quarta-feira, 31 de agosto de 2011
ROGEL SAMUEL - A HISTÓRIA DOS AMANTES
A HISTÓRIA DOS AMANTES
ROGEL SAMUEL: A HISTÓRIA DOS AMANTES, 1
Nós nos despedimos na última luz de uma serena tarde do mês de maio de 1964 - vinte e um dias depois do golpe militar - e de lá partimos para Cabo Frio onde um barco alugado nos esperava no cais do canal - entretanto choveu persistentemente durante quase toda aquela nossa viagem de lua de mel ("onda de mel", contava Val; "luz de mel", corrigia eu) e Val relatava que naquelas vagas pelo resto de nossas vidas ouviríamos aquela música da ventania nos nossos ouvidos, a chuva, e nos afogaríamos naqueles golfões do sentimento mole e maciço do fundo do mar de nós mesmos, porque era aquela sensação de claridade no meio daquela chuva no espaço do mar, naquele espaço verde por onde o barco penetrava como num labirinto selvagem, e onde nos introduzíamos num horizonte desconhecido e invisível - Val nua no convés: e assim que ainda a vejo hoje cantar aquela canção de amor daqueles heróicos tempos de mar e de vendaVals roqueiros que eu ouvia - tentando avançar com cautela por esta pormenorizada narração - e para tornar o rumo de mais seguro porto devo dizer que naquela época a situação nos colocava no pátio do paraíso que eu não divisava bem, um furo, algo significante e que tem força decisiva: porque aquela minha temporada com Val me deixava radiante, me empurrando para a glória de mim mesmo, a brisa corrente que nos trazia de volta como se lancha fosse um veleiro e nos conduzisse pelo mar - ficamos no hotel, o colo cheio dos jornais sobre o golpe, a beber um coquetel de frutas sobre as notícias, as notícias cada vez mais terríveis, mas os olhos de Val recolhiam os reflexos daquele mar com sua superioridade lunar e esmeralda, ela mais parecia uma Marilyn Monroe morena naquele tempo, dourada, a vida toda simulava ali estar em sua homenagem - e no dia seguinte de lá partimos para Búzios, a camisa branca, larga feito uma bandeira de sol luminosa, meio ávida, adejava, o tórax à mostra sobre a curva da anca suave, os homens se surpreendiam de vê-la tão loura, tão artificialmente loura e límpida que nem parecia que comigo estivera ressonando levíssima no seu leitoso perfume depois de se debater no gozo selvagem dos seus sonhos nos meus ombros durante a noite anterior: o veículo saía soprado pela mágica do vento e nós íamos para a casa de Búzios emprestada de um amigo meu - passamos velozes pela ponte do canal (Val dirigia) e ao longo da estrada litorânea se ouvia a areia da estrada de terra batida na fuselagem enquanto minha mão se introduzia por entre as suas coxas.
À tarde entramos naquele mar, completamente despidos como se vestíssemos um verde vivo e com alegria dei uns tiros com o revólver de Val que estava no porta-luvas, herança do pai dela, estourando uma garrafa de cerveja - mas logo tivemos de nos vestir, pois vinha chegando um garoto, quase criança, com um cão solto que corria.
Foi somente quando me deitei na areia que os vi: largos, na espuma da rebentação branca, o sol se rebelando nas gaivotas de vôo rasante como aviões em combate de bandos ruidosos: eram três jovens, e estavam na crista das ondas do horizonte provável.
Uma tarde, nela atravessávamos a luz, andávamos pela rua daquele subúrbio, o bairro, silenciosos, graves, gravemente subimos o aclive, os passos, resumimos nossas conversas a um leve contato, leve toque dos dedos, ocasionais, toque rápido, cheio de emoção e felicidade. Mas a vida não, mas a vida não é um brinquedo. Não consigo saber o que se passou, as recordações recortam imagens irrecuperáveis. Tento compreender. O que acontecia naquele momento, naquele passar de sua presença inteira, fixa, na minha frente - de uma existência - o passado como tela de cinema implantado no olho da memória. A vida não pára, não parou. Não chego ao desespero, ao estranho relacionamento que tenho, hoje, com o que hoje sou. O presente aqui não é nem alegre, nem triste. Tenho de começar devagar.
Certo dia, quando aciono, quando acordo, o teto do quarto com uma coloração rósea, a janela aberta dá para um labirinto em que o olhar ostenta mover-se, e que se Val desdobrando em abstrata claridade, a fragrância marinha emanando suave, fria, perfumada, vinda do horizonte, a janela respirava... Entrava, quase imperceptível, um som, aquele som, um murmúrio, doce, azulado, como o mar. As pessoas amigas me tinham recomendado calma. Mas eu não consigo. Lembro-me ainda das retas cruzes das ruas da cidade indiferente. Vista do alto prédio, a cidade. Foi naquela madrugada que a sentença me chegou, forte, perfeita, correta, aterradora como a de um assassino: Val. Era ela. Val me abandonava. As persianas batem, fortes, nervosas. As roupas por cima da cama, acordava do sonho do meu amor desfeito. O amor, como uma bala, passava de boca em boca. Se espalhava. Eu sofria a angústia, a queda. O amor é um mar. Cheiro familiar de café. Um pente um espelho. Eu penso. Matar o meu sonho. Não, Val. Eu tinha soluções. Alguns homens formavam grupo no ângulo da esquina, e ela... ah, súbita felicidade da totalidade!... agora nós estávamos na praça. Na orla da praia eu subia até um pedestal vazio, que chegava à cabeceira do tanque retangular, e no ar abria os braços, espalmava as mãos, feliz, e ainda me consigo ver. De lá dizia, de lá me recordava de mim mesmo, eu para mim agora, a um majestoso e largo mar que soava no ar com a clara voz de Val, com todas as claras vozes daquele tempo, a aragem crescendo no meio de tudo, infiltrando-se na camisa aberta, os seios nus.
Nada me prende mais, hoje, do que a demora do passado no momento presente, esse momento interior imensurável, onde às vezes a força dos instantes retardam os passos do passado para sempre. Às vezes, como num sonho, largo pesado sonho estirado, os momentos são assim inteiramente vivos, inesperados. Neles me movo, me reconstruo, me recomeço. Em frente. Naquela praia nós nos largávamos, era como se durante a vida toda estivéssemos ali. Na areia suave, como se as lembranças estivessem inteiramente nuas. Visto de hoje o mar, vedação alta e azul, as coisas vastas, as coisas em bloco, as coisas se dissolviam em explosões de brancas espumas, cristas, covas, límpidas cintilações coriscantes.
Ainda estou perdido, perplexo. Ainda me movo mal nesse espaço. Ela. Ela penteia os cabelos, diante do espelho, os ombros largos. Muitos anos se passaram diante da imagem de Val, naquele espelho. Era ali, a sua viagem, uma viagem de barco, ela, os cabelos muito soltos no convés, chovia quase todo tempo, interminável ruído da chuva, a chuva nascia da ondulação das dobras do lençol de chuva azul, ou verde, nós riamos, recebíamos de face as espetadelas gélidas das gotas do ar. Isso é tudo? Durante todo o tempo em que vivemos juntos, parece hoje, por uma misteriosa deformação mágica, que todas as tardes são sua presença, de seu mar, onde sempre se ouvem ondas, onde as luzes, os sóis se impunham, juvenis, um elemento, alto, magro, qual garça branca, andando atrás da pedra, do deserto, entre o carro e um adorno, uma corrente, ele se precipitava entre as coisas da memória, se encostava ao cimento do muro. Aqui, Val aqui, atrás o seu ciúme, conectando com o que se refere, com tudo o que... bombas (anos depois os soldados invadem o prédio, rebentam no meio da sala cruelmente as bombas, eu procurava Valquíria entre os acontecimentos tumultuosos, estávamos encurralados ali, não conseguimos sair daquilo, não há nenhum telefone funcionando). Esse amor. Tenho de deixar sossegado? Posso iludi-lo com amenidades? Eu sempre penso em matar minha lembrança, meu passado. Ele estaria morto finalmente se eu não o estivesse revirando agora.
Depois que eu me separei de Val penso que a vida está acabada. Não podia amar o amor, aquela doença, o relacionamento com Val, o fantasma. Tinha ido lá, ver o fantasma. Tinha ido até lá, a porta da cozinha estava em frente de onde eles se encontravam, passava a mão sobre sua cintura, mordendo-a suavemente no ventre, mas a porta ameaçou abrir, estava sendo arrombada, uma prosaica chave começou a ser introduzida na fresta, seria surpreendido ali, ele, um nome, uma legenda, ele, como ainda me lembro de tudo isso? estarei vitima de uma Val que estava em minha vida como uma alucinação, um convite ao prazer, ao mais louco prazer, em sua vida, fonte máxima, única, ela era um vivo convite à vida, a porta, os azulejos brancos, duas pias do lado da geladeira. A beleza, a beleza acompanha o tempo.
No barco, na lua de mel, ainda chove persistente, a voz era como sempre clara e dizia que ouviriam uma certa música, sim, para não nos afogarmos naqueles golfões de sentimento maciço, mole, gosmento. Não, não nos afogaremos nesse mar, não nos afogaremos dentro do fundo de nós mesmos.
Não no barco, esmagada, não, mas na cozinha, com Val, a eterna, a porta se abre, a polícia se apodera do que tinha sido aquela casa, eles estão fora, jogam o conteúdo fora, foram engolidos pelo silêncio? fugiram dali! Val, a política, a nova liberdade de viver é assim? Todo o meu empenho é vão, todo o meu empenho para que nada aconteça a ela, desde minha juventude eu assim jogo, tudo, joguei tudo na mesa verde da via do destino, a vida, a família, e era ela, fugimos dali, que valia tudo diante dela? De que valia tudo isso?
A revolução, a ditadura militar estava vitoriosa, nos colocava na clandestinidade. Fomos parar numa estação de trem do subúrbio, distante, onde ela morava, olhando a planície com desânimo, quase uma centena de pessoas esperava a vinda do trem. Ali mesmo, naquela zona, passavam soldados sem destino, rapazes distraídos entre gritos de vendedores de balas.
Palavras. Palavras entrecortadas. Curiosa angústia. Eu ponho tudo em jogo, eu não estou com ela. Que faço aqui? Novo grupo de policiais acaba de chegar, as imediações são um campo de guerra, um campo selvagem. Quando a porta se abriu, nós nos precipitamos pela saída dos fundos. Eu ainda pensei que a porta resistiria, mas cedeu de uma vez, uma invasão começou. Depois começa a lavrar o incêndio. Armários despencam aos tiros, granadas, rebentam estrondos. "Sim, fui uma juventude agredida", disse Val, anos depois. O silêncio aquece o inverno longo. Você coloca sua marca, a marca de seus dedos em tudo o que faz. Você traz no corpo o seu sinal.
Na estação, o garoto olha para trás, e corre, assustadíssimo. A fome passa. Estou bem disposto, a viagem de trem me reanima, a vida volta a seus trilhos, volta ao natural. Sinto-me de novo participante, cidadão, digo que isso é passageiro. Não sei dar linearidade a esta narrativa, ela Val-se desenrolando de dentro – a sua ordem é desordem, parece impossível, fico diante do que sai de minhas lembranças, fico impotente, sob flashes atordoantes. Os olhos dela me chegam, me abraçam. Às vezes, penso que é ela quem me reencontra, seu fantasma comigo — a minha morte — um salto surpreendente. Eu tenho de usar de muita habilidade para prosseguir o tema doloroso, o tema fundamental, o propósito verbal de minha existência devastada, não mais estando disposto à lastimação solitária de origem. Minha lembrança. Recebo minha lembrança no seio de sua vacuidade. A emancipação desaparece, por momentos. Mas nada pode ser dito. Vivo disto. Sobrevivo disto. Vivi com o principal de meus dias de paz. «Quem colhe o mel dos deuses», diz a voz, «não mais se cura». Sei que amanha acordo melhor. Bela sensação de claridade, de espaço, daquele espaço em que passamos nossos corpos e nos estabelecemos — quero abraçar este espaço — rematar o real nele contido - recortá-lo para o recriar. Hei de contar, de cantar a mais bela canção de amor aqui, mais bela que alguém já pode viver. Val me telefonou dizendo que Ricardo... Mas isso resiste à clareza de uma narração, de uma explicação, tenho de avançar a palmo. Com teimosia, mas com cautela. Estou perdido. Melhor seria se eu pudesse logo contar certos detalhes, tornar seguro o caminho. A situação está na reta final. Mas não, não há mais ninguém, senão você, vem você, você prossegue, sim. Todos se colocaram na ausência. Sinto-me ainda na ilha, mergulho para esquecer, deixar para trás o som de suas praias, sempre nos meus ouvidos. Não, devo clamar, duvidar. Naquele tempo vivia numa ilha. Lá estava Val, também. Tínhamos uma casa na ilha. O principal de mim estava lá. Eu amava ou não tinha outra escolha. Ali era um ser todo dissolvido — um ser úmido, onde os sentimentos mais estranhos assustavam, assaltavam, chegavam com seu trânsito nervoso, a violentação de suas multiplicidades — de não sei quantos desagradáveis motivos nervosos difíceis de aturar.
A tarde ia desaparecendo. Um calor brando, silencioso. Valquíria aparece. Jovem. Máxima. Ela aparece jovem. Reencontro a Valquíria adolescente na Valquíria de hoje. Estou decididamente envolvido na sua substância material. Desde sempre nos envolvemos, nos identificamos. Ela vive, dança no meu ser, à vontade. Tento compreender isso, tento a resposta. Sua voz vem de longe, do tempo. Sua voz. Quando se convive, durante toda uma vida, mesmo com intervalos, com essa voz, nunca se pode sobreviver sem ela. Pessoa que se ama sempre. Estou sempre prestes a procurá-la, de novo. Por isso nunca a liberto. Sempre fui a ela, onde ela estiver. Seu timbre sempre adquire o som de um fundo que conheço mas não sei dizer de onde. Agora é o tom do amor desfeito. Refaço. Tento. Nós corremos paralelos, juntos, nos unimos em tempos sucessivos. Eu sempre. Tenho-a em meus braços? Ou ela me domina? Agora, como depois. Como sempre antes de sempre, depois, depois de depois. Nós nos deitávamos, era a comunhão, ela tão presente, como se fosse ela o mais sólido e absurdo elo da vida. Sem ela, vivo em abstrato. Se pacifica. Eu sou agora Val. Ela cheira a floresta. Nós sempre corremos em vias paralelas, nos unimos no tempo. O bom contato de seu corpo, de sua materialidade, de seu cheiro de mato moreno, de seu calor algo que eu podia beber o insaciável. Estrada. Depois a estrada. As palmeiras, eucaliptos, rubor essencial que sempre a eterniza. E eu sei que posso ficar até o sangue correr de meus dedos, aqui, a falar e a repetir sobre ela, interminável, inesgotável, solitariamente.
ROGEL SAMUEL: A HISTÓRIA DOS AMANTES, 2
Sim, tenho de repetir: Nós nos casamos na última luz de uma serena tarde do mês de maio de 1964 - vinte e um dias depois do golpe militar - na presença de um padre, de minha avó Madalena (de preto, elegantíssima), da mãe de Val num discreto tailler, da minha cunhada e alguns amigos.
Já estávamos recebendo os cumprimentos de praxe quando foi chegando o pessoal da família de Val e, do primeiro degrau da escada da igreja - eram oito, ao todo - partimos no carro de Val diretamente para Cabo Frio, onde um barco alugado nos esperava num cais do Canal.
Entretanto choveu, persistentemente. Durante toda a nossa viagem de lua-de-mel - ou de onda-de-mel - Val dizia que ouviríamos pelo resto de nossas vidas aquela música de vento e chuva, nos afogaríamos naqueles golfões de um sentimento mole, maciço, do fundo do mar de nós mesmos.
Bela sensação de claridade no meio da chuva, espaço verde por onde o barco passava, onde nos estabelecemos no horizonte - Val nua.
Posso cantar hoje a mais bela canção de amor que li, mas tenho de avançar com cautela.
Tudo o que significa tem força. Por isso aquela minha temporada com Val me deixava radiante, me empurrando para a glória.
Por fim, a brisa da corrente nos trouxe de volta como se a lancha fosse um veleiro e ficamos no hotel, o colo cheio de jornais, a bebericar um coquetel de frutas sobre as notícias do golpe, os olhos de Val recolhendo os reflexos do mar com aquela sua superioridade de Marilyn Monroe morena e dourada, e como se a vida estivesse em sua homenagem.
E Val no dia seguinte desce do hotel onde nos hospedamos e parte comigo para Búzios, a blusa larga, meio ávida, os seios quase à mostra sobre a curva da anca suave, alguns homens se viravam súbitos ao vê-la - e nem parecia que comigo dormira, ressonando leve no seu cheiro de leite fresco, depois de se debater nos meus ombros na noite anterior.
O veículo soprado pelo vento, íamos ocupar a casa de Búzios que eu tinha alugado e que depois comprei.
Passamos velozes pelo canal.
Val dirigia - e ao longo da estrada litorânea se podia ouvir a areia da estrada de terra batendo na fuselagem, enquanto minha mão se introduzia por entre as suas coxas.
À tarde entramos no mar despidos, com alegria comovida.
Dei uns tiros com o revólver de Val, tirado do porta-luvas, estourando uma cerveja. Depois nos vestimos, pois vinha chegando um garoto com um cão.
Foi somente quando me deitei na areia da praia que os vi, largos, na branca espuma da rebentação, o sol esquentando e as gaivotas em vôo rasantes como aviões em bandos barulhentos. Três jovens estavam nas cristas das ondas do horizonte.
Fechei os olhos por algum tempo. De onde aquele ar familiar? Não me lembro o que pensei nos minutos seguintes, mas a imagem ressurgiu e esValu-se, ressaltada no seu fundo azul e era o perfil de alguém que eu conhecera há vários anos. Quando abri os olhos ele se aproximou de mim e eu o reconheci: era o Artur.
Alto, magro, já mais maduro (eu o conheci menino). Sofisticado, adamado. Com ele outros dois rapazes mais jovens. Numa fração de segundo fiquei parado, olhando-o - quase não o reconhecia. Ele ria-se para mim, apertou com força a minha mão e a de Val
ao mesmo tempo. Val passou a conversar, animada, com eles.
Jorginho, o garoto mais jovem, teria uns dezoito anos. Carlos, o outro, cerca de vinte e dois, forte como um Apolo de academia e tinha os cabelos densos caídos sobre os olhos, como uma espécie de cão.
Artur, maneiroso, afetado. Minha naturalidade e cortesia com ele era falsa, eu tinha medo de o ferir. Desde aquele encontro ficamos juntos, os cinco, e no dia seguinte os três, que estavam acampados, foram hospedar-se na nossa casa.
No decorrer daqueles dias seguintes a imagem de Val com os rapazes começa a tumultuar minha cabeça.
Como um coice da memória a vejo, variada, dispersa, fumando, ouvindo o metal em fúria daquele rock desconhecido, todos drogados e bêbados.
Carlos, o Apolo, vivia nu pela casa.
Jorginho, surdo dentro de sua música.
Artur, a Potestade, conseguindo arrancar dos limites do viver o transgredir de todas as normas. Vingador, Artur, o irmão da morte na fatalidade de víboras bêbadas. Flagelo de Deus.
Os dois rapazes, seus convictos crentes, viviam às suas expensas.
Porque Artur era das situações limites o holocausto da instauração de um absurdo vivido ali sob os nossos olhos, com o itifálico Carlos sempre à mostra, nossa única vizinhança era a praia defronte, ninguém mais poderia nos ouvir ou ver.
Era o apogeu da era sessenta.
E seres rolavam pelo chão e por debaixo da mesa, sobre a qual restos de uma comida azeda e leite derramado, copos de vidro quebrados entre farelos de pão e esperma, aquilo penetrando no mais fundo do corpo como lâmina oculta e sangrenta.
Ali vivemos o prazer de algo infestado de um apocalíptico efeito, misteriosa deformação mágica, alcoólica, orgiástica.
Foi quando Carlos, atingindo o clímax, à noite arranjou duas meninas na praia e, erguendo o copo, propôs que ensaiássemos uma seção grupal, apagando as luzes da sala onde sobrevivíamos nós.
Mas, apesar dos contatos sentidos e das inesperadas variações de nossas multiplicidades, fomos ficando cada vez mais loucos e solitários - Val desapareceu com Carlos, Artur e Jorginho, não sei, e as duas meninas, ansiando por mim no escuro na respiração da besta de sete cabeças e dez cornos que me possuía com sua sangrenta boca.
No amanhecer ainda vivos relíquias de seres de uma vida que se esVal, livre ou imposta, mas vã e incompreensível.
Foi quando dou um murro, curto, seco, na boca de Val, que se cala e desequilibra sobre a pia do banheiro. Eu tinha caído na pior paranóia. Um botão de sangue brotou e começou a crescer de cada lado de seus lábios, como uma flor, vermelha, ácida.
E Val me olhava com espanto e horror enquanto erguia do chão um lencinho branco e começo a limpá-la, trêmulo, aqueles lábios amados, bati forte, de frente, reto, como um disparo incontrolável, e o fio de sangue se desfia da boca e não conseguia detê-lo, escorria da boca como se a vida se vampirisasse, delirasse. "Meu Deus, que fiz", ainda consegui balbuciar no caos, Val a despejar aquilo de dentro de si, se apoiando nas minhas mãos assassinas a expelir a vida, e abro a torneira e sai dali um jato de água gasosa que se transforma em sangue, escorre e pinta a louça branca, respinga pelos ladrilhos da parede e Val chora, seus soluços escorrem pelo mundo como o jato dágua da torneira aberta com efeito de ducha gasosa.
Foi então que consegui dar-lhe um beijo que cresceu entre nós como se anunciasse que não mais nos amávamos, a pingar o mel do liquido negro do amor como se estivesse pronto para jorrar dentro das nossas carnes daquela boca cheia de sangue.
Trituro o lencinho de sangue debaixo do jato e vou limpando aqueles lábios.
Todavia ela começa a chorar e continua a sangrar, reclinada sobre a pia do banheiro e abandonada, assustada, devastada por aquela violência - seus soluços escorrendo pela água da torneira aberta, por aquele jato único e forte, grosso e gasoso, como coca-cola sangrenta.
Tudo naquele momento parecia desabar.
Eu estava em tão agudo estado de morte que, naquele mesmo dia, introduzo o revólver de Val numa profunda fenda da poltrona da sala, lá onde a minha mão não conseguiria recuperá-lo, para não sucumbir ao forte e desesperador desejo de chacinar a todos.
Hoje nada sei. Tudo mudou. Pois o que me havia ferido foi vê-la, na área de luz de um automóvel distante, entre as pernas daquele homem, aberrante, imoral, desmesurado,
em angústia descomunal... Careço de caridade. Alterno, com lealdade, o ódio e o amor. Aquilo em que gastei a vida aparece e desaparece. Desentendo-me, cada vez mais comigo mesmo.
Terei de renunciar a Val? Nunca. Pois se Val viveu aqueles espasmódicos momentos consentidos, invenções minhas. Afinal, nós somos meras máquinas de repetição. Máquinas doentes de alucinada vacuidade. Por eles os amantes saíam um de dentro do outro depois da luta, pegajosos de gosma de saliva e esperma e outros líquidos do corpo, nas situações do mais extremo limite. E não era a primeira vez. E Val não tinha culpa. Era eu quem impelia, inventava aquilo que estava em concordância com o meu caráter pornográfico. Era assim, vendo-a a agredir no orgasmo e na obscenidade que eu conseguia obter a imaginação da matéria, pois em viva ficção criava ali como em laboratório experimental as amostras biológicas e bestiais, eram personagens imaculados, inoculados vivos pelos meus demônios, nas forças da devastação da felicidade humana da minha criação. Eles saíam da minha fantasia concreta, se afogavam como instrumentos da bestialização com que os manipulava, com que eu brincava criá-1os, cruelmente.
Pois o gigante que se movia entre as pernas daquele macho e sobre o ventre da minha mulher era o prolongamento da minha criação. Eu necessitava daquilo para viver e indispensável ao prolongamento do meu ser. Eu os amava. E me arrastava no gozo deles.
Mas aos poucos Val se recompunha mas nunca mais foi a mesma depois que Carlos, Jorge e Artur se foram de minha casa, todos com mil desculpas.
Val tentava reunir suas articulações retomando suas estruturas. Ela ainda parecia magoada, pois era como um ser extra-terrestre. Eu não me agüentava mais. Mas tinha de começar a ver a figura de minha mulher nua sobre um colchão negro e revolto.
ROGEL SAMUEL: A HISTÓRIA DOS AMANTES, 3
A primeira vez que a vi foi no cais, onde tudo começou.
Eu tinha ido ali para receber a lancha onde deveria vir o equipamento que havia comprado, e porque chegava um novo empregado de meu pai.
A lancha revelou-se e aportou. Dela desceu um homem baixo, forte como touro selvagem, que era o novo empregado. Depois apareceu sua mulher e minha futura sogra, como uma lavradora sulista, maternal, pacifica.
E duas meninas.
Uma, menor e mais morena, Lia. A irmã.
A outra, maior, coberta por um chapéu de palha que lhe escondia toda a porção do cabelo. Teria uns quinze anos. Era Val. Parecia um rapaz.
Meu pai administrava o que sobrou da fazenda da família naquele fim de mundo - a Ilha Atlanta.
O que eu chamava de pai era um apático, calado e burocrático homem, viúvo, que nunca se importou com minha existência.
E o que eu chamava de mãe era a figura de retrato antigo e amarelo: minha mãe morreu cedo. Eu nada sabia dela.
Fui criado por minha avó Madalena.
- Não gosto do Rio, dizia meu pai, esta ilha me faz bem à saúde.
- O senhor não volta mais para o Flamengo? - eu perguntava. Eu tinha viajado muitos quilômetros para vê-lo.
- Não, respondeu.
- O senhor não sente saudades de vovó Madalena?
Meu pai ficou sério. Olhou para mim e disse:
- Você cuidará dela...
Grande figura burguesa, minha avó Madalena ficava sentada na cadeira de balanço da sua varanda no Flamengo, correndo pelos dedos que bordavam, sacudidos na talagarça.
Tinha sido rica e poderosa, contagiada de civilização européia. Mas simples na sua majestade de fim de vida.
Era mulher extremada e corajosa, atenciosa e política, sofisticada e prática.
Que força, aquela? Minha avó Madalena sabia com facilidade colocar todos no devido lugar, e falava com todos como se fizesse uma concessão.
Ela tinha arquivos inquietantes.
Eternamente intocadas, suas gavetas encerravam preciosos mistérios. Foi necessário muita coragem e audácia para, no ano de sua morte, penetrar e profanar aquilo.
Eram carícias de sedas mortas, velhas fazendas fora de moda, mas que haviam acariciado suas carnes imponentes.
Uma pistola - uma Beretta 1919 - nunca disparada.
E fotos.
À medida que envelhecia, minha avó ia ficando com a face pálida e enrugada - mas o olhar altivo se mantinha, de velha rainha, ainda que cansada.
As palavras então se arrastavam, pastosas, pesadas, pontuadas ainda pelo gesto elegante se bem que raro, nas pontuações de sua dicção educada, sobre a nobre fisionomia fidalga, hierática, que imprimia ao leque rendado pousado sobre o colo, sobre seu vestido de seda.
Nos últimos anos ela já não era a velha rainha na cadência sonolenta, nas remadas cada vez mais lentas da dança de seu leque, na soberana inação de seu gesto fixo no ar, nas mechas de seu cabelo todo branco.
E mesmo na coragem com que, com grande perigo, sozinha em casa, enfrentou o ladrão que invadira o jardim, pondo-o para fora aos gritos.
Sim, já não era o velho sol, mas uma espécie de lua que adormecia cada vez mais fraca na espuma de estrela de uma noite escura que se adensa, ia-se apagando, como luz de vela esquecida na solidão de uma desusada sala, mergulhava nos seus fantásticos sonhos, ia fechando as pálpebras de volta a um passado antigo, extinto, se diluindo numa memória fragmentária em busca do inatingível.
Morreu como as superfícies das águas estagnadas sobre as quais caem leves pétalas de glicínias maceradas...
Minha avó abriu consideravelmente sua bolsa para mim. Ela orgulhava-se de mim! Relia meus livros, achava-os bem escritos, recomendava-os às amigas e cobria-me de homenagem e dinheiro.
Como Ernesto Sábato, ela dizia "escrever para ganhar dinheiro é abominável" - e como eu não tinha outro recurso ela me deu o seu braço e o sua poupança.
Afinal me compreendia.
Aos 22 anos de idade eu era um desempregado, e antes de me ter como o gênio da família temia por mim de me ver cópia do vagabundo que tinha sido meu pai - e realmente: além de escrever nada há neste mundo que eu saiba fazer e com que pudesse ganhar a vida. A carreira literária me daria um sentido novo a seus olhos, eu me tornava confiável desde que aparecesse nos jornais como escritor da moda.
A fortuna de minha avó, que já fora grande, consistia então em alguns imóveis e ela não tinha renda, mas alguma coisa economizada. O patrimônio imobilizado ainda significava algo e a poupança bastante curiosa, pois minha avó tinha uma paixão: as moedas de ouro, libras principalmente, guardadas num cofre bancário.
Quando ela morreu, e como meu pai já havia falecido, foi tudo divido entre seus sete netos herdeiros.
Tia Clotildes, casada com um oficial norte-americano, herói da 2ạ Guerra, com quem teve duas filhas que nem conheço. Tia Anastácia, a mais velha, morta há muitos anos, eu menino, deixou Ricardo em São Paulo, Renato no Rio, bailarino e professor de balé, e Rachel, que mora em Salvador com o marido.
Com minha parte comprei um pequeno apartamento. No Flamengo.
Alguns anos antes, e por cruel coincidência, o tiro que abateu Vargas no Catete matou também a metade do que sobrava de meu pai. No mesmo dia 24 de agosto de 54 meu pai ficou hemiplégico.
Estava na Ilha.
A hemiplegia de meu pai paralisou todo o lado direito - a perna, o braço, a face e a língua, impedindo-o de falar. Sobreveio à uma hemorragia cerebral e como minha relação com ele sempre fora hemiplégica, atingida ou semi-destruída nos seus dois pontos, o do contato afetivo (que ele nunca teve comigo, nunca me falou) e o do contato físico (que ele nunca teve comigo, nunca me tocou e suas únicas duas carícias de que tenho recordação, o passar a mão sobre minha cabeça, me provocaram súbita reação defensiva), e como não conheci aquela que dizem que foi minha mãe, que desde cedo me deu plena autonomia dela com sua morte, e como minha avó Madalena era, à sua moda, altiva e independente, estive o tempo inteiro de minha formação e infância livre tanto daquele pai visível quanto daquele outro tipo de pai invisível, de que se pode fazer em projeções, como num imaginário Deus onipresente, ou a figura do Estado, que nem na Ilha, nem em casa de minha avó nenhuma autoridade existia, apesar da poderosa influência dela sobre mim, pois ela sempre dizia que criava os filhos e a mim para "mandar" e não para "obedecer", o que significava que eu cresci em pleno anarquismo.
O esmaecimento da figura paterna, ativa e operante, sempre deve ter caracterizado a minha para mim mesmo inexplicável personalidade. Minha avó assumiu a função de mãe como um tipo de pai de saias, mas invertendo todo o valor atribuído a essa figura, real ou imaginária, de pai ou pátria.
Sem culpa desde cedo esconjurei o meu parricídio simbólico num total desprezo pela idéia de autoridade, o que entretanto não me faz forte, e pelo desprezo a meu pai (e dele para comigo, que sempre fomos estranhos um ao outro, ou melhor: ele me odiava), rechaçando-o enquanto modelo, substituindo-o por minha avó.
Meu pai, na sua ausência, no seu hiato hemiplégico, nunca simbolizou os poderes constituídos, e eu só dispunha de meio-pai a partir da hemiplegia. A sua presença, se é que a senti algum dia, significava mais que um vazio, um pai entre parênteses naquela imprecisão em que ele se entredisseminara no seu exílio na Ilha e no estado de meio-morto, no seu esconderijo e na sua ruína, na sua indiferença e no seu estrago. Meu pai, eu me lembro, era um homem de desconversas, sobrevida da melancolia, contínua depressão, escondido na figura indecifrável de um rosto mudo e neutro, quase bestial. Mas o que mais o afastava de mim, e o neutralizava na comparação com minha avó, era sua completa afeição à mediocridade, algo assim como a de um funcionário público aposentado sempre com as mais intoleráveis frases-feitas de um senso-comum idiota.
Uma de suas mais familiares e favoritas expressões ("eu nunca vi ninguém fazer isso") me fazia que ele parecesse permanecer num estágio pré-lógico em que seria até capaz de retirar de sua família (que era eu) aquele tipo de fala em que se sustenta a ordem do simbólico da civilização, já que ele tomava como modelo de pensar e de comportamento aquelas que eu sempre considerei as mais medíocres pessoas existentes sobre a face da terra. Santo Deus! ele era capaz de banalizar a maior sublimidade...
Desta forma não lastimei a perda tardia da fala de meu pai, tardia mas castrante. Ele nunca a teve.
Entre o sol e o solo aquela menina como um reflexo de Deus e por entre a minha intransigência passava a soberania da recém-chegada, escandindo os passos na pedra - eu com dezenove anos, ela atravessando perto de mim como se pisasse numa toalha.
Eu não só me senti confiante naquilo que devia ter atraído e criado de meus profundos delírios com sua visão mágica, como também a sinceridade, a ressonância daquela menina, aparecida no nascer de um dia de verão, tocava o presságio de que minha relação com meu próprio corpo começava ali.
Quando aquela menina me olhou de frente, olhar reto, desafiante, o primeiro contato que com ela tive foi de sexualidade, imediata ligação, como se eu já a tivesse possuindo ali, no cais, pois vejo que ela estava impondo e ordenando a regra básica de sua lógica impiedosa comigo, a vida toda, que diz: "me aguarde", e porque aquela menina era um monstro. Eu poderia até ter chegado ao fim se continuasse a bebê-la com os olhos daquela maneira.
Ali logo o demônio do jogo do amor inventou mil venturas e perdições, incendiando de calor da força sexual que vinha dela o meu olhar - ela sob aquele vestido leve, pobre mas primaveril, palpitava de amor numa agudeza nada inocente: ela me fisgou, logo ali, com os olhos, aquele ato, ela sabia, eu era dela.
E me perdi.
ROGEL SAMUEL: A HISTÓRIA DOS AMANTES, 4
Porque ali estava Val.
Na soberba força de sua juventude, força que nunca deixaria de ter e, vigorosamente bela desde o primeiro dia, desde aquele primeiro instante arrancava do ambiente de sua aparição todos os pontos e ângulos competitivos para só nela se concentrarem, os cabelos ocultos num chapéu de palha que a travestiam num rapaz, num príncipe, ou na representação de amazona, que eu imaginava (tanto amava o cinema norte-americano, e me perdoem o exagero e o deslize) que ali tivesse descido dos espelhos das telas dos cinemas de Hollywood uma menina Marilyn Monroe morena, portanto um pouco queimada de sol, os cabelos e olhos negros e que ia atormentar-me o desejo.
A segunda mensagem de seu olhar que nada tinha de proibidas promessas, mas um traço explicito: "vou possuir-te!", e ali se revelava em mim toda a sua vocação, e ali se revelava nela toda sua propensão para a atividade, um macho dentro da delicadeza fêmea, na minha concepção machista de que, pegando ela o parceiro na cama, autoritária e com lascívia, sem entrega, sem baixeza, densa nas artes do amor, era ela quem dominava quem, sedento de seus amores, de seu sexo, se via nos sugadouros de seus prazeres ativos e sobrepostos, impressão tão duradoura quanto, ao arrepio de seus parâmetros, ela convidava como se dissesse: "vem, que Vals experimentar o que eu poço fazer" (e que sei eu, depois disso?), o magnetismo oculto, depois provocante e incompreensivel. Só dela. Mas ela sempre dominou o parceiro.
Em novembro de 47, num almoço em casa de Amaro de Souza, Chefe de Polícia do Estado de Pernambuco, Antônio Rodrigues, pai de Rôni, conheceu aquele ex-sargento, chamado Manuel Pacheco, pai de Val, tido como excelente homem, preso e torturado em 35, quando teve todos os dentes posteriores arrancados com alicate; preso e torturado em outubro de 47, escapando de ser crestado com maçarico, ex-membro da LCI, a Liga Comunista Internacional, criado e protegido da família de Amaro, "senhores de engenho liberais", mas que, não sendo pessoalmente um homem perigoso, Amaro, conhecendo-o desde menino, que foram criados juntos, o tirara da prisão direto para sua casa, até que, em 49, quando a caça aos comunistas recrudesceu, Amaro pediu ao Doutor Antônio, pai de Rôni, que o levasse para a Ilha, para sua fazenda Paraná, pois o Chefe de Policia não queria que pensassem que ele dava proteção a comunista.
Manuel Pacheco, machista e ateu, era homem duro, gênio inflexível, irônico e perspicaz, dir-se-ia inteligente se tivesse alguma leitura. Baixo, grosso, forte, agressivo, olho de tigre: violência indiscriminada que às vezes atingindo os alvos errados de sua mulher Fernanda e suas filhas, Valquíria e Lia.
Mas Pacheco gostara de seu novo patrão, e este dele, da sua força física e moral, sua habilidade múltipla foram providenciais na fazenda, o patrão era um ausente, as coisas com Antônio não andavam, e o pulso de ferro de Manuel Pacheco se fez logo sentir.
Val, porém, era prisioneira em casa, não podia ir sozinha à escola do litoral, seu pai nada permitia, e censurava tudo. Ela era obrigada a passar as tardes costurando, como uma velha inválida, ou ouvindo o rádio, como numa prisão, a televisão ainda não tinha chegado.
A ilha era grande, mas ali não era. A casa de Val parecia uma ilha dentro da Ilha Atlanta. As outras meninas, soltas, indo e vindo de bicicleta, livres, nunca virgens.
Mas Val reage.
Desde cedo seu poder de resistência enfrenta o pai e ameaça fugir. O pai a agride, e Val o odeia. Quando o pai chega, ela sente uma pressão no peito, que a sufoca. O pai tendo um modo de a olhar que para ela era uma ofensa, pois à medida que ela ia tornando-se mulher o pai a observava como se a examinasse, ou como um fiscal, como algo, uma coisa, uma censura.
Ela se sentia só, a irmã e a mãe submissas ao pai. As colegas a subestimavam, julgando-a esnobe, metida a rica (seu pai tinha prestigio e poder na ilha). Val não participava da vida que elas viviam.
Val não tinha namorado, quieta e calada, magoada e bela. Toda a sua violência explodia em casa. Val não tinha medo. Desde cedo viverá na família um clima de guerra. Val declara guerra ao Pai. Val aprende a não temer a morte. O pai dizia: "esta menina é maluca". Ela o enfrenta. O pai dizendo sempre: "aqui não tem ambiente para uma menina decente". Ela pensando: "meu Deus, por que tenho de viver trancada, como uma doente? Que direito tem ele sobre minha liberdade?" O pai, que quisera um filho homem, de certo modo despreza as duas filhas.
"Mulher só dá trabalho", diz. E ele se horroriza com o fato de que, inexoravelmente, ela vinha transformando-se numa mulher desejável, sensual.
Ele sabia, e temia, todos os homens da ilha estavam desejando sua filha. A todo momento o corpo daquela menina dizia para ele: "preciso de um homem"'. Por que ela não era o ideal de mulher submissa que Pacheco esperava (uma camponesa forte e assexuada). Val era já mulher com substância, e Pacheco, apesar de suas doutrinas políticas, tinha um conservadorismo histérico quanto à sexualidade em geral, as piores palavras para ele sendo "puta" e "veado", e não "imperialista" ou "burguês".
........................
Abro a porta e sinto o murmúrio eclesiástico que tomava a casa no dia em que o pai morreu.
Ali jazia. Atmosfera mortal. Val me olha, e era como se dissesse: "O Rei está morto".
- É isso. Isso! - disse-me Val.
- Não sei o que dizer, fala Rôni, quase sussurrante, sentindo que ela permaneceria calada e que ele a esperaria, sozinho, naquela mesma noite, sentado no banco de pedra.
- As... - As outras... - Rôni segurava ansioso o braço de Val, e os dois pararam à porta do horizonte de um fato inevitável. No silêncio que se seguiu à morte do pai.
De repente, só os dois existiam, e ouvia-se o sombrio mar de rijo vento e a noite na expressão angustiada. Era uma transformação.
- Você tem coragem... - começou a dizer Val. Parecia que as suas palavras eram articuladas para sempre restarem incompletas, inúteis. Havia um esforço no dizer, um propósito em esconder o verdadeiro significado das mínimas silabas, e seu olhar assume um: "De que você me acusa?" Pois ela se voltou com violenta expressão, não tinha dito o que deveria ficar escondido, aquilo que principiava, o que devia iniciar-se, aquilo que era sagrado, a grande gafe, sua libertação! Olhou para frente, e era como se dissesse: "Você não me está vendo?"
Bastava.
- Não!
Rôni poderia perguntar: "Você o matou?" Rôni disfarça a indignação. E ela poderia responder: "Sim. Há muitos anos".
O vento.
- E então? disse Rôni.
- Que quer que eu diga? disse Val.
- Você o amava? pergunta Rôni.
Ela não respondeu. Chorava com o impacto da pergunta.
A presença é um grande afastamento. Um cadáver ocupa muito espaço. Um cadáver não tem forma, tem presença.
Val não dizia o que realmente deveria ser dito. Sua simulação não mentia. Poderia pensar: "Não digo o que sinto, o que é tão contrário. Só sei que ele acabou de morrer".
A viúva emergia, trágica. Rôni dispôs-se a sair.
- Não me Val dar os pêsames? pergunta Val, irônica.
-Lastimo, disse Rôni.
Realmente ele tinha lágrimas nos olhos.
- Sei disso, disse Val. E calou-se.
Quando Rôni subiu a rua, seu vulto escuro era uma sombra em que se envolvia a densa noite.
ROGEL SAMUEL: A HISTÓRIA DOS AMANTES, 5
Quando cheguei ao Rio, e no decorrer dos quatro anos seguintes, considerei definitivo o meu afastamento da Ilha e dos seus dons de juventude que ali nos habilitava a manipular e a manifestar, sem constrangimento, o magnífico patrimônio autárquico e anárquico dos humores das nossas relações.
E Val comigo.
Que de lá também saíra. Aquilo que só se observa com justeza estava comigo. Mas o fio obscuro daquele lugar primitivo afinal se rompia.
Foi quando minha avó, com sua súbita morte, me abandona talvez para que eu me tornasse independente dela e me considerasse a mim mesmo finalmente um homem.
Ela havia abrigado em sua chácara o que sobrava da carcaça morta em que meu pai se transformara, arrendou a fazenda e me fez, através de seu banco, uma mesada que daria para o sustento de uma pequena família de classe média. Minha avó queria assim que eu me tornasse senhor de meu próprio destino e aprendesse a viver só, dono de meu nariz, como ela sempre fora.
Estaria eu na Europa estudando se não tivesse Val a meu lado. Se obedecesse aos desígnios de minha avó. Altiva e orgulhosa, tinha ela do homem superior uma idéia toda sua. Sua mesada poderia, na sua concepção, e à minha revelia, me converter num respeitável, importante e distinto cavalheiro - "ser alguém", dizia ela, o que para minha avó significava ser de boa família e ter acatamento público - bastava ter o curso superior concluído e algum dinheiro para que alguém ganhasse sua deferência e apreço.
Queria que eu fosse advogado. Talvez para não ser nada, ou nada fazer. Ser advogado era, para ela, uma mera honorabilidade. Inútil, portanto nobre. E, embora não fosse de seu feitio preocupar-se com nada desse mundo, creio que ela já suspeitava de mim que eu seria como meu pai um incapaz, irresoluto sem dúvida débil e insubsistente, e decidiu nada fazer por mim, experimentar-me e ver se eu tomava jeito na vida - quando "nada fazer", na sua modalidade, incluía dar-me uma pensão - "de estudante", dizia ela (embora eu já estivesse com 26 anos) - e não, como se pensaria ou se esperava, deixar-me morrer à mingua, de miséria e fome.
Ela queria que eu competisse por mim - seu sonho seria saber-me famoso na política ou "nos negócios" - e nada disso eu ainda decidira, e creio que, no fim, isso certamente a magoava, embora não revelasse os seus sentimentos a ninguém, e parecesse esperar que eu estivesse apenas afiando o gume para uma posterior arrancada triunfal nalguma profissão conveniente, ou burocrática, mas de geral e grande repercussão.
Nas associações de suas idéias ela me comparava e se lembrava dos nossos antepassados, dois que foram Ministros de Estado, um Juiz de Direito, bem sucedidos negociantes, tios, irmãos e primos dela, mas todos de sua época.
- Tivemos dois bispos na família, dizia ela.
A nova geração, filhos, netos e sobrinhos, tinha-se revelado a seus olhos lastimável e incompreensível fracasso, na vulgaridade e no anonimato de uma família decadente que dissolvida em sufocantes e inaceitáveis princípios de idéias modernas que ela desprezava com um muxoxo, um abanar do leque ou da cabeça, e um erguer das sobrancelhas arqueadas em lástima e resignação, desde a maneira de trajar (homens sem paletó, em mangas de camisa; mulheres mal-vestidas), até a fala coloquial, inculta, rotineira da conversação, democrática mas vulgar, que sem citações elegantes soava a seus afinados ouvidos cultos como baixeza e obscenidade.
- Falávamos francês à mesa, lembrava ela.
Sua mesada substituiu-me, na consciência, o fantasma infantil de uma provedora mãe que me acompanhava e que nunca perdi.
Eu trocava minha mãe pela boca indiferente de uma caixa bancária.
Minha mãe era agora o seu talão de cheques.
Não lastimo, pois sempre fui "livre" (ou desamparado) desde menino, e o fato de não ter tido nunca reais dificuldades financeiras (nem luxo, simplesmente) funcionava em mim como se eu fosse sempre perseguido pelo abandono daquele fantasma de minha mãe, impalpável mas providencial, como um espírito invisível sempre me negando sua face e nunca me negando concretamente o seu regaço acolhedor.
Eu entrava tardiamente na Universidade, atrasado pelos anos que me demorei e me deixei ficar na Ilha sem estudar. E com o dinheiro de minha avó aluguei um apartamento no Flamengo, onde depois comprei, não excessivamente longe de sua casa, aonde eu ia a pé, mas de onde, eu sabia, ela jamais teria a indiscrição de espionar-me ou controlar-me dentro de minha própria casa. Não minha avó. Só liberta quem é livre. Ela mesma independente. Orgulhava-se disso, indômita desde menina, nunca procurou ninguém, nunca visitando ninguém sem ser convidada antes e mandar avisar por um menino (que não usava o telefone para isso: o telefone era considerado por ela um instrumento mexeriqueiro, inconfidente e leviano).
Insubmissa: aos 75 anos viajou sozinha por toda a Europa durante quase três meses.
Sempre gostava de viajar só, e quando acompanhada, enquanto suas amigas iam às compras, ela seguia para o museu de Antropologia.
Minha avó Madalena era o marco da independência (burguesa, é claro, pois só a sua independência financeira lhe poderia moldar o caráter), marco em que eu sempre me agarrei para não soçobrar nos momentos de depressão, como a um símbolo, ou para neutralizar e combater em mim a minha natural tendência à dissipação e dissolução psicológica em que, se mergulhasse ali, eu sei que me teria feito em pedaços.
Naquele apartamento vivi com Val sem que minha avó soubesse, ou sem que eu soubesse que ela sabia, e era como se estivéssemos casados.
Foi um período que me deu alguma significação, e ainda hoje vivo os grandes, pesados e insubstituíveis momentos recordados ali, que ali se deu a minha primeira imersão naquilo que se poderia chamar de experiência da felicidade amorosa e sexual, nunca esgotada, que ainda hoje me acena com suas cicatrizes e determinações.
Coincidiram com os anos da Faculdade de Letras da Universidade do Brasil, de que eu hoje sempre recordo e imagino de maneira desigual e diferente, período mutável na minha criação como um caleidoscópio ao sabor de cada emoção passageira, ou como se não fosse senão algo móvel e nunca sedimentado, e lacrimoso, obsceno, removível na sua efemeridade abjeta, tempo que depois se transformou em tragédia, na ditadura militar, tempo em que se atravessa de viés, na minha vida e em tudo aquilo que se passou e que para mim ficou, de repente, velho e secreto.
A HISTÓRIA DOS AMANTES, 6
ROGEL SAMUEL:
Na primeira vez que a recebi no Flamengo o contato de nossos corpos e o fato de estarmos juntos novamente descobriu na nossa relação um desconhecido ódio que explodiu com tal intensidade que me pergunto se Val não transferia para o espaço da cama as dimensões da sua luta de classes.
Eu tinha ido à casa de seus tios em Caxias, naquele anexo ao Bairro 25 de Agosto que era quase uma favela, lá onde me tornei amigo daquele jovem que depois se tornou em perigoso traficante, e onde, como eu insistisse e necessitasse muito, fomos primeiro a um cinema na Praça do Pacificador, e de lá para a deliciosa experiência sexual num hotel. Completamos nossa aventura saindo do hotel para o Flamengo, ao que ela inicialmente se opôs e onde ela terminou morando, a princípio indo lá algumas vezes, quando permanecia ali somente algumas horas, para depois pernoitar comigo, tomando juntos o nosso café da manhã com leite condensado e pão fresco, até chegar à época dos seus fins à praia de Copacabana e à tarde vermos o pôr-do-sol no Arpoador, e daí em diante, como eu a prendesse cada vez mais, convertendo-me em indispensável por um processo de sedução consciente e por artimanhas de que a fiz economicamente subordinada a mim, como a toda a sua família, seu pai não lhes deixara a mísera pensão, exonerado, perseguido e torturado que foi pelo sistema de repressão estatal, e ela viera para o Rio em companhia de sua mãe e sua irmã, ela não mais se libertou de meus laços e da sutil tessitura com que a envolvi totalmente. Eu precisava dela. Fi-la dependente economicamente de mim.
Logo no caminho da primeira vez que com ela vinha ao Flamengo, eu começando a me sentir completo com Val a meu lado, sem o medo devoluto de meu amor próprio
acerca de tudo o que sou e tenho, contra tudo o que ela era e lutava, porque agora no Rio de Janeiro a nossa separação, urgente, aguda, vulnerável, vindicativa, seria humilhante: Val pela primeira vez se sentia, queimando-lhe a pele, na experiência concreta da sua classe, com cinco pessoas morava numa casa de quarto e sala num subúrbio cujo melhor e mais eufêmico adjetivo seria sujo (pois ao lado de sua casa começava uma grande depressão no terreno e uma área baldia que culminava num lago formado pelas chuvas e num posterior monturo de lixo, as pessoas despejavam o lixo de suas casas pela ribanceira onde muitos anos mais tarde surgiu uma Universidade), e o dinheiro começava a fazer falta a ela, que nunca, apesar da vida atribulada que vivera com seu pai perseguido, passara as privações da grande cidade, e via-se agora sem poder fazer, nalguns dias, todas as refeições, modestas que fossem, e se deu conta finalmente de que entre mim e ela havia uma separação bem delimitada de classe social, ela oriunda de uma classe média pobre que se proletarizara ainda mais, e eu vindo da alta burguesia decadente desde as fazendas de café de meu avô no Estado do Rio até a semiparalisia de meu pai, nós dois tínhamos empobrecido, mas eu ainda continuava membro de um respeitável sobrenome, que era da burguesia antiga, do campo, que resistia, classe residual e nunca totalmente extinta neste pais.
Por isso aquele amor lírico e louco que nos unia desde o fundo de nossas vozes juvenis, cantos, frases soltas e idílicas, deixava de existir e caíamos na nova realidade e com esforço eu ia ter de juntar os seus pedaços para ligá-los de novo, e o de que eu participava perto de Val eram dos estampidos noturnos dos tiros que se ouviam de sua casa quando quadrilhas disputavam o espaço de Caxias a palmo.
Meu esforço para que não se rompesse a declaração, tão bela, até então, de meu amor por Val se esbarrava nas experiências mais comezinhas, para mim inéditas; para ela fundamentais (como a de eu ter de dar o dinheiro para a sua subsistência e de sua mãe e irmã, que era como se eu a tivesse pagando, como a uma prostituta), fatos descosidos de que só sei o meu lado, que Val se encontrava naquele tempo no mais crítico estado de necessidade e oh, nunca pulei o muro e o rio de sangue, e de Val só sabia o que ela me outorgou o direito de saber, Val minha princesa, dona de meu corpo, ela deveria passar
imediatamente para minhas definitivas mãos, ou eu corria o risco de a perder e de que ela se tornasse minha inimiga irrecuperável.
Pois ela, aparentemente frágil, bela, fácil mas diferente, na cândida aparência de menina humilhada, magoada, na feminina figura de uma Marilyn dos trópicos, começava a militar em não sei qual ala de um partido clandestino de esquerda que tinha, no Nordeste, na multiplicidade das Ligas Camponesas, a sua mais altiva voz, e quando ficávamos a sós nada revelava do que fazia no outro lado oculto da sua vida e abandonada, isolada, descontrolada se fechava em silêncio sem remédio acerca daquele seu lado obscuro, a tal ponto que, por certas manchas roxas em sua coxa um dia, eu comecei a desconfiar, e disso tenho quase certeza hoje, a tal ponto a conheço agora, de que ela em certas noites
que não estava comigo ia fazer trabalho como prostituta profissional, perto de um hotel na Avenida Brasil, cuja freqüência deveria ser das mais perigosas, tudo isso para se ver livre de mim e de minhas custas.
Finalmente, como se não bastasse, e para aumento de minhas suspeitas e dúvidas, um dia, depois de comigo fazer amor, tendo ela ido para o banho e como eu procurasse um cigarro na sua bolsa, ali encontrei, negro, pesado, municiado, um 38 de cano curto que fiquei detidamente examinando, como a um monstro, sentado na beira da cama enquanto ouvia correr a água do chuveiro que caía da sua ducha fria sobre a cerâmica do piso.
Com apenas 23 anos, ou por causa disso, Val lutava pela mobilização das lutas operárias que explodiam no Nordeste. Sua vida não combinava com a de um Rôni então amante de motocicletas, de rock, enquanto concluía com certo brilhantismo o curso de Letras Clássicas e mergulhava na primeira redação das primeiras páginas de seu primeiro livro.
Mas, apesar das discordâncias e diferenças, acabamos nos entendendo, ela como ídolo vivo no ar vazio de minha imprecisa vida, como ideóloga de meu amor, pois eu era mais frágil do que reacionário. Ela me humilhou? Nunca me humilhou ideologicamente, mas eu sabia que, se quisesse, poderia me ferir. Me dominava, como durante o ato de amar. Eu a temia. Não. Não consigo me libertar da liberdade dela.
Ela era livre demais para mim. Mas sempre voltava. Como para um lugar sossegado após a tempestade. Ela me mantinha na ilusão de que eu não estava só. Mas em algo que não sei explicar com clareza, ela se parecia com minha avó Madalena.
A HISTÓRIA DOS AMANTES, 7
ROGEL SAMUEL
Val trabalhou comigo durante cinco meses na segunda redação de minha novela. Ditava modificações no texto e no enredo, atuava na simplificação do meu estilo (sempre tendendo a ser empolado), me indicava pontos fracos.
Devo tudo a ela.
Graças a ela meu primeiro livro ficou razoavelmente bom.
Ela passou toda a sua experiência feminina para meu texto.
Por fim datilografou as duzentas e vinte e cinco páginas e o livro se transformou numa novela epistolar, em que o telefonema substituiu a carta, podendo-se dizer que era uma estória telefônica, e ali dois jovens se correspondiam, prometendo amor eterno, encontrando-se às escondidas para fazer amor. Todas as incertezas dos jovens estão ali. O diálogo está muito solto, belo, real, extraído de nossas próprias conversações.
Mas foi difícil de vender.
A Editora Prometeu, de São Paulo, o publicou às minhas custas, sem muito alarde, mas com aquela capa colorida em que um jovem motociclista tomava nos braços a exuberante e sensual loura. O rapaz parecia dizer algo que ela quase já não ouvia, inebriada.
A primeira edição custou, mas se esgotou. Era pequena. Não foi um sucesso, mas uma única referência critica que ganhei valeu uma consagração: a do Mestre Alceu Amoroso Lima, meu professor de Literatura Brasileira, amigo de minha avó, que escreveu pequena carta sobre as relações entre o amor divino e o amor profano, provocado pela leitura de meu livro, que ele elogiava em duas breves linhas como um "romance sentimental bem escrito". O pequeno texto dele era uma de suas obras-primas. Aquelas duas linhas, publicadas quando a primeira edição do livro já estava quase esgotando, para mim, eram como se me lançassem no panorama das letras nacionais como um jovem promissor.
Depois, publiquei alguns contos no Correio da Manhã.
A grande intelectualidade, porém, não me reconhecia. Nem poderia. O meu trabalho literário saía numa época em que, alem do Concretismo, havia escritores como Cabral e João Guimarães Rosa (com quem longamente conversei, acerca de «Grande sertão: veredas», na porta da Academia). Havia um apogeu cultural até hoje insuperável. De certo modo eu era escritor desconhecido e sem sucesso de crítica e de venda.
Assim comecei a vida literária e me tornei um profissional dessa rara profissão, ainda que vivesse mesmo dos alugueis dos imóveis que vinha avó me deixou.
Formei-me em Letras Clássicas e sonhava casar-me com Valquíria numa igreja
engrinaldada, saindo no dia seguinte para Cabo Frio.
Eu era feliz.
Mesmo a essa altura ainda me sinto desnorteado para encontrar a via segura que me contará os passos dessa história. Val se transforma cada vez que a penso.
No inicio da década de 60 ela começou a estudar inglês, a ler muito, a fazer psico-análise. Cuidava tardiamente de sua educação, com 29 anos. Acabou dominando razoavelmente o idioma, passou depois para a terapia grupal, escreveu poemas, lia os principais jornais e dois livros por semana. Ia ao cinema, ao teatro, mas continuava reticente quanto à música erudita, de que eu gostava. Dizia que eu era colonizado culturalmente e desligado do real. Quando estávamos juntos púnhamos no toca-disco a bossa-nova, Baden Powell, Tom.
Seus prediletos.
Mas nossos problemas sempre recomeçavam, nunca resolvidos, indenes.
Houve um período, entretanto, em que ela se demorou seguidamente, quase um mês, em minha casa: estava eu escrevendo o roteiro do meu próximo livro.
Val ideal, cuidando da casa, conforme meus padrões machistas, cuidando de mim, eu não me sentia só, era tratado e amado por ela. Foi uma época sem grandes ciúmes, Val me empurrando. Na carreira de escritor.
Numa noite de dezembro de 63 Val chegou tarde excessivamente agitada. Gritava, incompreensível e apavorada. Tinha os cabelos amarrados na nuca, como uma camponesa, e vinha de uma reunião política.
Eu estivera relendo «Crime e castigo» e já começava a adormecer quando ela me acordou, chegando.
- Que aconteceu? perguntei, vendo o seu estado.
- Tive um atrito, provoquei um tumulto, mandei todos à merda. Mas eles não me levam a sério porque sou mulher...
E foi falando, falando, enquanto tirava a roupa, procurava um cigarro, dirigindo-se para o banho. Não encontrava um copo, bebia com a garrafa na mão.
- O quê? perguntei, acompanhando-a.
- Uns merda! Rôni, uns merdas. E burros! - gritava, como se quisesse acordar todo o bairro.
- Quem? perguntei.
- Todos! Todos eles!... Não vêem o que está na cara de todos! Pensam que reforma de base é revolução socialista, forçam a barra, tumultuam o país e vão provocar uma reação armada da direita. Uns merdas! Tumultuam o país para provocar uma reação de direita!
- Mas você não é a favor das reformas de Jango? perguntei.
- Sim, Roninho, respondeu ela com a paciência inesperada com que falaria a uma criança: Mas é preciso compreender as reformas de base. O país é enorme, e as bases estão longe de serem amadurecidas... Há poucos anos, na época de Getúlio, ainda vivíamos nas cavernas... O povo é muito conservador, a sua consciência ainda está em formação, tanto a massa proletária, quanto a classe média. Não é fazendo greve todo dia que se vai amadurecer a consciência nacional, a consciência de classe. O pais está à beira do abismo, do caos, mas não da revolução, entenda, mas não da revolução!
Ela gritava:
- Filhos da puta! A esquerda está empurrando o pais para o caos. A direita vai jantar! As reformas de base, tal como propostas por Jango, de cima para baixo, servem apenas para neutralizar a revolução, uma proposta social-democrata.
- Mas não desenvolvem o país? perguntei.
- Sim, disse ela, já nua, já dentro da ducha do banheiro. Mas o pessoal tá fazendo greve contra o próprio Jango. Tomaram dele a liderança das reformas de base, da pseudo-revolução, querem radicalizar. Jango perdeu o controle, está forçado a reagir, empurram-no para o lado conservador. Jango é um palerma, está acuado, terá de renunciar, vai cair, e eu "sei" que não virá um governo popular, porque não pode vir, porque não temos nenhuma base política no país. A esquerda e a direita se encarregarão de derrubá-lo. A serviço de quem, meu Deus? A quem interessa? As reformas de base fazem parte de uma conjuntura ocidental para evitar outra revolução cubana no Terceiro Mundo. Esse pessoal é louco, querem agora forçar o presidente a uma reforma agrária, quando o próprio presidente é um latifundiário. Pensam que Jango vai lutar contra seus interesses.
- E o que você acha que se devia fazer?
- Aproveitar o que for possível das reformas de base sem tumultuar o cenário, fortalecer o governo de Jango, apoiá-lo para conseguir o que for possível, pacificamente. E tocar o bonde! Não podemos forçar o governo à uma reação contra as reformas, a dar um passo atrás, empurrá-lo para os braços da reação. Estão querendo demais dele. Ele não tem essa força política, Rôni. Não tem! Essa estória de mobilização popular é um perigo, não se fabrica uma revolução num país como o nosso, há mais líderes de esquerda à serviço da direita do que você pensa... Eu vou cair fora! Filhos da puta! Eles não me levam a sério porque sou mulher!
- Não entendo uma coisa... - comecei a dizer. Mas ela me interrompeu:
- Você vai ver, Rôni. Jango vai cair, as forças que o apóiam se radicalizaram e estão desvairadas, se afastaram dele, o deixaram nu e acossado. Suas reformas são vistas como uma revolução pelos Estados Unidos, ele não pode ficar mais à esquerda do que já está. Ele está só. Não pode radicalizar, pois é apenas um reformista... Há um erro, Rôni, um grande erro... Esse pessoal não segue nem o Manifesto de Marx. Estão a serviço da direita? Hem? Responda-me?
Seus olhos fuzilavam.
- Acalme-se, disse-lhe eu. Beba.
Eu lhe passava um copo de uísque para dentro do boxe. Val estendeu a mão cheia de espuma. Bebeu um grande gole.
- Obrigada, disse-me.
A HISTÓRIA DOS AMANTES, 8
ROGEL SAMUEL
Fomos para Búzios.
Mas, apesar de tudo, algumas vezes, sentia eu nela um indisfarçável e indefinível aborrecimento. Era quando eu começava a pensar que ela só estaria comigo por pouco tempo. Ou a percebia no meio de um certo vazio, em que ela nada tinha para me dizer.
Tudo resistia à clareza com que eu tentava entendê-la. Nunca a compreendi. No medo em que vivia. Expunha minhas teses. Que a vida dela em Búzios, eu inicialmente pensava, estava ficando monótona, desagradável, longe do cenário político.
Mas eu estava enganado, conforme depois vi.
Entretanto, ela nada revelava. Nada do que estava se passando.
Sim, Val se desarticulava. Era em vão que eu tentava rearmá-la, no curso de minha vida, de minha ficção. Ela não agüentava, não suportava mais, eu unia as partes que se soltavam dela, não deixando que seus detalhes mais importantes se perdessem para sempre, se desarticulassem. Mas ela se adelgaçava, se virtualizava, se enfraquecia progressivamente, e eu não lhe podia valer. Nada a reanimava, nem mesmo nossas idas ao Rio, como a em que fomos conhecer Nara Leão no show «Opinião», ou quando fomos ver «Vidas secas», de Nelson Pereira dos Santos, e «Deus e o diabo na terra do sol», de Gláuber.
Mas Val não queria mais ir naqueles meses ao Rio, alguns de seus amigos da CGT estavam presos, a UNE arrasada, incendiada, saqueada, os sindicatos sob intervenção militar.
Sim, o começo foi assim, o começo do meu fracasso, com ela fora do casamento, que eu não devia nem podia ter casado, tenho de viver na minha solidão somente, para não desarticular o outro. Mas era um erro de que eu não me queria arrepender, e de que não me arrependo até hoje, pois tinha sido uma necessária experiência.
Foi então que, inesperadamente, inexplicavelmente, de modo súbito, louco e imprevisto, Val disse que estava grávida.
Eu já devia ter notado que a nossa união se dava no meio de uma crise movida pela inexistência de outra motivação em sua vida, não sendo causa mas conseqüência vital.
O abismo onde sempre tenho a tentação de poder escorregar e cair, como quem pisa cauteloso sobre uma ponte de tabuas podres, se mostrava na minha frente. Mola do meu medo. Castigo do meu casamento.
O fato de que Val nunca engravidava era para mim um permanente passaporte ao perigo da sua liberdade, que nada nos prendia se não tivéssemos filhos. A loucura básica do meu temperamento amante se dava na aparente e frágil solidez da nossa união, desde jovem, assegurada legalmente agora, como se eu sempre buscasse nela, não qualquer ligação duradoura, mas uma complementação vitalícia.
A porta que ela deixava permanentemente aberta era um ponto de fuga no seu horizonte, um fantasma que me ameaçava apunhalar pelas costas, que a punha à salvo da desgraça de uma inevitável prisão - tese aliás de minha autoria.
O máximo que eu poderia conseguir seria pedir que ela não me abandonasse em caráter definitivo, ou seja, nada a sério, nada que viesse a me ameaçar, ou corroer e desamparar a minha vida.
Ela podia sair - desde que voltasse!
Eu descobrira, então, que o fundamento de sua permanência, mesmo casada comigo, era só ilusória condição: ela poderia retirar-se a qualquer momento, cortando os laços frágeis da sua dependência, algo débil com que se unira a mim, ela afetiva e emocionalmente para sempre emancipada.
Tudo isso eu considerava, explicando que era assim porque não tínhamos tido filhos - falta que fazia de nós um casal de certa maneira "errado".
Mas agora, pouco tempo depois de Carlos a possuir com aquela intensidade, o ter ela engravidado explodia em mim como uma bomba destruidora de tudo, como uma arrasadora arma que eu não podia assimilar de imediato.
ROGEL SAMUEL: A HISTÓRIA DOS AMANTES, 9
As mãos de Roberto são delicadas, pequenas, brancas. Ele tira e recoloca a aliança de ouro que tinha no dedo. O aro percorria os dedos da mão e voltava a introduzir-se no anular. Uma prestidigitação. Revelava nervosismo, diante de Artur, que dava em cima dele.
Desde que Val resolvera passar o Natal no Rio estava eu de mau humor e bêbado. Agora aquelas mãos se cruzavam, em prece, em súplica.
Roberto era um rapaz branco, magro, olhos negros, vivos. Era médico.
Regina, sua mulher, passa, ocupada em arrumar a ceia de natal que ficou por sua conta.
Estávamos em Búzios, na minha casa.
Era a primeira vez que passava ali o natal só. A casa pintada, a ceia tinha sido marcada para a "inauguração".
Mas Val partira.
Meu casamento com ela era de altos e baixos, mas não é disso que eu quero falar agora. Não e não. Eu não estava mesmo pensando em Val, naquela noite, eu não estava mesmo pensando em nada, bêbado.
A aliança de Roberto voltou a entrar e sair do dedo, em cópula. Seria uma provocação? Ele estava sentado bem à minha frente. Artur como sempre quase nu a meu lado, de sunga preta. Assumido e provocante. " Ótimo", disse ele quando o convidei para o natal em minha casa. "Ótimo", disse-me ele: "bicha solitária sofre no natal. Vou sim".
Regina era maternal, cursado o Instituto de Educação. Corpulenta, quase gorda, pouco maior do que o marido. Perfeita boa esposa, do ponto de vista machista, doméstica, arrumada, organizada, prestimosa, trabalhadeira, fina. Ia engordar ao longo dos anos, certamente. Por ora, os seios grandes, maciços, as pernas, as ancas. Não tinha barriga. Fomos à praia e ela estava de biquíni. Um corpo belo, mas já cheio.
Roberto era branco e pálido.
Fomos para a mesa. Eu tinha colocado no toca-disco «The mamas & the papas», que cantava agora "California dreamin".
Creio que nem tínhamos começado a comer quando ouvimos bater à porta.
Roberto se levanta. Vai abrir o portão. Sai. Eu começo a comer. Artur diz que o peru está ótimo. Digo que sim, pergunto se conhece o "Peru de Natal", de Mário de Andrade. O som é "Look through my window".
.............................
Três homens entram pela porta. Um deles é Roberto. Pálido. Os lábios tremem. Atrás dele um homem louro, estatura mediana, cabelo cortado como soldado. Olhos brilhantes, de cão feroz. Empunha uma pistola na mão. O outro era moreno alto, segura Roberto pelo braço e olha em volta.
O louro se aproxima de mim de arma apontada, bem de perto e diz:
— Eu te conheço, cara. E começa a me amarrar na cadeira corda fina, de nylon. Regina vai-se levantando, mas o louro a empurra de volta à cadeira. Ela ficou ali, sentada, apalermada, chora, olhando o marido.
O moreno alto amarra Roberto na cadeira em minha frente.
O louro sai dali e vai revistando a casa. O disco acaba.
Entra novo personagem. É moreno baixo.
O louro se volta para mim e diz novamente que me conhece. Eu não o encaro. Tenho medo dele. Roberto ameaça fugir. Mas leva uma pancada no meio do rosto. Ele começa a gritar, pede socorro, descontrolado. Regina chora. Artur está quieto. Roberto continua gritando. Não deve haver ninguém há quilômetros dali.
O louro amordaça Roberto. Alguns copos caem no chão. Na luta contra a mordaça Roberto morde a mão do louro, que se irrita e bate nele.
Minhas mãos doem. A corda apertou forte. A quina da cadeira me incomoda, comprimindo a pele do braço de maneira terrível. Lentamente, para não provocar suspeitas, vou-me pondo de maneira mais confortável. Começo um movimento limitado com os dedos para afrouxar a corda, que é de nylon e deve ceder. Não vejo o que estão fazendo atrás de mim, tento manter a calma. Minha cadeira contra a parede, por onde passa o louro. Vejo algo do corpo de Roberto pelo reflexo de uma gravura. Ouço o choro abafado de Regina.
Sou tomado por uma estranha sensação de irrealidade. Não compreendo o que acontece. O moreno baixo examina os meus bolsos, passeia pela sala com uma garrafa de cerveja na mão. É homem fortíssimo. O louro acende um cigarro de maconha, passa para o moreno alto. O louro passa por mim, tem um ar de delírio. Pela primeira vez pressinto a morte.
— Bebe, diz o louro.
— Bebe, belezinha, diz para Regina.
O louro pega Regina no sofá.
— Amarra bem o cara, diz o louro, referindo-se a Roberto.
— Cala a boca, merda! ele grita, pavoroso, para Regina, que chora. De repente vi que aquele menino ia matar-nos a todos.
Ela não se cala, chora ainda mais. Eu ouço os gemidos de alguém com Artur. Mantenho a cabeça baixa, procuro nada ver, em silêncio.
— Eu te mato, puta! Não chora, pôrra!
E sem mais nada dizer, o louro fala: "Vamos". E desapareceram na noite escura.
ROGEL SAMUEL: A HISTÓRIA DOS AMANTES, 1O
Ainda abalado por aquele terrível natal cheguei ao aeroporto, cheguei finalmente ao aeroporto, às quatro e meia, ainda teria de esperar, longo tempo esperar, esperar mais, atraso na partida, o aeroporto fechado para pouso e decolagem, telefono para ela, para Val, compro um jornal censurado, um sanduíche dividido, duas metades, estava sem dormir, desde o dia anterior sem dormir, fiquei naquele pequeno bar do aeroporto, quando Val me descobriu, ali dentro, reapareceu, cabelos pintados de louro, de ouro, enormes óculos escuros, agora, mais que nunca, agora, uma Marylin Monroe brasileira, guerrilheira.
Estava grávida.
Val grávida movia-se com dificuldade, a volumosa, braços e rosto um inchados, no forte calor.
Viera agora, tranqüila, estava sentada, a meu lado, olhava o movimento tumultuoso das pessoas do aeroporto, começava a comer a metade de meu sanduíche, pediu uma coca-cola e bebia.
— Não sei por que você não esquece logo esse negócio de assalto, disse-me ela, ajeitando o cabelo no espelho, como se nada tivesse acontecido comigo.
“Ninguém morreu”, acrescentou, divertida.
Eu nervoso desde que ela chegara, olhava os lados, imaginava um policial que a reconhecesse e viesse prendê-la, soubéramos que era procurada, estava incluída (o que nunca foi confirmado) em não sei que secreta lista (que tudo naquela época era secreto) pessoas que não podiam ausentar-se do pais.
Mas Val comia, bebia, com tranqüilidade, satisfação, e dali mesmo sentado eu podia ver a parede nua onde estava o cartaz sua fotografia se estampava procurada por todos os pontos e cantos do pais.
E Val com um gesto amigo, sentindo-se tão bem ali, como se estivesse no jardim, como se fosse viajar a turismo, os passageiros passando de um para o outro lado, como se o aeroporto fosse seu, passando por perto de nossa mesa, e os poucos empregados atarefadíssimos no balcão, porque havia muitos fregueses ali, poucos os empregados que conseguiram chegar ao trabalho, naquele dia um choque de dois trens na estação de Riachuelo interrompera a linha férrea e muitos morreram e não conseguiram comparecer ao trabalho, os trens parados, e nós bebíamos nossos refrigerantes.
Sentados na bancada alta, à esquerda, e embora com os corpos rijos e os copos nas mãos, um grupo de dois estrangeiros animadamente conversava com um jovem brasileiro, encostado ao balcão, aquém de uma fileira de copos de vidro recém-lavados e ainda molhados. Os homens bebiam uma garrafa de cerveja que era dividida ali (o jovem não bebia nada), dois homens simples, de meia idade, talvez dois turistas italianos, ou dois empregados de alguma empresa estrangeira, ou dois desocupados que estavam viajando juntos e conversavam com um jovem moreno que tinha cara de pertencer a alguma turma de alunos de inglês do IBEU, e eu não conseguia ouvir de que falavam.
Eu tenho as mãos frias. Trêmulas. Desde que Val chegara, talvez pela debilidade do longo jejum, talvez pela excitação do assalto, ou de meu novo livro em São Paulo , para onde estava indo, talvez pela fraqueza e medo de que acontecesse alguma coisa a ela, que eu proibira de sair do esconderijo onde a escondera, que era um apartamento de Copacabana, dividido com um amigo, onde ela ficava comigo em companhia de sua mãe, porque eu temia por sua segurança e naquele tempo a polícia estava caçando comunistas como ratos, arrombando portas, prendendo pessoas, dentro de suas casas, sem maiores explicações, com as mais violentas e obscuras finalidades, qual seja para matá-los. Sim, podiam me prender, mas nada tinham contra mim (o que para eles não significava nada); em Val, porém, nunca teriam conseguido por as mãos: eu a ocultava e protegia de tal forma que vivíamos como foragidos, personagens de filme policial americano. Eu era figura fácil de encontrar, mas minha mulher tinha sumido, ninguém sabia, estava grávida, era com exagerada cautela que eu entrava e saía do apartamento onde nos escondíamos, tantos eram os amigos e amigas de Val que estavam desaparecendo nos últimos meses.
Sentia as mãos frias e trêmulas desde que Val chegara, talvez de um vazio qualquer, que não saberia explicar, enquanto ela comia o seu pedaço de sanduíche, bebia o seu copo de coca com tranqüilidade.
Estava sem fome desde o dia anterior, cheguei no Rio, tomei um apressado banho e parti para o aeroporto.
Eu não queria que Val estivesse ali, eu não queria que Val estivesse em parte alguma, fora de casa, principalmente só, ela estava para dar à luz a seu filho, que devia nascer a qualquer momento, mas era procurada, estava numa desconhecida lista de pessoas que não podiam deixar o pais, lista aliás idiota, conforme vim a saber, pois incluía também humildes operários que nunca tinham ido nem de ônibus ao aeroporto.
Eu não sabia se a mandava para casa ou se teria tempo de a levar, telefonara avisando que o avião não partiria nas próximas horas e só chegaria a São Paulo à noite.
E pensava se não era melhor levá-la para casa, mas discutindo isto com ela me respondeu que estava sentindo-se tão bem que acabei também concordando, me era agradável saber como ela viera da cidade para me fazer companhia e não me deixar esperando, que era como eu me sentiria à noite sozinho em São Paulo , voluntariamente sozinho e cansado, no quarto do hotel em que me hospedava sempre, eu queria voltar naquela mesma noite para o Rio, mas não podia, no dia seguinte tinha um encontro marcado, voluntariamente sozinho e cansado, ainda que, se quisesse, poderia estar cercado de amigos e de pessoas que eu poderia até amar, até levar para cama, amizades que eu tinha em São Paulo , verdadeira família, algo meu, de meu lar paulista, meu segundo lar, aonde me aprazia ir.
Eu não queria levar Val comigo daquela vez, temia passar com ela pelo aeroporto (o que era um medo infantil). A espera longa demais para mim depois de uma noite sem sono. E não, ela deveria voltar logo para casa, eu estava louco para me ver livre dela, nem deveria ter saído de casa, eu não estava mais razoável ou raciocinando bem, o dia tinha sido longo demais para mim, ela podia voltar a passar mal, não devia ter saído, você deve voltar, lhe disse, em casa você tem meios de se comunicar comigo se algo acontecer, as ruas estão engarrafadas, não há trens, você está envolvida, perseguida, procurada, é um milagre que você não tenha sido encontrada no sindicato quando a policia chegou e prendeu todo mundo.
O amor. Rôni via que o amor não podia ser entendido, não podia ser visto com clareza. Entretanto, certamente, era o amor a recompensa das alegrias do amar. Como ela disse, e como ele dissera também e escrevera, bem no meio de um parágrafo do seu novo livro.
ROGEL SAMUEL: A HISTÓRIA DOS AMANTES, 11
Nada. No dia 19 de dezembro de 1967 Rôni não viu o soberbo pássaro de prateadas penas que fugia apitando furiosamente em desespero, e como uma máquina batia com seu bico de madeira na vidraça antes de a romper, na densa névoa o envolvia: passada a névoa, dali restou o seu perfume e um homem sentado, olhando para fora, interminavelmente olhando, relendo pela madrugada aquele bilhete sem mover-se, abrindo somente os olhos (os olhos apenas, porque o resto do corpo não perdia a imobilidade, prostrada e mortal), ouvindo o vago, o morto, o mutilado - e voltava a ler, ou a adormecer, perdido, solto, madrugada a fora, à mercê da sua tênue sensação de abandono, serenamente imóvel, até que uma beatificação, da plácida corrente do pensar, imóvel, como a sua morte, o envolveu e ele adormeceu sobre aquelas palavras.
Foi dias depois da noite em que Roni e Val foram a um show do Chico e o famoso cantor cantou as músicas preferidas dela, e era como se cantasse para ela, sem disfarce, olhando-a fixo, vivendo-a na canção, desejando-a na fala.
Quando Roni era mais jovem experimentava o fenômeno: fazia as coisas se derreterem ao redor, as paredes se afastavam na clareira do deserto. Era assim: Val não transigia com a vida, perigosamente. «Não amei», disse ela, certa vez. «Só conheci da vida a dor e o prazer».
Lembrando-se disso, Rôni refletiu: «Tenho medo de estar sempre escrevendo minha condenação. Me canso».
Rôni estava fartamente ligado a ela, mas não pôde suportar quando soube outra coisa.
Val estava ainda mais bonita, naquela época, e naquele dia 19 de dezembro de 1967 ela se foi não sei parta onde.
No Correio da Manhã, que Rôni lia e relia, estava escrito:
«O correspondente da France Press escreveu que um novo ataque foi efetuado ontem, contra a capital pela aviação inimiga, desde as l1h 40m até às 12h 05m locais.
«As pontes P. D., nas margens do Rio V., e o setor de G. L. foram os principais objetivos, porém outros ataques de despistamento foram realizados simultaneamente contra vários pontos da região.
«O ataque foi realizado por três ondas de bombardeios, com uma diferença de cinco minutos entre si. Os ataques efetuaram-se a meia altura.
«A primeira e a segunda onda chegaram sobre a cidade por grupos de dois aviões cada uma. Os aviões voaram protegidos pelo sol, que mantinham atrás de si, para que as reverberações molestassem os atiradores em terra.
«Os aparelhos largaram projéteis verticalmente sobre o centro da cidade e era possível ver as bombas picarem em diagonal sobre os objetivos. Depois os aparelhos viravam sobre uma de suas asas, a fim de oferecer a menor superfície possível aos disparos dos canhões antiaéreos.
«Além das bombas e dos foguetes ar-terra, bombas de balas foram disparadas pela terceira onda de aviões. Estas bombas reconhecem-se por sua explosão, que se parece com um fogo de artifício.
Ao explodirem, elas lançam milhares de cubos de metal em todas as direções, são por isso conhecidas como bombas antipessoais.
DEFESA
«A defesa antiaérea foi muito intensa. O alarma começou na capital vários minutos antes da chegada dos aviões, e cada onda de caças-bombardeios era 'anunciada' pelos alto-falantes.
«A jovem anônima, sempre a mesma, que anuncia os alarmas pelo microfone, assinalava aos cidadãos que 'novos piratas do ar penetravam no espaço aéreo da cidade'.
«Ouvia-se então o surdo rugir dos reatores ao longe, e depois os primeiros disparos dos canhões pesados instalados nos arredores da cidade, e imediatamente depois o crepitar de todas as armas, quando os aviões surgiam sobre a cidade.
«De vez em quando a terra estremecia, quando explodia uma bomba de grande calibre.
«Às 12h 05m locais o último fragor dos reatores sumiu ao longe, e em seguida as sirenas anunciaram o final do alarma.
«Nas ruas, as pessoas abandonavam seus refúgios individuais, limpando a roupa, reajustando seus capacetes na cabeça e montavam de novo em suas bicicletas.
«Próximo do rio V., nuvens de pó branco elevavam-se sobre G. L., e o vento as empurravam, em direção da cidade».
ROGEL SAMUEL: A HISTÓRIA DOS AMANTES, 12
Ele deu dois passos e caiu num abismo. Deu dois passos com a chave na mão, e quando a chave se introduziu na fenda daquilo que parecia um cofre, Rôni sentiu passar para seus dedos uma leve eletricidade vinda da chave, e viu que aquela porta fechada não lhe seria indiferente.
Entrou e percebeu que a sala estava vazia. Mas o vazio era maior do que a sala. Não era um vazio pela ausência das pessoas que viviam ali, sua esposa, a empregada, mas algo havia morrido ali em caráter definitivo.
Rôni permaneceu alguns segundos com a chave na mão e a porta aberta.
Depois atravessou a sala, afastou a cortina, abriu a janela. Entrou um ar sujo, um indiferente ruído de trânsito, bem lá de baixo. E Rôni prosseguiu, entrou no hall que levava aos quartos. Ninguém estava lá. Ele sabia. Ele sentia.
Val tinha partido.
Era como se ele já esperasse. Apesar de tudo, seus lábios tremiam, pálidos, diante do espelho da alcova, enquanto lia o cartão:
Ronaldo:
Vou-me embora. Nossa separação é definitiva.
Depois mandarei buscar o resto de minhas roupas.
Valquíria.
Rôni reparou que o teto do quarto estava estranhamente róseo.
Uma luz do ocaso filtrava-se pela vidraça. Rôni abriu a janela e olhou para a rua. Aquela janela dava para o mar e para um labirinto de ruas em que seu olhar se perdeu por instantes, no trânsito.
A janela respirava a rua e um mar distante. Entrou, quase imperceptível, um som. Uns ruídos longínquos, vindos do longe. Gaivotas alçavam vôo.
Em baixo, duas ruas, cortavam uma cruz, indiferente, retas. Visto ali, no alto do prédio, dir-se-ia que ele ia suicidar-se.
Sim, foi naquela tarde que a sentença lhe veio, forte, compacta, perfeita e aterradora como uma lança. Val partira.
Agora o vento veio forte, bateu a porta, derrubou a folha de papel de cima da penteadeira.
Rôni abriu a gaveta e espalhou as camisas por cima da cama. Não ficaria ali, naquele apartamento vazio que testemunhara seu fim. Aquilo era um sonho...
Mas o bilhete, como uma bala, apareceu, caído no chão.
Rôni então sofreu uma angústia forte, foi atravessado por uma dor, e caiu de joelhos, chorando alto.
Quando se levantou, viu as camisas espalhadas sobre a colcha da cama, pegou a chave da rua e saiu.
Durante duas horas ele andou pelas ruas da cidade. Em direção da Lapa e entrando num bar mergulhado nas sombras. O bar cheio de prostitutas, mas nenhuma quis saber dele e de sua cerveja. Alguns homens formavam um grupo num ângulo da sala.
Rôni pôde lembrar Val com ele numa praça luminosa, na orla da praia, onde Rôni subia os degraus de um pedestal antigo que chegava à cabeceira do tanque retangular e no ar abria os seus braços, espalmando as mãos, feliz.
Eles estavam diante do majestoso mar da Ilha, o mar soava luminosamente e enchia o espaço da clara voz de Val, a aragem marinha filtrando-se no meio de tudo pela camisa aberta e os peitos nus.
Nada me entristece mais do que aquela ilha, a demora do tempo passado no momento presente e o movimento interior e imensurável da força dos instantes da juventude.
Visto de longe o mar era uma vedação azul soberana, e as coisas aconteciam em bloco e se dissolviam em brancas explosões de espuma.
Estou perdido. Trabalho mal nesse espaço. Isso é tudo?
ROGEL SAMUEL: A HISTÓRIA DOS AMANTES, 13
Da vida, isso é tudo? Ora, Val se penteava, diante do espelho, como um fantasma. Cabelos sobre os ombros. ela aparecia, ali.
No dia seguinte Rôni voltou a Búzios, pretendia escrever «A história dos amantes».
Mas Val era um fantasma, em Búzios. A sua ausência aumentava o delírio, que atacava de diversas formas, e tinha preferência por certos lugares, como a porta da cozinha, que dava para a praia. Ali eles se encontravam, quando Rôni vinha vê-la na praia, ou preparando o almoço. Ele passava a mão por volta de sua cintura, apalpava as ancas e mordiscava seu pescoço. Val cozinhava, quase nua, de calcinha, ou de roupa de banho.
“Depois que me separei dela senti acabada minha capacidade de amar. Até conhecer Luisa Chermont. Não, não devo chamar de amor aquela doença, que foi meu relacionamento com Val. Eu me separei dela, encontrei o medo, o mundo escuro e desconhecido. Tinha amado uma aventura. Custou caro. Passei por tudo, a vida feita de contrastes. Freqüentemente sou demais.”
“Volto aqui só, não sei me referir ao ser desconhecido que é ela”.
Rôni traduzia tudo em si. “Estou cansado, isso dissolve o que sobrou de mim. Quando me relaciono, isso me vem com sentimento de culpa”.
Que será? Eu fiquei. Aqui fico. Nesta casa.
Depois da separação, cada vez maior a sensação de que tinha de mudar-se. Parecia loucura estar ali, onde tudo aconteceu. A relação com Val vivia de uma revolução e de crise permanentes. Ela nunca dava segurança, somente com muito esforço ele conseguiria que Val fosse algo estável. “Em nenhum momento ela me disse que desejava ficar definitivamente comigo”. A vida é sempre provisória. Eu me orgulhava de seu espírito de liberdade, como o de minha avó Madalena. Eu a fiz à imagem e semelhança de minha avó.
Roni sentia-se na época um criador, conhecia a estética de sua época. Poderia passar os dias e as noites escrevendo. Poderia passar os dias e as noites só?
Na solidão, Rôni esperava. Não conseguia ainda escrever «A história dos amantes». Ia para a praia, andava sozinho nas pedras, riscava as areias, voltava mais só. Esperança. Nenhum recado, carta. Onde Val estaria? Ninguém. Ele não se abandona no desespero. Via a insuficiência de amar. Pois estava ligado por uma secreta corda a Val.
Apesar de tudo, Rôni conhecia a inocuidade, a incapacidade de ser amado. Val dizia que ele era egoísta. Só pensava em si. Ele replicava que não. Pensava nela. “Mas eu não sou personagem de romance”, dizia Val. Rôni considerava que Val era incompreensível, inumerável, como Albertine de Proust. Ela resistia que não. Não faria do casamento a morte, para o bem dele. E, segundo as teses que ele defendia nas páginas de seu novo romance, «A história dos amantes». Val o acusava de não ser fiel. “Se você pode, eu posso”, dizia ela. “Você não se diz feminista?” Apesar de ter escrito tanto, Rôni não sabia falar de si mesmo. Nem sabia trazer seus próprios sentimentos para o texto. O escritor está preso ao leitor, não a si mesmo, dizia. Era a fórmula que utilizava para a construção dos romances e novelas. Agradava ao grande público. “Só se pode destilar a vida assim. Cumpro o meu destino e escrevo. Vivo disso, dessa profissão”. Mas Rôni nunca pôde viver de literatura.
Nos manuscritos de Búzios, rascunhos de «A história dos amantes», procurava desenvolver a relação dialética da vida de todos os amantes. Pesquisava, estudava as antigas formas de amor, lia a biografia de amantes históricos, relia os prediletos. Conhecia Ovídio. O mais sentimental dos elegíacos romanos, na «Arte de amar», criou uma verdadeira estratégia da conquista amorosa, que ele sabia, utilizava.
Rôni sublinhava a importância que teve a Ilha na sua vida, no seu caráter, na sua obra. A Ilha o corrompera, como rosca perfuratriz, como uma broca. A liberdade, e toda liberdade é excessiva, a liberdade, experimentada na Ilha, nos primeiros anos de sua formação, compelia-o a conspurcar cada fração de amor. Se amar é um sentir estável, estar preso a um outro, unindo corpos e personalidades, se amar é mergulhar sempre num lago, cuja podridão era feita de enzimas básicas para o revigorar, não. Não foi a cidade, mas a Ilha. Fonte infectante, procriadora. A cidade violenta, a ilha tinha os dons de prazer, de descobrimento.
Tentava compreender o quase anormal ser em que se transformou, depois que se contagiou de Val daquela maneira, até que ela se transformasse e sumisse. Compreender é tornar-se maior do que o fato compreendido. Produziu livros para compreender-se, na tentativa de traduzir-se em texto. Mas viu depois que não tocava no ponto central de si mesmo. “Escrevo «A história dos amantes» não só para fazer eco a mim mesmo, mas como minha última tentativa. Não quero continuar no recinto obscuro em que se move o inexplicável. À medida que escrevo menos me enlabirinto. Contudo esta poderá ser a minha estória mais veraz. Nela libero os mais grotescos personagens, eu-mesmo e minha relação com Val. A literatura não é confissão pessoal. Dá forma à expressão para a ultrapassar e mexer no fundo dos estados de coisa em busca de armar a tela onde se descreve a realidade. Ali a saga, ou um pedaço dela, vem à tona. A minha vida e a minha narrativa se confundem. Val é minha narrativa. Eu existo aí.
ROGEL SAMUEL: A HISTÓRIA DOS AMANTES, 14
Rôni escrevia. A varanda onde ele escrevia, em Búzios, era iluminada por uma luz que caía diretamente do teto sobre sua mesa. Seu corpo, forte e atlético, queimado do sol, não parecia o de um intelectual. Aparência de um explorador, navegador, pernas rijas, sólidas, mãos que ocupavam todo o enquadramento da máquina datilográfica. Densos, soltos, emaranhados, negros cabelos. Olhos negros, fixos na produção do texto. A linha do tórax descia suave até o ventre magro. Não era feio e não envelhecera. Compensava com natação e ginástica os anos da juventude. Bom nadador. Lábios sensuais, coloração semi-dourada da pele bronzeada. Fonte de muitas paixões de mulheres, jovens e maduras, a que ele correspondia quase sempre.
Tudo ao redor, trevas. Além do círculo de luz da luminária que descia do teto para a máquina datilográfica, nada. O mundo de Búzios mergulhava nos seus melhores silêncios, nas suas mais fantásticas horas de assombro, no ritmo do mar, perto e invisível. Do alto mar vinha um sopro longínquo trazendo inspiração de ilhas distantes, do “cortinado de ametistas”. Algo pulava no bojo da sombra da noite, sem luminosidade.
Rôni levantou-se. Foi até a pequena geladeira a querosene. Tirou uma lata de cerveja. Olhou em torno. Nada via. Tudo frio, o vento trazia uma sonoridade fria. A linha invisível do horizonte estava lá, longe. E aqui, no mistério do aqui, as primeiras linhas do texto de «A história dos amantes».
.......
Eu me separei de Val no dia 19 de dezembro de 1967, e em março de 68 me uni a Luísa Castello Chermont, que já conhecia. Pequena, magra, elétrica, leviana. Rica. Eu a amei. Era mulher de seu tempo, conhecida, três anos mais velha. Cabia com justeza no vazio estonteante em que Va1 me lançava. Com vantagem. Levantou-me do chão onde eu me tinha abatido. Luísa reerguia meu amor-próprio, abatido. Me recompôs no meu ambiente pequeno-burguês. Ela se encaixava muito bem e me reconduzia ao meu lugar de origem. Nossa ligação e o pouco sucesso de meus livros me recuperavam da perda sem remédio de não ter mais a meu lado a mulher perdida. Luísa de certo modo me fazia satisfeito. Eu respirava aliviado, livre daquilo que estava sempre perto das situações limites, das crises que, no fim, mais me perturbavam do que me davam felicidade ou me punham em seguro.
Luísa Castello Chermont era o contrário de Val.
Filha de um General de Divisão, com uma descendente, em linha direta, de meu tio-avô, Luísa sabia viver a alegria nervosa de sua única preocupação e interesse: o seu próprio corpo e ser, e tudo o que revelasse nele brilho e poder. Era desquitada de um político conhecido. Mulher bela, à sua maneira. Vivia a beleza exclusiva. Massagens e cabeleireiros. Tinha uma incomparável vantagem sobre Val: nada a preocupava mais do que o corte de seus vestidos e a coloração dos cabelos. Luisa não era, graças a Deus, intelectual, mas inteligente, bem educada, perspicaz. E prática.
Eu continuei a pagar a pensão de Val até quando pude. Tive de interromper quando estava economicamente arruinado e passava a viver às custas de minha mulher. Mas Val naquele tempo já tinha a loja em Cruzeiro. Isso é outra estória, não vem ao caso, nem quero contar.
Depois de «O amor vestido de luto» - meu pior romance - não consegui mais escrever uma única linha que valesse a pena, embora continuasse a trabalhar incessantemente na composição daquela que eu pensava ser a minha melhor obra: «A História dos amantes», resumo de mim mesmo, em que gastei doze anos de pesquisa e anotações. E eu, que era capaz de redigir um livro em meses, me vi inexplicavelmente e há anos escrevendo e reescrevendo as 200 páginas. Meus livros foram explosivos fracassos. Não venderam quase nada. Eu era o marido de Luisa Castello Chermont.
Luisa me amou, ou me aturou, naquele tempo. Depois envelheceu e me abandonou por um jovem.
Como ela só se importava consigo mesma, foi sempre a esposa ideal, dando-me permanentemente a liberdade de que necessito para que nunca me canse das pessoas com que vivo. Do contrário teria de me ver na privativa dedicação a ela, na dependência das variações de humor. Passei anos sem fazer nada, pois além de nadar, correr, ir ao cinema, freqüentar os poucos amigos e os de Luisa (que eram muitos e diferentes), viajando com ela e administrando os seus bens, eu nada fazia.
E pesquisava as fontes da minha «A história dos amantes».
Durante aquele tempo vivi em Copacabana, no apartamento dela. Luisa não morava em uma modesta habitação. Não, não tenho capacidade de gerir dinheiro, de Luisa apenas fazia o que ela mandava.
Por fim Luisa se libertou,
Eu nunca pensava seriamente nela, ela nunca se constituíra num problema a ser pensado. Era a esposa, talvez ideal, cuidando de si e interessada sempre na sua própria vida.
Luisa tinha uma filha do primeiro casamento. Mas Renata estava bem casada, e se emancipara completamente dos pais. Vivia sua vida.
Eu e Luisa existíamos sem grandes problemas, sem grandes ciúmes. Nossa vida conjugal seguia tranqüila e simples. Éramos corteses um com o outro e nos orgulhávamos disso.
Fazíamos amor com regularidade, sem explosões, mas tínhamos prazer mútuo nisso.
Ela vivia confortável e segura.
Mas eu a amava? Se pudéssemos chamar de verdadeiro amor aquele estranho e forte sentimento que me uniu a Val - não. Se amor era o que me ligava a Luísa como sócio - sim. Como amigos ou como amantes, fosse amor ou não, sim: eu amei Luisa, e muito. Verdadeiramente.
ROGEL SAMUEL: A HISTÓRIA DOS AMANTES, 15
Mas eu não sei o que o amor é. Aquilo que eu sentia por Val deveria chamar-se loucura, necessidade ansiosa. O amor de Luisa era calmo, porém vazio, faltava-lhe peso, substância, sangue, algo do delírio que ressoava em Val, uma densidade, um abismo onde eu necessitava mergulhar. Meu casamento com Luisa Chermont tinha a ver com o duradouro, como se ela dissesse sempre: "não me amole, não queira separar-se de mim" - e devia durar a vida inteira, sem interrupções, sem preocupações. Nunca, desde que estávamos juntos, me passou pela cabeça o pensamento de que eu poderia separar-me dela. Não havendo inicialmente grande amor de ambas as partes, eu simplesmente me deixava ficar, e sabia que ela não me amava mais do que o suficiente para convivermos felizes, mas não esperava grandes frustrações, nem grandes dores. Aquela era o que se podia dizer uma relação racional, burguesa, domestica, simples, elegante até, linear, plana. Clara. Certamente ela estava mais interessada em outras coisas do que em mim. Vestidos e festas, por exemplo. Com Luisa não me ocorria pensar se eu era ou não feliz. Nossa vida já continuava suficiente rica - nos dois sentidos - para nos justificar. Pela primeira vez eu experimentava aquilo, e julgava que seria decorrente da maturidade. Nada perturbava nossa vida, nada nos atingia, apesar de eu estar sem trabalhar, vivendo dos rendimentos dela, como empregado dela, mas eu mesmo não me importava com isso, e ela até parecia gostar. E de certo modo eu ainda tinha um nome público como escritor, e isso fazia bem à Luisa, mulher que personificava a elegância, o status, o murmúrio do mundo social para o qual vivia ela. Tínhamos quartos separados, mas freqüentemente dormíamos juntos. Resguardávamos nossas individualidades, preservada em ler durante a noite, ou ver diferentes programas de TV, ou em ter um número de telefone privativo pessoal - ela não me invadia a privacidade, nem eu a sua - e isso só era possível porque não nos amávamos, eu sei, sócios da vida – dávamo-nos bem por isso mesmo o casal perfeito, polido, verdadeiramente civilizado. Elegante.
O meu casamento com Luisa se deu no meio de uma aguda crise sentimental, movida pela saída de Val de minha vida, - e a aparente solidez dessa nova união se dava graças à loucura de meu temperamento amante. A nova solidez estava assegurada pelo caráter de Luisa, que me levantava, avessa ela a toda emotividade pegajosa e impraticável, ao lamento sentimental. Meu novo casamento estava dessa maneira a salvo da desgraça, muito mais “normal”, formal, algo que um par de pessoas maduras poderia ter com tranqüilidade, sem que nada viesse amedrontar, corromper, ameaçar.
Ao nosso casamento nada faltava. A base invisível era sólida e econômica, eu me defrontava com a situação de ter em casa uma pessoa estável como esposa, até muito mais interessante, e fui cortando os laços de dependência do passado, de que fui-me libertando. Luisa não crescia a meu lado, pois era imutável, forte personalidade. A sua vida era "dela", eu não me intrometia ali, não opinava, eu era apenas o marido, ela não era tábua de salvação de ninguém, e se me abandonou depois foi por um fato, não por um processo: Eduardo Castro, o jovem ator que a seduziu, tinha tudo que a poderia seduzir: jovem, famoso, belo, disputado por todas as telespectadoras da novela das sete, enfim, Eduardo era irrecusável na vida de qualquer mulher madura. Para ela, foi uma conquista.
Eduardo era rico, mas vinha da classe operária.
Eu não sofri com a separação. Pela primeira vez não sofri com uma separação. Fiquei só, é claro, mas não sofri. Eu não vivia para ela, como ela não vivia para mim. Marido, para ela, seria algo como um ornamento, traste indispensável a qualquer mulher elegante. Se sofri, quando a perdi, foi mais pela situação financeira em que me encontrava: eu tinha fama de rico, meu sobrenome ajudava e ajudaria se eu quisesse realmente encontrar um emprego. Mas eu não sabia fazer nada. Não queria. Só escrever, e escrever mal.
Enquanto durou nosso casamento foi uma festa. Convivi com ministros, escritores, atrizes. Participei do milagre, do chamado Brasil Grande. Cheguei a freqüentar colunas de sociedade dos jornais.
Eu tinha quase certeza de que Eduardo Castro não ia ser capaz substituir-me. Ele tinha fama de gay, e até creio que era bissexual. Mas para Luisa isso lhe era indiferente. Ela era um tipo elegante à moda antiga, vivia de aparências. Mas depois disso não tive mais esperanças de um retorno de Luisa. Não Luisa, ela nunca se humilharia em voltar para mim.
De certa forma Luisa foi elegante até no tipo de traição: pois recusou-se a permanecer comigo, desde que estava apaixonada por Eduardo. Ela nunca se traiu a si mesmo: e nunca trairia a ninguém.
Luísa não era tão jovem. Mas isso não era impedimento para ela. Só se vive uma vez na vida, dizia ela, sempre na vanguarda do comportamento humano. Eu não vi bem claro o momento em que ela me deixou, e mesmo recusando-me a admitir: ela deixou um rombo na minha vida, um buraco e um vazio, pois toda separação é um desastre, eu já sabia disso, e nunca me acostumei, mas foi um desastre menor, não psicológico, mas prático. Digamos: eu fiquei empregado, tinha de arranjar outra profissão, outra finalidade na vida. Devo a ela isso. Fui obrigado a refazer-me. Tinha de recomeçar a vida para não morrer, ela me empurrou para isso.
Mas foi somente quando Luisa me deixou que eu senti que tinha tido a mulher ideal, um lar que nunca tive e isso não me ocorrera antes com tal nitidez.
Finalmente eu tinha de recomeçar ou continuar agora a escrever a forma definitiva de «A História dos amantes» para não ser esquecido. E arranjar um emprego. Pois eu era até certo ponto conhecido, enquanto estive com Luisa, mulher badalada na crônica social.
ROGEL SAMUEL: A HISTÓRIA DOS AMANTES, 16
Com Luisa foi-se a última coisa estável que me escondia a minha personalidade instável. A última coisa cômoda da vida e do comportamento. Nossa convivência algo sólido e público, legalizado e protegido, para que eu visse o que se ia perder. Eu acordava, subitamente, anárquico.
Luisa de repente fazia de mim algo sem lei, fora das estruturas de poder, sem segredo, me deixou liberto demais para mim, mesmo na minha idade. Secretamente eu estava apavorado. Eu queria Luisa de volta, não como ela era agora, mas como ela tinha sido antes. E quando com calma e desapaixonado eu pensava que Luisa, quase impessoal, fora-se embora, eu me via sem segurança alguma, e era muito perto de perder-me, o que considerava a queda sofrida na nova realidade.
O nosso casamento não teve romantismo, mas felicidade, emoção equilibrada. Nossos abraços eram sinceros e não dolorosos, no sabor não doloroso das experiências desapaixonadas e não loucas, na tranqüilidade das ações nunca clandestinas. Nem proibidas. Das coisas públicas, que se fazem no espaço público. Porque me parece que toda ação normalizada nos beneficiava, não nos anestesiando, e éramos vitoriosos. E assim acordamos para nova forma de existir da vida cotidiana em risco, depois do choque, depois da queda, depois da podridão, quando os compromissos não mais se mantinham.
Como eu havia hipotecado o apartamento, que era o único bem que me restava, para pagar dividas de gráfica, eu estava agora insolvente, endividado, pois como os juros bancários tinham subido muito, e eu deixara de pagá-los durante meses, creio que nem vendendo o imóvel conseguiria me ver livre do que estava devendo. Eu devia o carro, os dois cartões de crédito, o cheque especial. E a vida. Eu devia tudo e não tinha saída.
A perda de Luisa me assustou. A perda de Val me aliviou. Depois. Quando perdi Luisa fiquei desajustado socialmente. Quando perdi Val eu senti que poderia matar-me.
Melhor dizendo: Eu perdi Luisa. E sofri a perda da paixão de Val.
Luisa me deixou só.
Val nunca me deixou, pois nunca a tive, como algo meu, e nunca a tive, concretamente minha.
Luisa me amava à sua maneira. E depois se apaixonou por um rapaz mais saudável, mais alegre. Deixou de me amar-me e eu a perdi.
Val simplesmente foi-se embora para os espaços planetários onde sempre esteve livre.
Eu não amava Luisa, mas era feliz com ela, e ela me deixou só.
Eu amava Val, e por isso sofria, e quando ela se foi era só a confirmação daquilo que eu recusava a admitir: que ela não estava ligada a mim e era algo que eu recusava nela: a liberdade.
Eu queria sempre ter Val comigo, tentando modificá-la para que pudesse ser mais acessível, assimilável, e não consegui, ela venceu e se foi.
As coisas foram diferentes, mas a dor era quase a mesma. Não se faz uma separação sem arrancar um braço, ou o próprio coração, como na velha canção que minha avó Madalena gostava de cantar.
Depois de algum tempo, Val e Luisa formaram uma figura só. Uma completando a outra, sendo quase a mesma mulher, ou os dois lados da amada, completando-se, uma esposa-mãe e companheira, outra amante-paixão e loucura jovem.
As duas se juntaram.
Mas as duas sempre necessárias ao meu espírito, sempre me fazendo viver.
Uma na qual eu me sentia seguro, outra na qual se acendia o fogo das energias juvenis.
Todas duas me deixaram, cada qual me ferindo de maneira diferente, atingindo diferente níveis, matando aspectos de mim que se completavam.
Luisa, destruindo a minha vida pública (e econômica, onde me ancorava). Val cortando a minha única raiz de apoio. Todas assassinas, cruéis.
Meu amor por Val era algo condenado desde a raiz, tinha a cor das abjetas opressões. Ela insubmissa, eu opressor, os dois felizes-infelizes, num sado-masoquismo oficial, um tentando anular o outro, um tentando dominar o outro, um ou outro sendo, um ou outro fornecendo a indispensável e inapreensível matéria prima do outro ser.
Mas se em Val eu me perdia, em Luisa eu me salvava. Os alimentos eram diferentes e eu agora perdera os dois seios da mãe ausente.
As duas relações talvez fossem complementares. Talvez só fossem mesmo interessadas e interessantes. Oportunidade da sobrevivência humana. As relações humanas estão corrompidas, a gente nem sabe quais os interesses que as guiam. Eu penso que eu carecia de Val e vivia de Luisa. Se meu amor por Luisa ficou durante muito tempo camuflado e escondido, meu amor por Val não desabrochou enquanto eu quis ser dela o bom e forte pai-marido provedor. Apesar de toda a ilusória e superficial modernidade de nosso casamento aberto.
Havia uma discrepância em meus dois casamentos. De idade, de cabeça, de nível social, de classe social, de situação econômica.
Luisa ficou mais rica, digamos assim, durante o período militar.
A esposa ideal foi Luisa, e Val era a paixão cega, proibida. Luisa era minha, a perda foi grande. Val nunca foi minha, sempre a perdi. Não sei definir minha relação com Val. Nunca a perdi porque nunca a tive. Eu estava envelhecido.
Val me rejuvenescera espiritualmente. Luisa me conservava na despreocupação familiar. Com Luisa eu não tinha receios. Val me transmitia insegurança. Luisa me poupava de muitas coisas. Val: eu tinha de protegê-la do mundo e de mim mesmo. Eu e Luisa freqüentávamos os mesmos gostos, como quem sempre andou pelos mesmos caminhos de um parque ou de uma praça de domingo, no caminho da alegria - e toda alegria é leviana - vendo tudo feliz em torno de nós. Éramos fortes. O país inteiro se transformou para nós num lugar de lazer e de nossos prazeres, onde nos divertimos muito. Foi um tempo feliz. Tudo para nós, naquela época era motivo de prazer prolongado e divertimento. Foi uma viagem. Todos viam nossa rota. Não era a estrada de uma aventura, comprometida ou problematizada. Nem precisávamos fazer projetos e planos de vida, pois já os estávamos vivendo. Não precisávamos alimentar nossas esperanças, como construir uma casa ou reformar algo velho. Tudo já estava feito.
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Em 1979, ano da Anistia, eu me perguntava: “Qual vai ser a saída?” – sim, era o que eu me perguntava, naquela tarde de 1979, ano da Anistia, quando me dispunha a sair - era uma tarde estúpida, eu estava sem nada para fazer ou pensar, um vazio sem palavras, curiosa angústia.
Eu punha tudo em jogo e não estava bem. - “Que faço eu aqui?” Não sei dar linearidade à minha vida, que de dentro como de um novelo, sua ordem assim, impossível, fico diante dela como nunca sei antecipar-me aos fatos.
Por isso foi que tinha aberto a gaveta do armário de roupas, no quarto, escolhera uma bermuda jeans, como gosto, uma camiseta branca, calçara um par de tênis e parti, hesitante, para a rua.
Eu tinha alugado o apartamento do Flamengo e residia, naquele ano, em Santa Teresa, num apartamento-casa muito pequeno, mas aprazível, que dava para a floresta. Na parte de baixo morava a proprietária, senhora idosa e solitária. A outra metade era minha, sala e dois quartos, frescos, claros, cozinha que dava para onde se abria a porta do único banheiro - e uma área ladrilhada cheia de plantas: e tudo aquilo se comunicava com a Floresta da Tijuca, que ficava logo atrás. Uma exuberante floresta. A florestas terminava ali, na porta de minha cozinha, e no altíssimo muro de pedra esverdeada da casa de meu vizinho, um Desembargador. Mais além, depois de umas pedras recobertas de vegetação antiga - a ribanceira: e lá a violenta visão, e larga, de toda a cidade, a Zona Norte, o Maracanã, o Cais, a Ilha do Governador.
Desci pois.
Eu ainda era atlético, para os meus anos. Desci a Cândido Mendes em direção ao Flamengo. Era uma tarde quente, e eu já estava quase feliz: sempre muito de minha tensão se dissolve quando ando, sou um andarilho nato, posso caminhar muitos quilômetros sem me cansar, o que me faz muito bem, e desde certa época deixei de nadar e de correr, preferindo longas e alegóricas caminhadas pela cidade: a tensão desce da cabeça para as pernas, penetra o chão. "Quando a mãe está tensa, relaxe a filha", diz um livro antiqüíssimo. Acredito nisso.
Um sapo pulou para a frente de meu caminho, surgindo não sei de onde. Depois, se encantou e sumiu. Duas borboletas borboletearam quase se despedaçando no pára-brisa do carro que descia a Cândido Mendes.
Meus passos eram silenciosos. O tênis amortecia, acolchoava o impacto no chão. Próprio para minhas longas caminhadas. Sim, num canto qualquer de mim mesmo eu estava estranho e sem sentido, embora por fora e no resto tudo estivesse funcionando bem. Mas aquela pequenina doença poderia contaminar o universo! De que eu tinha desconhecido medo? Devo ter adoecido ao longo desta narrativa? Chegarei ao fim? Que me falta? Será que a paz, tão localizada e superficial, patenteia os pontos centrais de meu problema e as dores da minha descaracterização? Por que esses pontos doem? Por que falar de sua existência cava a fenda na pele de meu ser emocional, penetrando-me como espinhos e balas acordadas? Será minha tranqüilidade uma acomodação tão frágil e aparente que minha vida, apesar de sólida, pressente que, em se escavando minimamente, se encontrará, com rápida facilidade, incômodas mentiras onde ainda se fixam minhas defesas incansáveis? E isso o que é? É atual? Oh, não, isso não é moderno. «O coração já não se usa» escreveu um dia Cocteau.
Qual vai ser a saída? perguntava descendo a Cândido Mendes e não via quanto me distraía enquanto andava, pois dentro de mim algo ainda trabalhava incessantemente.
Só dei por mim na Glória.
Eu não andava por ali desde os tempos em que visitava Pedro Nava com minha avó.
Devia de ser já quatro horas de uma tarde de verão.
O céu se apropriara da atmosfera que, apesar de gloriosa, denunciava o seu fim próximo.
Todavia era bom que o pôr-do-sol ainda estivesse longe, pois os ocasos sempre me entristeceram e naquela tarde estaria eu mais sugestionável de me deprimir mais do que nos outros dias.
Eu saía a passeio e já ia bem melhor de espírito e de humor.
Atravessei a rua.
Se eu morresse atropelado naquela tarde, no dia seguinte iam talvez dizer que me matei porque minha esposa me abandonou. Quem era eu? Sim, alguém que atravessava a rua sem olhar muito bem, mergulhado naqueles pensamentos.
E já estava no Aterro.
Carros estacionados, grama verde, era o Aterro.
Aquilo estava quase um deserto e eu já lamentava não ter vindo armado, sempre gostei de armas, tive porte e gosto de sentir o volume de um 38 no bolso, volume como de um pênis.
Mas naquela tarde minha vontade era mesmo de que acontecesse algo importante e violento, desejo certamente secreto, inconsciente, que me despertava fora do cotidiano morno, caduco. O cotidiano morno era só uma demora, e a tarde caía e o sol também se exibindo se enquadrava na tarde bilaquiana do dia.
Sim. Fazia-se necessária alguma aventura, certo risco. Por isso acendi um cigarro e me sentei nas pedras. Fiquei olhando em torno o mar, as montanhas, os edifícios, o longe, a entrada da barra, o Pão-de-açúcar.
ROGEL SAMUEL: A HISTÓRIA DOS AMANTES, 18
A principio, não sei bem, parecia que alguém estava sentado a certa distância. Não me importei no primeiro lance. Mas o dia estava lindo e quente e eu tinha descido a ladeira e resolvi cair naquela água da baía da Guanabara, tão poluída.
Eu queria saber quando Val responderia à carta que eu remetera para ela, depois de anos. Nela, eu dizia que queria revê-la, pedia que ela me telefonasse, marcando um encontro. Eu estava sem telefone, mas lhe dera o numero de Dona Felícia, a proprietária que morava no apartamento pegado ao meu. Depois de tantos anos, como eu a encontraria? Naquela carta eu via com clareza um quadro do meu passado e percebia uma solução para o meu futuro. Os sonhos jovens permaneciam ali, sonhos de um homem posto à margem. Olho no horizonte as minhas possibilidades afastadas. Val era uma aparição ali, uma fantástica aparição. Mas às vezes eu tinha a impressão de que bastava pegar o telefone para que ela estivesse ao alcance de minha mão. Escrevi a carta com dor, com a memória dissolvida por emoções e imagens de um jovem amante. Havia um pouco de meu sangue em cada risco. Eu sentia a boca ficando cada vez mais amarga à medida que escrevia. Eu parava. Desistia. Era como se escrevesse minha própria sentença de morte, minha destruição. Val, agora uma amarga lembrança. Um ser invertebrado, inesperado, inde¬finido, um problema desconhecido, mas que me chamava a seu reencontro, que me puxava para seu vácuo, para chegar a ela eu tinha de atraves¬sar um proibido promontório e ressurgir. Talvez fosse tarde demais para chamá-la de volta e reorganizar minhas lembranças, para fazê-la ressaltar, para me libertar e socorrer. Val aparecia para mim como um problema nunca resolvido, sentia que havia sido algo que ela traçou no risco de sua unha. Val me faz falta agora que envelheço, me faz falta e, sem revê-la, estou faltando a mim mesmo e falo do que não sei, mas que me faz falta.
Naquele tempo eu possuía uma coleção de tênis. Foi aí que não demorei e desamarrando os cadarços do tênis, e pondo a camiseta e a bermuda de repente me pus em marcha. A camiseta foi uma compra que fizera em Ipanema, naquela elegante loja com nome de rei que hoje não existe, perto da praça Gal. Osório. Tinha uma coroazinha estampada no ângulo esquerdo, como a lembrança do antigo poder, coroazinha máscula, um ponto de masculinidade discreto e expressivo. Sem a coroazinha o conjunto se perdia, aquela coroa mantinha o vestuário na ponta de lança do corpo do homem perto do coração. Duraram muito tempo aquelas camisetas, ainda devo ter, no fundo de alguma velha gaveta, alguma remanescente. Mas como engordei não creio que consiga usá-las hoje com a confortável sensação que elas me despertavam, pois não gosto de nada que me aperte. Acetinadas. Brancas. Ficavam muito bem em mim, eu via em qualquer espelho, vaidoso e narcisista.
Saí de minhas inesperadas reflexões com as roupas nas mãos e disposição de mergulho.
Foi então que passei por ela. Não pude alcançar, nem olhei indiscretamente.
Falei qualquer coisa e ela me replicou com uma única e curta e monossilábica palavra: “sim”, termo de base duvidosa e indefinida, vaga, imprecisa, deixava sem saber se desconfiava de meu acesso, ou se seria indicativo de sua indiferença e cortesia necessária naquele deserto para com um adulto estranho que se aproximava perigosamente, afinal era o Aterro, desde a fundação, lugar perigoso, isolado e propício a toda espécie de violência, estupros e assaltos, sob a freqüente e violenta interferência policial, sim, eu poderia ser um tira, um traficante ou só um homem solitário que tentava um contato ali nos meandros do jardim. O “sim”, portanto, polissêmico, podia ou não conotar incerteza, vacilação ou dubiedade de intenção, era um "sim" hesitante e dificultoso como se começasse como simples "sim", rodeasse os sentidos do "talvez", atingisse os limites de um outro "sim" significando "quase-talvez", voltando a um polido "sim" que só queria dizer: "olhe, é 'sim', mas não me interpele alem disso, e não me perturbe nem me aborreça mais agora, sabe, fique na sua que eu quero ficar sossegada aqui e não estou pensando em alguém como você, e não sei o que você está pensando que sou, seja o que for você pode estar enganado, não sei o que você está querendo, e na dúvida prefiro que o queira sem mim, deixe suas roupas aí, numa boa vizinhança e vá dar o seu mergulho e não volte por ora a me dar maiores atenções que ainda não sei se quero me comunicar com você”.
Fui. Mergulho. Sempre fui um bom nadador. A água está fria. Eu não tinha escrúpulos de me exibir ali, à vista da Figura Desconhecida. As ondas são pequenas. Mínimas. Um grupo de garotos, uns cinco, estão dentro da água com suas brincadeiras. Um velho pescador de braço estendido espera do mar o peixe que perdera. Um outro, um rapaz, se aproxima, terá cerca de vinte anos, vai passando e pára, se acerca da Figura Desconhecida. A água me faz bem, me reanima. Me acorda, me sacode. Os olhos do rapaz expandem-se de subjetividade; de desejo, como se a Figura lhe fosse fácil presa.
Se eu não estivesse ali.
Agora era o mais dificultoso. Pois eu emergi com uma incontrolável vontade mal-intencionada e perversa, explícita, indiscreta e enérgica de me comunicar com alguém como aquela Figura. Eu precisava, turgescentemente, meu corpo reclamava isso, era inevitável, determinante e forçoso que Ela era a magia constrangedora de algo que me nascia no final de um dia inteiro de solidão, eu não tinha falado com ninguém até então desde que acordara às sete, passara a manhã aparentando ler um livro a que eu fingia interesse, ligara a FM, ouvira falar o Gal. Figueiredo, fizera o almoço - macarrão com molho de tomate enlatado - dormi de novo (aquela fora a melhor parte do dia) e nada fiz do que devia fazer: arrumar as roupas e ter de preparar a casa para a burocracia da maxi-desvalorização do cruzeiro, telefonemas, pagamentos que deixei de efetuar mas que poderiam ser satisfeitos com atraso e multa. Nada. Uma conhecida, antiga e familiar apatia pela vida, por finalidades, me sobreveio apesar de tudo e pouco importava a chegada de Prestes no Galeão naquele dia.
“Já é tarde”, aleguei, quando me aproximei dela e por isso afastando o interesseiro intruso e concorrente, depois de subir nas pedras e voltar para minhas roupas. “É” – seguiu-me a Figura. E nada mais proferia. “A água esta fria”, declarei. “Não entrei na água”, objetou. A conversa não prosseguiu. “Você fuma?” - indaguei. “Não”, foi sua resposta curta, porém não sei por que incerta. Acendo um cigarro. Eu estava de pé: Agora observava a Figura, detalhadamente. Era uma bela jovem, os cabelos lisos e negros, o perfil aquilino, de judia, palestina ou índia. A pele morena-bronze. Vestia calça azul e camiseta cinza.
Mas me senti ridículo, um garanhão aposentado. Pois ela olhava enigmaticamente e direta sobre minha pessoa. Me surpreendia. Eu via o quanto ela respirava algo interior, os olhos negros eram inteligentes e profundos e isso me desarmou: disparou sobre mim, em xeque: "quem é você”?, perguntou. Como é seu nome? interpelei. Me respondeu: "Zane".
Isso. O nome enigmático, o não-identificado, o ambíguo. Me intranqüilizo: “Estou incomodando?” Especulo. “Não, claro”, revelou. Eu ainda não sabia se era sim, não ou talvez. A explicação significava, todavia, que não apreciava como idiota a minha dúvida. Voltava a olhar para a ponta do mar, o que me aliviava. Era para onde sempre estivera olhando, observando a direção do seu olhar. “Zane”. O nome. Não me pareceu nem alegre nem triste.
Nem nada. Talvez fosse um resumo, como Val.
Já anoitecia sobre o chumbo do mar da entrada da barra do Rio de Janeiro naquela tarde de verão, e as poucas nuvens alaranjadas recolhiam suas saias, um avião erguia-se do Aeroporto Santos Dumont e dava novas lições de partida como no verso de Bandeira que, por sinal, quase toda a vida morou no edifício que eu podia ver dali em frente, na esquina da Av. Beira Mar com a Antonio Carlos onde o visitei num certo dia da década de 60. Zane voltava a me esquecer e eu ia partir. “Adeus”. Por que ela não suspeitava o tamanho da minha necessidade dela, que a solidão criara no vazio insuportável daquela tarde.
“Vou embora, Zane”, lhe disse. “Tchau”, respondeu ela com um sorriso cordial.
E eu comecei a me distanciar com a alma em sossego. Ainda voltei a cabeça e a vi sobre o ombro: ela olhava a paisagem. Terminantemente não agradei, que não sei ser atraente, sedutor, espirituoso, interessante e galantear pessoas desconhecidas, mas hei de aprender pois não há mais esperanças e quero esquecê-la. Para começar não devo revelar de imediato a minha avidez. Sinto-me velho, cansado. Talvez eu precisasse casar, não sei ser só. Sofro. O melhor para mim agora seria ter um caso com uma menina como aquela, menina que ingressaria na minha vida, dando-lhe fogo novo, como num desses partidos como o PT que o Lula está criando em São Paulo, cheios de operários, artistas e intelectuais do tipo Zane. Sim, Zane seria do PT.
ROGEL SAMUEL: A HISTÓRIA DOS AMANTES, 19
Vivi com Val o principal de meus dias. Ela era o mel dos deuses. Disse-me uma amiga: "não mais se cura".
Sei que amanha acordarei melhor.
Eu não percebia a diabólica volta que se operava nos secretos de sua interioridade. Tornava ela ser a Força. A inacreditável força. Dentro de mim.
Pois Val era pessoa que, com o fato de ser, fazia estalar o Universo inteiro e explodir em pedaços nos mais inconfessáveis desejos!
Eu hoje penso ser definitivamente louca, mas como louca gravitava num universo para nós insuspeitável, com o privilégio de saber conduzir-se no mais fundo da fenda de nossas perigosas farsas, como só o louco pode, o domínio de nossas sombras, das nossas dores.
De que nada eu sabia de que ela era feita! Pois como explicar a corrosão interna e desconhecida, como é possível compreender de que substância obscura e inapreensível ela se constitui, como era obscuro o véu que encobria as dimensões mais interiores de seu amor?
Eu não vi o exato momento em que Val, girando sobre si mesma, apareceu Outra, a Desconhecida.
A água corre, a água escorre e corre por dentro dos corpos e por sobre as pedras!
Ela mudava! Como eu temia essa mudança!
A loucura tomava conta de seu ser como um fantasma inimigo, um domínio agressivo de verdades e punhais! A Outra se apossava dela na certeza de seu coração intocado, sim, e a partir daí eu passei a aborrecê-la e Val me odiou.
Ela foi perdendo a jovialidade, a inocência, a alegria, a doce leviandade que multiplica os mal-entendidos e reconstruía nosso paraíso.
Foi-se convertendo não num ser, mas num processo, lentamente. E alterações profundas perturbaram seu frágil equilíbrio e aquilo em que nos sustentávamos.
E eu cada vez mais me apaixonava por ela na proporção que ela mais se afastava de mim.
Eu me entregava cada vez mais naquela louca paixão na medida em que seu amor se tornava estranho e escasso.
Eu me entregava pela primeira vez por inteiro, como na morte, para a vida e para a morte, me abria em fragmentos, rompendo com as mãos as pétalas da evidente ruína móvel em direção ao insólito, ao incomensurável, ao espasmódico!
Eu posso dizer que fui a ela com tudo o que tenho e sou, com meus nervos, com meu sangue, com meus órgãos à mostra, meus mucos e líquidos escorrendo pelo chão em sua direção. Fui deixando de ser, recusando-me a mim para pegar o outro, na busca tão simples de si na consistência do outro. E experimentei todas as rachaduras e destruí todas as minhas escamas e duras crostas em que me consolidava e protegia. E me entreguei, como um desfigurado e morto animal, meus destroços, embora tarde, pus aquilo na pedra, jogando no chão, a seus pés aquilo que ela poderia rejeitar com a mínima má-vontade.
Talvez até Val tenha retirado os elementos de sua loucura das fibras de minhas feridas abertas e da minha alma em delírio. E para proteger-se se tenha feito insensível, endurecida. Talvez eu a tenha empestado e corrompido, no contágio de minha pegajosa probóscide e ela, de capa anestesiada e leviana, se encobriu durante algum tempo antes de partir, incólume.
Não! Eu nunca a tinha visto antes! Se nunca pudesse experimentar esse processo de tortura e rasgar minha sanidade em estrias esgarçadas. Eu não me teria aberto pelo avesso a fim de receber o sol feroz no recôndito fundo do meu núcleo obscuro para o causticar.
E era assim que se preparava e se passava a minha demolição, e era assim que eu impiedosamente ia cortando os fios tênues que ainda me ligavam à vida, na contaminação de minha irreconhecível doença, que me atingira como um raio, e me arrastava em direção a seu contato, me rompendo e me desviando da rota de mim mesmo, e me expulsando do mundo - oh, meu Deus! - aquela foi sempre a pior maneira de me supliciar na pior fase da vida que a separação rompia ao meio o tudo-nada em que me dividia e dilacerava.
Só a injustiça governa o mundo.
ROGEL SAMUEL: A HISTÓRIA DOS AMANTES, 20
Em 1968 Val no meio da rua corria, outros correm entre explosões de bombas de gás. Alguns homens, estudantes, e poucos operários, como galinhas assustadas. Aqueles momentos tão distantes da ilha fundamental, da voz do mar, da clara voz de mar de Val. Os soldados invadem o prédio, bombas rebentam no meio da sala, ruidosamente. Como a procuram no meio dos acontecimentos tumultuosos, ela esta encurralada ali, todas as saídas, todas as comunicações bloqueadas. Aquele ano de Val nao foi um sucesso.
E o soldado a segurou pelo braço e ela pensou que a mataria. E o soldado começou a gritar para os outros soldados, enquanto iam aparecendo capacetes - e ela, de súbito, dando um salto para trás, mas pelo braço ele novamente a pegou - e estavam todos os soldados espalhados pela rua e não na rua ela correria entre todos, temporariamente livre, quando um outro soldado, que estava parado, surgiu e estendeu a perna para a abater - ela tropeçou mas continuou correndo, sem ver, desviando-se, fugindo entre aqueles que a perseguiam, e assediavam. E entre eles, ela. Mas o que se passou foi o seguinte: que ela foi envolvida e era uma brincadeira para eles, um brinquedo deles, ela sentindo-se ameaçada e em grande perigo, num momento de grande aflição, não conseguia ver, não podia sair do cerco mas algo estourou de súbito ali perto e um incêndio, como uma garrafa estilhaçada, e ela aproveitando-se da confusão furou o cerco, que a desconheceram - eles eram multidão, brotavam das pedras da calçada. E correu; ela correu muito. Talvez pensassem que não iria muito longe e não a seguiram. Por muito tempo. E ela entrou na porta do ônibus em movimento, e pedindo que continuasse, que não parasse. E todos os passageiros do ônibus muito assustados - luzes de fogo. Pareciam tiros, as bombas. Dos soldados se levantava uma nuvem de fumaça e de gás lacrimogêneo e o ônibus arrancou, pois ela era uma senhora, talvez pensassem que também estava assustada e que fugia dali, as bombas em fúria de labaredas e um soldado apareceu de repente do meio das nuvens com a face lavada de sangue, surgiu assim que havia recebido uma pedrada e o sangue todo vermelho descia pela face dele. Ela olhou a praça de guerra, que ficava em chamas. Carros de choque chegavam, a ordem era dispersar a multidão, prender os líderes. O trânsito fluindo, olhavam para fora atônitos, massa de gente correndo ali, penetravam os quarteirões, a multidão que corria por ali.
E depois ela saiu do ônibus e enveredou por uma rua deserta olhando para trás como se temesse ainda ser perseguida. Longe, pessoas muito rápidas, muito nervosas, corriam para suas casas. E ela queria chegar em casa, e se esforçava para ver se tudo já estava normalizado para poder atravessar, e pegou um outro ônibus. E esperava que no outro dia fosse feliz. Iria ao cinema. Foi quando aconteceu o que eu não quero lembrar: que um grupo de soldados, uns três, vinha num jipe e a encontraram e a pegaram numa rua deserta e ali mesmo a estupraram porque já era noite.
ROGEL SAMUEL: A HISTÓRIA DOS AMANTES, 21
Quando Valquíria chegou em casa viu que estava só. A mãe em São Paulo, morando com a irmã. Levara temporariamente Ricardinho, seu filho. Val agora um eu ríspido, na volta do quarto. Olha pela janela a tarde desencantada. De repente ela vê o grande incêndio que destruía o mundo. Sente que tem de sair dali. Na orla ainda um movimento de soldados. Suas mãos estão frias e fracas. Fica olhando dali, imagina as suas coisas, suas roupas, tem que levar. Os documentos, os livros. Um Lênin em espanhol poderia incriminar. Marx. E se os encontrassem? A repressão recrudescera. Val, só. Está sem dinheiro. Sair dali. Se pudesse, viajaria para o exterior. Procurar, buscar Roni. Talvez em Búzios ninguém a encontrasse, poderia ficar ali ate o Natal. Lá estaria a salvo? Olha pela janela. Agora o trânsito é lento, subindo a Praia do Flamengo em direção à Zona SuI. Volta-se para dentro, senta-se na escrivaninha, destampa uma caneta preta, puxa um bloco, começa a rabiscar uma carta para a mãe. Era a terceira naquele mês. "O Rio esta uma praça de guerra, um campo de batalha. Meu nome anda por aí, em poder da repressão, como amiga e companheira de muita gente. Se me pegam estou morta..."
Val largou a caneta, rasgou a carta, ergueu-se e saiu. Sabe que uma carta é um perigo. Segue a pé em direção à Lapa. Está sem vontade de nada. Talvez um café. Está tremula. Era como se escapasse de um desastre. Certamente a polícia tinha prendido muita gente. Mas ela estava viva, embora sem saber para onde ir e procurar Roni. Procurá-lo.
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Onze anos depois sua face se fechou numa expressão amarga, de amarga severidade, desconsolo, frustração, na decepção que o longo período de ditadura militar lhe imprimira no rosto, onde se via ainda os traços de antiga aflição. Os olhos de Val agora piscavam muito, o pescoço se fez duro, ela tinha rugas cavadas sobre os lábios curvos e murchos, olhos inquietos, perdidos, assustados. Os cabelos grisalhos, prematuramente grisalhos. Ela não os pintava, perdera muito cabelo, estava ali, com aquela inesperado envelope nas mãos, no balcão vazio de sua pequena loja de confecções em Cruzeiro, há bastante tempo para ser conhecida por todos como Valnice Pacheco, que até o nome trocara para ser deixada em paz. Era uma carta de Rôni. Depois que se estabeleceu ali nunca conhecera nenhum homem, dedicando-se a loja, ao filho e à mãe. Agüentou uma década ali. Visitava pouco as amigas, pouco freqüentava a sociedade de seus amigos de classe média daquela cidade vazia, e ainda se lembrava de Rôni e da grande estrela que fora para ele.
Val tinha passado o Natal sozinha com a mãe, Ricardinho fora acampar. Às vezes pensava que ali não tinha ninguém com quem conversar. Se Roni escrevera, depois de tantos anos, era porque ele também estava só, também passava o Natal sozinho. Por que não me procurou pessoalmente? perguntava ela. Por que ele não telefonou, se seria fácil para ele encontrá-la através de Lia, que ele sabia onde trabalhava? Como insistia em vê-la, ele não a esqueceu completamente. Val, durante os primeiros anos não pudera esquecê-lo, já que recebia dele a pensão que depois ele não mais mandou.
Lembrava-se ela de Roni, de como ele sempre tivera vida dupla desde jovem. Durante todos aqueles anos ele ou tivera uma amante fixa além dela, ou sempre teve a liberdade sexual que quis. Roni queria Val como amante? ou a quisera como a substituta da mãe? Ele vivia viajando, e o choque da existência de outra nunca seria de todo absorvido por Val. Os anos se passaram e agora ele escreve uma carta. Nesses anos eu envelheci, pensava Val, e era verdade. Não era o fato de Roni ter sempre as amantes que quis o que doía, mas sim o caso de querer que ela também os tivesse, de querer que ela se tornasse uma puta, e mesmo assim continuasse com ele. Não sentia por Roni a sensação de perda, de perda incurável, de falta. “Não sei se o amei”, pensava ela. Ela não tinha nunca passado para o lado dele, ele é que a envolvera para não ficar isolado, sempre querendo dela algo decisivo, sempre querendo reconquistá-la. Ela nada fez, sua apatia e inércia no amor a impediam, sua passividade despreparava-o para tudo e ela não tinha para onde ir. Ao contrário,# na cama o odiava, o castigava, o agredia, e ele parecendo disso tirar maior prazer. E ela quis odiá-lo cada vez mais ainda, e nesses anos todos se fez dura e tensa, velha e feia - envelheceu, ah, sim: Val finalmente envelheceu com tudo o que isso significa.
Mas desde cedo em sua relação fazia amor com Roni com bastante ódio, esbofeteando-o, mordendo, cuspindo nele. Alem daquele amante e "marido", poucos tivera, como alguns rapazes na Ilha, André Luiz, depois torturado e morto, Vanderlei e uns poucos, como Carlos (que foi o amante que lhe dera o maior presente: Ricardinho), e depois Chico Pequeno. Não, ela quase não conheceu mais outro homem, outra emoção. Dizia Roni que ela era esteril. Fria. Ela estava morta, dizia ela mesma para si mesma. A vida não tinha acabado, mas ela se matara por dentro, se vingava assim, em si mesma, no seu corpo. Para ela, por ela passara o risco das decisões finais, aquela mesma loja vazia se tornando pesada, sem nada nem ninguém, como que apagada.
Ela se viu no espelho da loja e se perguntava: “quem sou?”
ROGEL SAMUEL: A HISTÓRIA DOS AMANTES, 22
Sim, tudo passou. Não, não volto a falar com ele. Lembrava-se. Roni desaparecia na madrugada. E ela continuou ate a noite. Petrificada. Nem que fosse agora, no frio da noite.
Desde logo eles tinham dormido em quartos separados, cada um com seu ódio especifico. Era a primeira agressão, antes mesmo do casamento. Ou seja, cada um dizia para outro: "Não me toque!" Ela, a indiferença cortes, nascida da necessidade e não do amor. Separação dos corpos, dos mortos, no mesmo teto que os oprime, não o toco, não me toque, asco, nojo, eu me chamo você, você se chama eu, mas eu a sujeito a si própria e você me rejeita, e nós nos amamos.
Quis perguntar de onde veio aquela frieza, ao longo desses anos, todos, que lentissimamente invade sua calma, sua viga, esmagadoramente ilusória, algo em que se pisa com o salto alto do sapato. O amor que lhe dei foi de mentira, no fundo eu o odiava. Dei-lhe o sangue, a juventude. Dei-lhe tudo, talvez o amasse, como talvez ele também me amasse ainda. E ate aquele meu amor ele aceitou.
Mas logo o desaparecimento de tudo. Francisco foi só um pretexto no longo processo. Estive com ele poucas vezes. A impossibilidade de se dormir em paz tendo no mesmo quarto o inimigo, ao lado do inimigo sempre alerta, sempre preste a vir, de madrugada, me matar, mesmo trancada a porta ele se filtrando nas paredes, como um fantasma. E lá fora os batalhões da Policia e do Exército a minha procura, buscando-me, procurando-me para me aniquilar, me matar, me torturar, o desaparecimento da alegria, o fim da juventude. Val tentava recuperar, ali na loja vazia, os anos perdidos. Agora não estava a beira da morte? A vida foi só um susto. Uma fuga precipitada para o salto do nada, desde menina. Um inventa nulo, não puder a ver nela a beleza, andara como cega pela velocidade, como quem passeia num carro veloz voltado para fora com medo de morrer nas curvas e sem poder observar a paisagem, as arvores do dia. Uma vida invisível e inútil num espaço oco, o espaço dela, feito de silêncio, de mordaças, sem ter nem poder, lutando contra forças invisíveis.
Porque quando Roni se separou dela, puderam ver que nunca estiveram juntos, que só funcionava o plano da dependência, do ódio, da vingança. Todas as amantes de Roni tiveram a mesma sina, a mesma cara, eram faces do mesmo nada, amantes que ele nem precisou esconder dela, principalmente porque a última, Luísa, já era pública, que os jornais falavam dela, de Lulsa Chermont nos mais elegantes lugares, ela multo mais conhecida do que ele, rica e elegante. As amantes eram faces em que se rasgavam as carnes podres do corpo, fazendo-o cheirar mal, fazendo com Val se sentisse uma cadela no cio, isolada a ladrar sempre dentro de um mesmo muro, irritada pelas pedras, a espera. O pior era estar a espera. Val nunca supôs que tivesse tido tanto ódio dele quanto naquele momento atrás do balcão de sua loja vazia numa tarde calma da cidade de Cruzeiro. Ódio, como triste e cruel recompensa de seu amor. Que mal lhe teria sido feito a ele? E que mal lhe fizera ela? Não, ela não sabia e se vingava em si própria, se fazendo cada vez mais velha, e seu casamento durava ainda lá dentro de sua casca podre, dentro de uma velha carcaça podre.
Val fria? Cão ladrando atrás das grades, atrás do muro alto, como louco, sem fim, sacudindo a poeira do pelo, mordendo-se e quebrando o silêncio. Agora nem conseguia levantar-se; de tão cansada, amarrada na cadeira, à noite não conseguindo despregar os olhos da TV, caída, exausta, calada, túmulo vivo no meio da sala, diante do ruído excessivamente alto dos comerciais da TV e ao lado de sua velha mãe que ressonava quieta. Absoluta solidão. Aos poucos seu ódio não consegue ser escondido nem de si própria, transpõe e sai-lhe na sua voz metálica e amarga, que dói nos próprios tímpanos, não mais a voz clara e bela que tivera, agora a voz feria como faca afiada, cortando o ar antes de o tímpano do outro. Aos poucos, e cada vez mais, ela se feria inevitávelmente no outro, jardim de cacos de vidro.
Ela e sua mãe ao redor da máquina do tempo. Nunca mais amou ninguém. Val esquecida, ave flutuante no ar perdida, encarcerada em si própria. "Meus cinqüenta anos me acabaram. E eu nada fiz".
Nunca teve outro amor depois de Roni, pois que seria de sua derrota se se deixasse ir para cama com um só dos garotões da cidade que a desejavam agora. Sua máscara, suas quedas nas mesmas verdadezinhas vagabundas e inúteis, conhecidas e vulgares, no seu rosto se tecla a fina rede de intriga dos anos e daquela pequena cidade. Ela aceita a sua insignificante velhice, ficando calada. Fora roubada, violentada pela vida. Nasceu para o sofrimento? Lembranças, sempre tolas, vastas bacias oceânicas. A mãe a dizer-lhe: "Estamos acostumadas a perder". A mãe agora já não sai de casa, andava pelo corredor, apoiada pelo braço, envolta num cobertor de lã que ela usava como um xale. A mãe dizia: "Não ha de ser nada, minha filha. Estamos acostumadas a perder".
Foi ao Rio, Val, e quase morre atropelada por um ônibus que passou veloz pela Praça Tiradentes. O ônibus a jogou no chão. A mãe estava com ela, mas as duas se recompuseram e foram tomar um café. Ela tira o dinheiro da bolsa, compra as fichinhas de café. Espera ser servida no Café Thalia, com as fichinhas verdes na mão. Esta trêmula, serve açúcar na xícara da mãe, que a consola do susto.
E como Val começasse a chorar, seus silenciosos e tímidos soluços, abafados com o punho, a mãe tira um pequeno lenço branco da bolsa e enxuga as gotas de lágrimas da filha, e pega sua mão e a encosta no colo e no selo, dá-lhe um beijo. E novamente insiste que ela tome o seu café. “O café vai reanimá-la, diz a mãe”. Passa-lhe a xícara e insiste. Val olha para fora, para a rua Pedro I, presa de funda inquietação. Roni sumira e não mais lhe mandava dinheiro. Não tinha notícias dele. Se pudesse processá-1o estaria bem, receberia a pensão de volta. Não ela. Ela não. Ela era uma exilada dentro de seu próprio país. Uma proscrIta. Consumiu toda a juventude nele, no Brasil. Por fim estava envelhecida, pobre, desempregada, arruinada. Ela se sentia só, sem amigos, sem rumo, perdida, com a mãe num mundo desconhecido. Tinha fechado a loja. Sim, pensou Val, eu serei na manhã seguinte um dia feliz, porque ainda não sei o que poderei dizer para ele, mas não há dúvida de que tenho de decidir amanhã.
FIM DE “A HISTÓRIA DOS AMANTES”
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Rogel!
ResponderExcluirNão sei há quanto tempo estou aqui absorvendo cada palavra, onde minha memória volta a esses anos. Concluí que todos os amantes sofreram, se separaram por um Partido Comunista que não deu em nada. Casei em 1963, aos 16 anos. Durante a cerimônia, meu cunhado foi preso. A mulher dele havia fugido com Francisco Julião para o México. Eu nunca tinha sequer ouvido falar de política.Muitos familiares da parte do meu agora ex marido, presos, torturados. Eu grávida da minha 1ª filha e ele bebendo muito desapareceu por três meses. Enfim fui me envolvendo com seu conto e pensando nos guardas na minha porta até os anos 80. A sorte é que na minha inocência, eu me sentia protegida por eles.
Meu Deus! Como mudou a vida de tanta gente! Não entendo porque elem assim como a Val davam a vida por um ideal que poderia dar certo ou não.
Maravilhoso esse livro!
Parabéns, você escreve bem demais. Já pensei em colocar num livro minhas memórias desta época, mas tenho medo. Ainda não confio nos homens de poder.
Aplausos!
Mirze
AMIGA
ResponderExcluirMUITO OBRIGADO POR SEU COMENTÁRIO
LEITORES COMO VC ME FAZEM CONTINUAR A ESCREVER
FELICIDADES!!!!!