pequenas coisas, meu Deus,
infelizmente dirá alguém, que podemos fazer de grande para Vós, criaturas fracas e mortais que somos. Pequenas coisas:
se as grandes se apresentassem, praticá-las-íamos? Não as creríamos acima de nossas forças? Pequenas coisas: e se Deus
as aceita e quer recebê-las como grandes? Pequenas coisas; acaso já as experimentamos? acaso as julgamos pela
experiência? Pequenas coisas; somos então culpados, se, vendo-as como tais, as recusamos? Pequenas coisas; são elas
entretanto que, com o tempo, formaram grandes santos! Sim, pequenas coisas mas grandes móveis, grandes sentimentos,
grande fervor, grande ardor, e em conseqüência grandes méritos, grandes tesouros, grandes recompensas.(5)
A minúcia dos regulamentos, o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas parcelas da vida e do corpo
darão em breve, no quadro da escola, do quartel, do hospital ou da oficina, um conteúdo laicizado, uma racionalidade
econômica ou técnica a esse cálculo místico do ínfimo e do infinito. E uma História do Detalhe no século XVIII, colocada
sob o signo de Jean-Baptiste de La Salle, esbarrando em Leibniz e Buffon, passando por Frederico II, atravessando a
pedagogia, a medicina, a tática militar e a economia, deveria chegar ao homem que sonhara no fim do século ser um novo
Newton, não mais aquele das imensidões do céu ou das massas planetárias, mas dos "pequenos corpos", dos pequenos
movimentos, das pequenas ações; ao homem que respondeu a Monge ("Só havia um mundo a ser descoberto"):
Que ouvi eu? Mas o mundo dos detalhes, quem jamais pensou neste ou naquele? Desde meus quinze anos, eu
acreditava nele. Cuidei disso então, e essa lembrança vive em mim, como uma idéia fixa que nunca me abandonará... Esse
outro mundo é o mais importante de todos os que me orgulhei de descobrir: de pensar nisso, dói-me a alma.(6)
Ele não o descobriu; mas sabemos que empreendeu organizá-lo, e quis distribuir em torno de si um dispositivo de
poder que lhe permitisse perceber até o menor acontecimento do Estado que governava; pretendia, com a rigorosa
disciplina que fazia reinar, "abraçar o conjunto dessa vasta máquina sem que lhe pudesse escapar o mínimo detalhe".(7)
Uma observação minuciosa do detalhe, e ao mesmo tempo um enfoque político dessas pequenas coisas, para
controle e utilização dos homens, sobem através da era clássica, levando consigo todo um conjunto de técnicas, todo um
corpo de processos e de saber, de descrições, de receitas e dados. E desses esmiuçamentos, sem dúvida, nasceu o homem
do humanismo moderno.(8)
A ARTE DAS DISTRIBUIÇÕES
A disciplina procede em primeiro lugar à distribuição dos indivíduos no espaço. Para isso, utiliza diversas técnicas.
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1) A disciplina às vezes exige a cerca, a especificação de um local heterogêneo a todos os outros e fechado em si
mesmo. Local protegido da monotonia disciplinar. Houve o grande "encarceramento" dos vagabundos e dos miseráveis;
houve outros mais discretos, mas insidiosos e eficientes.
Colégios: o modelo do convento se impõe pouco a pouco; o internato aparece como o regime de educação senão o
mais freqüente, pelo menos o mais perfeito; torna-se obrigatório em Louis-le-Grand quando, depois da partida dos
jesuítas, fez-se um colégio-modelo.(9)
Quartéis: é preciso fixar o exército, essa massa vagabunda; impedir a pilhagem e as violências; acalmar os
habitantes que suportam mal as tropas de passagem; evitar os conflitos com as autoridades civis; fazer cessar as
deserções; controlar as despesas. A ordenação de 1719 prescreve a construção de várias centenas de quartéis, imitando os
já organizados no sul do país; o encarceramento neles será estrito:
O conjunto será fechado e cercado por uma muralha de dez pés de altura que rodeará os ditos pavilhões, a trinta pés
de distância de todos os lados - e isto para manter as tropas em ordem e em disciplina e que o oficial esteja em condições
de responder por ela.(10)
Em 1745, havia quartéis em 320 cidades aproximadamente; e estimava-se mais ou menos em 200.000 homens a
capacidade total dos quartéis em 1775.(11) Ao lado das oficinas espalhadas criam-se também grandes espaços para as
indústrias, homogêneos e bem delimitados: as manufaturas reunidas primeiro, depois as fábricas, na segunda metade do
século XVIII (as forjas da Chaussade ocupam toda a península de Medina, entre Nièvre e Loire; para instalar a fábrica de
Indret em 1777, Wilkinson, à custa de aterros e diques, cria uma ilha no Loire; Toufait constrói Lê Creusot no vale de La
Charbonnière que ele remodela e instala na própria fábrica alojamentos operários); é uma mudança de escala, é também
um novo tipo de controle. A fábrica parece claramente um convento, uma fortaleza, uma cidade fechada; o guardião "só
abrirá as portas à entrada dos operários, e depois que houver soado o sino que anuncia o reinicio do trabalho"; quinze
minutos depois, ninguém mais terá o direito de entrar; no fim do dia, os chefes de oficina devem entregar as chaves ao
guarda suíço da fábrica que então abre as portas.(12) É porque, à medida que se concentram as forças de produção, o
importante é tirar delas o máximo de vantagens e neutralizar seus inconvenientes (roubos, interrupção do trabalho,
agitações e "cabalas"); de proteger os materiais e ferramentas e de dominar as forças de trabalho:
A ordem e a polícia que se deve manter exigem que todos os operários sejam reunidos sob o mesmo teto, a fim de
que aquele dos sócios que está encarregado da direção da fábrica possa prevenir e remediar os abusos que poderiam se
introduzir entre os operários e impedir desde o início que progridam.(13)
2) Mas o princípio de "clausura" não é constante, nem indispensável, nem suficiente nos aparelhos disciplinares.
Estes trabalham o espaço de maneira
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muito mais flexível e mais fina. E em primeiro lugar segundo o princípio da localização imediata ou do
qitadriculamento. Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo. Evitar as distribuições por grupos;
decompor as implantações coletivas; analisar as pluralidades confusas, maciças ou fugidias. O espaço disciplinar tende a
se dividir em tantas parcelas quando corpos ou elementos há a repartir. É preciso anular os efeitos das repartições
indecisas, o desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa;
tática de antideserção, de antivadiagem, de antiaglomeração. Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e
como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o
comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimento, portanto, para
conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço analítico.
E ainda aí ela encontra um velho procedimento arquitetural e religioso: a cela dos conventos. Mesmo se os
compartimentos que ele atribui se tornam puramente ideais, o espaço das disciplinas é sempre no fundo, celular. Solidão
necessária do corpo e da alma, dizia um certo ascetismo: eles devem, ao menos por momentos, se defrontar a sós com a
tentação e talvez com a severidade de Deus.
O sono é a imagem da morte, o dormitório é a imagem do sepulcro... embora os dormitórios sejam comuns, os leitos
entretanto estão arrumados de tal modo e se fecham tão exatamente por meio de cortinas que as moças podem se levantar
e se deitar sem se verem.(14)
Mas isso ainda não passa de uma forma muito tosca.
3) A regra das localizações funcionais vai pouco a pouco, nas instituições disciplinares, codificar um espaço que a
arquitetura deixava geralmente livre e pronto para vários usos. Lugares determinados se definem para satisfazer não só à
necessidade de vigiar, de romper as comunicações perigosas, mas também de criar um espaço útil. O processo aparece
claramente nos hospitais, principalmente nos hospitais militares e marítimos. Na França, parece que Rochefort serviu de
experiência e de modelo. Um porto, e um porto militar, é, com circuitos de mercadorias, de homens alistados por bem ou
à força, de marinheiros embarcando e desembarcando, de doenças e de epidemias, um lugar de deserção, de contrabando,
de contágio: encruzilhada de misturas perigosas, cruzamento de circulações proibidas. O hospital marítimo deve então
cuidar, mas por isso mesmo deve ser um filtro, um dispositivo que afixa e quadrícula; tem que realizar uma apropriação
sobre toda essa mobilidade e esse formigar humano, decompondo a confusão da ilegalidade e do mal. A vigilância médica
das doenças e dos contágios é aí solidária de toda uma série de outros controles: militar sobre os desertores, fiscal sobre as
mercadorias, administrativo sobre os remédios, as rações, os desaparecimentos, as curas, as mortes, as simulações.
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Donde a necessidade de distribuir e dividir o espaço com rigor. As primeiras medidas tomadas em Rochefort se
referiam às coisas mais que aos homens, às mercadorias preciosas mais que aos doentes. As distribuições da vigilância
fiscal e econômica precedem as técnicas de observação médica: localização dos medicamentos em caixas fechadas,
registro de sua utilização; um pouco mais tarde, é estabelecido um sistema para verificar o número real de doentes, sua
identidade, as unidades de onde procedem; depois regulamentam-se suas idas e vindas, são obrigados a ficar em suas
salas; a cada leito é preso o nome de quem se encontra nele; todo indivíduo tratado é inscrito num registro que o médico
deve consultar durante a visita; mais tarde virão o isolamento dos contagiosos, os leitos separados. Pouco a pouco um
espaço administrativo e político se articula em espaço terapêutico; tende a individualizar os corpos, as doenças, os
sintomas, as vidas e as mortes; constitui um quadro real de singularidades justapostas e cuidadosamente distintas. Nasce
da disciplina um espaço útil do ponto de vista médico.
Nas fábricas que aparecem no fim do século XVIII, o princípio do quadriculamento individualizante se complica.
Importa distribuir os indivíduos num espaço onde se possa isolá-los e localizá-los; mas também articular essa distribuição
sobre um aparelho de produção que tem suas exigências próprias. É preciso ligar a distribuição dos corpos, a arrumação
espacial do aparelho de produção e as diversas formas de atividade na distribuição dos "postos". A esse princípio obedece
a manufatura de Oberkampf em Jouy. Ela se compõe de uma série de oficinas especificadas segundo cada grande tipo de
operações: para os impressores, os encaixadores, os coloristas, as pinceladoras, os gravadores, os tintureiros. O maior dos
edifícios, construído em 1791, por Toussaint Barre, tem cento e dez metros de comprimento e três andares. O térreo é
reservado, essencialmente, à impressão em bloco; contém 132 mesas dispostas em duas fileiras ao longo da sala com 88
janelas: cada impressor trabalha a uma mesa, com seu "puxador", encarregado de preparar e espalhar as tintas. Ao todo
264 pessoas. Na extremidade de cada mesa, uma espécie de cabide sobre o qual o operário coloca para secar a tela que ele
acabou de imprimir. Percorrendo-se o corredor central da oficina, é possível realizar uma vigilância ao mesmo tempo
geral e individual; constatar a presença, a aplicação do operário, a qualidade de seu trabalho; comparar os operários entre
si, classificá-los segundo sua habilidade e rapidez; acompanhar os sucessivos estágios da fabricação. Todas essas
seriações formam um quadriculado permanente: as confusões se desfazem(16); a produção se divide e o processo de
trabalho se articula por um lado segundo suas fases, estágios ou operações elementares, e por outro, segundo os
indivíduos que o efetuam, os corpos singulares que a ele são aplicados: cada variável dessa força - vigor, rapidez,
habilidade, constância -pode ser observada, portanto caracterizada, apreciada, contabilizada e transmi-
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tida a quem é o agente particular dela. Assim afixada de maneira perfeitamente legível a toda série dos corpos singulares,
a força de trabalho pode ser analisada em unidades individuais. Sob a divisão do processo de produção ao mesmo tempo
que ela, encontramos, no nascimento da grande indústria, a decomposição individualizante da força de trabalho; as
repartições do espaço disciplinar muitas vezes efetuaram uma e outra.
4) Na disciplina, os elementos são intercambiáveis, pois cada um se define pelo lugar que ocupa na série, e pela
distância que o separa dos outros. A unidade não é portanto nem o território (unidade de dominação), nem o local
(unidade de residência), mas a posição na fila: o lugar que alguém ocupa numa classificação, o ponto em que se cruzam
uma linha e uma coluna, o intervalo numa série de intervalos que se pode percorrer sucessivamente. A disciplina, arte de
dispor em fila, e da técnica para a transformação dos arranjos. Ela individualiza os corpos por uma localização que não os
implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de relações.
Vejamos o exemplo da "classe". Nos colégios dos jesuítas, encontrava-se ainda uma organização ao mesmo tempo
binária e maciça: as classes, que podiam ter até duzentos ou trezentos alunos, eram divididas em grupos de dez; cada um
desses grupos, com seu decurião, era colocado em um campo, o romano ou o cartaginês; a cada decúria correspondia uma
decúria adversa. A forma geral era a da guerra e da rivalidade; o trabalho, o aprendizado, a classificação eram feitos sob a
forma de justa, pela defrontação dos dois exércitos; a participação de cada aluno entrava nesse duelo geral; ele
assegurava, por seu lado, a vitória ou as derrotas de um campo; e os alunos determinavam um lugar que correspondia à
função de cada um e a seu valor de combatente no grupo unitário de sua decúria.(17) Podemos notar aliás que essa
comédia romana permitia associar aos exercícios binários da rivalidade uma disposição espacial inspirada na legião, com
suas fileiras, hierarquia e vigilância piramidal. Não esquecer que de um modo geral o modelo romano, na época das
Luzes, desempenhou um duplo papel; em seu aspecto republicano, era a própria instituição da liberdade; em seu aspecto
militar, era o esquema ideal da disciplina. A Roma do século XVIII e da Revolução é a do Senado e da legião, do Fórum e
dos campos militares. Até o Império, a referência romana veiculou, de maneira ambígua, o ideal jurídico da cidadania e a
técnica dos processos disciplinares. Em todo caso, o que havia de estritamente disciplinar na fábula antiga
permanentemente representada nos colégios jesuítas superou o que havia de justa e de guerra em mímica. Pouco a pouco -
mas principalmente depois de 1762 - o espaço escolar se desdobra; a classe torna-se homogênea, ela agora só se compõe
de elementos individuais que vêm se colocar uns ao lado dos outros sob os olhares do mestre. A ordenação por fileiras, no
século XVIII, começa a definir a grande forma de repartição dos indivíduos na ordem escolar:
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filas de alunos na sala, nos corredores, nos pátios; colocação atribuída a cada um em relação a cada tarefa e cada prova;
colocação que ele obtém de semana em semana, de mês em mês, de ano em ano; alinhamento das classes de idade umas
depois das outras; sucessão dos assuntos ensinados, das questões tratadas segundo uma ordem de dificuldade crescente. E
nesse conjunto de alinhamentos obrigatórios, cada aluno segundo sua idade, seus desempenhos, seu comportamento,
ocupa ora uma fila, ora outra; ele se desloca o tempo todo numa série de casas; umas ideais, que marcam uma hierarquia
do saber ou das capacidades, outras devendo traduzir materialmente no espaço da classe ou do colégio essa repartição de
valores ou dos méritos. Movimento perpétuo onde os indivíduos substituem uns aos outros, num espaço escondido por
intervalos alinhados.
A organização de um espaço serial foi uma das grandes modificações técnicas do ensino elementar. Permitiu
ultrapassar o sistema tradicional (um aluno que trabalha alguns minutos com o professor, enquanto fica ocioso e sem
vigilância o grupo confuso dos que estão esperando). Determinando lugares individuais tornou possível o controle de cada
um e o trabalho simultâneo de todos. Organizou uma nova economia do tempo de aprendizagem. Fez funcionar o espaço
escolar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar. J.-B. de La Salle
imaginava uma classe onde a distribuição espacial pudesse realizar ao mesmo tempo toda uma série de distinções:
segundo o nível de avanço dos alunos, segundo o valor de cada um, segundo seu temperamento melhor ou pior, segundo
sua maior ou menor aplicação, segundo sua limpeza, e segundo a fortuna dos pais. Então, a sala de aula formaria um
grande quadro único, com entradas múltiplas, sob o olhar cuidadosamente "classificador" do professor:
Haverá em todas as salas de aula lugares determinados para todos os escolares de todas as classes, de maneira que
todos os da mesma classe sejam colocados num mesmo lugar e sempre fixo. Os escolares das lições mais adiantadas serão
colocados nos bancos mais próximos da parede e em seguida os outros segundo a ordem das lições avançando para o
meio da sala... Cada um dos alunos terá seu lugar marcado e nenhum o deixará nem trocará sem a ordem e o
consentimento do inspetor das escolas. [Será preciso fazer com que] aqueles cujos pais são negligentes e têm piolhos
fiquem separados dos que são limpos e não os têm; que um escolar leviano e distraído seja colocado entre dois bem
comportados e ajuizados, que o libertino ou fique sozinho ou entre dois piedosos.(18)
As disciplinas, organizando as "celas", os "lugares" e as "fileiras" criam espaços complexos: ao mesmo tempo
arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos
individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos,
mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos. São espaços mistos: reais pois que regem a disposição de
edifícios, de salas, de móveis, mas ideais, pois projetam-se sobre essa organização caracterizações, estimativas,
hierarquias. A primeira das grandes operações da disciplina é então a constituição de "quadros vivos" que
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transformam as multidões confusas, inúteis ou perigosas em multiplicidades organizadas. A constituição de "quadros" foi
um dos grandes problemas da tecnologia científica, política e econômica do século XVIII; arramar jardins de plantas e de
animais, e construir ao mesmo tempo classificações racionais dos seres vivos; observar, controlar, regularizar a circulação
das mercadorias e da moeda e estabelecer assim um quadro econômico que possa valer como princípio de
enriquecimento; inspecionar os homens, constatar sua presença e sua ausência, e constituir um registro geral e permanente
das forças armadas; repartir os doentes, dividir com cuidado e espaço hospitalar e fazer uma classificação sistemática das
doenças: outras tantas operações conjuntas em que os dois constituintes - distribuição e análise, controle e inteligibilidade
- são solidários. O quadro, no século XVIII, é ao mesmo tempo uma técnica de poder e um processo de saber. Trata-se de
organizar o múltiplo, de se obter um instrumento para percorrê-lo e dominá-lo; trata-se de lhe impor uma "ordem". Como
o chefe militar de que falava o naturalista Guilbert, o médico, o economista fica
cego pela imensidão, atordoado pela multidão... as inúmeras combinações que resultam da multiplicidade dos
objetos, tantas atenções reunidas constituem um peso acima de suas forças. A ciência da guerra moderna, ao se
aperfeiçoar, ao se aproximar dos verdadeiros princípios, poderia se tornar mais simples e menos difícil; [os exércitos] com
táticas simples, análogas, flexíveis a todos os movimentos... seriam mais fáceis de mexer e de conduzir.(19)
Tática, ordenamento espacial dos homens; taxinomia, espaço disciplinar dos seres naturais; quadro económico,
movimento regulamentado das riquezas.
Mas o quadro não tem a mesma função nesses diversos registros. Na ordem da economia, permite a medida das
quantidades e a análise dos movimentos. Sob a forma da taxinomia, tem por função caracterizar (e em consequência
reduzir as singularidades individuais) e constituir classes (portanto excluir as considerações de número). Mas sob a forma
de repartição disciplinar, a colocação em quadro tem por função, ao contrário, tratar a multiplicidade por si mesma,
distribuí-la e dela tirar o maior número possível de efeitos. Enquanto a taxinomia natural se situa sobre o eixo que vai do
caráter à categoria, a tática disciplinar se situa sobre o eixo que liga o singular e o múltiplo. Ela permite ao mesmo tempo
a caracterização do indivíduo como indivíduo, e a colocação em ordem de uma multiplicidade dada. Ela é a condição
primeira para o controle e o uso de um conjunto de elementos distintos: a base para uma microfísica de um poder que
poderíamos chamar "celular".
O CONTROLE DA ATIVIDADE
1) O horário: é uma velha herança. As comunidades monásticas haviam sem dúvida sugerido seu modelo estrito. Ele
se difundiria rapidamente. Seus
127 ▲
três grandes processos - estabelecer as cesuras, obrigar a ocupações determinadas, regulamentar os ciclos de repetição -
muito cedo foram encontrados nos colégios, nas oficinas, nos hospitais. Dentro dos antigos esquemas, as novas disciplinas
não tiveram dificuldade para se abrigar; as casas de educação e os estabelecimentos de assistência prolongavam a vida e a
regularidade dos conventos de que muitas vezes eram anexos. O rigor do tempo industrial guardou durante muito tempo
uma postura religiosa; no século XVII, o regulamento das grandes manufaturas precisava os exercícios que deviam
escandir o trabalho:
Todas as pessoas..., chegando a seu ofício de manhã, antes de trabalhar começarão lavando as mãos, oferecerão seu
trabalho a Deus, farão o sinal da cruz e começarão a trabalhar".(20).
mas ainda no século XIX, quando se quiser utilizar populações rurais na indústria, será necessário apelar a
congregações, para acostumá-las ao trabalho em oficinas; os operários são enquadrados em "fábricas-conventos". A
grande disciplina militar formou-se, nos exércitos protestantes de Maurício de Orange e de Gustavo Adolfo, através de
uma rítmica do tempo escandida pêlos exercícios de piedade; a vida no exército deve ter, dizia Boussanelle bem mais
tarde, algumas "das perfeições do próprio claustro".(21) Durante séculos, as ordens religiosas foram mestras de
disciplinas: eram os especialistas do tempo, grandes técnicos do ritmo e das atividades regulares. Mas esses processos de
regularização temporal que elas herdam as disciplinas os modificam. Afinando-os primeiro. Começa-se a contar por
quartos de hora, minutos e segundos. No exército, é claro: Guibert mandou proceder sistematicamente a cronome-tragens
de tiro de que Vauban tivera a ideia. Nas escolas elementares, a divisão do tempo torna-se cada vez mais esmiuçante; as
atividades são cercadas o mais possível por ordens a que se tem que responder imediatamente:
À última pancada do relógio, um aluno baterá o sino, e, ao primeiro toque, todos os alunos se porão de joelhos, com
os braços cruzados e os olhos baixos. Terminada a oração, o professor dará um sinal para os alunos se levantarem, um
segundo para saudarem Cristo, e o terceiro para se sentarem.(22)
No começo do século XIX, serão propostos para a escola mútua horários como o seguinte: 8,45 entrada do monitor,
8,52 chamada do monitor, 8,56 entrada das crianças e oração, 9 horas entrada nos bancos, 9,04 primeira lousa, 9,08 fim
do ditado, 9,12 segunda lousa, etc.(23) A extensão progressiva dos assalariados acarreta por seu lado um quadriculamento
cerrado do tempo:
Se acontecer que os operários cheguem mais tarde que em quarto de hora depois que tocar a campanhia...(24);
aquele companheiro que for chamado durante o trabalho e que perder mais de cinco minutos...; aquele que não estiver em
seu trabalho na hora precisa...(25)
Mas procura-se também garantir a qualidade do tempo empregado: controle ininterrupto, pressão dos fiscais,
anulação de tudo o que possa perturbar e distrair; trata-se de constituir um tempo integralmente útil:
128 ▲
É expressamente proibido durante o trabalho divertir os companheiros com gestos ou de outra maneira, fazer
qualquer brincadeira, comer, dormir, contar histórias e comédias(26); [e mesmo durante a interrupção para a refeição],
não será permitido contar histórias, aventuras ou outras conversações que distraiam os operários de seu trabalho; é
expressamente proibido a qualquer operário, e sob qualquer pretexto que seja, introduzir vinho na fábrica e beber nas
oficinas.(27)
O tempo medido e pago deve ser também urn tempo sem impureza nem defeito, um tempo de boa qualidade, e
durante todo o seu transcurso o corpo deve ficar aplicado a seu exercício. A exatidão e a aplicação são, com a
regularidade, as virtudes fundamentais do tempo disciplinar. Mas não é isso o mais novo. Outros modos de proceder são
mais característicos das disciplinas.
2) A elaboração temporal do ato: vejamos duas maneiras de controlar a marcha de uma tropa. Começo do século
XVII:
Acostumar os soldados a marchar por fila ou em batalhão, a marchar na cadência do tambor. E, para isso, começar
com o pé direito a fim de que toda a tropa esteja levantando o mesmo pé ao mesmo tempo.(28)
Metade do século XVIII, quatro tipos de passo:
O comprimento do pequeno passo será de um pé, o do passo comum, do passo dobrado e do passo de estrada de dois
pés, medidos ao todo de um calcanhar ao outro; quanto à duração, a do pequeno passo e do passo comum serão de um
segundo, durante o qual se farão dois passos dobrados; a duração do passo de estrada será de um pouco mais de um
segundo. O passo obliquo será feito no mesmo espaço de um segundo; terá no máximo 18 polegadas de um calcanhar ao
outro... O passo comum será executado mantendo-se a cabeça alta e o corpo direito, conservando-se o equilíbrio
sucessivamente sobre uma única perna, e levando a outra à frente, a perna esticada, a ponta do pé um pouco voltada para
fora e baixa para aflorar sem afetaçao o terreno sobre o qual se deve marchar e colocar o pé na terra, de maneira que cada
parte se apoie ao mesmo tempo sem bater contra a terra.(29)
Entre essas duas prescrições, um novo conjunto de obrigações é imposto, outro grau de precisão na decomposição
dos gestos e dos movimentos, outra maneira de ajustar o corpo a imperativos temporais.
O que é definido pela ordenação de 1766 não é um horário - um quadro geral para uma atividade; é mais que um
ritmo coletivo e obrigatório, imposto do exterior; é um "programa"; ele realiza a elaboração do próprio ato; controla do
interior seu desenrolar e suas fases. Passamos de uma forma de injunção que media ou escandia os gestos a uma trama
que os obriga e sustenta ao longo de todo o seu encadeamento. Define-se uma espécie de esquema anátomo-cronológico
do comportamento. O ato é decomposto em seus elementos; é definida a posição do corpo, dos membros, das
articulações; para cada movimento é determinada uma direção, uma amplitude, uma duração; é prescrita sua ordem de
sucessão. O tempo penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder.
3) Donde o corpo e o gesto postos em correlação: o controle disciplinar não consiste simplesmente em ensinar ou
impor uma série de gestos definidos;
129 ▲
impõe a melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo, que é sua condição de eficácia e de rapidez. No bom
emprego do corpo, que permite um bom emprego do tempo, nada deve ficar ocioso ou inútil: tudo deve ser chamado a
formar o suporte do ato requerido. Um corpo bem disciplinado forma o contexto de realização do mínimo gesto. Uma boa
caligrafia, por exemplo, supõe uma ginástica - uma rotina cujo rigoroso código abrange o corpo por inteiro, da ponta do
pé à extremidade do indicador. Deve-se
manter o corpo direito, um pouco voltado e solto do lado esquerdo, e algo inclinado para a frente, de maneira que,
estando o cotovelo pousado na mesa, o queixo possa ser apoiado na mão, a menos que o alcance da vista não o permita; a
perna esquerda deve ficar um pouco mais avançada que a direita, sob a mesa. Deve-se deixar uma distância de dois dedos
entre o corpo e a mesa; pois não só se escreve com mais rapidez, mas nada é mais nocivo à saúde que contrair o hábito de
apoiar o estômago contra a mesa; a parte do braço esquerdo, do cotovelo até à mão, deve ser colocada sobre a mesa. O
braço direito deve estar afastado do corpo cerca de três dedos, e sair aproximadamente cinco dedos da mesa, sobre a qual
deve apoiar ligeiramente. O mestre ensinará aos escolares a postura que estes devem manter ao escrever, e a corrigirá seja
por sinal seja de outra maneira, quando dela se afastarem.(30)
Um corpo disciplinado é a base de um gesto eficiente.
4) A articulação corpo-objeto: a disciplina define cada uma das relações que o corpo deve manter com o objeto que
manipula. Ela estabelece cuidadosa engrenagem entre um e outro.
Leve a arma à frente. Em três tempos. Levanta-se o fuzil com a mão direita, aproximando-o do corpo para mantê-lo
perpendicularmente em frente ao joelho direito, a ponta do cano à altura do olho, apanhando-o batendo com a mão
esquerda, o braço esticado colado ao corpo à altura do cinturão. No segundo, traz-se o fuzil com a mão esquerda diante de
si, o cano para dentro entre os dois olhos, a prumo, a mão direita o apanha pelo punho, com o braço esticado, o guardamato
apoiado sobre o primeiro dedo, a mão esquerda à altura da alça de mira, o polegar estendido ao longo do cano contra
a soleira. No terceiro, a mão esquerda deixa o fuzil e cai ao longo da coxa, a mão direita o eleva, com o fecho para fora e
em frente ao peito, com o braço direito meio esticado, o cotovelo colado ao corpo, o polegar estendido contra o fecho,
apoiado ao primeiro parafuso, o cão apoiado sobre o primeiro dedo, o cano a prumo.(31)
Temos aí um exemplo do que se poderia chamar a codificação instrumental do corpo. Consiste em uma
decomposição do gesto global em duas séries paralelas: a dos elementos do corpo que serão postos em jogo (mão direita,
mão esquerda, diversos dedos da mão, joelho, olho, cotovelo etc.), a dos elementos do objeto manipulado (cano, alça de
mira, cão, parafuso etc.); coloca-os depois em correlação uns com os outros segundo um certo número de gestos simples
(apoiar, dobrar); finalmente fixa a ordem canónica em que cada uma dessas correlações ocupa um lugar determinado. A
esta sintaxe forçada é que os teóricos militares do século XVIII chamavam "manobra". A receita tradicional dá lugar a
prescrições explícitas e coercitivas. Sobre toda a superfície de contato entre o corpo e o objeto que o manipula, o poder
vem se introduzir, amarra-os um ao outro. Constitui um complexo corpo-arma, corpo-instrumento, corpo-
130 ▲
máquina. Estamos inteiramente longe daquelas formas de sujeição que só pediam ao corpo sinais ou produtos, formas de
expressão ou o resultado de um trabalho. A regulamentação imposta pelo poder é ao mesmo tempo a lei de construção da
operação. E assim aparece esse caráter do poder disciplinar: tem uma função menos de retirada que de síntese, menos de
extorsão do produto que de laço coercitivo com o aparelho de produção.
5) A utilização exaustiva: o princípio que estava subjacente ao horário em sua forma tradicional era essencialmente
negativo; princípio da não-ociosidade; é proibido perder um tempo que é contado por Deus e pago pêlos homens; o
horário devia conjurar o perigo de desperdiçar tempo - erro moral e desonestidade econômica. Já a disciplina organiza
uma economia positiva; coloca o princípio de uma utilização teoricamente sempre crescente do tempo: mais exaustão que
emprego; importa extrair do tempo sempre mais instantes disponíveis e de cada instante sempre mais forças úteis. O que
significa que se deve procurar intensificar o uso do mínimo instante, como se o tempo, em seu próprio fracionamento,
fosse inesgotável; ou como se, pelo menos, por uma organização interna cada vez mais detalhada, se pudesse tender para
um ponto ideal em que o máximo de rapidez encontra o máximo de eficiência. E a essa técnica mesma que era usada nos
famosos regulamentos da infantaria prussiana que a Europa inteira imitou depois das vitórias de Frederico II(32): quanto
mais se decompõe o tempo, quanto mais se multiplicam suas subdivisões, quanto melhor o desarticulamos desdobrando
seus elementos internos sob um olhar que os controla, mais então pode-se acelerar uma operação, ou pelo menos regulá-la
segundo um rendimento ótimo de velocidade; daí essa regulamentação do tempo da ação que foi tão importante no
exército e que devia sê-lo para toda a tecnologia da atividade humana: o regulamento prussiano de 1743 previa 6 tempos
para pôr a arma ao pé, 4 para estendê-la, 13 para colocá-la ao contrário sobre o ombro, etc. Por outros meios, a escola
mútua também foi disposta como um aparelho para intensificar a utilização do tempo; sua organização permitia desviar o
caráter linear e sucessivo do ensino do mestre; regulava o contraponto de operações feitas, ao mesmo tempo, por diversos
grupos de alunos sob a direção dos monitores e dos adjuntos, de maneira que cada instante que passava era povoado de
atividades múltiplas, mas ordenadas; e por outro lado o ritmo imposto por sinais, apitos, comandos impunha a todos
normas temporais que deviam ao mesmo tempo acelerar o processo de aprendizagem e ensinar a rapidez como uma
virtude.(33)
A única finalidade dessas ordens é... acostumar as crianças a executar rapidamente e bem as mesmas operações,
diminuir tanto quanto possível pela celeridade a perda de tempo acarretada pela passagem de uma operação a outra.(34)
Ora, através dessa técnica de sujeição, um novo objeto vai-se compondo e lentamente substituindo o corpo
mecânico - o corpo composto de sólidos e comandado por movimentos, cuja imagem tanto povoara os sonhos dos que
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buscavam a perfeição disciplinar. Esse novo objeto é o corpo natural, portador de forças e sede de algo durável; é o corpo
suscetível de operações especificadas, que têm sua ordem, seu tempo, suas condições internas, seus elementos
constituintes. O corpo, tornando-se alvo dos novos mecanismos do poder, oferece-se a novas formas de saber. Corpo do
exercício mais que da física especulativa; corpo manipulado pela autoridade mais que atravessado pêlos espíritos animais;
corpo do treinamento útil e não da mecânica racional, mas no qual por essa mesma razão se anunciará um certo número
de exigências de natureza e de limitações funcionais. É ele que Guibert descobre na crítica que faz das manobras
excessivamente artificiais. No exercício que lhe é imposto e ao qual resiste, o corpo desenha suas correlações essenciais e
rejeita espontaneamente o incompatível:
Entremos na maior parte de nossas escolas de exercício, veremos todos aqueles infelizes soldados em atitudes coagidas e
forçadas, veremos todos os seus músculos em contração, sua circulação sanguínea interrompia... Estudemos a intenção da
natureza e a construção do corpo humano, e encontraremos a posição e a compostura que ela prescreve claramente que se
deve dar ao soldado. A cabeça deve ficar direita, solta dos ombros, perpendicularmente colocada entre eles. Não deve
ficar voltada nem à esquerda nem à direita, porque, considerando a correspondência que existe entre as vértebras do
pescoço e a omoplata a que estão ligadas, nenhuma delas pode agir circularmente sem arrastar de leve do mesmo lado em
que ela age uma das ramificações do ombro, e não estando mais o corpo colocado direito, o soldado não pode mais
marchar reto para frente nem servir de ponto de alinhamento... Como o osso da anca indicado pela Ordenação como sendo
o ponto contra o qual se deve apoiar o bico da coronha não está igualmente situado em todos os homens, o fuzil para
alguns deve ser levado mais à direita, para outros mais à esquerda. Pela mesma razão de desigualdade de estrutura, o
guarda-mato pode estar mais ou menos apertado contra o corpo, dependendo de ter um homem a parte externa do ombro
mais ou menos carnuda, etc.(35)
Vimos como os processos da repartição disciplinar tinham seu lugar entre as técnicas contemporâneas de classificação e
de enquadramento, e como eles aí introduziam o problema específico dos indivíduos e da multiplicidade. Do mesmo
modo, os controles disciplinares da atividade encontram lugar em todas as pesquisas, teóricas ou práticas, sobre a
máquina natural dos corpos; mas elas começaram a descobrir nisso processos específicos; o comportamento e suas
exigências orgânicas vão pouco a pouco substituir a simples física do movimento. O corpo, do qual se requer que seja
dócil até em suas mínimas operações, opõe e mostra as condições de funcionamento próprias a um organismo. O poder
disciplinar tem por correlato uma individualidade não só analítica e "celular", mas também natural e "orgânica".
A ORGANIZAÇÃO DAS GÊNESES
Em 1667, o edito que criava a fábrica dos Gobelins previa a organização de uma escola. Sessenta crianças
bolsistas deviam ser escolhidas pelo superintendente dos prédios reais, confiados durante certo tempo a um mestre que
devia
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realizar "sua educação e instrução", depois colocados para aprendizagem junto aos diversos mestres tapeceiros da
manufatura (estes recebiam por isso uma indenização retirada da bolsa dos alunos); depois de seis anos de aprendizagem,
quatro anos de serviço e uma prova qualificatória, tinham direito de "erguer e manter loja" em qualquer cidade do reino.
Encontramos aí as características próprias da aprendizagem corporativa: relação de dependência ao mesmo tempo
individual e total quanto ao mestre; duração estatutária da formação que se conclui com uma prova qualificatória, mas que
não se decompõe segundo um programa preciso; troca total entre o mestre que deve dar seu saber e o aprendiz que deve
trazer seus serviços, sua ajuda e muitas vezes uma retribuição. A forma da domesticidade se mistura a uma transferência
de conhecimento.(36) Em 1737, um edito organiza uma escola de desenho para os aprendizes dos Gobelins; ela não se
destina a substituir a formação com os mestres operários, mas a completá-la. Ora, ela implica numa organização do tempo
totalmente diversa. Duas horas por dia, menos aos domingos e festas, os alunos se reúnem na escola. É feita a chamada
segundo uma lista afixada à parede; anotam-se as ausências num registro. A escola é dividida em três classes. A primeira
para os que não têm nenhuma noção de desenho; mandam-nos copiar modelos, mais difíceis ou menos difíceis, segundo
as aptidões de cada um. A segunda "para os que já têm alguns princípios" ou que passaram pela primeira classe; devem
reproduzir quadros "à primeira vista e sem tornar-lhes o traço", mas considerando só o desenho. Na terceira classe,
aprendem as cores, fazem pastel, iniciam-se na teoria e na prática do tingimento. Regularmente, os alunos fazem deveres
individuais: cada um desses exercícios, marcado com o nome do autor e a data da execução, é depositado nas mãos do
professor; os melhores são recompensados; reunidos no fim do ano e comparados entre eles, permitem estabelecer os
progressos, o valor atual, o lugar relativo de cada aluno; determinam-se então os que podem passar para a classe superior.
Um livro geral mantido pêlos professores e seus adjuntos deve registrar dia por dia o comportamento dos alunos e tudo o
que se passa na escola; é periodicamente submetido a um inspetor.(37)
A escola dos Gobelins é apenas o exemplo de um fenômeno importante: o desenvolvimento, na época clássica, de
uma nova técnica para a apropriação do tempo das existências singulares; para reger as relações do tempo, dos corpos e
das forças; para realizar uma acumulação da duração; e para inverter em lucro ou em utilidade sempre aumentados o
movimento do tempo que passa. Como capitalizar o tempo dos indivíduos, acumulá-lo em cada um deles, em seus corpos,
em suas forças ou capacidades, e de uma maneira que seja susceptível de utilização e de controle? Como organizar
durações rentáveis? As disciplinas, que analisam o espaço, que decompõem e recompõem as atividades, devem ser
também compreendidas como aparelhos para adicionar e capitalizar o tempo.
133 ▲
E isto por quatro processos, que a organização militar mostra com toda a clareza.
1°) Dividir a duração em segmentos, sucessivos ou paralelos, dos quais cada um deve chegar a um termo específico.
Por exemplo: isolar o tempo de formação e o período da prática; não misturar a instrução dos recrutas e o exercício dos
veteranos; abrir escolas militares distintas do serviço armado (em 1764, criação da Escola de Paris, em 1776 criação das
doze escolas de província); recrutares soldados profissionais desde muito jovens, tomar crianças, "fazê-los adotar pela
pátria, prepará-los em escolas particulares"(38); ensinar sucessivamente a postura, depois a marcha, depois o manejo das
armas, depois o tiro, e só passar a uma atividade se a anterior estiver completamente adquirida: "É um dos erros principais
mostrar a um soldado todos os exercícios ao mesmo tempo"(39); enfim decompor o tempo em seqüências, separadas e
ajustadas.
2°) Organizar essas seqüências segundo um esquema analítico - sucessão de elementos tão simples quanto possível,
combinando-se segundo uma complexidade crescente. O que supõe que a instrução abandone o princípio da repetição
analógica. No século XVI, o exercício militar consistia principalmente em uma pantomima de todo ou de parte do
combate, e em fazer crescer globalmente a habilidade ou a força do soldado.(40) No século XVIII a instrução do
"manual" segue o princípio do "elementar" e não mais do "exemplar": gestos simples — posição dos dedos, flexão da
perna, movimento dos braços — que são no máximo os componentes de base para os comportamentos úteis, e que além
disso efetuam um treinamento geral da força, da habilidade, da docilidade.
3°) Finalizar esses segmentos temporais, fixar-lhes um termo marcado por uma prova, que tem a tríplice função de
indicar se o indivíduo atingiu o nível estatutário, de garantir que sua aprendizagem está em conformidade com a dos
outros, e diferenciar as capacidades de cada indivíduo. Quando os sargentos, cabos, etc.,
encarregados de instruir os outros, acharem que puseram alguém em condições de passará primeira classe, eles o
apresentarão primeiro aos oficiais da companhia que o examinarão com atenção; se ainda não o acharem suficientemente
treinado, recusarão admiti-lo; se ao contrário o homem apresentado lhes parecer em condições de ser recebido, os ditos
oficiais o proporão eles mesmos ao comandante do regimento, que verá se o julga a propósito, e fará os oficiais majores o
examinarem. As faltas mais leves bastarão para recusá-lo, e ninguém poderá passar da segunda classe para a primeira sem
ter feito esse primeiro exame.(41)
4°) Estabelecer séries de séries; prescrever a cada um, de acordo com seu nível, sua antiguidade, seu posto, os
exercícios que lhe convêm; os exercícios comuns têm um papel diferenciador e cada diferença comporta exercícios
específicos. Ao termo de cada série, começam outras, formam uma ramificação e se subdividem por sua vez. De maneira
que cada indivíduo se encontra preso
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numa série temporal, que define especificamente seu nível ou sua categoria. Polifonia disciplinar dos exercícios:
Os soldados da segunda classe serão treinados todas as manhãs pêlos sargentos, cabos, anspeçadas, soldados de
primeira classe... Os soldados de primeira classe serão treinados todos os domingos pelo chefe da esquadra...; os cabos e
os anspeçadas todas as terças-feiras à tarde pêlos sargentos de sua companhia, e estes, aos 2, 12 e 22 de cada mês também
à tarde pêlos oficiais majores.(42)
Esse é o tempo disciplinar que se impõe pouco a pouco à prática pedagógica - especializando o tempo de formação e
destacando-o do tempo adulto, do tempo do ofício adquirido; organizando diversos estágios separados uns dos outros por
provas graduadas; determinando programas, que devem desenrolar-se cada um durante uma determinada fase, e que
comportam exercícios de dificuldade crescente; qualificando os indivíduos de acordo com a maneira como percorreram
essas séries. O tempo "iniciático" da formação tradicional (tempo global, controlado só pelo mestre, sancionado por uma
única prova) foi substituído pelo tempo disciplinar com suas séries múltiplas e progressivas. Forma-se toda uma
pedagogia analítica, muito minuciosa (decompõe até aos mais simples elementos a matéria de ensino, hierarquiza no
maior número possível de graus cada fase do progresso) e também muito precoce em sua história (antecipa largamente as
análises genéticas dos ideólogos dos quais aparece como o modelo técnico). Demia, bem no começo do século XVIII,
queria que o aprendizado da leitura fosse dividido em sete níveis: o primeiro para os que aprendem a conhecer as letras, o
segundo para os que aprendem a soletrar, o terceiro para os que aprendem a juntar as sílabas, para formar palavras, o
quarto para os que lêem o latim por frase ou de pontuação em pontuação, o quinto para os que começam a ler o francês, o
sexto para os mais capazes na leitura, o sétimo para os que lêem os manuscritos. Mas, caso os alunos fossem numerosos,
seria necessário introduzir ainda subdivisões; a primeira classe devia comportar quatro grupos: um para os que aprendem
as "letras simples"; outro para os que aprendem as letras misturadas; um terceiro para os que aprendem as letras
abreviadas (Â, ê...); um último para os que aprendem as letras duplas (ff, ss, tt, st). A segunda classe seria dividida em três
grupos: para os que "contam alto cada letra antes de soletrar a sílaba D.O., DO"; para os "que soletram as sílabas mais
difíceis, como bant, brand, spinx, etc."(43) Cada patamar na combinatória dos elementos deve-se inserir numa grande
série temporal, que é ao mesmo tempo uma marcha natural do espírito e um código para os processos educativos.
A colocação em "série" das atividades sucessivas permite todo um investimento da duração pelo poder:
possibilidade de um controle detalhado e de uma intervenção pontual (de diferenciação, de correção, de castigo, de elimi-
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nação) a cada momento do tempo; possibilidade de caracterizar, portanto de utilizar os indivíduos de acordo com o nível
que têm nas séries que percorrem; possibilidade de acumular o tempo e a atividade, de encontrá-los totalizados e
utilizáveis num resultado último, que é a capacidade final de um indivíduo. Recolhe-se a dispersão temporal para lucrar
com isso e conserva-se o domínio de uma duração que escapa. O poder se articula diretamente sobre o tempo; realiza o
controle dele e garante sua utilização.
Os procedimentos disciplinares revelam um tempo linear cujos momentos se integram uns nos outros, e que se
orienta para um ponto terminal e estável. Em suma, um tempo "evolutivo". Ora, é preciso lembrar que no mesmo
momento as técnicas administrativas e econômicas de controle manifestavam um tempo social de tipo serial, orientado e
cumulativo: descoberta de uma evolução em termos de "progresso". As técnicas disciplinares, por sua vez, fazem emergir
séries individuais: descoberta de uma evolução em termos de "gênese". Progresso das sociedades, gênese dos indivíduos,
essas duas grandes "descobertas" do século XVIII são talvez correlatas das novas técnicas de poder e, mais precisamente,
de uma nova maneira de gerir o tempo e torná-lo útil, por recorte segmentar, por sedação, por síntese e totalização. Uma
macro e uma microfísica do poder permitiram, não certamente a invenção da história (já há um bom tempo ela não
precisava mais ser inventada), mas a integração de uma dimensão temporal, unitária, cumulativa no exercício dos
controles e na prática das dominações. A historicidade "evolutiva", assim como se constitui então -e tão profundamente
que ainda hoje é para muitos uma evidência - está ligada a um modo de funcionamento do poder, da mesma forma que a
"história-rememoração" das crônicas, das genealogias, das proezas, dos reinos e dos atos esteve muito tempo ligada a uma
outra modalidade do poder. Com as novas técnicas de sujeição, a "dinâmica" das evoluções contínuas tende a substituir a
"dinástica" dos acontecimentos solenes.
Em todo caso, o pequeno continuum temporal da individualidade-gênese parece ser mesmo, como a
individualidade-célula ou a individualidade-organismo, um efeito e um objeto da disciplina. E no centro dessa seriação do
tempo encontramos um procedimento que é, para ela, o que era a colocação em "quadro" para a repartição dos indivíduos
ou o recorte celular: ou ainda, o que era a "manobra" para a economia das atividades e o controle orgânico. O ponto em
apreço é o "exercício", a técnica pela qual se impõe aos corpos tarefas ao mesmo tempo repetitivas e diferentes, mas
sempre graduadas. Dirigindo o comportamento para um estado terminal, o exercício permite uma perpétua caracterização
do indivíduo seja em relação a esse termo, seja em relação aos outros indivíduos, seja em relação a um tipo de percurso.
Assim, realiza, na forma da continuidade e da coerção, um crescimento, uma observação, uma
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qualificação. Antes de tomar essa forma estritamente disciplinar, o exercício teve uma longa história: é encontrado nas
práticas militares, religiosas, universitárias - às vezes ritual de iniciação, cerimônia preparatória, ensaio teatral, prova. Sua
organização linear, continuamente progressiva, seu desenrolar genético ao longo do tempo têm, pelo menos no exército e
na escola, introdução tardia. E sem dúvida de origem religiosa. Em todo caso, a idéia de um "programa" escolar que
acompanharia a criança até o termo de sua educação e que implicaria de ano em ano, de mês em mês, em exercícios de
complexidade crescente, apareceu primeiro, parece, num grupo religioso, os Irmãos da Vida Comum.(44) Fortemente
inspirados por Ruysbroeck e na mística renana, transpuseram à educação uma parte das técnicas espirituais - e não só à
educação dos clérigos, mas à dos magistrados e comerciantes: o tema da perfeição, em direção à qual o mestre exemplar
conduz, torna-se entre eles o de um aperfeiçoamento autoritário dos alunos pelo professor; os exercícios cada vez mais
rigorosos propostos pela vida ascética tornam-se tarefas de complexidade crescente que marcam a aquisição progressiva
do saber e do bom comportamento; o esforço de toda a comunidade para a salvação torna-se o concurso coletivo e
permanente dos indivíduos que se classificam uns em relação aos outros. Foram talvez processos de vida e de salvação
comunitárias o primeiro núcleo de métodos destinados a produzir aptidões individualmente caracterizadas mas coletivamente
úteis.(45) Sob sua forma mística ou ascética, o exercício era uma maneira de ordenar o tempo aqui de baixo para a
conquista da salvação. Vai pouco a pouco, na história do Ocidente, inverter o sentido guardando algumas características:
serve para economizar o tempo da vida, para acumulá-lo de uma maneira útil, e para exercer o poder sobre os homens por
meio do tempo assim arrumado. O exercício, transformado em elemento de uma tecnologia política do corpo e da
duração, não culmina num mundo além; mas tende para uma sujeição que nunca terminou de se completar.
A COMPOSIÇÃO DAS FORÇAS
"Comecemos destruindo o antigo preconceito segundo o qual pensava-se aumentar a força de uma tropa
aumentando-lhe a profundidade. Todas as leis físicas sobre o movimento tornam-se quimeras quando queremos adaptá-las
à tática.(46)
Desde o fim do século XVII, o problema técnico da infantaria foi de libertar-se do modelo físico da massa. Armada
de lanças e mosquetões - lentos, imprecisos, que não permitiam ajustar um alvo e mirar - uma tropa era usada ou como
um projétil, ou como um muro ou uma fortaleza: "a temível infantaria do exército da Espanha"; a repartição dos soldados
nessa massa era feita principalmente segundo sua antiguidade e valentia; no centro, encarregados de fazer peso e volume,
de dar densidade ao corpo, os mais novatos; na frente, nos
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ângulos ou pêlos lados, os soldados mais corajosos ou reputados os mais hábeis. Passou-se no decorrer da época clássica a
um jogo de articulações minuciosas. A unidade - regimento, batalhão, seção, mais tarde "divisão"(47) - torna-se uma
espécie de máquina de peças múltiplas que se deslocam em relação umas às outras para chegar a uma configuração e
obter um resultado específico. As razões dessa mudança? Algumas são econômicas: tornar útil cada indivíduo e rentável a
formação, a manutenção, o armamento das tropas; dar a cada soldado, unidade preciosa, um máximo de eficiência. Mas
essas razões econômicas só puderam se tornar determinantes a partir de uma transformação técnica: a invenção do
fuzil(48): mais preciso, mais rápido que o mosquete, valorizava a habilidade do soldado; mais capaz de atingir um alvo
determinado, permitia explorar a potência de fogo ao nível individual; e inversamente fazia de cada soldado um alvo
possível, exigindo pela mesma razão maior mobilidade; e assim ocasionava o desaparecimento de uma técnica das massas
em proveito de uma arte que distribuía as unidades e os homens ao longo de linhas extensas, relativamente flexíveis e
móveis. Daí a necessidade de encontrar uma prática calculada das localizações individuais e coletivas, dos deslocamentos
de grupos ou de elementos isolados, das mudanças de posição, de passagem de uma disposição a outra; enfim, de inventar
uma maquinaria cujo princípio não seja mais a massa móvel ou imóvel, mas uma geometria de segmentos divisíveis cuja
unidade de base é o soldado móvel com seu fuzil(49); e, acima do próprio soldado, os gestos mínimos, os tempos
elementares de ação, os fragmentos de espaços ocupados ou percorridos.
Mesmos problemas ao se constituir uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das forças elementares
que a compõem:
Que o dia de trabalho combinado adquira essa produtividade superior multiplicando a potência mecânica do
trabalho, estendendo sua ação no espaço ou diminuindo o campo de produção em relação à sua escala, mobilizando nos
momentos críticos grandes quantidades de trabalho... a força específica do dia combinado, é uma força social do trabalho
ou uma força do trabalho social. Nasce da própria cooperação.(50)
Surge assim uma exigência nova a que a disciplina tem que atender: construir uma máquina cujo efeito será elevado
ao máximo pela articulação combinada das peças elementares de que ela se compõe. A disciplina não é mais
simplesmente uma arte de repartir os corpos, de extrair e acumular o tempo deles, mas de compor forças para obter um
aparelho eficiente. Essa exigência se traduz de várias maneiras.
1) O corpo singular torna-se um elemento, que se pode colocar, mover, articular com outros. Sua coragem ou força
não são mais as variáveis principais que o definem; mas o lugar que ele ocupa, o intervalo que cobre, a regularidade, a
boa ordem segundo as quais opera seus deslocamentos. O homem de tropa é
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antes de tudo um fragmento de espaço móvel, antes de ser uma coragem ou uma honra. Caracterização do soldado por
Guibert:
Quando está sob as armas, ocupa dois pés em seu maior diâmetro, ou seja, tomando-o de um extremo ao outro, e
cerca de um pé em sua maior espessura, tomada do peito aos ombros, a que se deve acrescentar um pé de intervalo real
entre ele e o homem seguinte; o que dá dois pés em todos os sentidos por soldado e indica que uma tropa de infantaria em
batalha ocupa, seja numa frente seja em profundidade, tantos passos quantas filas tem.(51)
Redução funcional do corpo. Mas também inserção desse corpo-segmento em todo um conjunto com o qual se
articula. O soldado cujo corpo foi treinado para funcionar peça por peça para operações determinadas deve por sua vez
formar elemento num mecanismo de outro nível. Os soldados serão instruídos
um a um, depois dois a dois, depois em maior número... Será observado para o manejo das armas, quando os
soldados tiverem sido instruídos separadamente, fazê-los executá-lo dois a dois, e fazê-los trocar de lugar alternadamente
para que o da esquerda aprenda a se regular pelo da direita.(52)
O corpo se constitui como peça de uma máquina multissegmentar.
2) São também peças as várias séries cronológicas que a disciplina deve combinar para formar um tempo composto.
O tempo de uns deve-se ajustar ao tempo de outros de maneira que se possa extrair a máxima quantidade de forças de
cada um e combiná-la num resultado ótimo. Servan sonhava assim com um aparelho militar que cobriria todo o território
da nação e em que cada um estaria ocupado sem interrupção mas de maneira diferente segundo o segmento evolutivo, a
seqüência genética em que se encontrasse. A vida militar começaria na mais tenra idade, quando se ensinaria às crianças,
em "moradas militares", o ofício das armas; ela terminaria nessas mesmas moradas, quando os veteranos, até seu último
dia, ensinariam as crianças, mandariam os recrutas fazer manobras, presidiriam aos exercícios dos soldados, os
fiscalizariam quando executassem obras de interesse público, e enfim fariam reinar a ordem no país, enquanto a tropa se
batia nas fronteiras. Não há um só momento da vida de que não se possa extrair forças, desde que se saiba diferenciá-lo e
combiná-lo com outros. Da mesma maneira nas grandes oficinas apela-se para as crianças e os velhos; pois eles têm certas
capacidades elementares para as quais não é necessário utilizar operários que têm várias outras aptidões; além disso
constituem mão-de-obra barata; enfim, se trabalham, não são dependentes de ninguém:
A humanidade laboriosa, dizia um recebedor de impostos a respeito de uma empresa de Angers, pode encontrar
nessa manufatura, da idade de dez anos até à velhice, recursos contra a ociosidade e a miséria que é conseqüência
desta.(53)
Mas é sem dúvida no ensino primário que esse ajustamento das cronologias diferentes será mais útil. Do século
XVII até a introdução, no começo do XIX, do método Lancaster, o mecanismo complexo da escola mútua se cons-
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truirá uma engrenagem depois da outra: confiaram-se primeiro aos alunos mais velhos tarefas de simples fiscalização,
depois de controle do trabalho, em seguida, de ensino; e então no fim das contas, todo o tempo de todos os alunos estava
ocupado seja ensinando seja aprendendo. A escola torna-se um aparelho de aprender onde cada aluno, cada nível e cada
momento, se estão combinados como deve ser, são permanentemente utilizados no processo geral de ensino. Um dos
grandes partidários da escola mútua dá a medida desse progresso:
Numa escola de 360 crianças, o professor que quisesse instruir cada aluno por sua vez durante uma sessão de três
horas só poderia dar meio minuto a cada um. Pelo novo método, todos os 360 alunos escrevem, lêem ou contam durante
duas horas e meia cada um.(54)
3) Essa combinação cuidadosamente medida das forças exige um sistema preciso de comando. Toda a atividade do
indivíduo disciplinar deve ser repartida e sustentada por injunções cuja eficiência repousa na brevidade e na clareza; a
ordem não tem que ser explicada, nem mesmo formulada; é necessário e suficiente que provoque o comportamento
desejado. Do mestre de disciplina àquele que lhe é sujeito, a relação é de sinalização: o que importa não é compreender a
injunção, mas perceber o sinal, reagir logo a ele, de acordo com um código mais ou menos artificial estabelecido
previamente. Colocar os corpos num pequeno mundo de sinais a cada um dos quais está ligada uma resposta obrigatória e
só uma: técnica do treinamento que
exclui despoticamente em tudo a menor representação, e o menor murmúrio; o soldado disciplinado começa a
obedecer ao que quer que lhe seja ordenado; sua obediência é pronta e cega; a aparência de indocilidade, o menor atraso
seria um crime.(55)
O treinamento das escolares deve ser feito da mesma maneira; poucas palavras, nenhuma explicação, no máximo
um silêncio total que só seria interrompido por sinais - sinos, palmas, gestos, simples olhar do mestre, ou ainda aquele
pequeno aparelho de madeira que os Irmãos das Escolas Cristãs usavam; era chamado por excelência o "Sinal" e devia
significar em sua brevidade maquinal ao mesmo tempo a técnica do comando e a moral da obediência.
O primeiro e principal uso do sinal é atrair de uma só vez todos os olhares dos escolares para o mestre e fazê-los
ficar atentos ao que ele lhes quer comunicar. Assim, toda vez que este quiser chamar a atenção das crianças e fazer parar
qualquer exercício, baterá uma vez. Um bom escolar, toda vez que ouvir o ruído do sinal pensará ouvir a voz do mestre ou
antes a voz de Deus mesmo que o chame pelo nome. Entrará então nos sentimentos do jovem Samuel, dizendo com ele no
fundo de sua alma: Senhor, eis-me aqui.
O aluno deverá aprender o código dos sinais e atender automaticamente a cada um deles.
Feita a oração, o mestre dará uma pancada de sinal, olhando a criança que quer mandar ler, lhe fará sinal de
começar. Para fazer parar o que está lendo, dará uma pancada de sinal... Para fazer sinal ao que está lendo de se corrigir,
quando pronunciou mal uma letra, uma sílaba ou uma palavra, dará
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duas pancadas sucessivamente e seguidas. Se, após se ter corrigido, ele não recomeça na palavra que pronunciou mal,
porque leu várias depois dela, o mestre dará três pancadas sucessivamente uma em seguida da outra para lhe fazer sinal de
recuar de algumas palavras e continuará a fazer esse sinal, até o escolar chegar à sílaba ou à palavra que pronunciou
mal.(56)
A escola mútua levará ainda mais longe esse controle dos comportamentos pelo sistema dos sinais a que se tem que
reagir imediatamente. Até as ordens verbais devem funcionar como sinalização:
Entrem em seus bancos. À palavra Entrem, as crianças colocam com ruído a mão direita sobre a mesa e ao mesmo
tempo passam a perna para dentro do banco; às palavras em seus bancos, eles passam a outra perna e se sentam diante das
lousas... Pegar-lousas, à palavra pegar, as crianças levam a mão direita ao barbante que serve para suspender a lousa ao
prego que está diante deles, e com a esquerda pegam a lousa pelo meio; à palavra lousas, eles a soltam e a colocam sobre
a mesa.(57)
Em resumo, pode-se dizer que a disciplina produz, a partir dos corpos que controla, quatro tipos de individualidade,
ou antes uma individualidade dotada de quatro características: é celular (pelo jogo da repartição espacial), é orgânica (pela
codificação das atividades), é genética (pela acumulação do tempo), é combinatória (pela composição das forças). E, para
tanto, utiliza quatro grandes técnicas: constrói quadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a
combinação das forças, organiza "táticas". A tática, arte de construir, com os corpos localizados, atividades codificadas e
as aptidões formadas, aparelhos em que o produto das diferentes forças se encontra majorado por sua combinação
calculada é sem dúvida a forma mais elevada da prática disciplinar. Nesse saber, os teóricos do século XVIII viam o
fundamento geral de toda a prática militar, desde o controle e o exercício dos corpos individuais, até à utilização das
forças específicas às multiplicidades mais complexas. Arquitetura, anatomia, mecânica, economia do corpo disciplinar;
aos olhos da maior parte dos militares, a tática não passa de um ramo da vasta ciência da guerra; aos meus, ela é a
base dessa ciência; ela é a própria ciência, pois ensina a constituir as tropas, a ordená-las, a movê-las, a mandá-las
combater; pois só ela pode completar o número e manejar a multidão; ela incluirá enfim o conhecimento dos homens, das
armas, das tensões, das circunstâncias, pois são todos esses conhecimentos reunidos que devem determinar esses
movimentos.(58) [Ou ainda]: Esse termo (tática)... dá a idéia da posição respectiva dos homens que compõem uma tropa,
das diversas tropas que compõem um exército, de seus movimentos e ações, das relações que têm entre si.(59)
É possível que a guerra como estratégia seja a continuação da política. Mas não se deve esquecer que a "política" foi
concebida como a continuação senão exata e diretamente da guerra, pelo menos do modelo militar como meio
fundamental para prevenir o distúrbio civil. A política, como técnica da paz e da ordem internas, procurou pôr em
funcionamento o dispositivo do exército perfeito, da massa disciplinada, da tropa dócil e útil, do regimento no
acampamento e nos campos, na manobra e no exercício. Nos grandes Estados do século XVIII, o exército garante a paz
civil sem dúvida porque é uma força real, uma espada sempre ameaçadora, mas também porque é uma técnica e um saber
que
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podem projetar seu esquema sobre o corpo social. Se há uma série guerra-política que passa pela estratégia, há uma série
exército-política que passa pela tática. É a estratégia que permite compreender a guerra como uma maneira de conduzir a
guerra entre os Estados; é a tática que permite compreender o exército como um princípio para manter a ausência de
guerra na sociedade civil. A era clássica viu nascer a grande estratégia política e militar segundo a qual as nações
defrontam suas forças econômicas e demográficas; mas viu nascer também a minuciosa tática militar e política pela qual
se exerce nos Estados o controle dos corpos e das forças individuais. "O" militar- a instituição militar, o personagem do
militar, a ciência militar, tão diferentes do que caracterizava antes o "homem de guerra" - se especifica, durante esse
período, no ponto de junção entre a guerra e os ruídos da batalha por um lado, a ordem e o silêncio obediente da paz por
outro. O sonho de uma sociedade perfeita é facilmente atribuído pêlos historiadores aos filósofos e juristas do século
XVIII; mas há também um sonho militar da sociedade; sua referência fundamental era não ao estado de natureza, mas às
engrenagens cuidadosamente subordinadas de uma máquina, não ao contrato primitivo, mas às coerções permanentes, não
aos direitos fundamentais, mas aos treinamentos indefinidamente progressivos, não à vontade geral mas à docilidade
automática.
Dever-se-ia tornar a disciplina nacional [dizia Guibert].
O Estado que eu idealizo terá uma administração simples, sólida, fácil de governar. Parecerá com essas imensas
máquinas, que com molas pouco complicadas produzem grandes efeitos; a força desse Estado nascerá de sua força, sua
prosperidade de sua prosperidade. O tempo que destrói tudo aumentará sua potência. Ele desmentirá esse preconceito
vulgar que leva a imaginar que os impérios estão submetidos a uma lei imperiosa de decadência e ruína.(60)
O regime napoleônico não está longe e com ele essa forma de Estado que lhe subsistirá e que não se deve esquecer
que foi preparado por juristas mas também por soldados, conselheiros de Estado e oficiais baixos, homens de lei e homens
de acampamento. A referência romana que acompanha essa formação inclui claramente esse duplo índice: os cidadãos e
os legionários, a lei e a manobra. Enquanto os juristas procuravam no pacto um modelo primitivo para a construção ou a
reconstrução do corpo social, os militares e com eles os técnicos da disciplina elaboravam processos para a coerção
individual e coletiva dos corpos.
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CAPÍTULO II
OS RECURSOS
PARA O BOM ADESTRAMENTO
Walhausen, bem no início do século XVII, falava da "correta disciplina", como uma arte do "bom adestramento".(1)
O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior "adestrar"; ou
sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligálas
para multiplicá-las e utilizá-las num todo. Em vez de dobrar uniformemente e por massa tudo o que lhe está
submetido, separa, analisa, diferencia, leva seus processos de decomposição até às singularidades necessárias e
suficientes. "Adestra" as multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos
individuais - pequenas células separadas, autonomias orgânicas, identidades e continuidades genéticas, segmentos
combinatórios. A disciplina "fabrica" indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo
tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. Não é um poder triunfante que, a partir de seu próprio
excesso, pode-se fiar em seu superpoderio; é um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia
calculada, mas permanente. Humildes modalidades, procedimentos menores, se os compararmos aos rituais majestosos da
soberania ou aos grandes aparelhos do Estado. E são eles justamente que vão pouco a pouco invadir essas formas maiores,
modificar-lhes os mecanismos e impor-lhes seus processos. O aparelho judiciário não escapará a essa invasão, mal
secreta. O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção
normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame.
A VIGILÂNCIA HIERÁRQUICA
O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas que
permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre
quem se aplicam. Lentamente, no decorrer da época clássica, são construídos esses "observatórios" da multiplicidade
humana para as quais a história
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das ciências guardou tão poucos elogios. Ao lado da grande tecnologia dos óculos, das lentes, dos feixes luminosos, unida
à fundação da física e da cosmologia novas, houve as pequenas técnicas das vigilâncias múltiplas e entrecruzadas, dos
olhares que devem ver sem ser vistos; uma arte obscura da luz e do visível preparou em surdina um saber novo sobre o
homem, através de técnicas para sujeitá-lo e processos para utilizá-lo.
Esses "observatórios" têm um modelo quase ideal: o acampamento militar. É a cidade apressada e artificial, que se
constrói e remodela quase à vontade; é o ápice de um poder que deve ter ainda mais intensidade, mas também mais
discrição, por se exercer sobre homens de armas. No acampamento perfeito, todo o poder seria exercido somente pelo
jogo de uma vigilância exata; e cada olhar seria uma peça no funcionamento global do poder. O velho e tradicional plano
quadrado foi consideravelmente afinado de acordo com inúmeros esquemas. Define-se exatamente a geometria das aléias,
o número e a distribuição das tendas, a orientação de suas entradas, a disposição das filas e das colunas; desenha-se a rede
dos olhares que se controlam uns aos outros:
Na praça d'armas, tiram-se cinco linhas, a primeira fica a 16 pés da segunda; as outras ficam a 8 pés uma da outra; e
a última fica a 8 pés dos tabardos. Os tabardos ficam a 10 pés das tendas dos oficiais inferiores, precisamente em frente ao
primeiro bastão. Uma rua de companhia tem 51 pés de largura... Todas as tendas ficam a dois pés umas das outras. As
tendas dos subalternos ficam em frente às ruelas de suas companhias. O bastão de trás fica a 8 pés da última tenda dos
soldados e a porta olha para a tenda dos capitães... As tendas dos capitães ficam levantadas em frente às ruas de suas
companhias. A porta olha para as próprias companhias.(2)
O acampamento é o diagrama de um poder que age pelo efeito de uma visibilidade geral. Durante muito tempo
encontraremos no urbanismo, na construção das cidades operárias, dos hospitais, dos asilos, das prisões, das casas de
educação, esse modelo do acampamento ou pelo menos o princípio que o sustenta: o encaixamento espacial das
vigilâncias hierarquizadas. Princípio do "encastramento". O acampamento foi para a ciência pouco confessável das
vigilâncias o que a câmara escura foi para a grande ciência da ótica.
Toda uma problemática se desenvolve então: a de uma arquitetura que não é mais feita simplesmente para ser vista
(fausto dos palácios), ou para vigiar o espaço exterior (geometria das fortalezas), mas para permitir um controle interior,
articulado e detalhado - para tornar visíveis os que nela se encontram; mais geralmente, a de uma arquitetura que seria um
operador para a transformação dos indivíduos: agir sobre aquele que abriga, dar domínio sobre seu comportamento,
reconduzir até eles os efeitos do poder, oferecê-los a um conhecimento, modificá-los. As pedras podem tornar dócil e
conhecível. O velho esquema simples do encarceramento e do fechamento - do muro espesso, da porta sólida que
impedem de entrar ou de sair - começa a ser substituído pelo cálculo das aberturas, dos cheios e dos vazios, das passagens
e das
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transparências. Assim é que o hospital-edifício se organiza pouco a pouco como instrumento de ação médica: deve
permitir que se possa observar bem os doentes, portanto, coordenar melhor os cuidados; a forma dos edifícios, pela
cuidadosa separação dos doentes, deve impedir os contágios; a ventilação que se faz circular em torno de cada leito deve
enfim evitar que os vapores deletérios se estagnem em volta do paciente, decompondo seus humores e multiplicando a
doença por seus efeitos imediatos. O hospital - aquele que se quer aparelhar na segunda metade do século, e para o qual se
fizeram tantos projetos depois do segundo incêndio do Hôtel-Dieu - não é mais simplesmente o teto onde se abrigavam a
miséria e a morte próxima; é, sem sua própria materialidade, um operador terapêutico.
Como a escola-edifício deve ser um operador de adestramento. Fora uma máquina pedagógica que Pâris-Duverney
concebera na Escola militar e até nos mínimos detalhes que ele impusera a Gabriel. Adestrar corpos vigorosos, imperativo
de saúde; obter oficiais competentes, imperativo de qualificação; formar militares obedientes, imperativo político;
prevenir a devassidão e a homossexualidade, imperativo de moralidade. Quádrupla razão para estabelecer separações
estanques entre os indivíduos, mas também aberturas para observação contínua. O próprio edifício da Escola devia ser um
aparelho de vigiar; os quartos eram repartidos ao longo de um corredor como uma série de pequenas celas; a intervalos
regulares, encontrava-se um alojamento de oficial, de maneira que
cada dezena de alunos tivesse um oficial à direita e à esquerda; [os alunos aí ficavam trancados durante toda a noite;
e Paris insistira para que fosse envidraçada] a parede de cada quarto do lado do corredor desde a altura de apoio até um ou
dois pés do teto. Além disso a vista dessas vidraças só pode ser agradável, ousamos dizer que é útil sob vários pontos de
vista, sem falar das razões de disciplina que podem determinar essa disposição.(3)
Nas salas de refeições, fora preparado
um estrado um pouco alto para colocar as mesas dos inspetores dos estudos, para que eles possam ver todas as
mesas dos alunos de suas divisões, durante as refeições;
haviam sido instaladas latrinas com meias-portas, para que o vigia para lá designado pudesse ver a cabeça e as
pernas dos alunos, mas com separações laterais suficientemente elevadas "para que os que lá estão não se possam ver".(4)
Escrúpulos infinitos de vigilância que a arquitetura transmite por mil dispositivos sem honra. Só os acharemos irrisórios
se esquecermos o papel dessa instrumentação, menor mas sem falha, na objetivação progressiva e no quadriculamento
cada vez mais detalhado dos comportamentos individuais. As instituições disciplinares produziram uma maquinaria de
controle que funcionou como um microscópio do comportamento; as divisões tênues e analíticas por elas realizadas
formaram, em torno dos homens, um aparelho de observação, de registro e de treinamento. Nessas máquinas de observar,
como subdividir os
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olhares, como estabelecer entre eles escalas, comunicações? Como fazer para que, de sua multiplicidade calculada, resulte
um poder homogêneo e contínuo?
O aparelho disciplinar perfeito capacitaria um único olhar tudo ver permanentemente. Um ponto central seria ao
mesmo tempo fonte de luz que iluminasse todas as coisas, e lugar de convergência para tudo o que deve ser sabido: olho
perfeito a que nada escapa e centro em direção ao qual todos os olhares convergem. Foi o que imaginara Ledoux ao
construir Arc-et-Senans: no centro dos edifícios dispostos em círculo e que se abriam todos para o interior, uma alta
construção devia acumular as funções administrativas de direção, policiais de vigilância, econômicas de controle e de
verificação, religiosas de encorajamento à obediência e ao trabalho; de lá viriam todas as ordens, lá seriam registradas
todas as atividades, percebidas e julgadas todas as faltas; e isso imediatamente, sem quase nenhum suporte a não ser uma
geometria exata. Entre todas as razões do prestígio que foi dado, na segunda metade do século XVIII, às arquiteturas
circulares(5), é preciso sem dúvida contar esta: elas exprimiam uma certa utopia política.
Mas o olhar disciplinar teve, de fato, necessidade de escala. Melhor que o círculo, a pirâmide podia atender a duas
exigências: ser bastante completa para formar uma rede sem lacuna - possibilidade em conseqüência de multiplicar seus
degraus, e de espalhá-los sobre toda a superfície a controlar; e entretanto ser bastante discreta para não pesar como uma
massa inerte sobre a atividade a disciplinar e não ser para ela um freio ou um obstáculo; integrar-se ao dispositivo
disciplinar como uma função que lhe aumenta os efeitos possíveis. É preciso decompor suas instâncias, mas para
aumentar sua função produtora. Especificar a vigilância e torná-la funcional.
É o problema das grandes oficinas e das fábricas, onde se organiza um novo tipo de vigilância. É diferente do que se
realizava nos regimes das manufaturas do exterior pêlos inspetores, encarregados de fazer aplicar os regulamentos; tratase
agora de um controle intenso, contínuo; corre ao longo de todo o processo de trabalho; não se efetua - ou não só - sobre
a produção (natureza, quantidade de matérias-primas, tipo de instrumentos utilizados, dimensões e qualidades dos
produtos), mas leva em conta a atividade dos homens, seu conhecimento técnico, a maneira de fazê-lo, sua rapidez, seu
zelo, seu comportamento. Mas é também diferente do controle doméstico do mestre, presente ao lado dos operários e dos
aprendizes; pois é realizado por prepostos, fiscais, controladores e contramestres. À medida que o aparelho de produção
se torna mais importante e mais complexo, à medida que aumentam o número de operários e a divisão do trabalho, as
tarefas de controle se fazem mais necessárias e mais difíceis. Vigiar torna-se então uma função definida, mas deve fazer
parte integrante do processo de produção; deve duplicá-lo em todo o seu comprimento. Um pessoal especializado torna-se
indispensável, constan-temente presente, e distinto dos operários:
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Na grande manufatura, tudo é feito ao toque da campainha, os operários são forçados e reprimidos. Os chefes,
acostumados a ter com eles um ar de superioridade e de comando, que realmente é necessário com a multidão, tratam-nos
duramente ou com desprezo; acontece daí que esses operários ou são mais caros ou apenas passam pela manufatura.(6)
Mas se os operários preferem o enquadramento de tipo corporativo a esse novo regime de vigilância, os patrões,
quanto a eles, reconhecem nisso um elemento indissociável do sistema da produção industrial, da propriedade privada e
do lucro. Em nível de fábrica, de grande forja ou de mina,
os objetos de despesa são tão multiplicados, que a menor infidelidade sobre cada objeto daria no total uma fraude
imensa, que não somente absorveria os lucros, mas levaria atonte dos capitais...; a mínima imperícia desapercebida e por
isso repetida cada dia pode se tornar funesta à empresa ao ponto de anulá-la em muito pouco tempo; [donde o fato que só
agentes, diretamente dependentes do proprietário, e designados só para esta tarefa poderão zelar] para que não haja um
tostão de despesa inútil, para que não haja um momento perdido no dia; seu papel será de vigiar os operários, visitar todas
as obras, instruir o comitê sobre todos os acontecimentos.(7)
A vigilância torna-se um operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no
aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder disciplinar.(8)
Mesmo movimento na reorganização do ensino elementar; especificação da vigilância e integração à relação
pedagógica. O desenvolvimento das escolas paroquiais, o aumento de seu número de alunos, a inexistência de métodos
que permitissem regulamentar simultaneamente a atividade de toda uma turma, a desordem e a confusão que daí
provinham tornavam necessária a organização dos controles. Para ajudar o mestre, Batencour escolhe entre os melhores
alunos toda uma série de "oficiais", intendentes, observadores, monitores, repetidores, recitadores de orações, oficiais de
escrita, recebedores de tinta, capelães e visitadores. Os papéis assim definidos são de duas ordens: uns correspondem a
tarefas materiais (distribuir a tinta e o papel, dar as sobras aos pobres, ler textos espirituais nos dias de festa, etc.); outros
são da ordem da fiscalização:
Os "observadores" devem anotar quem sai do banco, quem conversa, quem não tem o terço ou o livro de orações,
quem se comporta mal na missa, quem comete alguma imodéstia, conversa ou grita na rua; os "admonitores" estão
encarregados de "tomar conta dos que falam ou fazem zunzum ao estudar as lições, dos que não escrevem ou brincam"; os
"visitadores" vão se informar, nas famílias, sobre os alunos que estiveram ausentes ou cometeram faltas graves. Quanto
aos "intendentes", fiscalizam todos os outros oficiais. Só os "repetidores" têm um papel pedagógico: têm que fazer os
alunos ler dois a dois, em voz baixa.(9)
Ora, algumas dezenas de anos mais tarde, Demia volta a uma hierarquia do mesmo tipo, mas as funções de
fiscalização agora são quase todas duplicadas por um papel pedagógico: um submestre ensina a segurar a pena, guia a
mão, corrige os erros e ao mesmo tempo "marca as faltas quando se discute"; outro submestre tem as mesmas tarefas na
classe de leitura; o intendente que controla os outros oficiais e zela pelo comportamento geral é também encarregado de
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"adequar os recém-chegados aos exercícios da escola"; os decuriões fazem recitar as lições e "marcam" os que não as
sabem.(10) Temos aí o esboço de uma instituição tipo escola mútua em que estão integrados no interior de um dispositivo
único três procedimentos: o ensino propriamente dito, a aquisição dos conhecimentos pelo próprio exercício da atividade
pedagógica, enfim uma observação recíproca e hierarquizada. Uma relação de fiscalização, definida e regulada, está
inserida na essência da prática do ensino: não como uma peça trazida ou adjacente, mas como um mecanismo que lhe é
inerente e multiplica sua eficiência.
A vigilância hierarquizada, contínua e funcional não é, sem dúvida, uma das grandes "invenções" técnicas do século
XVIII, mas sua insidiosa extensão deve sua importância às novas mecânicas de poder, que traz consigo. O poder
disciplinar, graças a ela, torna-se um sistema "integrado", ligado do interior à economia e aos fins do dispositivo onde é
exercido. Organiza-se assim como um poder múltiplo, automático e anónimo; pois, se é verdade que a vigilância repousa
sobre indivíduos, seu funcionamento é de uma rede de relações de alto a baixo, mas também até um certo ponto de baixo
para cima e lateralmente; essa rede "sustenta" o conjunto, e o perpassa de efeitos de poder que se apoiam uns sobre os
outros: fiscais perpetuamente fiscalizados. O poder na vigilância hierarquizada das disciplinas não se detém como uma
coisa, não se transfere como uma propriedade; funciona como uma máquina. E se é verdade que sua organização
piramidal lhe dá um "chefe", é o aparelho inteiro que produz "poder" e distribui os indivíduos nesse campo permanente e
contínuo. O que permite ao poder disciplinar ser absolutamente indiscreto, pois está em toda parte e sempre alerta, pois
em princípio não deixa nenhuma parte às escuras e controla continuamente os mesmos que estão encarregados de
controlar; e absolutamente "discreto", pois funciona permanentemente e em grande parte em silêncio. A disciplina faz
"funcionar" um poder relacional que se auto-sustenta por seus próprios mecanismos e substitui o brilho das manifestações
pelo jogo ininterrupto dos olhares calculados. Graças às técnicas de vigilância, a "física" do poder, o domínio sobre o
corpo se efetuam segundo as leis da óticae de mecânica, segundo um jogo de espaços, de linhas, de telas, de feixes, de
graus, e sem recurso, pelo menos em princípio, ao excesso, à força, à violência. Poder que é em aparência ainda menos
"corporal" por ser mais sabiamente "físico".
A SANÇÃO NORMALIZADORA
1) No orfanato do cavaleiro Paulet, as sessões do tribunal que se reunia todas as manhãs davam lugar a um
cerimonial:
Encontramos todos os alunos em formação, alinhamento, imobilidade e silêncio perfeitos. O major, jovem da
nobreza de dezesseis anos, estava fora da fila, a espada na mão; à sua ordem, a tropa se abalou ao passo duplo para formar
o círculo. O conselho se reuniu no centro; cada oficial fez o
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relatório de sua tropa nas vinte e, quatro horas. Os acusados foram admitidos a se justificar; ouviram-se as testemunhas;
deliberou-se e, quando se chegou a um acordo, o major prestou contas em voz alta do número dos culpados, da natureza
dos delitos e dos castigos ordenados. A tropa em seguida desfilou na maior ordem.(11)
Na essência de todos os sistemas disciplinares, funciona um pequeno mecanismo penal. É beneficiado por uma
espécie de privilégio de justiça, com suas leis próprias, seus delitos especificados, suas formas particulares de sanção,
suas instâncias de julgamento. As disciplinas estabelecem uma "infra-penalidade"; quadriculam um espaço deixado vazio
pelas leis; qualificam e reprimem um conjunto de comportamentos que escapava aos grandes sistemas de castigo por sua
relativa indiferença.
Ao entrar os companheiros deverão saudar-se reciprocamente; ...ao sair deverão guardar as mercadorias e
ferramentas que utilizaram e em época de serão apagar a lâmpada; é expressamente proibido divertir os companheiros
com gestos ou de outra maneira; [eles deverão] se comportar honesta e decentemente; [quem se ausentar por mais de
cinco minutos sem avisar o Sr. Oppenheim será] anotado por meio-dia; [e para que fique certo que nada será esquecido
nessa justiça criminal miúda, é proibido fazer] qualquer coisa que puder prejudicar o Sr. Oppenheim e seus
companheiros.(12)
Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências,
interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria,
desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes "in-corretas", gestos não conformes, sujeira), da
sexualidade (imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo é utilizada, a título de punição, toda uma série de processos sutis,
que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a pequenas humilhações. Trata-se ao mesmo tempo de tornar
penalizáveis as frações mais tênues da conduta, e de dar uma função punitiva aos elementos aparentemente indiferentes
do aparelho disciplinar: levando ao extremo, que tudo possa servir para punir a mínima coisa; que cada indivíduo se
encontre preso numa universalidade punível-punidora.
Pela palavra punição, deve-se compreender tudo o que é capaz de fazer as crianças sentir a falta que cometeram,
tudo o que é capaz de humilhá-las, de confundi-las: ...uma certa frieza, uma certa indiferença, uma pergunta, uma
humilhação, uma destituição de posto.(13)
2) Mas a disciplina traz consigo uma maneira específica de punir, e que é apenas um modelo reduzido do tribunal. O
que pertence à penalidade disciplinar é a inobservância, tudo o que está inadequado à regra, tudo o que se afasta dela, os
desvios. É passível de pena o campo indefinido do não-conforme: o soldado comete uma "falta" cada vez que não atinge o
nível requerido; a "falta" do aluno é, assim como um delito menor, uma inaptidão a cumprir suas tarefas. O regulamento
da infantaria prussiana impunha tratar com "todo o rigor possível" o soldado que não tivesse aprendido a manejar
corretamente o fuzil. Do mesmo modo,
149 ▲
quando um escolar não tiver guardado o catecismo da véspera, poder-se-á obrigá-lo a aprender o daquele dia, sem
nenhum erro, e deverá repeti-lo no dia seguinte; ou será obrigado a ouvi-lo de pé ou de joelhos, ou com as mãos postas,
ou então lhe será imposta alguma outra penitência.
A ordem que os castigos disciplinares devem fazer respeitar é de natureza mista: é uma ordem "artificial", colocada
de maneira explícita por uma lei, um programa, um regulamento. Mas é também uma ordem, definida por processos
naturais e observáveis: a duração de um aprendizado, o tempo de um exercício, o nível de aptidão têm por referência uma
regularidade, que é também uma regra. As crianças das escolas cristãs nunca devem ser colocadas numa "lição" de que
ainda não são capazes, pois estariam correndo o perigo de não poder aprender nada; entretanto a duração de cada estágio é
fixada de maneira regulamentar e quem, no fim de três meses, não houver passado para a ordem superior deve ser
colocado, bem em evidência, no banco dos "ignorantes". A punição em regime disciplinar comporta uma dupla referência
jurídico-natural.
3) O castigo disciplinar tem a função de reduzir os desvios. Deve portanto ser essencialmente corretivo. Ao lado das
punições copiadas ao modelo judiciário (multas, açoite, masmorra), os sistemas disciplinares privilegiam as punições que
são da ordem do exercício - aprendizado intensificado, multiplicado, muitas vezes repetido: o regulamento de 1766 para a
infantaria previa que os soldados de primeira classe "que mostrarem alguma negligência ou má vontade serão enviados
para a última classe", e só poderão voltar à primeira, depois de novos exercícios e um novo exame. Como dizia, por seu
lado, J.-B. de La Salle:
O castigo escrito é, de todas as penitências, a mais honesta para um mestre, a mais vantajosa e a que mais agrada aos
pais; [permite] tirar dos próprios erros das crianças maneiras de avançar seus progressos corrigindo-lhes os defeitos;
[àqueles, por exemplo], que não houverem escrito tudo o que deviam escrever, ou não se aplicarem para fazê-lo bem, se
poderá dar algum dever para escrever ou para decorar.(14)
A punição disciplinar é, pelo menos por uma boa parte, isomorfa à própria obrigação; ela é menos a vingança da lei
ultrajada que sua repetição, sua insistência redobrada. De modo que o efeito corretivo que dela se espera apenas de uma
maneira acessória passa pela expiação e pelo arrependimento; é diretamente obtido pela mecânica de um castigo. Castigar
é exercitar.
4) A punição, na disciplina, não passa de um elemento de um sistema duplo: gratificação-sanção. E é esse sistema
que se torna operante no processo de treinamento e de correção. O professor
deve evitar, tanto quanto possível, usar castigos; ao contrário, deve procurar tornar as recompensas mais freqüentes
que as penas, sendo os preguiçosos mais incitados pelo desejo de ser recompensados como os diligentes que pelo receio
dos castigos; por isso será muito proveitoso, quando o mestre for obrigado a usar de castigo, que ele ganhe, se puder, o
coração da criança, antes de aplicar-lhe o castigo.(15)
150 ▲
Este mecanismo de dois elementos permite um certo número de operações características da penalidade disciplinar.
Em primeiro lugar, a qualificação dos comportamentos e dos desempenhos a partir de dois valores opostos do bem e do
mal; em vez da simples separação do proibido, como é feito pela justiça penal, temos uma distribuição entre pólo positivo
e pólo negativo; todo o comportamento cai no campo das boas e das más notas, dos bons e dos maus pontos. É possível,
além disso, estabelecer uma quantificação e uma economia traduzida em números. Uma contabilidade penal,
constantemente posta em dia, permite obter o balanço positivo de cada um. A "justiça" escolar levou muito longe esse
sistema, de que se encontram pelo menos os rudimentos no exército ou nas oficinas. Os irmãos das Escolas Cristãs
haviam organizado uma micro economia dos privilégios e dos castigos escritos:
Os privilégios servirão aos escolares para se isentarem das penitências que lhes serão impostas... Um escolar por
exemplo terá por castigo quatro ou cinco perguntas do catecismo para copiar; ele poderá se libertar dessa penitência
mediante alguns pontos de privilégios; o mestre anotará o número para cada pergunta... Valendo os privilégios um
número determinado de pontos, o mestre tem também outros de menor valor, que servirão como que de troco para os
primeiros. Uma criança, por exemplo, terá um castigo de que se poderá redimir com seis pontos; tem um privilégio de
dez; apresenta-o ao mestre que lhe devolve quatro pontos; e assim outros.(16)
E pelo jogo dessa quantificação, dessa circulação dos adiantamentos e das dívidas, graças ao cálculo permanente das
notas a mais ou a menos, os aparelhos disciplinares hierarquizam, numa relação mútua, os "bons" e os "maus" indivíduos.
Através dessa micro economia de uma penalidade perpétua, opera-se uma diferenciação que não é a dos atos, mas dos
próprios indivíduos, de sua natureza, de suas virtualidades, de seu nível ou valor. A disciplina, ao sancionar os atos com
exatidão, avalia os indivíduos "com verdade"; a penalidade que ela põe em execução se integra no ciclo de conhecimento
dos indivíduos.
5) A divisão segundo as classificações ou os graus tem um duplo papel: marcar os desvios, hierarquizar as
qualidades, as competências e as aptidões; mas também castigar e recompensar. Funcionamento penal da ordenação e
caráter ordinal da sanção. A disciplina recompensa unicamente pelo jogo das promoções que permitem hierarquias e
lugares; pune rebaixando e degradando. O próprio sistema de classificação vale como recompensa ou punição. Havia sido
aperfeiçoado na Escola Militar um sistema complexo de hierarquização "honorífica", em que as roupas traduziam essa
classificação aos olhos de todos, e castigos mais ou menos nobres ou vergonhosos estavam ligados, como marca de
privilégio ou de infâmia, às categorias assim distribuídas. Essa repartição classificatória e penal se efetua a intervalos
próximos por relatórios que os oficiais, os professores, seus adjuntos fazem, sem consideração de idade ou de posto, sobre
"as qualidades morais dos alunos" e sobre "seu comportamento universalmente reconhecido". A primeira classe, dita dos
"muito bons", se
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distingue por uma dragona de prata; sua honra é ser tratada como "uma tropa puramente militar"; militares serão portanto
as punições a que ela tem direito (as detenções e, nos casos graves, a prisão). A segunda classe, dos "bons", usa uma
dragona de seda cor de papoula e prata; são passíveis de prisão e detenção, e também da jaula e de se ajoelhar. A classe
dos "medíocres" tem direito a uma dragona de lã vermelha; às penas precedentes se acrescenta, se for o caso, o burel. A
última classe, a dos "maus", é marcada por uma dragona de lã parda: "os alunos desta classe serão submetidos a todas as
punições usuais no "Hotel" ou todas as que se julgar necessário introduzir, e até à masmorra escura". A isso se
acrescentou durante algum tempo a classe "vergonhosa" para a qual se prepararam regulamentos especiais "de maneira
que os que a compõem estarão sempre separados dos outros e vestidos de burel". Como só o mérito e o comportamento
devem decidir sobre o lugar do aluno, "os das duas últimas classes poderão se orgulhar de subir às primeiras e usar suas
marcas, quando, por testemunhos universais, se reconhecerá que se tornaram dignos disso pela mudança de seu
comportamento e seus progressos; e os das primeiras classes também descerão para as outras se relaxarem e se relatórios
reunidos e desvantajosos mostrarem que não merecem mais as distribuições e prerrogativas das primeiras classes...". A
classificação que pune deve tender a se extinguir. A "classe vergonhosa" só existe para desaparecer: "A fim de julgar a
espécie de conversão dos alunos da classe vergonhosa que nela se comportam bem", eles serão reintroduzidos nas outras
classes, suas roupas lhes serão devolvidas; mas ficarão com seus camaradas de infâmia durante as refeições e as
recreações; aí permanecerão se não continuarem a se comportar bem; daí "sairão absolutamente, se derem satisfação tanto
nessa classe quanto nessa divisão". Duplo efeito conseqüentemente dessa penalidade hierarquizante: distribuir os alunos
segundo suas aptidões e seu comportamento, portanto segundo o uso que se poderá fazer deles quando saírem da escola;
exercer sobre eles uma pressão constante, para que se submetam todos ao mesmo modelo, para que sejam obrigados todos
juntos "à subordinação, à docilidade, à atenção nos estudos e nos exercícios, e à exata prática dos deveres e de todas as
partes da disciplina". Para que, todos, se pareçam.
Em suma, a arte de punir, no regime do poder disciplinar, não visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a
repressão. Põe em funcionamento cinco operações bem distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos
singulares a um conjunto, que é ao mesmo tempo campo de comparação, espaço de diferenciação e princípio de uma
regra a seguir. Diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros e em função dessa regra de conjunto -que se deve fazer
funcionar como base mínima, como média a respeitar ou como o ótimo de que se deve chegar perto. Medir em termos
quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades, o nível, a "natureza" dos indivíduos.
152 ▲
Fazer funcionar, através dessa medida "valorizadora", a coação de uma conformidade a realizar. Enfim traçar o
limite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira externa do anormal (a "classe vergonhosa" da
Escola Militar). A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições
disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza.
Opõe-se então termo por termo a uma penalidade judiciária que tem a função essencial de tomar por referência, não
um conjunto de fenômenos observáveis, mas um corpo de leis e de textos que é preciso memorizar; não diferenciar
indivíduos, mas especificar atos num certo número de categorias gerais; não hierarquizar mas fazer funcionar pura e
simplesmente a oposição binária do permitido e do proibido; não homogeneizar, mas realizar a partilha, adquirida de uma
vez por todas, da condenação. Os dispositivos disciplinares produziram uma "penalidade da norma" que é irredutível em
seus princípios e seu funcionamento à penalidade tradicional da lei. O pequeno tribunal que parece ter sede permanente
nos edifícios da disciplina, e às vezes toma a forma teatral do grande aparelho judiciário, não deve iludir: ele não conduz,
a não ser por algumas continuidades formais, os mecanismos da justiça criminal até à trama da existência cotidiana; ou ao
menos não é isso o essencial; as disciplinas inventaram - apoiando-se aliás sobre uma série de processos muito antigos
-um novo funcionamento punitivo, e é este que pouco a pouco investiu o grande aparelho exterior que parecia reproduzir
modesta ou ironicamente. O funcionamento jurídico-antropológico que toda a história da penalidade moderna revela não
se origina na superposição à justiça criminal das ciências humanas, e nas exigências próprias a essa nova racionalidade ou
ao humanismo que ela traria consigo; ele tem seu ponto de formação nessa técnica disciplinar que fez funcionar esses
novos mecanismos de sanção normalizadora.
Aparece, através das disciplinas, o poder da Norma. Nova lei da sociedade moderna? Digamos antes que desde o
século XVIII ele veio unir-se a outros poderes obrigando-os a novas delimitações; o da Lei, o da Palavra e do Texto, o da
Tradição. O Normal se estabelece como princípio de coerção no ensino, com a instauração de uma educação
estandardizada e a criação das escolas normais; estabelece-se no esforço para organizar um corpo médico e um quadro
hospitalar da nação capazes de fazer funcionar normas gerais de saúde; estabelece-se na regularização dos processos e dos
produtos industriais.(18) Tal como a vigilância e junto com ela, a regulamentação é um dos grandes instrumentos de
poder no fim da era clássica. As marcas que significavam status, privilégios, filiações, tendem a ser substituídas ou pelo
menos acrescidas de um conjunto de graus de normalidade, que são sinais de filiação a um corpo social homogêneo, mas
que têm em si mesmos um papel de classificação, de hierarquização
153 ▲
e de distribuição de lugares. Em certo sentido, o poder de regulamentação obriga à homogeneidade; mas individualiza,
permitindo medir os desvios, determinar os níveis, fixar as especialidades e tornar úteis as diferenças, ajustando-as umas
às outras. Compreende-se que o poder da norma funcione facilmente dentro de um sistema de igualdade formal, pois
dentro de uma homogeneidade que é a regra, ele introduz, como um imperativo útil e resultado de uma medida, toda a
gradação das diferenças individuais.
O EXAME
O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante,
uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual
eles são diferenciados e sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente
ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o
estabelecimento da verdade. No coração dos processos de disciplina, ele manifesta a sujeição dos que são percebidos
como objetos e a objetivação dos que se sujeitam. A superposição das relações de poder e das de saber assume no exame
todo o seu brilho visível. Mais uma inovação da era clássica que os historiadores deixaram na sombra. Faz-se a história
das experiências com cegos de nascença, meninos-lobo ou com a hipnose. Mas quem fará a história mais geral, mais
vaga, mais determinante também, do "exame" - de seus rituais, de seus métodos, de seus personagens e seus papéis, de
seus jogos de perguntas e respostas, de seus sistemas de notas e de classificação? Pois nessa técnica delicada estão
comprometidos todo um campo de saber, todo um tipo de poder. Fala-se muitas vezes da ideologia que as "ciências"
humanas pressupõem, de maneira discreta ou declarada. Mas sua própria tecnologia, esse pequeno esquema operatório
que tem tal difusão (da psiquiatria à pedagogia, do diagnóstico das doenças à contratação de mão-de-obra), esse processo
tão familiar do exame, não põe em funcionamento, dentro de um só mecanismo, relações de poder que permitem obter e
constituir saber? O investimento político não se faz simplesmente ao nível da consciência, das representações e no que
julgamos saber, mas ao nível daquilo que torna possível algum saber.
Uma das condições essenciais para a liberação epistemológica da medicina no fim do século XVIII foi a
organização do hospital como aparelho de "examinar". O ritual da visita é uma de suas formas mais evidentes. No século
XVII, o médico, vindo de fora, juntava a sua inspeção vários outros controles - religiosos, administrativos; não
participava absolutamente da gestão cotidiana do hospital. Pouco a pouco a visita tornou-se mais regular, mais rigorosa,
principalmente mais extensa: ocupou uma parte cada vez mais importante do
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funcionamento hospitalar. Em 1661, o médico do Hotel-Dieu de Paris era encarregado de uma visita por dia; em 1687, um
médico "expectante" devia examinar, à tarde, certos doentes mais graves. Os regulamentos do século XVIII determinam
os horários da visita, e sua duração (duas horas no mínimo); insistem para que um rodízio permita que seja realizado
todos os dias "inclusive domingo de Páscoa"; enfim em 1771 institui-se um médico residente, encarregado de "prestar
todos os serviços de seu estado, tanto de noite como de dia, nos intervalos entre uma visita e outra de um médico de
fora".(19) A inspeção de antigamente, descontínua e rápida, se transforma em uma observação regular que coloca o
doente em situação de exame quase perpétuo. Com duas conseqüências: na hierarquia interna, o médico, elemento até
então exterior, começa a suplantar o pessoal religioso e a lhe confiar um papel determinado mas subordinado, na técnica
do exame; aparece então a categoria do "enfermeiro"; quanto ao próprio hospital, que era antes de tudo um local de
assistência, vai tornar-se local de formação e aperfeiçoamento científico: viravolta das relações de poder e constituição de
um saber. O hospital bem "disciplinado" constituirá o local adequado da "disciplina" médica; esta poderá então perder seu
caráter textual e encontrar suas referências menos na tradição dos autores decisivos que num campo de objetos
perpetuamente oferecidos ao exame.
Do mesmo modo, a escola torna-se uma espécie de aparelho de exame ininterrupto que acompanha em todo o seu
comprimento a operação do ensino. Tratar-se-á cada vez menos daquelas justas em que os alunos defrontavam forças e
cada vez mais de uma comparação perpétua de cada um com todos, que permite ao mesmo tempo medir e sancionar. Os
Irmãos das Escolas Cristãs queriam que seus alunos fizessem provas de classificação todos os dias da semana: o primeiro
dia para a ortografia, o segundo para a aritmética, o terceiro para o catecismo da manhã, e de tarde para a caligrafia, etc.
Além disso, devia haver uma prova todo mês, para designar os que merecessem ser submetidos ao exame do inspetor.(20)
Desde 1775, há na escola de Ponts et Chaussées 16 exames por ano: 3 de matemática, 3 de arquitetura, 3 de desenho, 2 de
caligrafia, l de corte de pedras, l de estilo, l de levantamento de planta, l de nivelamento, l de medição de edifícios.(21) O
exame não se contenta em sancionar um aprendizado; é um de seus fatores permanentes: sustenta-o segundo um ritual de
poder constantemente renovado. O exame permite ao mestre, ao mesmo tempo em que transmite seu saber, levantar um
campo de conhecimentos sobre seus alunos. Enquanto que a prova com que terminava um aprendizado na tradição
corporativa validava uma aptidão adquirida - a "obra-prima" autentificava uma transmissão de saber já feita - o exame é
na escola uma verdadeira e constante troca de saberes: garante a passagem dos conhecimentos do mestre ao aluno, mas
retira do aluno um saber destinado e reservado ao mestre. A escola torna-se o local de elaboração da pedagogia. E do
mesmo modo como o
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processo do exame hospitalar permitiu a liberação epistemológica da medicina, a era da escola "examinatória" marcou o
início de uma pedagogia que funciona como ciência. A era das inspeções e das manobras indefinidamente repetidas, no
exército, marcou também o desenvolvimento de um imenso saber tático que teve efeito na época das guerras
napoleônicas.
O exame supõe um mecanismo que liga um certo tipo de formação de saber a uma certa forma de exercício do
poder.
l) O exame inverte a economia da visibilidade no exercício do poder: tradicionalmente, o poder é o que se vê, se
mostra, se manifesta e, de maneira paradoxal, encontra o princípio de sua força no movimento com o qual a exibe.
Aqueles sobre o qual ele é exercido podem ficar esquecidos; só recebem luz daquela parte do poder que lhes é concedida,
ou do reflexo que mostram um instante. O poder disciplinar, ao contrário, se exerce tornando-se invisível: em
compensação impõe aos que submete um princípio de visibilidade obrigatória. Na disciplina, são os súditos que têm que
ser vistos. Sua iluminação assegura a garra do poder que se exerce sobre eles. É o fato de ser visto sem cessar, de sempre
poder ser visto, que mantém sujeito o indivíduo disciplinar. E o exame é a técnica pela qual o poder, em vez de emitir os
sinais de seu poderio, em vez de impor sua marca a seus súditos, capta-os num mecanismo de objetivação. No espaço que
domina, o poder disciplinar manifesta, para o essencial, seu poderio organizando os objetos. O exame vale como
cerimônia dessa objetivação.
Até então o papel da cerimônia política fora dar lugar à manifestação ao mesmo tempo excessiva e regulamentada
do poder; era uma expressão suntuosa de poderio, uma "despesa" ao mesmo tempo exagerada e codificada onde o poder
se revigorava. Era sempre mais ou menos aparentada ao triunfo. A aparição solene do soberano trazia consigo qualquer
coisa da consagração do coroamento, do retorno da vitória; até mesmo os faustos funerários se desenrolavam no brilho do
poderio exibido. Já a disciplina tem seu próprio tipo de cerimônia. Não é o triunfo, é a revista, é a "parada", forma
faustosa do exame. Os "súditos" são aí oferecidos como "objetos" à observação de um poder que só se manifesta pelo
olhar. Não recebem diretamente a imagem do poderio soberano; apenas mostram seus efeitos - e por assim dizer em baixo
relevo -sobre seus corpos tornados exatamente legíveis e dóceis. Em 15 de março de 1666, Luís XIV passa sua primeira
revista militar: 18.000 homens, "uma das ações mais brilhantes do reino", e que passava por ter "mantido toda a Europa
inquieta". Muitos anos depois, foi cunhada uma medalha para comemorar o acontecimento.(22) Traz, no exergo:
Disciplina militaris restituía e na legenda: Prolusio ad viciarias. À direita, o rei, com o pé direito para a frente, comanda
ele próprio o exercício com um bastão. Na metade esquerda, várias fileiras de
156 ▲
soldados são vistos de frente, e alinhados no sentido da profundidade; eles estendem o braço na altura do ombro e
seguram o fuzil exatamente na vertical: avançam a perna direita e estão com o pé esquerdo voltado para fora. No chão,
linhas se cortam em ângulo reto, representando, sob os pés dos soldados, grandes quadrados que servem de referência
para as diversas fases e posições do exercício. Bem no fundo, esboça-se uma arquitetura clássica. As colunas do palácio
prolongam as constituídas pêlos homens alinhados e pêlos fuzis levantados, como as lajes do calçamento prolongam as
linhas do exercício. Mas acima da balaustrada que coroa o edifício, estátuas representam personagens que dançam: linhas
sinuosas, gestos arredondados, cortinados. O mármore é percorrido por movimentos, cujo princípio de unidade é
harmônico. Já os homens estão imobilizados numa atitude uniformemente repetida de fileira em fileira e de linha em
linha: unidade tática. A ordem da arquitetura, que liberta em seu topo as figuras de dança, impõe no solo suas regras e
geometria aos homens disciplinados. As colunas do poder. "Bem", dizia um dia o grão-duque Michel diante de quem as
tropas haviam acabado de manobrar, "mas eles estão respirando".(23)
Tomemos essa medalha como testemunho do momento em que se reúnem de maneira paradoxal mas significativa a
figura mais brilhante do poder soberano e a emergência dos rituais próprios ao poder disciplinar. A visibilidade mal
sustentável do monarca se torna em visibilidade inevitável dos súditos. E essa inversão de visibilidade no funcionamento
das disciplinas é que realizará o exercício do poder até em seus graus mais baixos. Entramos na era do exame
interminável e da objetivação limitadora.
2) O exame faz também a individualidade entrar num campo documentário: Seu resultado é um arquivo inteiro com
detalhes e minúcias que se constitui ao nível dos corpos e dos dias. O exame que coloca os indivíduos num campo de
vigilância situa-os igualmente numa rede de anotações escritas; compromete-os em toda uma quantidade de documentos
que os captam e os fixam. Os procedimentos de exame são acompanhados imediatamente de um sistema de registro
intenso e de acumulação documentária. Um "poder de escrita" é constituído como uma peça essencial nas engrenagens da
disciplina. Em muitos pontos, modela-se pêlos métodos tradicionais da documentação administrativa. Mas com técnicas
particulares e inovações importantes. Umas se referem aos métodos de identificação, de assimilação, ou de descrição. Era
esse o problema do exército, onde urgia encontrar os desertores, evitar as convocações repetidas, corrigir as listas fictícias
apresentadas pêlos oficiais, conhecer os serviços e o valor de cada um, estabelecer com segurança o balanço dos
desaparecidos e mortos. Era esse o problema dos hospitais, onde era preciso reconhecer os doentes, expulsar os
simuladores, acompanhar a evolução das doenças, verifi-
157 ▲
car a eficácia dos tratamentos, descobrir os casos análogos e os começos de epidemias. Era o problema dos
estabelecimentos de ensino, onde era forçoso caracterizar a aptidão de cada um, situar seu nível e capacidades, indicar a
utilização eventual que se pode fazer dele.
A função do registro é fornecer indicações de tempo e lugar, dos hábitos das crianças, de seu progresso na piedade,
no catecismo, nas letras de acordo com o tempo na Escola, seu espírito e critério que ele encontrará marcado desde sua
recepção.(24)
Daí a formação de uma série de códigos da individualidade disciplinar que permitem transcrever, homogeneizandoos,
os traços individuais estabelecidos pelo exame: código físico da qualificação, código médico dos sintomas, código
escolar ou militar dos comportamentos e dos desempenhos. Esses códigos eram ainda muito rudimentares, em sua forma
qualitativa ou quantitativa, mas marcam o momento de uma primeira "formalização" do individual dentro de relações do
poder.
As outras inovações da escrita disciplinar se referem à correlação desses elementos, à acumulação dos documentos,
sua seriação, à organização de campos comparativos que permitam classificar, formar categorias, estabelecer médias,
fixar normas. Os hospitais do século XVIII foram particularmente grandes laboratórios para os métodos escriturários e
documentários. A manutenção dos registros, sua especificação, os modos de transcrição de uns para os outros, sua
circulação durante as visitas, sua confrontação durante as reuniões regulares dos médicos e dos administradores, a
transmissão de seus dados a organismos de centralização (ou no hospital ou no escritório central dos serviços
hospitalares), a contabilidade das doenças, das curas, dos falecimentos ao nível de um hospital de uma cidade e até da
nação inteira fizeram parte integrante do processo pelo qual os hospitais foram submetidos ao regime disciplinar. Entre as
condições fundamentais de uma boa "disciplina" médica nos dois sentidos da palavra, é preciso incluir os processos de
escrita que permitem integrar, mas sem que se percam, os dados individuais em sistemas cumulativos; fazer de maneira
que a partir de qualquer registro geral se possa encontrar um indivíduo e que inversamente cada dado do exame individual
possa repercutir nos cálculos de conjunto.
Graças a todo esse aparelho de escrita que o acompanha, o exame abre duas possibilidades que são correlatas: a
constituição do indivíduo como objeto descritível, analisável, não contudo para reduzi-lo a traços "específicos", como
fazem os naturalistas a respeito dos seres vivos; mas para mantê-lo em seus traços singulares, em sua evolução particular,
em suas aptidões ou capacidades próprias, sob o controle de um saber permanente; e por outro lado a constituição de um
sistema comparativo que permite a medida de fenômenos globais, a descrição de grupos, a caracterização de fatos
coletivos, a estimativa dos desvios dos indivíduos entre si, sua distribuição numa "população".
158 ▲
Importância decisiva, conseqüentemente, dessas pequenas técnicas de anotação, de registro, de constituição de processos,
de colocação em colunas que nos são familiares mas que permitiram a liberação epistemológica das ciências do indivíduo.
Sem dúvida temos razão em colocar o problema aristotélico: é possível uma ciência do indivíduo, e legítima? Para um
grande problema, grandes soluções talvez. Mas há o pequeno problema histórico da emergência, pelo fim do século
XVIII, do que se poderia colocar sob a sigla de ciências "clínicas"; problema da entrada do indivíduo (e não mais da
espécie) no campo do saber; problema da entrada de descrição singular, do interrogatório, da anamnese, do "processo" no
funcionamento geral do discurso científico. Para essa simples questão de fato, é preciso sem dúvida uma resposta sem
grandeza: é preciso ver o lado desses processos de escrita e de registro; é preciso ver o lado dos mecanismos de exame, o
lado da formação dos dispositivos de disciplina e da formação de um novo tipo de poder sobre os corpos. O nascimento
das ciências do homem? Aparentemente ele deve ser procurado nesses arquivos de pouca glória onde foi elaborado o jogo
moderno das coerções sobre os corpos, os gestos, os comportamentos.
3) O exame, cercado de todas as suas técnicas documentárias, faz de cada indivíduo um "caso ": um caso que ao
mesmo tempo constitui um objeto para o conhecimento e uma tomada para o poder. O caso não é mais, como na
casuística ou na jurisprudência, um conjunto de circunstâncias que qualificam um ato e podem modificar a aplicação de
uma regra, é o indivíduo tal como pode ser descrito, mensurado, medido, comparado a outros e isso em sua própria
individualidade; e é também o indivíduo que tem que ser treinado ou retreinado, tem que ser classificado, normalizado,
excluído, etc.
Durante muito tempo a individualidade qualquer - a de baixo e de todo mundo - permaneceu abaixo do limite de
descrição. Ser olhado, observado, contado detalhadamente, seguido dia por dia por uma escrita ininterrupta era um
privilégio. A crônica de um homem, o relato de sua vida, sua historiografia redigida no desenrolar de sua existência
faziam parte dos rituais do poderio. Os procedimentos disciplinares reviram essa relação, abaixando o limite da
individualidade descritível e fazem dessa descrição um meio de controle e um método de dominação. Não mais
monumento para uma memória futura, mas documento para uma utilização eventual. E essa nova descritibilidade é ainda
mais marcada, porquanto é estrito o enquadramento disciplinar: a criança, o doente, o louco, o condenado se tornarão,
cada vez mais facilmente a partir do século XVIII e segundo uma via que é a dos mecanismos de disciplina, objeto de
descrições individuais e de relatos biográficos. Esta transcrição por escrito das existências reais não é mais um processo
de heroificação; funciona como processo de objetivação e de sujeição. A vida cuidadosamente estudada dos
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doentes mentais ou dos delinqüentes se origina, como a crônica dos reis ou a epopéia dos grandes bandidos populares, de
uma certa função política da escrita, mas numa técnica de poder totalmente diversa.
O exame como fixação ao mesmo tempo ritual e "científica" das diferenças individuais, como aposição de cada um
à sua própria singularidade (em oposição à cerimônia onde se manifestam os status, os nascimentos, os privilégios, as
funções, com todo o brilho de suas marcas) indica bem a aparição de uma nova modalidade de poder em que cada um
recebe como status sua própria individualidade, e onde está estatutariamente ligado aos traços, às medidas, aos desvios, às
"notas" que o caracterizam e fazem dele, de qualquer modo, um "caso".
Finalmente, o exame está no centro dos processos que constituem o indivíduo como efeito e objeto de poder, como
efeito e objeto de saber. É ele que, combinando vigilância hierárquica e sanção normalizadora, realiza as grandes funções
disciplinares de repartição e classificação, de extração máxima das forças e do tempo, de acumulação genética contínua,
de composição ótima das aptidões. Portanto, de fabricação da individualidade celular, orgânica, genética e combinatória.
Com ele se ritualizam aquelas disciplinas que se pode caracterizar com uma palavra dizendo que são uma modalidade de
poder para o qual a diferença individual é pertinente.
As disciplinas marcam o momento em que se efetua o que se poderia chamar a troca do eixo político da
individualização. Nas sociedades de que o regime feudal é apenas um exemplo, pode-se dizer que a individualização é
máxima do lado em que a soberania é exercida e nas regiões superiores do poder. Quanto mais o homem é detentor de
poder ou de privilégio, tanto mais é marcado como indivíduo, por rituais, discursos, ou representações plásticas. O "nome
de família" e a genealogia que situam, dentro de um conjunto de parentes, a realização de proezas que manifestam a
superioridade das forças e que são imortalizadas por relatos, as cerimônias que marcam, por sua ordenação, as relações de
poder, os monumentos ou as doações que dão uma outra vida depois da morte, os faustos e os excessos da despesa, os
múltiplos laços de vassalagem e de suserania que se entrecruzam, tudo isso constitui outros procedimentos de uma
individualização "ascendente". Num regime disciplinar, a individualização, ao contrário, é "descendente" à medida que o
poder se torna mais anônimo e mais funcional, aqueles sobre os quais se exerce tendem a ser mais fortemente
individualizados; e por fiscalizações mais que por cerimônias, por observações mais que por relatos comemorativos, por
medidas comparativas que têm a "norma" como referência, e não por genealogias que dão os
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ancestrais como pontos de referência; por "desvios" mais que por proezas. Num sistema de disciplina, a criança é mais
individualizada que o adulto, o doente o é antes do homem são, o louco e delinqüente mais que o normal e o nãodelinqüente.
É em direção aos primeiros, em todo caso, que se voltam em nossa civilização todos os mecanismos
individualizantes; e quando se quer individualizar o adulto são, normal e legalista, agora é sempre perguntando-lhe o que
ainda há nele de criança, que loucura secreta o habita, que crime fundamental ele quis cometer. Todas as ciências, análises
ou práticas com radical "psico", têm seu lugar nessa troca histórica dos processos de individualização. O momento em que
passamos de mecanismos histórico-rituais de formação da individualidade a mecanismos científico-disciplinares, em que
o normal tomou o lugar do ancestral, e a medida o lugar do status, substituindo assim a individualidade do homem
memorável pela do homem calculável, esse momento em que as ciências do homem se tornaram possíveis, é aquele em
que foram postas em funcionamento uma nova tecnologia do poder e uma outra anatomia política do corpo. E se da Idade
Média mais remota até hoje a "aventura" é o relato da individualidade, a passagem do épico ao romanesco, do feito
importante à singularidade secreta, dos longos exílios à procura interior da infância, das justas aos fantasmas, se insere
também na formação de uma sociedade disciplinar. São as desgraças do pequeno Hans e não mais "o bom Henriquinho"
que contam a aventura de nossa infância. O Roman de La Rose é escrito hoje em dia por Mary Barnes; no lugar de
Lancelot, o presidente Schreber.
Muitas vezes se afirma que o modelo de uma sociedade que teria indivíduos como elementos constituintes é tomada
às formas jurídicas abstraias do contrato e da troca. A sociedade comercial se teria representado como uma associação
contratual de sujeitos jurídicos isolados. Talvez. A teoria política dos séculos XVII e XVIII parece com efeito obedecer a
esse esquema. Mas não se deve esquecer que existiu na mesma época uma técnica para constituir efetivarhente os
indivíduos como elementos correlatos de um poder e de um saber. O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma
representação "ideológica" da sociedade; mas é também uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder
que se chama a "disciplina". Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele "exclui",
"reprime", "recalca", "censura", "abstrai", "mascara", "esconde". Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz
campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção.
Mas emprestar tal poderio às astúcias muitas vezes minúsculas da disciplina, não seria lhes conceder muito? De
onde podem elas tirar tão vastos efeitos?
161 ▲
CAPÍTULO III
O PANOPTISMO
Eis as medidas que se faziam necessárias, segundo um regulamento do fim do século XVII, quando se declarava a
peste numa cidade.(1)
Em primeiro lugar, um policiamento espacial estrito: fechamento, claro, da cidade e da "terra", proibição de sair sob
pena de morte, fim de todos os animais errantes; divisão da cidade em quarteirões diversos onde se estabelece o poder de
um intendente. Cada rua é colocada sob a autoridade de um síndico; ele a vigia; se a deixar, será punido de morte. No dia
designado, ordena-se todos que se fechem em suas casas: proibido sair sob pena de morte. O próprio síndico vem fechar,
por fora, a porta de cada casa; leva a chave, que entrega ao intendente de quarteirão; este a conserva até o fim da
quarentena. Cada família terá feito suas provisões; mas para o vinho e o pão, se terá preparado entre a rua e o interior das
casas pequenos canais de madeira, que permitem fazer chegar a cada um sua ração, sem que haja comunicação entre os
fornecedores e os habitantes; para a carne, o peixe e as verduras, utilizam-se roldanas e cestas. Se for absolutamente
necessário sair das casas, tal se fará por turnos, e evitando-se qualquer encontro. Só circulam os intendentes, os síndicos,
os soldados da guarda e também entre as casas infectadas, de um cadáver ao outro, os "corvos", que tanto faz abandonar à
morte: é "gente vil, que leva os doentes, enterra os mortos, limpa e faz muitos ofícios vis e abjetos". Espaço recortado,
imóvel, fixado. Cada qual se prende a seu lugar. E, caso se mexa, corre perigo de vida, por contágio ou punição.
A inspeção funciona constantemente. O olhar está alerta em toda parte: "Um corpo de milícia considerável,
comandado por bons oficiais e gente de bem", corpos de guarda nas portas, na prefeitura e em todos os bairros para tornar
mais pronta a obediência do povo, e mais absoluta a autoridade dos magistrados, "assim como para vigiar todas as
desordens, roubos e pilhagens". Às portas, postos de vigilância; no fim de cada rua, sentinelas. Todos os dias, o intendente
visita o quarteirão de que está encarregado, verifica se os síndicos cumprem suas tarefas, se os habitantes têm queixas;
eles "fiscalizam seus atos". Todos os dias também o síndico passa na rua por que é responsável; pára diante de cada casa;
manda colocar todos os moradores às janelas (os que habitassem nos fundos teriam designada uma janela dando para a
rua onde ninguém mais poderia se mostrar); chama cada um por seu nome; informa-se do estado de todos, um por um -
"no que os habitantes serão obrigados a dizer a verdade,
162 ▲
sob pena de morte"; se alguém não se apresentar à janela, o síndico deve perguntar a razão: "Ele assim descobrirá
facilmente se escondem mortos ou doentes". Cada um trancado em sua gaiola, cada um à sua janela, respondendo a seu
nome e se mostrando quando é perguntado, é a grande revista dos mortos e dos vivos.
Essa vigilância se apóia num sistema de registro permanente: relatórios dos síndicos aos intendentes, dos
intendentes aos almotacés ou ao prefeito. No começo da "apuração" se estabelece o papel de todos os habitantes presentes
na cidade um por um; nela se anotam "o nome, a idade, o sexo, sem exceção de condição"; um exemplar para o intendente
do quarteirão, um segundo no escritório da prefeitura, um outro para o síndico poder fazer a chamada diária. Tudo o que é
observado durante as visitas, mortes, doenças, reclamações, irregularidades, é anotado e transmitido aos intendentes e
magistrados. Estes têm o controle dos cuidados médicos; e um médico responsável; nenhum outro médico pode cuidar,
nenhum boticário preparar os remédios, nenhum confessor visitar um doente, sem ter recebido dele um bilhete escrito
"para impedir que se escondam e se tratem, à revelia dos magistrados, doentes do contágio". O registro do patológico
deve ser constante e centralizado. A relação de cada um com sua doença e sua morte passa pelas instâncias do poder, pelo
registro que delas é feito, pelas decisões que elas tomam.
Cinco ou seis dias depois do começo da quarentena procede-se à purificação das casas, uma por uma. Manda-se sair
todos os moradores; em cada cômodo levantam-se ou penduram-se "os móveis e as mercadorias"; espalha-se perfume; ele
é queimado depois de bem fechadas as janelas, as portas e até os buracos de fechadura que se enche de cera. Finalmente
fecha-se a casa inteira enquanto se consome o perfume; como na entrada, revistam-se os perfumadores "na presença dos
moradores da casa, para ver se eles não têm à saída qualquer coisa que não tivessem ao entrar". Quatro horas depois, os
moradores podem entrar em casa.
Esse espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo,
onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registrados, onde um trabalho
ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica
contínua, onde cada indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os
mortos - isso tudo constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar. A ordem responde à peste; ela tem como
função desfazer todas as confusões: a da doença que se transmite quando os corpos se misturam; a do mal que se
multiplica quando o medo e a morte desfazem as proibições. Ela prescreve a cada um seu lugar, a cada um seu corpo, a
cada um sua doença e sua morte,
163 ▲
a cada ura seu bem, por meio de um poder onipresente e onisciente que se subdivide ele mesmo de maneira regular e
ininterrupta até a determinação final do indivíduo, do que o caracteriza, do que lhe pertence, o do que lhe acontece.
Contra a peste que é mistura, a disciplina faz valer seu poder que é de análise. Houve em torno da peste uma ficção
literária da festa: as leis suspensas, os interditos levantados, o frenesi do tempo que passa, os corpos se misturando sem
respeito, os indivíduos que se desmascaram, que abandonam sua identidade estatutária e a figura sob a qual eram
reconhecidos, deixando aparecer uma verdade totalmente diversa. Mas houve também um sonho político da peste, que era
exatamente o contrário: não a festa coletiva, mas as divisões estritas; não as leis transgredidas, mas a penetração do
regulamento até nos mais finos detalhes da existência e por meio de uma hierarquia completa que realiza o funcionamento
capilar do poder; não as máscaras que se colocam e se retiram, mas a determinação a cada um de seu "verdadeiro" nome,
de seu "verdadeiro" lugar, de seu "verdadeiro" corpo e da "verdadeira" doença. Apeste como forma real e, ao mesmo
tempo, imaginária da desordem tem a disciplina como correlato médico e político. Atrás dos dispositivos disciplinares se
lê o terror dos "contágios", da peste, das revoltas, dos crimes, da vagabundagem, das deserções, das pessoas que aparecem
e desaparecem, vivem e morrem na desordem.
Se é verdade que a lepra suscitou modelos de exclusão que deram até um certo ponto o modelo e como que a forma
geral do grande Fechamento, já a peste suscitou esquemas disciplinares. Mais que a divisão maciça e binária entre uns e
outros ela recorre a separações múltiplas, a distribuições individualizantes, a uma organização aprofundada das
vigilâncias e dos controles, a uma intensificação e ramificação do poder. O leproso é visto dentro de uma prática da
rejeição, do exílio-cerca; deixa-se que se perca lá dentro como numa massa que não tem muita importância diferenciar; os
pestilentos são considerados num policiamento tático meticuloso onde as diferenciações individuais são os efeitos
limitantes de um poder que se multiplica, se articula e se subdivide. O grande fechamento por um lado; o bom
treinamento por outro. A lepra e sua divisão; a peste e seus recortes. Uma é marcada; a outra, analisada e repartida. O
exílio do leproso e a prisão da peste não trazem consigo o mesmo sonho político. Um é o de uma comunidade pura, o
outro, o de uma sociedade disciplinar. Duas maneiras de exercer poder sobre os homens, de controlar suas relações, de
desmanchar suas perigosas misturas. A cidade pestilenta, atravessada inteira pela hierarquia, pela vigilância, pelo olhar,
pela documentação, a cidade imobilizada no funcionamento de um poder extensivo que age de maneira diversa sobre
todos os corpos individuais - é a utopia da cidade perfeitamente governada. A peste (pelo menos aquela que permanece no
estado de previsão) é a prova durante a qual se pode definir idealmente o exercício do
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poder disciplinar. Para fazer funcionar segundo a pura teoria os direitos e as leis, os juristas se punham imaginariamente
no estado de natureza; para ver funcionar suas disciplinas perfeitas, os governantes sonhavam com o estado de peste. No
fundo dos esquemas disciplinares, a imagem da peste vale por todas as confusões e desordens; assim como a imagem da
lepra, do contato a ser cortado, está no fundo do esquema de exclusão.
Esquemas diferentes, portanto, mas não incompatíveis. Lentamente, vemo-los se aproximarem; e é próprio do
século XIX ter aplicado ao espaço de exclusão de que o leproso era o habitante simbólico (e os mendigos, os vagabundos,
os loucos, os violentos formavam a população real) a técnica de poder própria do "quadriculamento" disciplinar. Tratar os
"leprosos" como "pestilentos", projetar recortes finos da disciplina sobre o espaço confuso do internamento, trabalhá-lo
com os métodos de repartição analítica do poder, individualizar os excluídos, mas utilizar processos de individualização
para marcar exclusões - isso é o que foi regularmente realizado pelo poder disciplinar desde o começo do século XIX: o
asilo psiquiátrico, a penitenciária, a casa de correção, o estabelecimento de educação vigiada, e por um lado os hospitais,
de um modo geral todas as instâncias de controle individual funcional num duplo modo: o da divisão binária e da
marcação (louco-não louco; perigoso-inofensivo; normal-anormal); e o da determinação coercitiva, da repartição
diferencial (quem é ele; onde deve estar; como caracterizá-lo, como reconhecê-lo; como exercer sobre ele, de maneira
individual, uma vigilância constante, etc.). De um lado, "pestilentam-se" os leprosos; impõem-se aos excluídos a tática
das disciplinas individualizantes; e de outro lado a universalidade dos controles disciplinares permite marcar quem é
"leproso" e fazer funcionar contra ele os mecanismos dualistas da exclusão. A divisão constante do normal e do anormal,
a que todo indivíduo é submetido, leva até nós, e aplicando-os a objetos totalmente diversos, a marcação binária e o exílio
dos leprosos; a existência de todo um conjunto de técnicas e de instituições que assumem como tarefa medir, controlar e
corrigir os anormais, faz funcionar os dispositivos disciplinares que o medo da peste chamava. Todos os mecanismos de
poder que, ainda em nossos dias, são dispostos em torno do anormal, para marcá-lo como para modificá-lo, compõem
essas duas formas de que longinquamente derivam.
O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia uma
construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a
construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a
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espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para
o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela
trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da
torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas,
tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O
dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o
princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções - trancar, privar de luz e esconder - só se conserva a
primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente
protegia. A visibilidade é uma armadilha.
O que permite em primeiro lugar - como efeito negativo - evitar aquelas massas compactas, fervilhantes, pululantes,
que eram encontradas nos locais de encarceramento, os pintados por Goya ou descritos por Howard. Cada um, em seu
lugar, está bem trancado em sua cela de onde é visto de frente pelo vigia; mas os muros laterais impedem que entre em
contato com seus companheiros. É visto, mas não vê; objeto de uma informação, nunca sujeito numa comunicação. A
disposição de seu quarto, em frente da torre central, lhe impõe uma visibilidade axial; mas as divisões do anel, essas celas
bem separadas, implicam uma invisibilidade lateral. E esta é a garantia da ordem. Se os detentos são condenados não há
perigo de complô, de tentativa de evasão coletiva, projeto de novos crimes para o futuro, más influências recíprocas; se
são doentes, não há perigo de contágio; loucos, não há risco de violências recíprocas; crianças, não há "cola", nem
barulho, nem conversa, nem dissipação. Se são operários, não há roubos, nem conluios, nada dessas distrações que
atrasam o trabalho, tornam-no menos perfeito ou provocam acidentes. A multidão, massa compacta, local de múltiplas
trocas, individualidades que se fundem, efeito coletivo, é abolida em proveito de uma coleção de individualidades
separadas. Do ponto de vista do guardião, é substituída por uma multiplicidade enumerável e controlável; do ponto de
vista dos detentos, por uma solidão seqüestrada e olhada.(2)
Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade
que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo
se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse
aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce;
enfim, que os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são os portadores. Para isso, é ao
mesmo tempo excessivo e
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muito pouco que o prisioneiro seja observado sem cessar por um vigia: muito pouco, pois o essencial é que ele se saiba
vigiado; excessivo, porque ele não tem necessidade de sê-lo efetivamente. Por isso Bentham colocou o princípio de que o
poder devia ser visível e inverificável. Visível: sem cessar o detento terá diante dos olhos a alta silhueta da torre central de
onde é espionado. Inverificável: o detento nunca deve saber se está sendo observado; mas deve ter certeza de que sempre
pode sê-lo. Para tornar indecidível a presença ou a ausência do vigia, para que os prisioneiros, de suas celas, não
pudessem nem perceber uma sombra ou enxergar uma contraluz, previu Bentham, não só persianas nas janelas da sala
central de vigia, mas, por dentro, separações que a cortam em ângulo reto e, para passar de um quarto a outro, não portas,
mas biombos: pois a menor batida, uma luz entrevista, uma claridade numa abertura trairiam a presença do guardião.(3) O
Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto, sem nunca ver; na
torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto.(4)
Dispositivo importante, pois automatiza e desindividualiza o poder. Este tem seu princípio não tanto numa pessoa
quanto numa certa distribuição concertada dos corpos, das superfícies, das luzes, dos olhares; numa aparelhagem cujos
mecanismos internos produzem a relação na qual se encontram presos os indivíduos. As cerimônias, os rituais, as marcas
pelas quais se manifesta no soberano o mais-poder são inúteis. Há uma maquinaria que assegura a dissimetria, o
desequilíbrio, a diferença. Pouco importa, conseqüentemente, quem exerce o poder. Um indivíduo qualquer, quase
tomado ao acaso, pode fazer funcionar a máquina: na falta do diretor, sua família, os que o cercam, seus amigos, suas
visitas, até seus criados.(5) Do mesmo modo que é indiferente o motivo que o anima: a curiosidade de um indiscreto, a
malícia de uma criança, o apetite de saber de um filósofo que quer percorrer esse museu da natureza humana, ou a
maldade daqueles que têm prazer em espionar e em punir. Quanto mais numerosos esses observadores anônimos e
passageiros, tanto mais aumentam para o prisioneiro o risco de ser surpreendido e a consciência inquieta de ser observado.
O Panóptico é uma máquina maravilhosa que, a partir dos desejos mais diversos, fabrica efeitos homogêneos de poder.
Uma sujeição real nasce mecanicamente de uma relação fictícia. De modo que não é necessário recorrer à força para
obrigar o condenado ao bom comportamento, o louco à calma, o operário ao trabalho, o escolar à aplicação, o doente à
observância das receitas. Bentham se maravilha de que as instituições panópticas pudessem ser tão leves: fim das grades,
fim das correntes, fim das fechaduras pesadas: basta que as separações sejam nítidas e as aberturas bem distribuídas. O
peso das velhas "casas de segurança", com sua arquitetura de fortaleza, é substituído pela geometria simples e econômica
de uma "casa de
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certeza". A eficácia do poder, sua força limitadora, passaram, de algum modo, para o outro lado - para o lado de sua
superfície de aplicação. Quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as
limitações do poder; fá-las funcionar espontaneamente sobre si mesmo; inscreve em si a relação de poder na qual ele
desempenha simultaneamente os dois papéis; torna-se o princípio de sua própria sujeição. Em conseqüência disso mesmo,
o poder externo, por seu lado, pode-se aliviar de seus fardos físicos; tende ao incorpóreo; e quanto mais se aproxima desse
limite, mais esses efeitos são constantes, profundos, adquiridos em caráter definitivo e continuamente recomeçados:
vitória perpétua que evita qualquer defrontamento físico e está sempre decidida por antecipação.
Bentham não diz se se inspirou, em seu projeto, no zoológico que Lê Vaux construíra em Versalhes: primeiro
zoológico cujos elementos não estão, como tradicionalmente, espalhados em um parque(6): no centro, um pavilhão
octogonal que, no primeiro andar, só comportava uma peça, o salão do rei; todos os lados se abriam com largas janelas,
sobre sete jaulas (o oitavo lado estava reservado para a entrada), onde estavam encerradas diversas espécies de animais.
Na época de Bentham, esse zoológico desaparecera. Mas encontramos no programa do Panóptico a preocupação análoga
da observação individualizante, da caracterização e da classificação, da organização analítica da espécie. O Panóptico é
um zoológico real; o animal é substituído pelo homem, a distribuição individual pelo grupamento específico e o rei pela
maquinaria de um poder furtivo. Fora essa diferença, o Panóptico, também, faz um trabalho de naturalista. Permite
estabelecer as diferenças: nos doentes, observar os sintomas de cada um, sem que a proximidade dos leitos, a circulação
dos miasmas, os efeitos do contágio misturem os quadros clínicos; nas crianças, anotar os desempenhos (sem que haja
limitação ou cópia), perceber as aptidões, apreciar os caracteres, estabelecer classificações rigorosas e, em relação a uma
evolução normal, distinguir o que é "preguiça e teimosia" do que é "imbecilidade incurável"; nos operários, anotar as
aptidões de cada um, comparar o tempo que levam para fazer um serviço, e, se são pagos por dia, calcular seu salário em
vista disso.(7)
Este é um dos aspectos. Por outro lado, o Panóptico pode ser utilizado como máquina de fazer experiências,
modificar o comportamento, treinar ou retreinar os indivíduos. Experimentar remédios e verificar seus efeitos. Tentar
diversas punições sobre os prisioneiros, segundo seus crimes e temperamento, e procurar as mais eficazes. Ensinar
simultaneamente diversas técnicas aos operários, estabelecer qual é a melhor. Tentar experiências pedagógicas - e
particularmente abordar o famoso problema da educação reclusa, usando crianças encontradas; ver-se-ia o que acontece
quando aos dezesseis ou dezoito anos rapazes e moças se encontram; poder-se-ia verificar se, como pensa
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Helvetius, qualquer pessoa pode aprender qualquer coisa; poder-se-ia acompanhar "a genealogia de qualquer ideia
observável"; criar diversas crianças em diversos sistemas de pensamento, fazer alguns acreditarem que dois e dois não são
quatro e que a lua é um queijo, depois juntá-los todos quando tivessem vinte ou vinte e cinco anos; haveria então
discussões que valeriam bem os sermões ou as conferências para as quais se gasta tanto dinheiro; haveria pelo menos
ocasião de fazer descobertas no campo da metafísica. O Panóptico é um local privilegiado para tornar possível a
experiência com homens, e para analisar com toda certeza as transformações que se pode obter neles. O Panóptico pode
até constituir-se em aparelho de controle sobre seus próprios mecanismos. Em sua torre de controle, o diretor pode
espionar todos os empregados que tem a seu serviço: enfermeiros, médicos, contramestres, professores, guardas; poderá
julgá-los continuamente, modificar seu comportamento, impor-lhes métodos que considerar melhores; e ele mesmo, por
sua vez, poderá ser facilmente observado. Um inspetor que surja sem avisar no centro do Panóptico julgará com uma
única olhadela, e sem que se possa esconder nada dele, como funciona todo o estabelecimento. E aliás, fechado como está
no meio desse dispositivo arquitetural, o diretor não está comprometido com ele? O médico incompetente que tiver
deixado o contágio se espalhar, o diretor de prisão ou de oficina que tiver sido inábil serão as primeiras vítimas da
epidemia ou da revolta.
Meu destino, diz o mestre do Panóptico, está ligado ao deles (ao dos detentos) por todos os laços que pude
inventar.(8)
O Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de observação, ganha
em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens; um aumento de saber vem se implantar em
todas as frentes do poder, descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as superfícies onde este se exerça.
Cidade pestilenta, estabelecimento panóptico, as diferenças são importantes. Elas marcam, com um século e meio de
distância, as transformações do programa disciplinar. Num caso, um situação de exceção: contra um mal extraordinário, o
poder se levanta; torna-se em toda parte presente e visível; inventa novas engrenagens; compartimenta, imobiliza,
quadrícula; constrói por algum tempo o que é ao mesmo tempo a contracidade e a sociedade perfeita; impõe um
funcionamento ideal, mas que no fim das contas se reduz, como o mal que combate, ao dualismo simples vida-morte: o
que se mexe traz a morte, e mata-se o que se mexe. O Panóptico ao contrário deve ser compreendido como um modelo
generalizável de funcionamento; uma maneira de definir as relações
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do poder com a vida cotidiana dos homens. Bentham sem dúvida o apresenta como uma instituição particular, bem
fechada em si mesma. Muitas vezes se fez dele uma utopia do encarceramento perfeito. Diante das prisões arruinadas,
fervilhantes, e povoadas de suplícios gravadas por Piranese, o Panóptico aparece como jaula cruel e sábia. O fato de ele
ter, até nosso tempo, dado lugar a tantas variações projetadas ou realizadas, mostra qual foi durante quase dois séculos sua
intensidade imaginária. Mas o Panóptico não deve ser compreendido como um edifício onírico: é o diagrama de um
mecanismo de poder levado à sua forma ideal; seu funcionamento, abstraindo-se de qualquer obstáculo, resistência ou
desgaste, pode ser bem representado como um puro sistema arquitetural e óptico: é na realidade uma figura de tecnologia
política que se pode e se deve destacar de qualquer uso específico.
É polivalente em suas aplicações: serve para emendar os prisioneiros, mas também para cuidar dos doentes, instruir
os escolares, guardar os loucos, fiscalizar os operários, fazer trabalhar os mendigos e ociosos. É um tipo de implantação
dos corpos no espaço, de distribuição dos indivíduos em relação mútua, de organização hierárquica, de disposição dos
centros e dos canais de poder, de definição de seus instrumentos e de modos de intervenção, que se podem utilizar nos
hospitais, nas oficinas, nas escolas, nas prisões. Cada vez que se tratar de uma multiplicidade de indivíduos a que se deve
impor uma tarefa ou um comportamento, o esquema panóptico poderá ser utilizado.
Ele é [ressalvadas as modificações necessárias] aplicável a todos os estabelecimentos onde, nos limites de um
espaço que não é muito extenso, é preciso manter sob vigilância um certo número de pessoas.(9)
Em cada uma de suas aplicações, permite aperfeiçoar o exercício do poder. E isto de várias maneiras: porque pode
reduzir o número dos que o exercem, ao mesmo tempo em que multiplica o número daqueles sobre os quais é exercido.
Porque permite intervir a cada momento e a pressão constante age antes mesmo que as faltas, os erros, os crimes sejam
cometidos. Porque, nessas condições, sua força é nunca intervir, é se exercer espontaneamente e sem ruído, é constituir
um mecanismo de efeitos em cadeia. Porque sem outro instrumento físico que uma arquitetura e uma geometria, ele age
diretamente sobre os indivíduos; "dá ao espírito poder sobre o espírito". O esquema panóptico é um intensificador para
qualquer aparelho de poder: assegura sua economia (em material, em pessoal, em tempo); assegura sua eficácia por seu
caráter preventivo, seu funcionamento contínuo e seus mecanismos automáticos. É uma maneira de obter poder
numa quantidade até então sem igual, um grande e novo instrumento de governo...; sua excelência consiste na
grande força que é capaz de dar a qualquer instituição a que seja aplicado.(10)
170 ▲
Uma espécie de "ovo de Colombo" na ordem da política. Ele é capaz com efeito de vir se integrar a uma função
qualquer (de educação, de terapêutica, de produção, de castigo); de aumentar essa função, ligando-se intimamente a ela;
de constituir um mecanismo misto no qual as relações de poder (e de saber) podem-se ajustar exatamente, e até nos
detalhes, aos processos que é preciso controlar; de estabelecer uma proporção direta entre o "mais-poder" e a "maisprodução".
Em suma, faz com que o exercício do poder não se acrescente de fora, como uma limitação rígida ou como um
peso, sobre as funções que investe, mas que esteja nelas presente bastante sutilmente para aumentar-lhes a eficácia
aumentando ele mesmo seus próprios pontos de apoio. O dispositivo panóptico não é simplesmente uma charneira, um
local de troca entre um mecanismo de poder e uma função; é uma maneira de fazer funcionar relações de poder numa
função, e uma função para essas relações de poder. O panoptismo é capaz de
reformar a moral, preservar a saúde, revigorar a indústria, difundir a instrução, aliviar os encargos públicos,
estabelecer a economia como que sobre um rochedo, desfazer, em vez de cortar, o nó górdio das leis sobre os pobres, tudo
isso com uma simples ideia arquitetural.(11)
Além disso, o arranjo dessa máquina é tal que seu fechamento não exclui uma presença permanente do exterior:
vimos que qualquer pessoa pode vir exercer na torre central as funções de vigilância, e que fazendo isso pode adivinhar a
maneira como é exercida a vigilância. Na realidade, qualquer instituição panóptica, mesmo que seja tão cuidadosamente
fechada quanto uma penitenciária, poderá sem dificuldade ser submetida a essas inspeções ao mesmo tempo aleatórias e
incessantes: e isso não só por parte dos controladores designados, mas por parte do público; qualquer membro da
sociedade terá direito de vir constatar com seus olhos como funcionam as escolas, os hospitais, as fábricas, as prisões.
Não há, conseqüentemente, risco de que o crescimento de poder devido à máquina panóptica possa degenerar em tirania;
o dispositivo disciplinar será democraticamente controlado, pois será sem cessar acessível "ao grande comité do tribunal
do mundo"(12) Esse panóptico, sutilmente arranjado para que um vigia possa observar, com uma olhadela, tantos
indivíduos diferentes, permite também a qualquer pessoa vigiar o menor vigia. A máquina de ver é uma espécie de
câmara escura em que se espionam os indivíduos; ela torna-se um edifício transparente onde o exercício do poder é
controlável pela sociedade inteira.
O esquema panóptico, sem se desfazer nem perder nenhuma de suas propriedades, é destinado a se difundir no
corpo social; tem por vocação tornar-se aí uma função generalizada. A cidade pestilenta dava um modelo disciplinar
excepcional: perfeito mas absolutamente violento; à doença que trazia a morte, o poder opunha sua perpétua ameaça de
morte; a vida nela se reduzia a sua expressão mais simples; era contra o poder da morte o exercício minucioso do direito
de gládio. O Panóptico, ao contrário, tem um papel de amplificação; se organiza o poder, não é pelo próprio poder, nem
pela salvação
171 ▲
imediata de uma sociedade ameaçada: o que importa é tornar mais fortes as forças sociais - aumentar a produção,
desenvolver a economia, espalhar a instrução, elevar o nível da moral pública; fazer crescer e multiplicar.
Como reforçar esse poder de tal maneira que, longe de atrapalhar esse processo, longe de pesar sobre ele com suas
exigências e seu peso, ele, ao contrário, o facilite? Que intensificador de poder poderá ao mesmo tempo ser um
multiplicador de produção? Como o poder, aumentando suas forças, poderá fazer crescer as da sociedade em vez de
confiscá-las ou freá-las? A solução do Panóptico para esse problema é que a majoração produtiva do poder só pode ser
assegurada se por um lado ele tem possibilidade de se exercer de maneira contínua nos alicerces da sociedade, até seu
mais fino grão, e se, por outro lado, ele funciona fora daquelas formas súbitas, violentas, descontínuas, que estão ligadas
ao exercício da soberania. O corpo do rei, com sua estranha presença material e mítica, com a força que ele mesmo exibe
ou transmite a alguns, está no extremo oposto dessa nova física do poder definida pelo panoptismo; seu campo é ao
contrário toda aquela região de baixo, a dos corpos irregulares, com seus detalhes, seus movimentos múltiplos, suas forças
heterogéneas, suas relações espaciais; são mecanismos que analisam distribuições, desvios, séries, combinações, e
utilizam instrumentos para tornar visível, registrar, diferenciar e comparar: física de um poder relacional e múltiplo, que
tem sua intensidade máxima não na pessoa do rei, mas nos corpos que essas relações, justamente, permitem
individualizar. Ao nível teórico, Bentham define outra maneira de analisar o corpo social e as relações de poder que o
atravessam; em termos de prática, ele define um processo de subordinação dos corpos e das forças que a utilidade do
poder deve majorar fazendo a economia do Príncipe. O panoptismo é o princípio geral de uma nova "anatomia política"
cujo objeto e fim não são a relação de soberania mas as relações de disciplina.
Na famosa jaula transparente e circular, com sua torre alta, potente e sábia, será talvez o caso para Bentham de
projetar uma instituição disciplinar perfeita; mas também importa mostrar como se pode "destrancar" as disciplinas e
fazê-las funcionar de maneira difusa, múltipla, polivalente no corpo social inteiro. Essas disciplinas que a era clássica
elabora em locais precisos e relativamente fechados - casernas, colégios, grandes oficinas - e cuja utilização global só fora
imaginada na escala limitada e provisória de uma cidade em estado de peste, Bentham sonha fazer delas uma rede de
dispositivos que estariam em toda parte e sempre alertas, percorrendo a sociedade sem lacuna nem interrupção. O arranjo
panóptico dá a fórmula dessa generalização. Ele programa, ao nível de um mecanismo elementar e facilmente transferível,
o funcionamento de base de uma sociedade toda atravessada e penetrada por mecanismos disciplinares.
172 ▲
Duas imagens, portanto, da disciplina. Num extremo, a disciplina-bloco, a instituição fechada, estabelecida à
margem, e toda voltada para funções negativas: fazer parar o mal, romper as comunicações, suspender o tempo. No outro
extremo, com o panoptismo, temos a disciplina-mecanismo: um dispositivo funcional que deve melhorar o exercício do
poder tornando-o mais rápido, mais leve, mais eficaz, um desenho das coerções sutis para uma sociedade que está por vir.
O movimento que vai de um projeto ao outro, de um esquema da disciplina de exceção ao de uma vigilância generalizada,
repousa sobre uma transformação histórica: a extensão progressiva dos dispositivos de disciplina ao longo dos séculos
XVII e XVIII, sua multiplicação através de todo o corpo social, a formação do que se poderia chamar grosso modo a
sociedade disciplinar.
Realizou-se uma generalização disciplinar, atestada pela física benthamia-na do poder, no decorrer da era clássica.
Comprova-o a multiplicação das instituições de disciplina, com sua rede que começa a cobrir uma superfície cada vez
mais vasta, e principalmente a ocupar um lugar cada vez menos marginal; o que era ilha, local privilegiado, medida
circunstancial ou modelo singular, torna-se fórmula geral; as regulamentações características dos exércitos protestantes e
piedosos de Guilherme de Orange ou de Gustavo Adolfo se transformaram em regulamentos para todos os exércitos da
Europa; os colégios modelos dos jesuítas, ou as escolas de Batencour e de Demia, depois da de Sturm, esboçam as formas
gerais da disciplina escolar; a ordem estabelecida nos hospitais Marítimos e militares serve de esquema para toda a
reorganização hospitalar do século XVIII.
Mas essa extensão das instituições disciplinares não passa sem dúvida do aspecto mais visível de diversos processos
mais profundos.
1) A inversão funcional das disciplinas: originalmente cabia-lhes principalmente neutralizar os perigos, fixar as
populações inúteis ou agitadas, evitar os inconvenientes de reuniões muito numerosas; agora se lhes atribui (pois se
tornaram capazes disso) o papel positivo de aumentar a utilidade possível dos indivíduos. A disciplina militar não é mais
um simples meio de impedir a pilhagem, a deserção, ou a desobediência das tropas; torna-se uma técnica de base para que
o exército exista, não mais como uma multidão ajustada, mas como uma unidade que tira dessa mesma unidade uma
majoração de forças; a disciplina faz crescer a habilidade de cada um, coordena essas habilidades, acelera os movimentos,
multiplica a potência de fogo, alarga as frentes de ataque sem lhes diminuir o vigor, aumenta as capacidades de
resistência, etc. A disciplina de oficina, sem deixar de ser uma maneira de fazer respeitar os regulamentos e as
autoridades, de impedir os roubos ou a dissipação, tende a fazer crescer as aptidões, as velocidades, os rendimentos e
portanto os lucros;
173 ▲
ela continua a moralizar as condutas, mas cada vez mais ela modela os comportamentos e faz os corpos entrar numa
máquina, as forças numa economia. Quando no século XVII se desenvolveram as escolas de província ou as escolas
cristãs elementares, as justificações dadas eram principalmente negativas: os pobres, não tendo recursos para educar os
filhos, deixavam-nos "na ignorância de suas obrigações, e entregues ao simples cuidado de viver; e tendo eles mesmos
sido mal educados, não podem comunicar uma boa educação que jamais tiveram"; o que acarreta três inconvenientes
ponderáveis: a ignorância de Deus, a preguiça (com todo o seu cortejo de bebedeira, de impureza, de furtos, de
banditismo) e a formação dessas tropas de mendigos, sempre prontos a provocar desordens públicas e "que só servem
para esgotar os fundos do Hôtel-Dieu".(13) Mas, no começo da Revolução, a finalidade prescrita ao ensino primário será,
entre outras coisas, "fortificar", "desenvolver o corpo", dispor a criança "para qualquer trabalho mecânico no futuro", darlhe
"uma capacidade de visão rápida e global, uma mão firme, hábitos rápidos".(14) As disciplinas funcionam cada vez
mais como técnicas que fabricam indivíduos úteis. Daí se libertarem elas de sua posição marginal nos confins da
sociedade, e se destacarem das formas de exclusão ou de expiação, de encarceramento ou retiro. Daí desfazerem elas
lentamente seu parentesco com as regularidades e os muros religiosos. Daí também tenderem a se implantar nos setores
mais importantes, mais centrais, mais produtivos da sociedade; e se fixarem em algumas das grandes funções essenciais:
na produção manufatureira, na transmissão de conhecimentos, na difusão das aptidões e do know-how, no aparelho de
guerra. Daí enfim a dupla tendência que vemos se desenvolver no decorrer do século XVIII de multiplicar o número das
instituições de disciplina e de disciplinar os aparelhos existentes.
2) A ramificação dos mecanismos disciplinares: enquanto por um lado os estabelecimentos de disciplina se
multiplicam, seus mecanismos têm uma certa tendência a se desinstitucionalizar, a sair das fortalezas fechadas onde
funcionavam e a circular em estado "livre"; as disciplinas maciças e compactas se decompõem em processos flexíveis de
controle, que se pode transferir e adaptar. Às vezes, são os aparelhos fechados que acrescentam à sua função interna e
específica um papel de vigilância externa desenvolvendo uma margem de controles laterais. Assim, a escola cristã não
deve simplesmente formar crianças dóceis; deve também permitir vigiar os pais, informar-se de sua maneira de viver,
seus recursos, sua piedade, seus costumes. A escola tende a constituir minúsculos observatórios sociais para penetrar até
nos adultos e exercer sobre eles um controle regular: o mau comportamento de uma criança, ou sua ausência, é um
pretexto legítimo, segundo Demia, para se ir interrogar os vizinhos, principalmente se há razão para se pensar que a
família não dirá a verdade; depois os próprios pais, para verificar se eles sabem o catecismo e as
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orações, se estão decididos a arrancar os vícios das crianças, quantas camas há e como eles se repartem nelas durante a
noite; a visita termina eventualmente com uma esmola, o presente de uma imagem, ou a doação de camas
suplementares.(15) Da mesma maneira o hospital é concebido cada vez mais como ponto de apoio para a vigilância
médica da população externa; depois do incêndio do Hôtel-Dieu em 1772, muita gente pede que se substituam os grandes
estabelecimentos, tão pesados e desorganizados, por uma série de hospitais de pequena dimensão; teriam por função
recolher os doentes do bairro, mas também reunir informações, tomar conta dos fenómenos endémicos ou epidêmicos,
abrir dispensários, dar conselhos aos moradores e manter as autoridades a par do estado sanitário da região.(16) Vemos
também se difundirem os procedimentos disciplinares, não a partir de instituições fechadas, mas de focos de controle
disseminados na sociedade. Grupos religiosos, associações de beneficência muito tempo desempenharam esse papel de
"disciplinamento" da população. Desde a Contra-Reforma até à filantropia da monarquia de julho, multiplicaram-se
iniciativas desse tipo; tinham objetivos religiosos (a conversão e a moralização), económicos (o socorro e a incitação ao
trabalho), ou políticos (tratava-se de lutar contra o descontentamento ou a agitação). Que seja suficiente citar a título de
exemplo os regulamentos para as companhias de caridade das paróquias parisienses. O território a cobrir está dividido em
bairros e cantões, que são repartidos pêlos membros da companhia. Estes têm que visitá-los regularmente.
Eles trabalharão para impedir os maus locais, tabacarias, academias, jogos, escândalos públicos, blasfémias,
impiedades, e outras desordens que possam chegar a seu conhecimento.
Terão também que fazer visitas individuais aos pobres; e os pontos de informação são precisados no regulamento:
estabilidade de habitação, conhecimento das orações, frequência aos sacramentos, conhecimento de um ofício, moralidade
(e "se não caíram na pobreza por sua culpa"); enfim
é preciso se informar direito de que maneira se comportam em casa, se mantêm paz entre si e com os vizinhos, se
têm o cuidado de criar os filhos no temor de Deus... se não deitam os filhos crescidos de sexo diferente juntos e com eles,
se não há libertinagem e carícias nas famílias, principalmente para com as filhas crescidas. Se há dúvida de que sejam
casados, é preciso pedir-lhes uma certidão de casamento.(17)
3) A estatização dos mecanismos de disciplina: na Inglaterra, foram grupos privados de inspiração religiosa que,
muito tempo, realizaram as funções de disciplina social.(18) Na França, se uma parte desse papel ficou nas mãos das
sociedades de patronatos ou de auxílio, outra - e sem dúvida a mais considerável - foi muito cedo ocupada pelo sistema
policial
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