sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Antonio Carlos Villaça


(Foto: ALCEU AMOROSO LIMA)

Balada para Ceceu (1983) Antonio Carlos Villaça


Nós te entregamos à noite
Nós te entregamos à terra.
Nós te entregamos à Deus.
Inquieto menino,
por que escreveste tanto?
Por que tanto te curvaste,
ao longo do tempo,
Sobre a folha branca?
Que segredos buscavas no papel?
Que segredos punhas no papel?
Que íntimas verdades
ansiosamente perseguias?
Amaste o silêncio e a solidão,
gostavas de ouvir de noite
o murmúrio das águas...
E agora te deixamos
entregue à noite
e à terra
e ao doce Absoluto
que buscaste, com pureza.
Conta para nós, Ceceu, o teu segredo,
Para lá de todas as palavras.
Diz-nos o que só importa,
o essencial do ser,
o sumo da vida,
tu que amavas Vivaldi
e eras apenas um poeta.
Teu espírito de infância
te conduzia pelas ruas
desertas
ainda madrugada
para o pão de cada dia.
E comias em silêncio,
e voltavas para casa,
em paz.
Disseste
que era a tua única certeza.
Ias e vinhas,
menino inquieto.
E depois escrevias, escrevias,
para contar a verdade, o caminho, a vida.
Não te deixamos no chão
e na profundeza da noite,
ao pé da tua Amada,
na porta dos humildes,
No limiar do Amor.
A lua estava no céu.
(Anche la luna...)
lua do Lima,
lua mais bela
que jamais vi...
Ponte do Lima,
Ponte do Lima,
O teu menino está chegando.
Chamai Abigail, em Pau.
Chamai Zaíra e Carmen.
Chamai Camila e Manuel José.
Chamai Quinquina,
A Bá Preta,
Que veja como o seu menino
está bem.
Amoroso, Amoroso,
Grande outrora nadador,
Agora mergulhas no Amor.
(Ouve-se ao longe o canto
do Magnificat, pelas monjas.)
nadador, nadador, em que águas
estás nadando?
Estou nadando no Amor.

[Nota da Redação deste Site: Este raro poema foi publicado originalmente em Aió2 (Abr.1984) e escrito na morte de Alceu Amoroso Lima].



Quando eu chegar ao Céu...



Antonio Carlos Villaça



Quando eu chegar ao Céu, de manhã, de tarde ou de noite, não sei ainda, pedirei para ir à biblioteca de Deus, onde curiosamente bisbilhotarei — com respeito — algumas obras. Quero reler a Invenção de Orfeu, de nosso Jorge de Lima, sofredor, telúrico e místico, homem bom, cirenaico, assim lhe chamou Rachel de Queiróz, quando ele morreu, novembro, 15, do ano de 1953.

E pedirei, sim, para conversar com Manu, Manuel Bandeira, que se chamava Neném. Matarei saudades do dentuço Manuel, que foi o melhor ser humano que conheci, neste mundo. E gostaria de conhecer Chiquita do Rio Negro, que recusou casar se com Ataulfo Nápoles de Paiva, conviva do baile da ilha Fiscal. Escrevi sobre Chiquita. Li a sua biografia, escrita por Garrigou-Lagrange.

Meu Deus, convocaria Jaime Ovalle, o tio Nhonhô, que morreu com a idade de Jorge de Lima. Ali, na biblioteca do Céu, conheceria o estupendo Ovalle, o do Azulão, o bêbedo místico, o amigo de Manuel, íntimo de Londres e de Nova York.

Por fim, suplicaria para falar com João Guimarães Rosa, poliglota, com quem tão poucas vezes falei. E evocaria a posse do seu sucessor, na Casa de Machado. Esqueci-me completamente dessa posse, ai de mim.

E fui. Lá estava eu, 1968. Um ano depois da morte de Rosa. Mário Palmério falou sobre ele, como seu herdeiro. E gostei tanto do discurso, equilibrado, lúcido, original. Se me lembro. Foi procurar cartas íntimas de Rosa para grande amigo, médico e fazendeiro em Minas, Moreira Barbosa. Cartas de outrora. Deliciosas, fraternais, confiantes, de pura entrega. Reveladoras do ser complexíssimo, fechado, carente, que gostava de disfarçar, despistar, ir e vir, comensal do mistério. Saudarei a uns e outros na largueza dadivosa do Céu, turbilhão de amor, como dizia o insaciável Léon Bloy.





Texto extraído do livro “Os saltimbancos da Porciúncula”, Editora Record – Rio de Janeiro, 1996, pág. 73.




ESTAS MÃOS INQUIETAS…Antonio Carlos Villaça
.
Servir foi teu destino.
Se descobres uma pequena mancha,
ou um botão ausente,
logo te levantas,
com tuas mãos inquietas,
disposta a servir.
Serviste longamente.
Teu destino foi servir.
Queres limpar os sapatos,
queres costurar as roupas,
queres lavar o que está sujo,
as meias,
os corações.
Caminhas pelo mundo como um anjo.
Nasceste para ajudar.
Com que delicadeza,
com que pressa,
te levantas e te debruças,
ó infatigável enfermeira,
ó ser misericordioso e humilde.
És tão prestativa,
tão solícita,
tão serena em meio a todos os pesares,
tão fiel a ti mesma, a teu destino.
Tens o gosto do próximo,
do pobre,
do sofrimento que ninguém viu
e tu vês, tu descobres,
ó humana criatura.
Como um anjo serviste.
Insaciável, tu prossegues.
Tens a vocação do serviço –
- a pequena mancha,
o botão caído,
o sapato a engraxar ou a limpar,
a cotidiana tarefa, que ninguém percebe,
tu cumpres tudo isso,
como um ritual secreto,
que é a vida de tua vida,
a essência de ti mesma,
a verdade do teu destino,
leve,
gracioso,

………..verdade nítida.
.
(Poema inédito, 11-09-1968)




"O Nariz do Morto":

"Ó dias, ó noites, ó vermes, que perfurais em nós a essência nossa. Que essência ? Que vermes ? Ó países em nós soterrados, ó escombros, ó múmias, ó gigantes mutilados, terras absurdas e quietas, colinas, mausoléus ,incógnitas e nós, bichos da terra, pitorescos, à procura"."A vida é numerosa. E então os sinos súbito anunciam em nós a morte,que virá. A morte vem.Cada dia, a morte vem".
"A fé religiosa como que me assaltou.Vi-me subjugado pelo entusiasmo. A vida de rapaz que amava as letras e sabia de cor os seus poetas preferidos,a vida simples, descuidada, solitária,tantas vezes,de um rapaz estudioso (e reto) ganhou esse frêmito novo e desconhecido, essa audácia, essa loucura, essa vibração absurda".
"Eu gostava das sublimidades.Eu queria as grandezas. Eu sonhava com alturas límpidas. Eu queria as nuvens. Muito menos, o duro chão dos homens".
"Ó paredes, dizei-me. "Eu quero a estrela da manhã !". Dizei-me o endereço dela. Ó sala capitular, ó claustros, ó antifonários com iluminuras, ó sinos brônzeos, estatuazinhas , capitéis, afrescos, casulas, pesadas estalas, pedras, faces, madeiras e ouro, tapetes, cálices, relicários , retábulos e móveis, crucifixos e virgens, falai ! Um sussuro que nos chegue. Que monólogo é este, dia e noite entretido ? Sombras, sombras, sussurai-me, segredai-me. Todo esse passado, esse peso, essa pátina, pureza, pecado".

"O homem morre para sempre. O abismo da morte não devolve ninguém. E então, lentamente, fui percebendo que só nos resta uma atitude, menos que atitude, uma postura - a tranquila dignidade de quem sabe e não se desespera".

"Ó interminável estrada, ó ruas do mundo, ó caminhos da vida, ó rio dos homens por onde incessantemnte rolamos como gloriosos destroços !".
"Ó caminhante sombrio e só ! Sempre sentiste o efêmero de tudo. Nunca pousaste, nem repousaste em nada. Nunca tiveste sossego. Fosto sempre um peregrino em perigo".
"Isto é apetecível, uma casa, com mulher e meninos, para a noite do homem. Nunca terás isto, ó incauto viajante, ó ser noturno, abandonado e trágico, nunca terás o limpo sossego dos homens. Não o terás, porque o recusas, ó louco, ó orgulhoso, ó só. Não conhecerás nunca a meiga tranquilidade dos serões sem agitação : viverás como um condenado, sem casa, entregue à nostalgia do paraíso absurdo, sem chave, sem nada. Caminharás sem fim. Nunca chegarás".

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