Memórias
Andantes
Leila Jalul
Memórias
Andantes
- Contos -
Bahia
2015
Memórias
Andantes
Copyright © Leila Jalul 2015
leilajalul@gmail.com
Revisão Final, capa e diagramação
André Alexandre
foto de capa e ilustração “tracejado Rio Acre” na
folha de rosto
André Alexandre
Foto da orelha
Acervo pessoal
Ficha Catalográfica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
(CIP)
869.945
J26m
|
Jalul, Leila -
Memórias
Andantes/Leila Jalul. – Joinville: Clube de Autores, 2015.
174
p.
|
Índice para
catálogo sistemático:
1.
Contos. I. Título
Dedicatória
Ao Dr. Abrãao Garcia Mendes, por me devolver o sentido da visão. Com
afeto e agradecimentos infindáveis.
Agradecimentos
Agradecimentos
especialíssimos ao André Alexandre, Henrique Silvestre, Olívia Maria Maia,
Vássia Silveira, Margarete Edul Prado - Maga - e Danilo Laranjeira de Jesus pelo
carinho a mim dedicados, até nas horas de impaciência.
Aos
meus netos Catarina e Hector, pelas vibrações positivas.
Dar à luz memórias
A metáfora não é nova. Aliás, muita gente se aproveita
dela no processo de “parir” uma infinidade de projetos pessoais. Mas, vamos lá.
Fazer
um livro é bem como gerar um filho. Inclua-se aí as expectativas e enjoos comuns
à gravidez… e à escrita.
Este Memórias Andantes começou a ser gerado há três
anos. Segundo Leila, ao se considerar a
gestação de vinte e dois meses de uma elefanta, daria para a mesma aliá parir
duas vezes e este livro ainda não teria vindo à luz!
Esses três anos são quase um terço do tempo que
andamos nos aventurando em livros. Parceria que começou em 2007, aprontando Suindara,
com a "Oréa"/Aurélia Hubner e a Simone Pessoa. Desde então, já
parimos “Absinto Maior”, “Das Cobras, Meu Veneno”, “Minhas Vidas Alheias”
e “Luzinete: Um Angu de Caroço?” Digamos que a gente se completa! Quase
farinha do mesmo saco mesmo! Aprendi o jeito especial dela contar suas
histórias, faço sugestõezinhas de alteração, reescrevo algo aqui e acolá, faço
sugestão de título, pensamos em capas... e fui virando o Sancho Pança de Doña
Leila de La Mancha!
Essa gestação de três anos acompanhou momentos
difíceis de nossas vidas. Em um hoje loooonge agosto de 2012, pequenas e
grandes coisas abalaram nossas brincadeiras literárias. Enquanto trabalhávamos
no livro, uma queda na porta do banheiro atrapalhou uma moqueca de lagosta e,
descobrimos depois, quebrou a L2 de Leila. E se seguiu uma longa recuperação. E
depois veio a deterioração da visão. Como sempre encontra anjos em seu caminho,
o Abraão Garcia tem cuidado de seus olhos. Este livro é dedicado a ele!
No que concerne a mim, desde então, a morte de um
irmão por causa de um câncer danado, a descoberta de duas hérnias e umas quinhentas
atribuições na universidade foram me afastando do livro até este mês. Não fosse
a insistência e uma certa fé de Leila em mim, nem sei se ele sairia!
Talvez estas dificuldades, em minha opinião,
expliquem a seleção de textos mais dramáticos de todos os livros que fizemos
juntos. Ela não concorda que o livro tenha esse tom. Não deliberadamente
(será?), foram se reunindo nesse volume, assim aos poucos se achegando, alguns
dos heróis e heroínas mais sofredores do universo de referências de Dona Leila:
como Líria,
que saboreava sorvetes e patacónes nas noites de jogos; ou o João
Marcino, que, assumindo a persona de Xixilica, aumentou as vendas de uma loja;
sem falar de Felek, aquele cunhado estorvador que todo mundo tem, infernizando
a vida de Bertha.
A escolha de textos é sempre um embate. Alguns rounds
eu ganho. Outros, ela ganha de lavada! É claro que há grandiosos empates!
Os velhinhos traquinas foi um deles. Texto que ela queria que entrasse no
livro. E, quando li, tornou-se uma de minhas certezas. Outras batalhas, teimoso
que sou, ganhei com louros! Um dia a gente publica em outro livro o “Enquanto durou…”
Essa criança tem um pouquinho de muitas pessoas. É…
Nosso processo é meio promíscuo. Leila danada! Um exame de paternidade pode
indicar muitos pais aqui: Juarez Nogueira revisou e indicou textos, Henrique
Silvestre também foi um dos pais, lendo entre viagens e aulas (o título é dele!
Leila sugeriu Andantes e ele veio com
o Memórias, que fez a diferença!),
Margarete Edul Prado atendeu de pronto ao pedido para escrever a orelha e
Danilo Laranjeira foi dos últimos a entrar na dança, ajudando nas leituras!
É assim que a gente vai construindo nossas
memórias. Andando juntos. Pensando já um pouco parecido, às vezes. Quem quiser
que nos siga.
André Alexandre
Agosto/2015
Sumário
Dar à
luz memórias
Apresentação
O quarto
dos papiros e das estrelas do céu de azul royal
Ave de
cristal
O
palhaço Xixilica
A casa
dos avós traquinas
Felek, o
colecionador
O diário
de Cristhine Asther Rojas Fuentes
Os
tempos eram assim
As
meninas de Renoir
Titio Callilla
É o seu
fim, madame: assim falou Zoroastro
Os
pastéis de Dona Dozinha
Reduto
dos capetas
Tia Neca,
Zé Taveira e São João
Enquanto
durou
Lições
de Antônio Mulato Benevides
Mortes
pré-datadas
Entre
versículos e insultos
Apresentação
Para o meu Memórias Andantes,
dentre várias sugestões de capa, escolhi esta fotografia do rio da minha
cidade. Não apenas pela ideia de movimento que os rios sugerem. Também por
isso, claro! O click foi do André
Alexandre, o faz-tudo da minha vida errante. Andei muito neste meu rio. Ora
subindo, ora descendo, ora atravessando de catraia, ora nadando. Esse meu rio,
que não é só meu, já foi cantado em verso e prosa.
É da Olívia Maia, minha querida e boa amiga, o título “Em Rio Que Menino Nada, Raia Não Ferra”. Não concordo
muito com a assertiva, mas… É que os meninos da Olívia tinham anjos de guarda
mais poderosos que os de outros meninos que sentiram a ferroada.
Às margens do meu rio, sentei e ouvi estrelas. Mesmo perdendo o senso
das horas e apanhando quando em casa chegava. Das mesmas margens olhava o
movimento dos que, na lida diária, atravessavam de catraia para o trabalho, ou
para festas, compras e outras tantas motivações. Tenho no olhar, neste exato
momento, duas meninas faladeiras e bem faladas da família Beiruth. O nome de
uma era Marcina e a outra… como era mesmo o nome dela? Lembrei, acabei de
lembrar. O nome da outra era Violeta, mais conhecida como Viola. Custava-me
crer que elas conseguiam sentar nas catraias com seus vestidos de shantung e de rendas brancas para as
festas e saraus dançantes do Rio Branco Football Club.
A mesma imagem me veio do Senhor Osvaldo Lima subindo apressadinho as
escadarias e distribuindo beijocas para as suas incontáveis fãs. Como era
beijoqueiro o Senhor Osvaldo! E como tinha fãs! No caminho inverso da pressa do
Senhor Osvaldo, a maciez preguiçosa e indolente dos passos do Senhor Tufic
Assmar, exímio jogador de gamão e latifundiário despreocupado com esse negócio
de sobrevivência de pobreza de pobre. Eram muitos pra lá e pra cá e pra cá e
pra lá, até o aparecimento das pontes. Impossível falar de todos.
Dono de um dote poético espetacular, J. G. de Araújo Jorge falou do meu
rio num poema quase épico, intitulado “Poema
acre-doce”. Antigo e atual ao mesmo tempo. Não custa transcrever a estrofe
primeira. De épicos, bastam meus problemas!
“Onde estás rio Acre?
Por que rio Acre
se suas águas são doces como ‘alfinim’
no mapa de minha infância?”
Ficaria triste o autor se soubesse que, hoje, o seu rio não tem gosto de
alfinim. É um rio com gosto e cheiro de merda, ruim de peixe e lotado de
entulhos. Coisas da modernidade e da irresponsabilidade de quem há muito vem
governando o povo, a floresta, o rio e a si próprio.
O meu rio apresenta transtornos… Ou é filete ou, quando revoltado,
destrói parte da cidade que o margeia. Parece vingança! Maldita! Ainda assim, é
o meu rio. E nele trafegam minhas lembranças mais remotas.
Quando li “Não Apresse o Rio (ele
corre sozinho)”, de Barry Stevens, não pensei no conteúdo. Gostei do título
e, só após a leitura, gostei de tudo que li. Barry discorre sobre a Gestalt.
Não sei de nada disso. Para mim é uma corrente que estuda as intempéries da
mente humana. Nada sei de Lacan, de Freud ou de Jung. Mas sei de rio. Sei do
meu rio e das minhas lembranças. Sei de gente e é delas que falo, sem me focar
especificamente em suas mentes, em suas taras e sem listá-las nesta ou naquela
outra categoria de malucos-belezas. De pirados, também sei, até porque sou
piradinha de baladeira. Tem gente doida de pedra, bem sei. Outras nem tanto. Até
posso dizê-las normais, se é que sei de conceitos de normalidade padrão. O
certo é que as conheci e não as esqueci. Seria traição de minha parte. Por
conhecê-las, quero eternizá-las, como me quero eterna, sem desejos de
imortalidade.
Minhas memórias andantes tentaram subir em águas turvas com o desejo de
desovarem em águas claras. Se subi ninguém sabe, ninguém viu. Meu nome não é
Conceição. Trafego nas lembranças que a idade me permite avivar. Meus
personagens existiram. Alguns viraram flores, aves e ninhos, no processo que
bem descreveu o meu amigo médico e poeta Mário Maia, no seu poema “Eternidade”, que transcrevo para finalizar
com pompas e honrarias esta apresentação. Acaso enfeitei o maracá, creiam-me,
foi para não desnudá-los e entregá-los para saciar as bocas famintas dos leões.
Peço paciência e compreensão. Qualquer semelhança não é mera coincidência. C’est la vie!
“Voltar a ser nitrito e ser nitrato
Transformar-se em inorgânico novamente
Para que as plantas cresçam
e hajam flores…
Para que as aves cantem
E eu serei a planta, a flor
a ave, o ninho…”
Leila Jalul
Junho
de 2015
O Quarto dos Papiros e das Estrelas
do Céu de Azul Royal
Ali no Tremembé, quase no Alto da Cantareira, eles
eram apenas Joky e Mile. Sabia-se dele ser religioso ortodoxo, até pela aparência
do trajar. Dela, apenas que morava na mansão. Uma senhora mansão que tinha nos
fundos um penhasco e, no penhasco, um plantio de pinheiros canadenses. Dela, da
moça Mile, sabia-se nada. Sabia-se quase nada! E já era muito o nada saber…
Joky aparentava uns setenta e cinco anos; Mile, se
muito, vinte e cinco. Tinha uma trança que lhe caía até a cintura. Um belo
trançado de fartos pretos cabelos. Sua pele era alva. Chapéus de abas curtas,
sempre de palha e descidos à frente, cobriam-lhe os pequenos olhos azuis.
Religiosamente, ainda muito cedo, descia a rua.
Olhava para o chão. Sorria quando cumprimentada por um ou outro vizinho. Apenas
sorria. Do chão não desgrudava os olhos. Da padaria, subindo a rua, voltava com
uma bisnaga de meio metro de pão e dois litros de leite em embalagens de vidro.
O trajeto era repetido no cair da tarde. A mesma compra: uma bisnaga de meio metro
de pão e dois litros de leite em embalagens de vidro.
Era Mile, sempre, quem atendia às batidas no largo
portão de madeira. Demorava a abrir. Parecia querer certificar-se se quem bateu
poderia e deveria ser atendido. Medo? Raramente, também desconfiado, Joky vinha
em seu auxílio. Também medo? O medo deveria rondar aquelas duas criaturas da
mansão do penhasco com uma floresta de pinheiros canadenses. Por anos seguidos,
invariavelmente às terças e sextas, em torno das seis da tarde, um senhor de
óculos austeros, longa barba e roupas escuras visitava os moradores. Batia a
aldrava de cobre do portão como se usando um código. Um motorista ficava do
lado de fora à sua espera. Por longas horas esperava o senhor de óculos austeros.
A vizinha viu e contou tudo o que aconteceu na
tarde de um outono já frio. Sempre era frio no Alto da Cantareira. Fosse verão,
até. Dois homens estranhos, jamais vistos na redondeza, esperaram por bastante
tempo, meia hora, ou mais, até que adentraram. Estavam numa caminhonete com
grandes pacotes que pareciam pesados. O portão só foi aberto com a chegada de
Joky e os homens foram recepcionados com reservas. Entraram. Do seu sobrado, a
curiosa, esgueirada na janela, com olhos e ouvidos atentos, pôde ver fagulhas
de solda e ouvir sons de furadeira.
A vizinha do sobrado entendeu. Os homens só saíram
da casa quando deixaram ser avistada uma torre mais alta que os pinheiros canadenses.
Serviria para uma rádio PY? Para a comunicação com o mundo? Talvez! Queria ser
uma mosca, a vizinha, nem que fosse por momentos breves, apenas para espiar
como era a vida de Joky e Mile.
Anos depois, muitos, a mansão foi posta à venda. Os
vizinhos Joky e Mile voltariam para Gdańsk, na Polônia.
A vizinha do sobrado fez o possível e o mais que possível para arranjar
dinheiro. Vendeu o que era seu e, com o que tinha acumulado, comprou a mansão
que, por décadas, causara-lhe estado de instigação permanente. Nas negociações
preliminares viu que era procedente a atração irresistível. Era uma bela casa. De
grandes cômodos, construída em dois níveis, transparecia guardar segredos e
mistérios não de uma vida, mas de duas.
Na parte superior, em luz atenuada e indireta, uma
grande sala que não servia aos visitantes. Uma sala-biblioteca, com duas
imensas poltronas e dois abajures tipo sombrinha. Uma sala de leitura. Sala com
livros esteticamente perfilados numa estante de mogno. Organizados sistematicamente,
manuseados e guardados com disciplina e amor. Assim lhe pareceu. Na parede
principal, num nicho feito sob medida, um quadro da Senhora
de Chestochowa de Jasna Gora (Monte Claro), a padroeira da Polônia, feito
a bico de pena e colorido com guache. Uma arte! Em destaque, num pedestal de
mármore, uma imensa escultura da águia branca, símbolo maior da terra de Lech
Walesa. A vizinha não deixou escapar detalhes.
Duas portas, ao serem abertas, revelavam os quartos
de dormir de Joky e o de Mile. Móveis de jacarandá no quarto masculino diziam
do poder aquisitivo do proprietário. Os criados mudos, de um e do outro, além
de um reservatório para água e uma luminária de mesa, deixavam à mostra alguns
livros marcados em meio à última página lida e a próxima, o que indicava a avidez
pela leitura dos clássicos. No quarto de Mile, uma cama de ferro, tamanho
solteirão, era pintada de branco e tinha adornos de bolas de metal prateado.
A vizinha do sobrado viu e contou que os proprietários
da mansão, que logo seria sua, liam Tolstói, Máximo Gorki, Dostoiévski, Sócrates
e Platão, ao mesmo tempo, nos ambientes onde dormiam. Dormiam acompanhados de
bons autores. Talvez, quase com certeza, dessa leitura viesse a educação que
mostravam possuir como maior riqueza.
Ainda durante a vistoria do imóvel, um momento foi
especial e determinante para a quase garantida futura aquisição. O quarto de
Mile possuía uma parede revestida com similares de papiros de tons amarelados, envelhecidos
tecnicamente. As outras paredes tinham tonalidade azul marinho. No teto rebaixado,
em azul royal, estrelas em material fluorescente cintilavam. Uma lâmpada
rotativa de parede jogava fachos direcionados que faziam bailar as constelações
ali afixadas. Magia pura! Completando a decoração, parecendo retirada de um
rescaldo de incêndio, a fotografia de um homem, uma mulher e uma criança
menina. Fotografia antiga, em preto e branco foscos. Bem poderia ser dos avós
de Mile e de sua mãe, quando menina.
Um pequeno corredor levava à cozinha. Tudo ali era
branco. Um pequeno fogão, poucas panelas e louças de porcelana pintadas por
Mile expressavam a pouca gula dos moradores. Um pequeno armário de condimentos
e, ao lado dele, um de medicamentos que Joky tomava em horários marcados, anotados
com detalhes numa lista afixada no painel da geladeira. Muitas frutas expostas
em fruteiras rústicas diziam dos modos e costumes saudáveis.
Saindo da cozinha, com batentes de madeira e corrimão
de barras de metal, uma escada deveria ser descida para alcançar o andar de
baixo. Um canteiro de ervas para chás estava erguido em prateleiras sobre
cantoneiras presas ao muro. Um jardim suspenso de camomila, hortelã, malva e
outros tantos de carmelitanas, senes e macelas.
Ao centro do pequeno jardim, rigidamente limpa, uma
fonte que jogava jatos iluminados por pequenas lâmpadas azuis, atraía pássaros
em busca do refresco do banho e da bebericação de água. Dois pés de rosa menina,
em cachos apinhados, adornavam o pedestal losango da fonte.
Um grande salão com portal e janelas de vitrais
também azuis, destacava o ambiente que deveria ser chamado de porão. Uma visão
divinal da floresta de pinheiros canadenses se descortinava. Uma paz de
mosteiro reinava. Era o oráculo de Joky. Ali estavam a aparelhagem de rádio e um
grande quadro de mensagens e lembretes vindos de todas as partes do mundo.
Esse oráculo, por anos, pela voz da vizinha
compradora, serviu de quartel general para a tentativa de achar os pais de
Mile. Se não os pais, algum parente. Avós, primos ou tios que lhe pudessem
devolver a alegria perdida. Era no recanto sagrado, também, que, por todo o
tempo de residência no Brasil, Joky fazia ligação com os familiares de outros compatriotas
que, também no Brasil, cumpriram o forçado exílio. O senhor de óculos austeros
servia de mensageiro. Vinham por ele os clamores da comunidade polonesa para a
localização dos seus na terra deixada arrasada; através dele saíam os
resultados dos contatos. Alvissareiros, ou não.
Pela voz e relato da vizinha, agora moradora da
mansão, foi dito ao mundo que Mile, cujo nome verdadeiro não se sabia, fora
apanhada por Joky, em estado famélico, numa praça de Gdańsk no período da invasão alemã e da caça aos judeus
poloneses. Ela tinha apenas dois anos quando foi recolhida e, por sorte, não habitou
os campos de concentração.
Na semana antecedente à viagem, fardos e mais
fardos de bagagem foram encaixotados. Na data do embarque, surge Mile com o chapéu
de sempre, vestida com a mesma tristeza de antes e sem desgrudar do chão os
pequenos olhos azuis. O senhor de óculos austeros os levaria ao aeroporto.
Seria ele, por poderes plenos passados por Joky, o encarregado de ultimar a
venda da mansão, no que se referisse à transmissão definitiva do imóvel. Não
houve festa de despedida. Saíram tão ou mais silenciosamente como enquanto ali
viveram.
Pela voz da vizinha do sobrado, agora proprietária
da mansão que tinha nos fundos um penhasco e, no penhasco, um plantio de pinheiros
canadenses, foi dito que, no apressado do tempo, Mile esqueceu no quarto dos
papiros e das estrelas do céu de azul royal, talvez, quase de certo, a sua
maior fortuna: a fotografia que parecia ter saído do rescaldo, onde estavam retratados
um homem, uma mulher e uma criança que bem poderiam ser seus avós e sua mãe,
quando criança.
A vizinha da casa do sobrado não hesitou. No
próximo encontro com o soturno homem de óculos austeros devolveria o quadro
embrulhado em uma página de presente, cópia similar de papiros, e escreveria
num cartão com estrelas prateadas: Para
Mile, com carinho.
Na sua primeira noite na casa, cansada pela
mudança, uma dúvida pairou em seu pensar: teria sido um mero esquecimento?
No Tremembé, quase no Alto da Cantareira, está firme
a mansão. Lá não mais mora a vizinha do sobrado, que se esgueirava para saber
dos mistérios e segredos que pairavam sobre Joky e Mile. Os pinheiros canadenses
do penhasco ainda estão lá. Parecem velhos e curvados em direção ao precipício.
Para além do limite... Para onde tudo vai...
Ave de Cristal
O amor e o coração são aves de cristal
que facilmente quebram.
Leila Jalul
No Bairro da Capela, quadra 16, casa
2, do conjunto Belmonte, a casa de Anice Moscoso era, sem medo de errar, a mais
animada. No varandão, sobre a mesa forrada de feltro verde, a jogatina de
canastrão, iniciada na noite do sábado, seguia até a madrugada de domingo.
Pausas rápidas para as refeições e outras necessidades maiores, incluindo uma
pequena reposição do sono.
Havia um ritual estabelecido e
rígido. Primeiro, a prisão dos quatro cachorros. Atos sequentes, sem alteração
de ordem, a colocação do grande fogareiro onde assaria a parrillada, temperada na véspera e disposta numa pequena mesa à
esquerda da anfitriã e o aparelho de som e as fitas de música boliviana, selecionadas
de acordo com a variação de humor, noutra mesinha, ao seu lado direito. Ninguém
colocava a mão na discografia. Somente Anice. E sem direito a reclamações ou
pedidos especiais. Afinal, a casa era dela, o baralho era dela e os discos,
também. Num canto, mais ao longe, um frigobar guardava sucos e material para
alguns tipos de batidas e coquetéis. Essa parte ficava sob a responsabilidade
de Eduardito Moscoso, filho da dona do cassino e que, por seus longos cabelos
pretos, era mais conhecido por Rapunzel.
Descrevendo assim, as bocas de
Matilde diriam que o cassino estava mais para quartel. Nada disso! O que
circulava no ambiente era alegria na conversa e seriedade no jogo.
Principalmente honestidade. Essas condições estavam presentes nas viciadas
Nailde, Ditinha e Dioneia, cinquentonas bem arrumadas e com dinheiro no cofre.
Sendo jogo de apostas, sem direito a crediário, o “four” das quatro não pisava na grama nem dava ré pra trás na hora
de “molhar” a banca e “regar” os bolsos (ou bolsas, como mais apropriado). Acaso
alguém perdesse mais que o desejado, o Banco Boliviano de Anice Moscoso resolvia,
com eficiência, com um préstamo personal
en diñero, mediante nota promissória com prazo de vencimento de vinte e quatro
horas.
Enquanto as duplas sorteadas na hora
(para não dar margem à formação de quadrilha) se abancavam no set, Rapunzel enchia o colchão d’água
sobressalente para deitar Líria, sua única irmã, acometida de esclerose
múltipla em estado bastante avançado. Somente após cumprido este último afazer,
era dada a largada ao jogo propriamente dito.
Deitada de barriga pra baixo, posição
mais cômoda, Líria enchia de felicidade o ambiente. Sua noitada de sorvetes
estava garantida. Era regra do jogo que a dupla perdedora garantisse o helado de morango, seu preferido, ou de
abacaxi, quando na falta do morango.
Na cama de água, sempre risonha, lia
revistas trazidas pelas amigas da mãe ou, aqui e ali, um romance feito para
moças da sua idade, cheias de sonhos e devaneios. Quando o sereno da madrugada
resfriava o ambiente e a umidade se fazia sentir nos ossos, era transportada
para seu quarto nos braços fortes de Rapunzel. Somente ele sabia lidar com o
transporte daquele corpo de meia lua, em processo galopante de deformação.
Braços fortes cingiam as partes altas e baixas do abdome no ato de um traslado
sem dor.
― Vem, Rapunzel. Quero
dormir. Boa noite, meninas! Amanhã tem mais. Não roubem meu helado!
Num modorrento sábado de um morno maio,
repetiu-se a encenação que antecedia cada um dos jogos. No entanto, Líria,
insistentemente, pedia à mãe que colocasse e recolocasse duas músicas de sua preferência:
Ave de Cristal e Sin Ella, na interpretação dos Kjarkas, o melhor grupo de folclore
andino. Foi à exaustão, cantando os refrães com a sua fala pouco inteligível.
Apesar de toda aquela cantilena repetida até enjoar, todos se deixavam
emocionar pela alegria da moça.
Após saborear muitas bolachas de
banana verde – patacón – feitas por Dioneia
e cantar até a rouquidão, Líria pediu para ser levada ao quarto. Não quis saber
de sorvete. Anice, pouco antes, havia terminado de emplacar uma canastra de
cabo a rabo (ás a ás), mas, sentindo que a filha não estava bem, suspendeu o
jogo e as apostas, como se nada tivesse valido.
As quantias foram recolhidas. Nem a parrillada, que estava ao ponto, pôde
ser servida no local. As meninas levaram numa quentinha para suas casas, após a
divisão igualitária dos miúdos do chancho.
E na madrugada ainda modorrenta
daquele domingo de morno maio a ave de cristal se partiu. Na mesinha, durante a
guarda,o velho aparelho de som de Anice, em baixo tom, repetiu, à exaustão, as
peças preferidas de sua menina. Líria estava serena e sorridente.
Quinze dias depois, a pretexto de
manter viva a imagem de Líria, o cassino reabriu as funções. Com os mesmos
rituais e as mesmas regras rígidas.
Afora os helados e os patacóns,
tudo ficou igual.
O palhaço Xixilica
Os preparativos para a liquidação da
maior loja de materiais de construção e artigos de decoração duraram três dias
e três noites. A avenida principal da pequena Mirandolina ficou interditada para
que se armasse um portal que permitisse, além da visualização do semáforo, a
passagem dos caminhões de lixo, dos cegonhas e dos transportadores de eucalipto
e mármore. Nela seriam vendidos pisos de cerâmica a R$ 8,00 e de porcelanato a
R$ 25,00. Janelas e portas de madeira deveriam variar entre R$ 70,00 e 90,00.
Tudo pechincha de São João! Isso sem contar com a galinha morta dos vasos
sanitários e das pias de última geração a R$ 180,00.
João Marcino e Heloneida estavam
radiantes com a garantia do trabalho temporário por duas semanas. Ganharam a
indumentária de palhaços e de caipiras do dono do estabelecimento. Roupas
lindas, jamais usadas em seus shows pelas feiras livres e fazendolas dos
arredores. Também os músicos da bandinha ganharam fantasias mais animadas que
as cores do arco-íris gay. Na
primeira semana seriam caipiras e, na segunda, palhaços. Selecionaram as
marchinhas de circo e as populares dos santos de junho e ensaiaram a todo
vapor. De 13 a 18 e de 20 a 25 de junho, teriam contrato assinado e pagamento
pelos serviços prestados aos proprietários da loja Camelo & Rodrigues
Materiais de Construção e Decoração.
Partindo do princípio do “quem é coxo
parte cedo”, às seis da matina, perfilados frente ao prédio, estavam todos:
músicos e caipiras, aguardando a abertura do comércio. Às oito, pinoteando de
um lado para o outro da avenida, ao som das músicas de fogueira, João Marcino e
Heloneida se derretiam em abordagens aos passageiros de carros, ônibus e
caminhões, quando de suas paradas no sinal. Ela, grávida de uns seis meses, ia
numa marcha mais lenta.
O sol esquentou na hora prevista para
esquentar. Cuidadoso com a esposa grávida, João Marcino deixava-a descansar no
canteiro central, debaixo de três arvorezinhas baixas e de copas frondosas.
Logo foram advertidos pelo gerente da loja: o contrato previa o evento defronte
ao prédio e não ao lado. Heloneida, forte que era, voltou ao quadrado
demarcado, sem reclamar da vida. E repetiram as sessões de caipiras ao sol de
segunda a sábado, das oito às doze e das quatorze às dezoito horas,
distribuindo panfletos e atravessando a avenida, numa alternância de doer na
alma de quem se dispusesse a medir o sacrifício.
No domingo, descansaram. Na segunda, voltaram
com a corda toda. Tiraram a roupa de caipira e se montaram de circenses. A palhaça
grávida, o palhaço de cabelos brancos e presos num rabo de cavalo e a bandinha
barulhenta e desafinada, desta vez tocando músicas de tablado. Preocupado com
Heloneida, João Marcino resolveu poupá-la das travessias de avenida. Passaram a
obedecer a proporção de uma para três, ainda que escondendo do gerente da loja.
As vendas ultrapassavam as expectativas. Quem iria se importar se não havia
tempo sequer de fiscalizar o formigueiro que se espalhava na loja com avidez de
lobos para o consumo dos pisos de cerâmica simples, dos porcelanatos e das
louças sanitárias? O gerente era um só, pois, pois!
Demonstrando cansaço e ainda preocupado
com Heloneida, João Marcino decidiu alternar suas travessias a cada três sinais
fechados. O gerente não mais disponibilizava as garrafinhas de água mineral, ou
de torneira que fosse, como nos primeiros dias. De língua seca, era impossível.
Até a bandinha estava mais amolecida e desafinada, principalmente para os tocadores
dos instrumentos de sopro.
Às quinze horas do dia 24 de junho,
vésperas do final da loucura liquidativa, com a casa cheia, ninguém notou que
João Marcino deitou um pouco no chão debaixo das arvorezinhas pequenas e de
copas frondosas. Apenas Heloneida sabia que seu homem não deitava por acaso.
A ambulância do SAMU recolheu o corpo
sem que o gerente desse conta de que, a seu serviço, debaixo de um sol
escaldante, morreu o mais famoso palhaço de Mirandolina. Xixilica era seu nome.
Heloneida, esse mesmo, era o de sua esposa.
E, parado o vento, calada a música e o
rumor de compradores em promoção, tudo ficou calmo, quase parado. Só o sol
continuava seu ofício de iluminar e derreter moleiras.
A casa dos avós traquinas
O trabalho da assistente social Ana Cláudia, todas
as noites, era sair na velha Kombi e, na companhia do motorista Pedroca,
recolher os pedintes, os cegos e os desabrigados que perambulavam na grande
cidade. Como destino certo: a Casa dos Avós, um pequeno abrigo mantido pela Secretaria
da Ação Social e cuidado por irmãs de caridade. Os recolhidos a cada noite,
inicialmente, eram levados ao albergue, até que fossem avaliados.
Antes de ser albergue, o prédio anexo abrigava senhoras
idosas. Mas, desde o “escândalo” de uma tentativa “fracassadíssima” de estupro,
elas foram levadas para o outro extremo da cidade. Isso mexeu com a “libido”
dos meninos amadurecidos e a casa virou sala de espera da morte.
Alguns idosos, dadas as condições físicas, permaneciam
ali e constituíam a razão da obra governamental. No primeiro quarto, de três
camas, por mais de uma década, habitaram os velhos Joaquim Moreira da Cruz,
Waldomiro Assuero e Malaquias Varela. Os três patetas, como eram conhecidos,
desligaram-se das famílias por vontade própria ou pela vontade de Deus. Eram
animados e fogosos de recordações. Traziam no peito as marcas e lembranças do
tempo em que foram “gente” e, na alma, a sensação do dever cumprido.
No silêncio da noite, o velho Assuero declamava
versos de García Lorca, ritmados e cheios de emoção. Saíra da Catalunha ainda moço.
Não viu ou viveu a Guerra Civil Espanhola, mas tremia com as lembranças de um
grande amor que o deixou a ver navios. Veio ser mecânico de automóveis num país
que o acolheu de braços quase abertos. E assim fingiu que viveu. Fingindo. E
declamando...
Alma ausente
Não te conhece o touro
nem a figueira,
nem cavalos nem formigas
de tua casa.
Não te conhece a criança
nem a tarde
porque morreste para
sempre.
Joaquim
Moreira da Cruz, octogenário, quis esquecer da existência e do que tinha sido o
existir. Estava ali, como não cansava de repetir, esperando seu troco para depois
partir. Ainda quase lúcido, partiu num dia de frieza aguda, sem os cobertores
de carinhos, os que mais esquentam emocionalmente. Partiu quase descoberto, não
fosse os dois companheiros de quarto.
Malaquias
Varela, inconformado, deixou pra trás seus sonhos de donzela. Tinha alma-mulher
sempre ardorosa, exemplo de amante e, quando pensava na morte, só dizia: “Quero
morrer envolto em sonhos lindos. Um príncipe virá e tê-lo-ei me possuindo. Minhas
carnes vibrarão num gozo eterno. Não quero a morte, quero um riso exagerado e
histriônico e uma sensação de ter vivido amado”.
E
assim morreu. Veio o mancebo e, numa madrugada, artérias entupidas, entre
flanelas mijadas, seu membro estava erguido e um sorriso estampava sua face
amarelada e gélida.
Dos
três patetas, restava um, somente e único. Calou-se a mulher louca e o octogenário
que perdeu o gosto de lembrar seu tempo. Viriam outros. Isso era certeza! O inverno
rigoroso sempre será o grande exterminador do futuro dos que têm mais de setenta
e, como não poderia deixar de ser, o serviço de “recolha” atingia, na estação,
os maiores índices. Ana Cláudia precisava achar dois fujões, pedintes e
bastante conhecidos no centro da cidade. Fez campana e acabou encontrando.
Primeiro recolheu Nestor Córdoba, viúvo colombiano e ex-jogador de basquete na
sua terra. O buraco onde se escondia, uma verdadeira toca, não comportava
abrigar suas compridas pernas. O “apartamento” era tão somente uma caixa de
alvenaria, rés com chão, onde ficava escondido o registro de água do prédio da
loja de materiais de construção. Foi denunciado pelo cobertor vermelho e
branco. Não aguentando a garoa fina, submisso, “entregou-se” sem reclamações.
Mais
duas voltas na Praça do Comércio, localizou o Vovô Pereba debaixo de camadas e
mais camadas de papelão. Os meninos da rua apelidaram-no assim por causa de sua
perna arroxeada por uma erisipela. Mas tinha nome e nacionalidade. Vovô Pereba
era, talvez, o único francês que perambulava na cidade. Na grande sacola, além
de poucas roupas e uma coberta, trazia uma sanfona de oito baixos, surrada,
porém cuidada, e sua carteira de identidade, sempre amarrada num saco plástico
para não molhar.
Naquela
noite não houve reclamações. Os dois choraram no percurso até o abrigo. Um
choro de agradecimento. Quando entraram no primeiro quarto, lá pelas tantas, o
sobrevivente Waldomiro estava desperto. Ao perceber que “estranhos” ocupariam
as camas de seus amigos falecidos, chiou de raiva. Foi necessária a intervenção
da freirinha plantonista. Levado pelo cansaço, dormiu. Somente assim, sem
xingamentos, Nestor Córdoba e Vovô Pereba puderam tomar suas canecas de caldo
fumegante e também gozarem das benesses das camas quentes. Pela manhã, após o
cordial bom dia dos intrusos, Waldomiro baixou as armas da antipatia.
A
vida transcorria nos conformes e cheia de conformações. A amizade ganhou peso.
Nestor Córdoba sacou dos seus pertences as pedras do dominó já desgastadas.
Sobre as camas, para não fazer algazarra, às vezes se divertiam até de
madrugada. Um barulhinho a mais de entusiasmo era interrompido por Irmã Ludmila
e os novos três patetas obedeciam. Já na área externa, outras amizades aconteciam.
Somente a sanfona de oito baixos ainda não havia dado o ar de sua graça. Até
que um dia, insultado por Waldomiro, Vovô Pereba resolveu provar que não só
tocava, como cantava, revelando, a todos, sua alma de Adiós Muchacho e
seu sotaque de Frère Jacques. Desembestou num pout-pourri de
velhas canções francesas e alguns tangos. Cortou a língua do Waldomiro Assuero
abaixo da metade, ou mais um pouco!
Em
Ana Cláudia, aquela expressão de musicalidade do Vovô Pereba e os dotes de
declamador de Waldomiro Assuero despertaram uma ideia. Com a psicóloga Gláucia,
planejaria uma apresentação de fim de ano. Descobririam juntas, fosse como
fosse, outros valores entre os internos e iriam à luta. Irmã Ludmila encampou a
iniciativa e entrou na onda. Realizariam uma sessão lítero-musical, com
cobrança de ingressos e tudo o mais. Uns colchões da casa mereciam troca. Em
doze anos de existência, o asilo nunca esteve tão festivo. O depósito de gente
antiga foi transformado num puta teatro de homens sábios e experientes pela
vida e pelas dores. Com a formação do coral, regido por João Eduardo Milagro, vulgo
Velho Duda, o circo pegou fogo. Acabou-se o tempo do “Triste é viver na solidão”.
Ensaios, ensaios, ensaios!
Waldomiro
declamaria outros poemas de Lorca. O seu “Alma Ausente” já estava gasto pelo
tempo e sem a menor graça para os companheiros. No primeiro quarto, trancado,
decorava outros. E ai de quem o interrompesse!
Com
a aproximação do grande dia, os nervos estavam à flor das rústicas e enrugadas peles.
Acessos de tosse pareciam querer inviabilizar a apresentação do coral. Crises
renais, taquicardias, mijadeiras noturnas e outros distúrbios de pré-estreia
foram a tônica. Irmã Ludmila nunca preparou tantos placebos açucarados em toda
a sua vida. Até ela teve que ingerir alguns.
Na
sala iluminada, ostentando como cenário uma cadeira e uma mesinha com um jarro
florido, foi aberta a festa. Na primeira fila, abancados com certo descaso e
pouca fé, estavam o governador e a respectiva primeira dama; o prefeito, o
bispo e outras autoridades civis, militares e eclesiásticas. A assistência, a
de segundo escalão, ocupava as cadeiras posteriores.
Abriu-se
a cortina. De camisa social branca, maestro Velho Duda deu o tom, acompanhado
pela sanfona de oito baixos do Vovô Pereba, até então na coxia improvisada no
corredor.
― Omm, ommmmm, ommmmmm. Um, dois, três!
De
Wagner Tiso e Milton Nascimento, Coração de Estudante. Ninguém desafinou.
“Bravo!
Bravo! Bravo!”
Maestro
Velho Duda não conteve as lágrimas.
Ana
Cláudia, cerimonialista da hora, anunciou:
― Com vocês… para declamar poemas de Federico García
Lorca, apresentamos o senhor Waldomiro Assuero!!! Aplausos para ele!
― Aos amigos Joaquim e Malaquias, que partiram antes,
e à minha eterna musa, ofereço estes poemas de García Lorca.
E
mandou ver: Este é o Prólogo e O Poeta Pede A Seu Amor Que Lhe Escreva.
O auditório improvisado quase veio abaixo. A primeira dama do Estado,
emocionadíssima, aplaudiu de pé. Waldomiro Assuero, naquele momento, pareceu
esquecer a perda dos amigos e do seu grande amor.
Volta
o coral do Maestro Velho Duda com peças bastante alegres e apropriadas ao canto
coral, e, ao término, foram todos igualmente bem aplaudidos. Só então, com voz
embargada, Ana Cláudia comunicou:
― Continuando nossa modesta apresentação, desejando e
esperando ter proporcionado alegria aos aqui presentes, traremos ao palco outro
querido amigo. Por anos, nesta cidade, foi conhecido como Vovô Pereba. Hoje,
recuperado, é um completo artista que já percorreu o mundo com sua velha
sanfona de oito baixos, tocando e cantando para transeuntes e amigos de caminhada
e desdita. Não existe mais o Vovô Pereba desde que sua ferida física
cicatrizou. As outras começam a cicatrizar esta noite… Ao palco, para interpretar,
de Carlos Gardel, o tango Silêncio, que diz muito sobre a sua
trajetória, apresentamos o Senhor Claude Bousquet! Aplausos!
Vestido
de preto, chapéu de feltro da mesma cor e assumindo a cadeira ao fundo do
palco, fez a velha sanfona dizer os primeiros acordes da música de Gardel e
tema de sua vida e cantou:
Silêncio, é noite, está tudo calmo
A cidade dorme, a ambição descansa
Embalando um berço é uma mãe que canta
Um canto querido que chega até a alma
Porque neste berço está sua esperança
Eram cinco irmãos, ela era uma santa
Eram cinco beijos que toda manhã
Ela recebia em seu rosto amigo
Eram cinco filhos que lhe adoravam.
Silêncio, é noite, está tudo calmo
A cidade dorme, a ambição descansa
Um clarim se ouve, periga a pátria
E em campos de guerra, os homens se matam,
Cobrindo de sangue
Os campos de França.
Silêncio, é noite, está tudo calmo
A cidade dorme, a ambição descansa
Está tudo acabado, renascem as plantas
Um hino à vida, é o que todos cantam
E esta mãe querida, de cabelos brancos,
Fica tão sozinha,
Com cinco medalhas que por cinco heróis
Premiou a pátria.[*]
Sob aplausos, curvou-se e
deixou sair da velha sanfona um pequeno trecho do hino da França. Deitou a
sanfona na cadeira e, sobre ela, descansou o chapéu de feltro preto tomado
emprestado do companheiro Waldomiro Assuero.
Após isso, literalmente,
o auditório veio abaixo. Sob uma rajada de assovios entusiasmados, a plateia
exigiu a volta do homem da sanfona de oito baixos.
Antes da apresentação
final da troupe grisalha, Ir. Ludmila
entrou no palco para um breve discurso de agradecimento. Falou dos prós e
contras da velhice, do trabalho ali realizado, de suas dificuldades e da
satisfação de ser responsável pelo bem estar de “meus velhinhos”. Sem fazer
distinção, destacou a potencialidade de cada um dos internos. Na sua visão,
eram todos seus irmãos em Cristo, e, na medida do possível, eram felizes. Entre
a exposição da rua e a Casa dos Avós, melhor a última. Elogiou, emocionada, o
trabalho de Ana Cláudia, Gláucia Maria e José Pedroca, seus auxiliares diretos.
Não esqueceu o trabalho voluntário dos geriatras Maria Fernanda e Oswaldo Leme,
verdadeiros e necessários amigos da turma ali moradora. Por último, em tom mais
sério, agradeceu aos governantes e autoridades por suas presenças e pela manutenção
do abrigo. Evitou críticas expressas, tais como o atraso constante dos repasses,
por pensar que, para bom entendedor, meia palavra basta e um olhar diz tudo. Finalizando,
disse: “Rogo a Deus, na sua infinita bondade, para que, no próximo ano,
estejamos novamente reunidos aqui. Todos, se Deus permitir e quiser! E ele há
de querer!”.
Abriu-se novamente a
cortina. Com pijamas coloridos e chamativos, especialmente confeccionados para
o evento, entraram todos. A peça foi ensaiada em dois tempos: a cantada e a falada.
O coral interpretaria a música infantil Sapo Cururu, enquanto, no outro extremo
do palco, Waldomiro Assuero declamaria, de forma galopante e em superposição ao
canto coral, a poesia Sapo no Saco,
já interpretada musicalmente por Jararaca e Ratinho. Mais ou menos assim:
Sapo cururu
Na beira do rio
Quando o sapo canta, ó maninha
É porque tem frio
E era o sapo dentro do saco
E o saco com sapo dentro
E o sapo fazendo papo
E o papo fazendo vento
A mulher do sapo
Deve estar lá dentro
Fazendo rendinhas, ó maninha
Pro seu casamento.
Eu agora vai falá é desse noivo Zé Perneta
Que era vesgo de uma perna e de um ôio era
maneta
A noiva fazia mala, ele fazia maleta
A noiva tocava trompa, ele tocava trombeta
Sapo cururu
Na beira do rio
Quando o sapo canta, ó maninha
É porque tem frio
Ele escrevia de lápis, e a noiva de caneta
A noiva cortava vara, ele cortava vareta
Ela dormia no carro e o noivo na carreta
Ele fazia carinho e ela fazia careta
A mulher do sapo
Deve estar lá dentro
Fazendo rendinhas, ó maninha
Pro seu casamento.
No dia do casamento, na casa do Zé Fulô
Agora que vô dizê, aquilo foi um horrô
Os dois se recolheram, logo ele estranhô
Ela foi se desmanchando, ele logo se espantô
Sapo cururu
Na beira do rio
Quando o sapo canta, ó maninha
É porque tem frio
Ela foi tirando um olho, depois um braço tirô
Arrancou a cabeleira, ele aí se apavorô
Ele aí tirou uma perna, ela aí logo gritô:
- Minha fia, minha noiva, vê pra mim o que
sobrô!!!
A mulher do sapo
Deve estar lá dentro
Fazendo rendinhas, ó maninha
Pro seu casamento.
E era o sapo dentro do saco
E o saco com sapo dentro
E o sapo fazendo papo
E o papo fazendo vento.
Era pra ser assim… Mas deu confusão. Embolou
tudo! Os velhos não sabiam se cantavam o sapo cururu ou se falavam o sapo
dentro do saco. De olhos arregalados, conferindo o fiasco, Maestro Velho Duda,
além de chorar, reclamou desesperado: “Que merda!”.
Que merda coisa nenhuma, Maestro Velho Duda!
Foi uma puta apoteose!!! Claude Bousquet deu a maior de suas gargalhadas e
Waldomiro manchou a frente da calça do pijama! O governador, por sua vez,
também ficou molhado!!! Foi tudo festa! A balbúrdia, o melhor de tudo, não
abriu espaço para o discurso do mandatário que, insistentemente, pedia para ser
ouvido.
Era madrugada quando Ir. Ludmila, Pedroca e
Ana Cláudia, entre um café e outro, viveram o prazer do dever cumprido, a
satisfação da festa e o peso da responsabilidade em despertar a vida naqueles
que estariam fadados a morrer na solidão.
Felek, o colecionador
Depois de um dia aziago, por toda a noite, entre um
gole de café e um cigarro, Bertha fez a retrospectiva de sua vida. Tudo estava
chegando ao limite do insuportável. Talvez houvesse até ultrapassado.
De lembrança em lembrança, foi até sua fase menina,
ainda na terra natal, onde conheceu as privações do pós-guerra. Lembrou a mãe
Casemira fazendo milagres na cozinha e até sentiu o insustentável aroma da
fome. A ração recebida do governo e das entidades que operavam com ajuda
humanitária, por mais que quisesse esticar, não cobria o consumo. Cinco filhos,
quatro netos e o casal, apertados em três cômodos, tinham o conforto da amizade.
De nada reclamavam. Se havia macarrão, não faltava o trigo; quando havia trigo,
repunha o macarrão. Com jeito, paciência e sem barulho ou blasfêmia, o macarrão
triturado virava pão. O pão velho, moído, virava massa que, com receita de
família, virava novamente macarrão. Dos ossos da canela bovina, com poucos
temperos, Dona Casemira fazia o goulash
que a todos alimentava.
Sapatos e roupas novos, por raros, findavam por não
fazer falta. Nada tão grave, de fato. Ignorando tamanhos, cores e gêneros, todos
usavam as peças disponíveis no armário.
A bebezinha de Afra, de apenas dois meses, para
vencer o frio, costumava dormir envolta com o casacão de vigia noturno do avô.
Só assim a menina se aninhava, ficava aquecida, dormia e se esquecia de pedir a
comida da madrugada.
Tomou outro gole de café e deu asas ao pensamento.
Enquanto o país se restabelecia, lembrou Bertha,
tudo foi se ajustando. A comida não mais ficou racionada. Seu pai, com dificuldades
e pela metade do salário de antes da guerra, voltou a ser vigia noturno de uma
metalúrgica. Afra, a mais velha das irmãs, passou a lecionar em uma escola
infantil. Levava sua menina para a creche e, de lá só voltava no cair da tarde.
Eram duas bocas a menos na casa de Casemira. Aos poucos, tudo entrou nos eixos.
A paz e a união familiar permitiram a travessia.
A angústia trouxe Bertha de volta de suas
lembranças. Por mais que tentasse lembrar, nunca se viu tão nervosa como naquela
noite. Estava impaciente. E com grandes motivos para tal. Desde que o marido
parou de trabalhar, quando migraram para o Brasil, nada mais deu certo.
Vieram os primeiros descontentamentos. Não por
causa de dinheiro, nem por conta dos filhos que nasceram na nova terra. A razão
principal da tragédia familiar tinha nome e grau de parentesco. Tratava-se de Feliks,
ou Felek, como o chamavam. Era o irmão mais velho de Henrik, seu marido.
Por seu gosto, Bertha já o teria mandado para o
inferno. Não mais estava suportando a convivência. E quem suportaria? Quem
toleraria um doente que, todas as manhãs, ao invés de procurar trabalho, fixava-se
na ideia de rápido enriquecimento? Alguém que tinha manias de juntar porcarias
na rua como se estivesse angariando gemas preciosas?
Felek, com a aquiescência de Henrik, farejava incêndios
e sinistros para, dos rescaldos, juntar objetos que só tinham valia para ele.
E foi nesse farejado que, de certa feita, adquiriu
por pouco, mais ou nada, uma partida de alfinetes numa fábrica incendiada.
Milhares e milhares de grosas de alfinetes chamuscados e entortados pelo calor
de mais de 600 graus centígrados. Caixas e mais caixas de alfinetes para, com a
ajuda de Henrik e das crianças, serem desentortados e limpos.
Para Bertha, infelizmente, o incômodo não era
apenas a esquisitice de Felek. O que mexia com a sua paciência era ver seus
três filhos, abandonando as horas de estudo, serem obrigados a participar
daquela loucura. Teria que dar um basta e escolher entre o marido Henrik, Felek,
seu cunhado, os filhos ou ela mesma. Estava prestes a enlouquecer.
Mais um tanto de café e mais um cigarro.
Tinha mil razões para decidir entre si mesma e a
família. Embora tivesse pedido com modos, passou o tempo e as caixas de
alfinetes não saíram do lugar. Não foram aceitas por nenhum comprador. Isso
significava noites e noites de trabalho jogadas fora.
Até que, finalmente, foram passadas adiante no
escambo da Feira do Passaqui. E, no dia seguinte, chegou Felek, morto de feliz,
com um couro de crocodilo de quase quatro metros. Foi a gota d’água! Até então,
por mais que tivesse engolido cobras e lagartos, não reclamou diretamente a Felek.
Entre estar em conflito com o marido e com os filhos, preferiu um acordo. Na
hora do jantar, propôs:
―Henrik, crianças, o que vocês acham do tio Felek
ir morar noutra casa? Dobrarei minhas horas de trabalho de costureira e ele
fará as refeições aqui em casa. O que acham disso?
― Não, mãe! Tio Felek é muito engraçado! Ele não
pode ficar sozinho. Vai morrer de tristeza. Pensa, mãe, tenha paciência com o
tio, vai!
Henrik não falou nada. Calado estava, calado ficou.
Levantou-se da mesa e entrou no quarto, fingindo-se surdo, mudo e aleijado. E
tinha um pouco de razão, talvez. Eram os dois únicos irmãos vivos. Irmãos de
vidas tristes e infelicidades compartilhadas.
Somente no outro dia, ao acordar, falou à esposa:
― Faça o que for melhor, Bertha. Meu irmão é um
peso morto, sei. E eu, minha querida, embora mais moço, sou mais pesado que
ele. Faça o que achar melhor...
Bertha, embora magoada, não queria contrariar o
marido. Para Henrik e para as crianças, pareciam normais estas e outras
teimosias do distinto cunhado. Coleções de caixas de fósforo, aparelhos de
barbear descartados, envelopes rasgados, revistas antigas, sacos de padarias, conchinhas
do mar, selos e, por último, uma centena de vidros de maionese onde guardava os
pregos que catava nas demolições e construções. Todos separados pelo tamanho
das polegadas e expostos na estante da sala ou em qualquer lugar que tivesse
uma vaguinha.
Pelo marido, pelos filhos, faria qualquer coisa.
Faria o trabalho da casa, costuraria para a fábrica, viraria as noites para
aumentar o orçamento, mas, já que todos se voltaram contra ela, faria uma
exigência: Felek deveria despachar o couro do crocodilo. Aquele couro de bicho
morto, embora velho e curtido, cheirava mal. Quando entrava na cozinha, ao
preparar as refeições, o cheiro de carniça que exalava fazia com que Bertha sentisse
ânsias.
Aproveitando outro momento de paciência, quase
desistindo de tudo, junto aos familiares, incluindo Felek, explanou seu
pensamento acompanhado da exigência. E o mundo veio abaixo.
― Não, mãe, não faça isso! Tio Felek vai ganhar uma
fortuna de dinheiro com ele. Ele até disse que vai dar o dinheiro todinho para
a senhora. Por favor, mãe!
Depois desse apelo das crianças, Bertha ficou
enojada quando viu o risinho de vitória nos lábios de Felek. Velho safado! Nojento!
Ao entornar o décimo cafezinho e de fumar outro
tanto de cigarros, pensou como Valeska, Veruska e Henrik Filho se virariam na
sua ausência. O esposo, sabia ela, era a parte mais fraca da família, porque
doente. Mas, se tirou a noite para tomar uma decisão, a decisão seria tomada. A
garrafa de café estava quase vazia quando terminou de fazer sua mala. Fumou o
último cigarro e saiu como saía todas as manhãs para a fábrica. Dessa vez para
não mais voltar.
Já fechando o portão da rua, olhou para a casa, como
para se despedir dela e viu Felek na janela. O sorriso irônico estava estampando
sua cara maliciosa. Virou-se bruscamente e tomou o caminho da fábrica.
O dia não foi produtivo. Errou feio enquanto
costurava duas camisas de punho. Ficou irritada. Em meio aos pensamentos e às
imagens e vozes que disparavam em sua cabeça, conseguiu consertar os erros.
Entre, talvez, o quarto cigarro e o terceiro café,
decidiu-se por um caminho diferente do planejado. Findo o turno, pegou sua mala
e tomou a condução de volta para casa. Lá estava Henrik preparando o jantar e
aguardando as crianças chegarem da escola. Felek, para variar, estava na rua. Talvez
derrubando latas e catando seus objetos de estimação.
Bertha, dirigindo-se ao quarto do cunhado, foi ensacando
as suas preciosas coleções. Passou na sala, catou os vidros de maionese recheados
de pregos e, por último, passou na cozinha e desgrudou da parede o fedido couro
de crocodilo. Em silêncio, fez três viagens até o portão carregando os
trambolhos de Felek e depositou todos eles na carroceria de uma camionete de
frete. Feito isto, pagou o motorista, pediu que ele desse um fim naquela carga
maldita e voltou para ajudar o marido no término do jantar. Logo chegariam as
crianças e o ladino Felek. Com certeza trazendo mais umas sacolinhas repletas
de “achados valiosos”.
Naquela noite não se pronunciou palavra durante o
jantar. E em nenhuma outra noite ou dia que se seguiu falou-se sobre o episódio.
Bertha respirou fundo e, para agradar o marido e os filhos, mudou a forma de
tratar o cunhado Felek. Mas, nem por um momento dali em diante, deixou de
cuidar do conteúdo das sacolinhas trazidas das ruas.
O Diário de Cristhine Asther Rojas
Fuentes
Mal anoiteceu, o primeiro grito. Logo um segundo,
abafado, e… um terceiro, cortado ao meio.
Ethienne nem deu tratos à bola. Parou, parou! Já
estava cansada de ouvir gritos na casa da conhecida. Não podia dizê-la amiga.
Por qualquer motivo ela se assustava. Até quando uma mosca pousava em seu braço
era motivo de faniquitos. Mas aqueles gritos soaram diferentes. Soaram, sim. Nada
podendo fazer, desligou-se por completo. Ethienne só ouvia e registrava o que
queria ouvir. E registrar, consequentemente!
Pouco antes das oito, outro grito. Este foi mais
doído. E mais curto. Logo as luzes da casa foram todas apagadas e Ethienne mais
nada ouviu. Reinaram silêncio e escuridão. Pensou chamar Ricardo, ex-médico e
marido de Cristhine. Desistiu. Fosse um mal estar, ele cuidaria. Fosse uma
cólica, medicaria. Fosse mais grave, conduziria a esposa para o hospital mais
próximo. Por volta das onze, ainda mais abafado, um gemido e nada mais. Não se
atreveu a oferecer ajuda. Nem tinha curiosidade tão aguçada para assim agir.
Mais cedo, usou o telefone e não foi atendida. E foi dormir sem dar tratos à
bola e sem registrar o que não gostaria ter ouvido. E fim!
No outro dia, passado o vento, tudo voltou a parecer
normal. Do jirau, antes das cinco da manhã, os cumprimentos de sempre.
― Oi, Cristhine! Passou bem a noite?
― Sim, Ethienne. E você?
Passaram bem a noite. As duas. Ethienne evitou
falar dos gritos abafados. O casal era jovem e bem poderia ter brincado de
“acha eu”. Nesta brincadeira, nos costumes antigos, o marido procurava a mulher
através de pistas deixadas com roupas espalhadas nos diversos cantos da casa.
Havia erotismo na tal brincadeira. O ato de amor só se concretizaria quando
fosse achada a calcinha e no exato lugar onde fosse encontrada. Se na sala, na
sala. Se no chão do banheiro, no chão do banheiro. O assunto morreu aí. Não era
curiosa e sabia do bom que era trepar.
Cristhine Asther era de origem sueca. Seus pais,
geólogos, migraram para a Bolívia, instalaram-se em Oruro e trabalharam nas
empresas de pesquisa e exploração de minério pertencentes a Dom Patiño, o Rei
do Estanho. Ele, sim, o mesmo que originou Walt Disney a criar o personagem Tio
Patinhas, que nadava em piscinas de moedas de ouro. As minas de Potosí não tinham
fundos. E Patiño não tinha preguiça. E aliou-se a bons sócios, inclusive. E
adquiriu o direito de explorar minas e mais minas. E foi dono da Bolívia. E
impiedoso com os mineiros...
Tempos depois, quando Cristhine ainda era mocinha,
foi morar em La Paz. Foi ali que a menina conheceu Ricardo Rojas Fuentes, estudante
de medicina. Ali casaram. Contra a vontade dos pais de ambos. O choque cultural
era mais que evidente. E a educação, idem.
Neste período, na década de 40 o império de Simon
Patiño, já nas mãos de Antenor, seu filho, declinava. Declinava não é bem o
termo. O governo boliviano decidira nacionalizar as minas. Até os dias de hoje,
entretanto, o nome do cholo Simon
Iturri Patiño, o imperador, faz o maior sentido no país hermano. Há os que o adoram e os que o odeiam. E, do fundo das
minas, ainda ecoam lamentos dos que sucumbiram.
Ricos, ainda, os pais de Cristhine voltaram para a
Suécia. Insistiram para que a filha e o marido os acompanhassem. Que nada!
Ricardo empacou e, em nome do laço do casamento, fez com que a menina também
ficasse. Grávida de poucos meses, apaixonada, deixou que os pais voltassem
sozinhos.
Miséria pouca é tiquinho; desgraça muita é vizinho
ruim, diz o dito. Descoberto em falcatruas no estado boliviano e por erros no desempenho
da profissão, Ricardo foi cassado nos seus direitos políticos e profissionais.
Os grandes chefes militares não perdoavam! Fora o lixo boliviano! Por la pátria, compañeros! Viva Bolívia,
nuestra pátria querida! Gritos de guerra eram ouvidos por las calles. De norte a sul, de leste a
oeste.
O lixo Ricardo Rojas Fuentes bandeou-se de mala e
cuia para o Brasil. Ainda tentou exercer a medicina, no que foi impedido,
felizmente! De genro de um auxiliar direto do império de Simon Patiño, o Rei do
Estanho, virou o Rei das Saltenhas. E foi no Brasil, na região fronteiriça, que
nasceu Juan Simon Patiño Asther Rojas Fuentes – o Juanito. Nasceu sem pernas e
com apenas tocos de braços. A talidomida havia feito mais uma de suas vítimas.
Por prescrição do próprio pai. Sem culpas, diga-se. Fossem condenados todos os
médicos que se valeram da talidomida...
Juanito, segundo Ethienne, foi a criança mais
querida e bem tratada pela mãe. Do pai, em dobro, teve o desprezo. Durou pouco
o menino. Não resistiu às fragilidades da época. E o casal ainda estava jovem.
As finanças estavam de mal a pior. As saltenhas,
embora saborosas, não geravam a fortuna do estanho e nem eram compatíveis com
os honorários médicos. Muito trabalho e pouco ganho. Vida difícil! Por mais que
Cristhine se desdobrasse. Tinha tremores de cansaço e maçãs do rosto em brasas.
De sol a sol, debaixo do calor infernal amazônico, o forno de barro assava as
empanadas famosas e representativas da gastronomia boliviana.
Os ventos sopravam os dias. Vez por outra, entre brisas,
Ethienne ouvia coisas. Deviam vir da brincadeira do “acha eu”. Não, não era.
Era improvável que ainda mantivessem tanto tesão para o esconde-esconde. Há
muito não se brincava mais disso. Deixou de ser moda. Havia, isto sim, sessões
de tortura na casa vizinha. Certa ocasião, não tolerando mais tantos maus-tratos,
confidenciou com Ethienne sobre as atrocidades do marido.
Um dia, luzes apagadas e muitos gritos, Ethienne
sentiu-se na obrigação de chamar a polícia. Arrombada a porta, sobre a cama, deformada,
estava Cristhine. Seu rosto desfigurado parecia uma bola de carne moída. A agressão
foi tamanha que roubou-lhe os sentidos.
Em flagrante, sem desculpas, o Rei das Saltenhas
foi levado pelos policiais. No mês seguinte, com a ajuda das autoridades
brasileiras, Cristhine embarcou para junto de seus pais, em Gotemburgo, na
nórdica Suécia.
Os relatos narrados em um cuaderno de apontamentos de Cristhine, nunca mostrados ao mundo,
dizem, com passagens encobertas por tarjas pretas, do sofrimento de um ser
humano que, por anos, experimentou períodos de terror e sofrimento. Saiu da
escravidão com a altivez própria das mulheres verdadeiramente dignas. Entre
receitas com a utilização de calabazas,
choclos, maiz, papas e frijoles,
as razões que levavam o marido a fazê-la a mais humilhada das criaturas: a
fortuna dos seus pais. Ele a queria a qualquer custo.
Na última narrativa sobre torturas sofridas, estavam
os planos sórdidos de Eduardo Rojas Fuentes: Cristhine deveria pedir uma viagem
até onde eles estavam e lá, sem deixar rastros, ele mesmo daria fim aos dois.
Herdeira única...
Ethienne ficou aliviada. O Rei das Saltenhas,
torturador por vocação, cumpriria o seu degredo. Os reinados acabam. Até o de
Simon Patiño, cuja memória causou orgulho aos seus herdeiros. Com uma
diferença: a história de Cristhine é verdadeira. É real. A de Simon Patiño,
sabe Deus! Sua biografia oficial mais parece fantasia. Biógrafos da época,
entretanto, dizem de outra faceta do bilionário, não bem ao estilo de Walt
Disney.
Das minas de Potosí ainda ecoam gemidos e uivos de
dor. Na alma e no coração de Cristhine reina a paz. Não quis viver às custas
dos pais e, corajosamente, empenhou-se em ter seu próprio meio de vida. Em
Gotemburgo, até pouco tempo, era a rainha das saltenhas e delas sobreviveu. A
iguaria fez mais sucesso que a sopa de urtigas com couve e era o que ela bem sabia
fazer.
Do repulsivo Eduardo Rojas Fuentes, felizmente,
Ethienne nada mais soube. “É o inferno o seu merecido lugar”, assim responde
quando perguntada.
Os tempos eram assim…
Quem viu Marinês aos 55 anos, em seu
último de vida, por mais que tenha sido amigo íntimo, ainda que desde a
infância, não a reconheceria. A tristeza no seu rosto parecia impressa com
ferro em brasa. Ode marcar o gado.
E foi bonita, mimosa e faceira a
menina Marinês… Tinha viço, carisma e alegria quando Manuel a conheceu. Filha
de gente da alta, ainda assim, não garantiu direitos de viver suas próprias escolhas.
O pai, um empresário forte da construção civil e a mãe, uma juíza de direito do
interior, não hesitaram em dá-la como caução da grande dívida acumulada pela
desordem financeira do casal. Marinês tinha apenas 16 anos… A dívida dos pais
chegava a quinhentas vezes isso. Tão grande quanto o amor de Manuel pela
menina, a bela menina, cujos dentes pareciam mais um colar de pérolas.
Os tempos eram assim…
Tempos de grandes obtusidades…
Numa reunião entre o pai, a mãe e o
presidente da câmara cível, ficou decidido: a partir da sentença favorável aos
réus, Marinês passaria a pertencer ao desembargador Carlos Rosas pelo menos
três vezes por semana, à exceção do mês em que sua legítima esposa e os três
filhos, então residentes em João Pessoa, viessem a estar com ele. Marinês
deixou de ser gente e passou a ser uma espécie de coisa dada em pagamento.
Abriu-se a margem para que a tristeza se instalasse e encardisse seu jovem
espírito.
Quando quis se revoltar, estava
tarde, bastante fora de tempo. Prevaleceu a lei do mais forte. Conseguiu sair
das garras do seu dono ainda bem jovem. Desiludida e amarga, irremediavelmente
amarga. As chagas da vergonha ficaram nela impregnadas e Manuel já estava
vivendo uma vida de esposo e pai.
Os tempos eram assim…
Tempos do império das maldades…
Para os que conheceram Marinês, doeu
a visão do seu final. Num American Bar
de periferia, sobre o palco iluminado com luzes roxas de cabarés sem classe,
ela tombou. Estava cantando a música Molambo
quando caiu com um estranho engasgo. A próxima música seria Devolvi. Músicas de lamentos e reveladoras
das dores dos amores mais profundos. No chão, com luzes direcionadas e precisas,
através da boca entreaberta mostrava dentes apodrecidos e amarelados,
infinitamente distantes de serem aquelas pérolas que ostentou na mocidade.
Entregue ao álcool e às noitadas sem
freios, fez da voz e das baladas tristes as únicas alternativas de continuar
respirando. Do amor, não mais sabia. Sabia, sim, ser suicida de morte em doses
homeopáticas. Sabia...
Tornou-se um molambo. Um molambo qualquer.
Sem julgamentos, somente Manuel
chorou na sua despedida e, sobre o caixão barato, ao lado de uma rosa, deixou
uma fotografia de Núbia Lafayette, a cantora preferida de sua eterna amada.
Os tempos eram assim...
Tempos de atraso...
As meninas de Renoir
A vida de Maria Francisca
Teixeira Frias, pode-se afirmar, foi um inferno. Dureza! Desde que perdeu o
pai, aos onze anos, e a mãe, aos treze, virou órfã rejeitada. Os parentes não a
queriam como parente, mas como serviçal. Conheceu muitos patrocinadores da
porrada. Era destemida, ainda assim. Amadureceu a pulso, nadando contra a maré.
Obrigada a trabalhar para
manter-se de pé, saudável e tanto quanto possível sem perder o imprescindível
candor juvenil, conheceu o lado infame e cru da existência. Bonita, prendada,
voluntariosa, enérgica e odiada pelos parentes, teve que ser três vezes forte
para não ser engolida. Pelo tio e tutor, Éllio Frias, num voar de horas, teve
dilapidados os bens deixados pelos pais.
O seu primeiro emprego,
ainda menor de idade e sem baixar a cabeça, foi como vendedora de bananas. Num
pequeno boteco de janela levadiça, deu os primeiros passos na trilha do saber o
que era o bem e o mal e na do viver com o que fosse fruto do seu trabalho.
Vender bananas rendeu-lhe
economias. Estudou nas horas vagas e aperfeiçoou sua educação. Não é demérito
vender bananas ou melancias. Roubar, sim, pensava. Naquele boteco de nove
metros quadrados, com paciência, entendeu as suas perdas sem lamentar. Entre
bananas, livros de filosofia, gramática, direito e literaturas diversas, formou-se
aos vinte e cinco anos. Sem dinheiro para anel, baile e convites, virou
bacharel em Direito. Estava preparada para novos desafios da vida e, por
concurso, dentre mais de trinta candidatos, tornou-se assessora jurídica de uma
empresa pública. Ainda assim, pretendia chegar mais longe. Juíza, talvez!
Preparada, consistente e
de opiniões fortes, não demorou muito a criar desafetos. Como é sabido, quase
em sua totalidade, as empresas públicas costumam semear safadezas para colher
vantagens e comodidades. O antes admirado conteúdo de Maria Francisca e a
perfeição de seus pareceres e despachos foram jogados para escanteio. Por
vezes, e não raras, foi tentada ao convencimento de mudar os parágrafos e criar
desvios na lei para justificar erros da diretoria e do conselho diretor. De
imediato, contra dispositivos estatutários e necessidades, outro assessor,
dispensado de concurso, foi empossado para a mesma função. Maria Francisca, a
despeito de sua seriedade, foi empurrada para um canto escuro do prédio, sem
acesso a livros, informações e convívio.
Acostumada ao limitado
espaço territorial do seu boteco de vender bananas e sem medo do bicho papão do
obscurantismo, passou a acumular provas concretas sobre os descaminhos do seu
colega tampão e sobre os atos de sabotagem e desvios do primeiro escalão. Nas
horas de folgas forçadas, que eram muitas, lia com avidez. Sentia-se, no entanto,
um peso morto. Ganhar sem trabalhar não estava nos seus projetos. Acontece, e
ninguém pode duvidar, o ostracismo adoece. Não seria diferente com a moça Maria
Francisca.
Doente, resistia ao fardo
das dores. Chovesse canivete, transbordassem os oceanos, no horário de entrada,
batia o ponto e se recolhia ao bureau
entre o arquivo morto e o almoxarifado geral. E foi aí que, numa manhã quente,
desfaleceu. As colegas Emília e Regina Célia, únicas entre muitas, por acaso e
bondade, ao passarem para a saudação do convencional bom dia, encontraram-na
desacordada. Juntada do chão foi conduzida ao pronto atendimento.
Na enfermaria, já
desperta e posta para hidratação e acalmamento das dores, sentiu-se confortada ao
ver as amigas. Sabedora de que o seu caso era grave, revelou estar precisando
de ajuda. Na descrição de sua doença ela dizia que, no período pré-menstrual,
sentia como se estivesse prestes a colocar um enorme ovo. Um ovo de avestruz,
reforçava para que se fizesse entendida.
Numa segunda-feira sem
luz, impecavelmente vestida, Maria Francisca foi levada ao consultório do Dr. Arnaldo
Gueiros. Escoltada por Emília Abdul e Regina Célia Gouvêia, dada a fraqueza.
Ali, friamente, após apalpada minuciosamente, ouviu o diagnóstico que,
traduzido para o português correto, rebuscado e castiço, significava que a paciente
estava atacada por uma histeria própria das virgens inconformadas com a
ausência de atividades sexuais. Que precisava de homem, pois, trocando em
miúdos.
Emília e Regina
entreolharam-se. Ensaiaram um riso amarelo até. Contiveram-se. Seria maldade!
De que valeriam dois risinhos perversos para ajudar na cura de Maria Francisca?
Afora arranjar-lhe homem, melhor ver o que poderiam fazer para curar a
histérica e neurastênica virgem.
Prontificadas e
resolutas, nada mais conveniente que partir à busca de outro parecer. Um médico
pode errar sozinho. Ouvidos dois, as chances de erro diminuem. Qual nada! Dr.
Adler Murad, sem delongas e apalpados, reforçou o “tenho dito” do colega: a
paciente Maria Francisca Teixeira Frias sofria de distúrbios mentais provenientes
de “frescuras crônicas” de virgens revoltadas e contrariadas com o próprio
destino. Tudo psicológico! Tudo psicológico e do mundo das luas.
Munida do laudo e prescrições,
no centro de atendimento aos doentes mentais, Maria Francisca Teixeira Frias
foi submetida a várias sessões do tratamento radical, à época, aplicável ao
caso. Nada mais a dizer. A sensação de expulsar o ovo de avestruz, a cada
período que antecedia a menstruação não parou com o tratamento incorreto e desumano.
Era persistente e insuportável. Como admitir ser psicológico?
Passados quase dois anos,
sem progresso, Emília e Regina Célia, em nome da misericórdia e dos sentimentos
cristãos, decidiram fazer o que era de praxe: uma cota entre amigos. Fosse para
Maria Francisca ser salva, fosse para ser enterrada, cada amigo ou inimigo
íntimo da exímia funcionária contribuiria com míseros três por cento do seu salário
para que ela pudesse buscar, num centro mais adiantado, a resolução da postura
do ovo de avestruz. Morte ou cura! Não havia nem mais, mais, nem menos, menos,
e nem deixar para depois de amanhã. Além das dores e dos gritos, o seu aspecto
físico minguado era deprimente.
O arrecadado rendeu mais que
o esperado. O presidente da empresa, no afã de ficar bem na fita, ofereceu uma
moto modernosa e possante para ser levada a um jogo de bingo entre os empregados,
no que foi seguido pelos demais diretores. Talvez para retirarem os pesos de
suas consciências, todos eles acompanharam o gesto e ofereceram uma prenda.
Boi, bicicletas e aparelhos de TV, aumentariam o bolo da subscrição em
benefício da saúde da funcionária exemplar.
E rendeu! Tanto rendeu
que, retirado o valor da passagem só de ida, da hospedagem e do necessário estimado
ao tratamento e despesas com acompanhante, sobrou o suficiente para a compra de
roupas de banho, calcinhas de renda e camisolas plissadas para durante o internamento.
Morresse ou vivesse, deveria ser com dignidade.
No seio da tacanhice,
nada foi tão dorido para Maria Francisca que a divulgação do seu processo doentio.
De ética e de sentimentos, os que faziam piadas de mau gosto, nada sabiam. Nos
salões de beleza, nas feiras e nas celebrações, quaisquer que fossem, era tida
como louca e olhada com desprezo. Seu nome era sinônimo de chacota. Sentia-se
como se fosse mil zeros à esquerda. Um nada! Um grão de merda! No escondido, chorava.
Na maior cidade do país,
bem atendida e diagnosticada, caiu nas mãos de um cirurgião renomado. Maria
Francisca Teixeira Frias, em tempo ainda apropriado e suficiente, retirou do
útero um tumor maior que uma laranja. Um tumor possante em termos de diâmetro e
putrefação. Ao que ela chamava de ovo de avestruz. O que a fazia desfalecer. O
que a fez tomar choques no gabinete da loucura. A reboque, que desgraça pouca é
tiquinho, uma histerectomia completa. Trompas, útero e ovários foram extirpados.
O pensamento da época,
hoje questionável e até vergonhoso de se declarar, era o de que determinados órgãos
não vitais, quando passíveis de estrago e contaminação, deveriam passar pelas
degola. Era comum entre membros da sociedade médica ligada à saúde da mulher
afirmar que, passada a idade da procriação, eles – os órgãos –só serviam para
alojar o não bem-vindo câncer. A teoria mudou. Dizer isso por dizer e em voz
alta, na atualidade, é como fazer apologia de um pensamento mutilador do corpo
feminino.
Dos trinta e sete quilos
que envergava antes da viagem, a doente mental tão propagada e vilipendiada voltou
aos mais de sessenta, compatíveis com sua idade e altura. Não escondia a felicidade.
Não precisou de psicólogos ou psiquiatras. A amizade e o carinho de Emília e
Regina Célia lhe emprestaram suprimentos. Pele limpa, corada, pôs em mente que
as dores e lamentos fariam parte de um capítulo acabado.
Daquele emprego público,
nada esperou. Ficou na geladeira. Não por muito tempo. Estudou com afinco e
prestou concurso para juiz de direito. As mazelas, por sorte, não diminuíram
sua capacidade de pensar. Na primeira fase, obteve nota máxima. A segunda, com
louvor, tirou de letra.
Restava-lhe, então,
acertar as contas com os que quiseram-na crer histérica e louca. Esses, sim,
estavam na lista suja e precisavam de uma lição. Imaginava-se encontrando os
médicos e cuspindo em suas caras. Imaginava-se aplicando bordoadas nas suas
fuças.
Não, não e não! Retribuísse
na mesma moeda perderia a razão e a decência. Vinganças não combinavam com o
seu modo de ser e com sua educação. Preferiu a beleza do perdão. E perdoou.
Havia outra maneira de enfrentá-los: o caminho da lei e da justiça.
O processo contra os dois
médicos rendeu-lhe uma pequena fortuna. Perda irremediável de órgãos por descaso
profissional: o juiz considerou que foram negligentes, imprudentes, imperitos e
mais outro tanto de motivos condenatórios listados nos códigos, nas orientações
teóricas da prática da medicina e no Código de Ética Médica.
Maria Francisca recebeu
pelas mutilações internas, pelo tratamento de choques, por direitos futuros –
gerar filhos foi um deles – e, por último, pelas vergonhas e humilhações
experimentadas e sofridas. Sentença dada, sentença cumprida. A vingança
aconteceu através do baque em suas contas bancárias, não obstante os recursos e
esperneados.
Num último ato, contra o
presidente e diretores da empresa onde trabalhava, fez chegar ao Parquet as provas
que pacientemente colheu. O escândalo e a queda dos seis picaretas foram
inevitáveis. Junte-se ao episódio, além da vergonha, a obrigação de devolver
bens e valores desviados.
Cumprida a missão, sentimentos
de vingança enterrados, chegou o tempo e foi chamada a assumir suas novas
atividades na magistratura, onde permaneceu por muito tempo e onde conquistou
respeito, admiração e reconhecimento dos colegas de toga.
Hoje, melhor que nunca,
idosa que esteja a antes sofredora Maria Francisca Teixeira Frias, princesa de
nascença, escrava por destino e salva no soar do gongo, desfruta do pequeno
castelo que construiu para viver. Ao invés do boteco de vender bananas, usufrui
de seus brincos dourados e de suas camisolas plissadas. Quem passa na larga
avenida e desvia o olhar pode vê-la na janela da primeira torre, tal qual uma
menina de Renoir, a ler seus livros de direito, filosofia e outras literaturas.
Duas coisas mantêm
fincadas no seu proceder: o refinamento e o senso de justiça. Não foi vencida.
Fez a carreira imaginada. Justificou a que veio. Aposentada, elegante e discreta,
enterrou o passado e sobre ele não joga flores e nem acende velas. Como na
música dos Novos Baianos: Acabou chorare!
Emília Abdul e Regina
Célia Gouveia foram e ainda são sua família e amigas nas horas do chá, do
carteado, da música clássica e da leitura. Uma amizade que atravessou os
tempos. E lá se vão mais de cinquenta anos. No castelinho, como os de bonecas,
dois aposentos foram destinados às amigas-irmãs e beneméritas. É no jardim de inverno,
junto ao laguinho das carpas de cores vibrantes que se reúnem para colocação
dos papos em dia. Vistas juntas, matraqueando sem parar na alegria dos finais
de tardes, parecem três meninas. Três meninas de Renoir.
Os pastéis de dona Dozinha
Desde que saiu de sua terra, por mais que tenha se
esforçado, Dona Violeta Cardoso não achou mais rumo nem prumo. Seu estado passou
a ser depressivo, a viver sob fortes medicações e a cultuar a tristeza. Deixou
amigos e irmãos longe, o que afastou de vez a alegria. A idade lhe pesando
toneladas.
Em terras novas, perto de seus filhos e netos, sentia-se
desesperadamente só. Sentia que os filhos, depois que formam família, viram outra
entidade. Via de regra, assim o é.
Os dias de Dona Violeta, na lerdeza das medicações,
resumiam-se a ficar numa cadeira na cozinha, onde marcara território, ou no quarto,
dormindo a perder de vista. Uma situação quase vegetativa. Aqui, acolá, atacada
por algum tipo de aborrecimento ou de saudade, chorava silenciosamente.
Alguns dias antes, um dos seus meninos terminou a
construção de sua bela mansão envidraçada e para lá mudou-se cheio de entusiasmo.
Não se tratava de uma simples mansão, mas uma mansão com três cozinhas, assim
dispostas: a primeira e mais completa, nos moldes das construções americanas, é
integrada com o grande salão de estar. Um balcão de mármore que serve de bar,
iluminado com lustres coloridos, guarda o painel onde estão embutidos fornos
elétricos, geladeira e freezer de aço
inoxidável e um fogão que não levanta chamas, desses para lá de atuais. Tudo de
extremado bom gosto e modernidade.
A segunda cozinha, menos luxuosa, faz parte da área
da piscina. Ali estão uma churrasqueira elétrica e todos os elementos necessários
à feitura de grandes churrascadas. É o copiado tal de espaço gourmet.
Por fim, lá no fundão, junto com a lavanderia, está
a terceira cozinha, também dotada de todos os equipamentos e eletrodomésticos. Segundo
os donos da casa, é nela que a empregada cozinhará e fará a “sujeirada”, evitando,
desta forma que circule pelo corpo da casa não somente o cheiro da comida, como
o da empregada, também.
Embora assustada com a suntuosidade, Dona Violeta
Cardoso nada falou. Nem elogios, nem críticas. Desgostosa, bastante envergonhada
ficou quando soube que uma das serviçais havia sido demitida “por justa causa”
pelo simples fato de, na hora do lanche, haver oferecido uns salgados e um copo
de refrigerante a um braçal quase idoso que carregava os objetos mais pesados
da mudança. Esse simples gesto, no severo julgamento dos donos da casa, foi
interpretado como um enxerimento próprio das mulheres da vida e que não sabem o
que é se dar ao respeito. Daí a demissão.
Ao tomar conhecimento de tudo, ainda na cozinha, Dona
Violeta chorou. Não sabe se de vergonha, de tristeza ou de revolta. Nada falou
e, quando recolheu-se ao quarto, passou a lembrar um tanto de sua vida, de sua
história e de sua mãe. Eram tantas as dificuldades…
Durante toda a noite, sem ter com quem desabafar,
lembrou-se do quanto eram chuvosos os meses de outubro, novembro e dezembro, na
cidade onde nasceu. O mercado ficava desabastecido de tal forma que, mesmo
tendo dinheiro na mão, não havia o que comprar. Dona Dolores, ou Dozinha, como
era chamada, sempre dava um jeito. Previdente, para aguentar um tanto do
inverno, mantinha na despensa uns enlatados de fiambre, apresuntado e corned beef, da Wilson, salsichas da
Swift e camarões salgados da Leal Santos.
Noite longa, teve tempo e não deixou de recordar
dos pastéis ocados de Dona Dozinha, servidos aos domingos. A massa era bonita,
os fritados enormes, mas a carne era rala. Por ideia própria, Violeta arrumou
um jeito de enchê-los com o arroz de xerém, lambuzado com manteiga de nata e
banana frita. Bastava abrir um buraco na quina do pastel e, com uma colherinha
de chá, colocar aquela pasta no seu interior. Aí, sim, o “de vento” tornava-se
um pastelão. Bastou isso e todos os seus irmãos passaram a imitá-la. Só de
lembrar o fato, salivou e até pareceu sentir o cheiro bom da fritura dos pastéis
de sua mãe.
Quase sempre o almoço virava uma festa. As
lembranças vinham aos borbotões e Violeta até sorriu quando lhe veio à mente o
dia em que Cristina e Norma, mãe, filha e lavadeiras da casa, aproveitando a
estiagem chegaram com as roupas lavadas no justo horário do almoço. Dona Dozinha,
sem pestanejar, deu um dos seus pastéis para Cristina e pegou um dos de Violeta
para a Norma. Naquele mesmo domingo, por sorte, Cristina presenteou Dona
Dozinha com uma franga de primeira pena e a tadinha (da franga), virou uma bela
canja para o jantar. Como eram bonitas as lavadeiras que caminhavam léguas com
as roupas cheirando a raiz de priprioca ou a colônia vim-de-cá. O que ia sujo
de lama voltava limpíssimo à custa da força dos seus braços e destreza das suas
calejadas mãos.
Já amanhecia o dia quando Violeta voltou a lembrar
e lamentar o fato ocorrido na mansão envidraçada e que resultou na demissão sumária
da serviçal que ofereceu salgados e refrigerante ao braçal idoso que ajudava
nas tarefas mais pesadas.
Neste momento sentiu vontade de, na primeira
oportunidade que tivesse, contar aos netos sobre os pastéis de sua mãe e na
grandeza que representa a divisão do alimento. Fizesse isso, talvez até pudesse
evitar que as crianças passassem a crer que a pobreza é criminosa ou que a bondade
reside nas pessoas bem aquinhoadas e que possuem mansões envidraçadas que
dispõem de três cozinhas. Não, não é possível fazer isso. Desde sempre já foi
avisada pelos pais que a educação das crianças é exclusiva deles, sem interferências
de avós.
Na casa de dona Dozinha, com uma cozinha só, que
dispunha de um fogareiro de barro feito num tambor de óleo e uma trempe de
ferro, apesar das poucas opções e da falta de ter o que comprar, havia o espírito
da solidariedade e o respeito ao próximo, por mais pobres que fossem esses
próximos. Seria bom contar isso para os netos. Mas...
Antes de entregar-se ao sono, cansada da tristeza e
da viagem que fez no tempo, Dona Violeta pareceu ouvir sua mãe Dozinha dizendo
a tão repetida preleção de que “o pouco com Deus é muito; o muito sem Deus é
nada”!
E estava certa!
Reduto
dos capetas
― Clara,
és tu?
― Não,
meu bem. Quem está falando é a Indira Gandhi. Fale, Zé Fabiano!
― Tens um
tempinho para conversarmos? Já chego aí.
Clara e José
Fabiano são amigos desde a adolescência. Na era dos “bichos grilos”, relembram
com saudade, até curtiram um paz e amor juntos. Andaram bebendo umas gororobas
estranhíssimas, o tal “chá de champignons”, mas escaparam com vida. Hoje,
sessentões, mantêm a mesma amizade, embora não mais vivam um pendurado no
pescoço do outro e se visitem somente de vez em quando. Daí, como de se
esperar, a ligação do amigo deixou Clara em estado de total felicidade.
― Anda
pra dentro, coisa feia! Que bons ventos te trazem aqui?
― Os
ventos do desespero, amiga. Entrei numa fria daquelas. Já te conto.
― Agora,
não! Vamos para o quarto que a cama é lugar quente. Vamos?
José
Fabiano, desde os tempos do Reduto dos Capetas, nome que deram à chácara da
comunidade alternativa, era um estudioso do esoterismo: tarô, baralho cigano,
runas, i ching, e mais um tanto de
instrumentos de difícil leitura. Adorava fazer massagens e outras terapias orientais,
principalmente o shiatsu e o do-in. Na tenda onde dormia, não
raramente, havia filas para uma consultinha básica. Não ganhou dinheiro, mas
sim, uma legião de amigos que lhe entregava donativos e prestava grandes
favores.
Já no
quarto, sobre a grande cama, Clara esperou o “tratamento” mais aplicável ao seu
estado físico e mental. Foi o artifício que encontrou para deixar José Fabiano
mais calmo até que, de forma menos galopante, contasse sobre os ventos da desgraça
que o trouxeram até sua casa. Ela conhecia o amigo até pela voz. Sabia de sua
ansiedade.
Relaxada,
cheia de massagens védicas, abriu espaço na cama, puxou-o para o lado, pegou
sua mão e vergou o ombro para ouvir o chumbo grosso prestes a ser disparado.
― Clara, lembras
da Berenice? A Berê?
― Evidente!
Até sou madrinha de uma das filhas dela.
― Da
Maria Olívia ou da Suzaninha?
― Da
Maria Olívia.
― É dela
que quero falar. Tens visto tua afilhada nos últimos anos?
― Não. Se
encontrar aquela garota na rua... Vai passar batida. O que tem a minha afilhada
a ver com os ventos da tua desgraça?
― Tudo,
minha amiga. Tudo! Ela não é mais uma garota. É um mulherão e um tiquinho mais.
Vou te contar: sabes bem do respeito e admiração que tive, tenho e terei para
com as mulheres. Nunca dividi casa com nenhuma delas por não querer abrir mão
da minha privacidade e, menos ainda, invadir a delas. Minha opção em não ter
filhos foi dita repetidas vezes para as que eu amei e que me amaram, antes
mesmo que se estabelecesse a ideia de formar casal. Assim foi com Ivani, com a
Ellen e com a última, a Selena. Somente a Ellen não aceitou esta decisão e, sem
rusgas, decidiu buscar em outro homem os seus desejos de maternidade, no que
foi bem sucedida. A morte de Ivani significou um pouco a minha própria morte.
Foram dezenove anos de total carinho. De Selena, posso dizer que os interesses
e a visão de mundo dela não me tocaram e que a recíproca foi verdadeira.
Terminou quando acabou.
Clara
percebeu, durante a lembrança da morte de Ivani, que José Fabiano embargou a
voz e apertou mais fortemente a sua mão. Pediu-lhe um time antes que entrasse no assunto dos ventos da desgraça.
Enquanto
preparava dois drinques providenciais, na verdade um traçado de Rum Montilla -
carta ouro, Licor de Menta e folhas de hortelã, pensou no quanto talvez fosse
difícil um relacionamento com o amigo. Seus gostos e atividades, quase de
certeza, não deveriam agradar plenamente uma mulher, fosse mais nova, fosse
mais velha. Na Universidade, onde estudou e até hoje trabalha como orientador
de mestrandos e doutorandos nos estudos das civilizações antigas e na história
da arte (principalmente a dos povos dos antigamentes), não deveria ser fácil
estabelecer uma linguagem comum numa relação a dois. Para completar, a “esquisitice”
é, ainda, amante de música de câmara, daquelas que fazem dormir. Por tudo isso,
há que se entender que não são assuntos que muitos dominem e apreciem. E ele vibra.
Vibra tanto quanto um adolescente entusiasmado com a informática. O amigo é
quase um nerd de antiquário, pensou
Clara. E daí, se é isso que o Zé Fabiano aprecia?
De volta ao
quarto, sem reservas, convidou-o a recostar-se numa imensa almofada de tecido
indiano, como nos remotos tempos. Tomando os drinks, em bebericos, recomeçaram
as confissões de adolescentes.
― E a
Maria Olívia, filha da Berenice? Que aconteceu com ela?
Parecendo aguardar
que o álcool agisse nos seus neurônios para encorajá-lo, deu um suspiro longo,
fechou os olhos e falou:
― Ela é
louca! Estou diante de uma louca que vai me fazer mais louco que ela. Sabes que
escrevo meus artigos na revista da universidade e tenho um espaço semanal que
posso utilizar com textos meus e dos alunos. Há três meses, exatos três meses,
fui procurado por uma docente do curso de Geologia. Era a Maria Olívia. Trazia
nas mãos um texto sobre a recente descoberta de um sítio arqueológico aqui
mesmo na região. Mandei-a entrar na minha sala e, após uma rápida espiadela,
decidi marcar novo encontro para uma discussão mais detalhada. O texto não
estava nada bom. Nem parecia ser de autoria dela, mas de uma principiante no
tema e na escrita.
― E foi
aí que tudo começou? Agendaste com a mocinha para ir à tua casa pra conhecer
melhor o dinossauro, foi assim?
― Nada
disso! Quis mesmo, isso sim, livrar-me dela o mais rápido possível. O que não
falta na minha mesa são textos bons de alunos da minha área. Temas relevantes,
digo mais. O próximo a ser publicado será o de um doutorando que estabeleceu um
comparativo entre a produção artística dos povos indígenas das Américas, cheio
de riquezas e que especifica muito mais do que já foi dito sobre o assunto.
― E nem
avisaste isso para a moça? Talvez ela entendesse e não se sentisse dispensada
de primeira. Falta de tato, hein?
― Na
segunda vez que esteve comigo, pra não gastar tempo, não discuti o texto.
Prontifiquei-me a encaminhá-lo ao editor. E só. A reação dela me tomou de
assalto. Ao invés de agradecer e zarpar fora, agarrou-me pelo pescoço, juntando
seus lábios aos meus. Ela babava. Empurrei-a. Com delicadeza, mas…
― Maria
Olívia fez isso? Que loucura, amigo!
― Fez
muito mais. Transtornada por completo, caiu num choro assustador e disse aos
berros que me amava, que estava apaixonada, que lia tudo o que eu escrevia e
que meus textos levavam-na à loucura. E ali mesmo, no centro da minha sala de
trabalho, teve o que posso comparar a um frenético orgasmo. Custou-me
acalmá-la, até que se foi completamente desgrenhada e com ares de louca de
pedra. Não pude saber o que se passou fora da minha sala. Naquele mesmo dia
viajei para um congresso na Colômbia. Passei cinco dias conhecendo gente de
notabilidade mundialmente reconhecida. Cinco dias no paraíso que não me
deixaram tempo de pensar em mais nada. Como parte da programação, estive em
Usme, sul de Bogotá, no local onde estudantes colombianos fazem a varredura num
cemitério indígena que remonta a 1500 anos. Somente ali, quando senti uma
lâmina fria na espinha, é que o fantasma de Maria Olívia se fez presente, quebrando
o encanto da visita.
― Uia!!!
É mais grave do que pensava…
― Na
minha volta, com farto material, dirigi-me para o auditório. Lá, com meus
orientandos, outros discentes e alguns professores do curso de história,
passaria slides e distribuiria cópias dos temas tratados no conclave. Sorri
para a turma que me aguardava com interesse pelas novidades científicas e pelas
novas abordagens no estudo dos povos e culturas milenares. Tudo estava no
clima, até que descobri, sentada na primeira fila, a minha surtada paixão e tua
afilhada Maria Olívia. Mal deitei o material sobre a mesa, fora de controle,
ela correu em minha direção e grudou-se em mim como se um carrapato fosse. O
coração dela batia tão acelerado que podia ouvi-lo. A sensação foi de que se
fundia às batidas do meu, a esta altura, tomado de pavor. Senti-me nu diante
dos meus amigos. Havia histeria nos olhos e nas demonstrações de alegria que
ela queria fossem verdadeiras e bem aceitas.
― Jesus
Cristo! E tu? Como escapaste desta?
― A
plateia entendeu minha agonia. Aleguei uma indisposição, recolhi o material e
saí.
― E depois?
― Não
pensei muito e fui ao encontro da Reitora. Bem recebido, fiz um relato bastante
detalhado da nada fácil situação. Depois procurei Berenice e, da mesma forma,
pedi ajuda. Por ser mãe dela, acreditei, a questão poderia ser solucionada.
Ledo engano! Berenice não fala com a filha faz mais de dez anos. Da reitora,
entretanto, veio o apoio. Não sei o que foi feito ou dito, mas, pelo menos no
território da universidade, não senti mais nenhuma perseguição ou qualquer
forma de esbarrão.
― Uia!!!
― Uia,
coisa nenhuma! Passei a ser vigiado e seguido fora da escola. Nos bares, nos restaurantes
e até nas proximidades do meu prédio. Telefonemas mudos feitos em orelhões, sms
passados de lan-houses e celulares de
amigos sem que estes soubessem. Uma miséria! Caixas de chocolates caríssimos me
foram entregues por meninos de rua que transitam nas proximidades da
instituição e ramalhetes de rosas vermelhas e cravos foram deixados na portaria
do meu prédio. E mais… e mais… Um sem fim de peripécias bem próprias de uma
psicopata, sociopata, louca varrida ou qualquer outro tipo de pata que se
atravessou no meu plácido caminho. Estou vivendo um inferno.
― Zé
Fabiano, queres conselhos? Queres colo? Queres o quê? Já conversaste com esta
maluca para explicar que não tens nenhum interesse por ela?
― Conversei.
Levei-a ao shopping, sentamos na praça de alimentação e, de forma paternal,
contei-lhe um tanto da minha vida e da amizade com a mãe dela nos bons tempos
da juventude hippie; disse-lhe que podia ser feliz na companhia de outro homem
que não eu e que aquele assédio incômodo estava atrapalhando a minha rotina e o
meu trabalho. Disse-lhe mais e muito mais. Ela só chorava e tentava segurar
minhas mãos e meus braços. Pediu-me um beijo. Implorou, até.
― Não
saíram da estaca zero?
― Não. Ao
levantar da cadeira, disposto a encerrar a conversa, veio a tacada final. Com
muito ódio no olhar, abriu a bolsa, mostrou-me uma arma branca com cabo de
madrepérola, mais ou menos do tamanho de um canivete suíço e avisou-me que se
mataria. Que daria um golpe na jugular ou cortaria os pulsos.
― Pare,
pare, pare! Quando foi isso?
― Ontem.
― Pois
bem, agora chega! Amanhã mesmo irás a um posto policial. Registrarás um boletim
de ocorrência. Fernando Alves Gama, meu advogado, te acompanhará e instruirá
nos passos e procedimentos a seguir.
― Mas…
― Zé
Fabiano, não tem mais nem menos! Maria Olívia será convidada a prestar
depoimento e o delegado abrirá o necessário inquérito. Não sairás da minha casa
até segunda ordem. Cancelarás todos os compromissos. Comunicarás a ausência à
reitoria e aos teus alunos. Alegue doença ou qualquer outra coisa. O certo é
que daqui não sairás.
O clima
pesou. A noite foi passada em agonia. Clara bem que tentou fazer umas
gracinhas, falando que iria preparar um kit suicídio para a doida da afilhada e
recitando trechos do poema de Drummond "E agora, José?"
Até ensaiou
uma estrofe:
Com a
chave na mão
quer
abrir a porta,
não
existe porta;
quer
morrer no mar,
mas o
mar secou;
quer ir
para Minas,
Minas
não há mais.
José, e
agora?
A tensão não
permitia gracejos. Nos rápidos cochilos, assustado, Zé Fabiano dava pinotes no
vazio. Já manhã, por volta das nove, fizeram contato com o advogado e este, sem
se fazer de rogado, às dez horas, no saguão do prédio, aguardava o novo cliente.
Na volta da
Delegacia foi que Clara ficou sabendo dos detalhes mais graves do caso. Na
presença do advogado, disposto a encontrar solução e proteger sua vida é que Zé
Fabiano revelou ter sofrido duas tentativas de homicídio praticadas pela insana
Maria Olívia: a primeira por atropelamento, numa rua quase deserta e outra,
mais grave, numa fechada em seu carro, quando na descida da serra.
Chamada a
prestar depoimento, como não poderia deixar de ser, Maria Olívia negou os fatos
e, pior ainda, quis inverter a situação. O certo é que, por precaução, foi
designado um policial à paisana para dar proteção a Zé Fabiano e outro para
seguir os passos de Maria Olívia.
De volta ao
seu ninho, mais tranquilo, Zé Fabiano pôde encerrar suas atividades docentes e
viver sua vida dentro da normalidade tão desejada nos últimos meses. Clara
despreocupou-se. Não por completo, mas…
A trégua
durou pouco. Na véspera do ano novo de 2009, sorrateiramente, Maria Olívia
atacou outra vez. Desta vez pra valer! De posse de uma arma de fogo, após horas
de campana, seguiu Zé Fabiano, quando este se dirigia a um clube campestre para
participar de uma confraternização com os amigos. Ainda no estacionamento ele foi
atingido por dois tiros, ambos de raspão. Pra não morrer, jogou-se ao chão e
fingiu-se morto. Com o rabo do olho, aliviado, viu sua tenaz perseguidora sair
em disparada. Dali, acompanhado por dois amigos, foi diretamente para o PS,
onde passou pelos necessários procedimentos e, em seguida, rumou ao encontro do
delegado.
Nesta mesma
noite, em horário adiantado, Maria Olívia foi detida. O bico da arma ainda cheirava
a pólvora e o agente não quis saber de conversa mole. Dois dias depois,
liberada, foi encontrada morta em seu apartamento. Ao lado do corpo, além da arma
branca - a mesma mostrada na praça de alimentação do shopping -, um bilhete
encerrando sua trajetória de delírios, dizia: Zé Fabiano, morri te amando.
Maria Olívia.
Alguns
poucos dias mais, depois de arriada a cortina, uma ligação já esperada por Clara.
― Clara,
és tu?
― Não,
Luiz Fabiano. É a Princesa Isabel. Estás vindo?
― Chego
já! Arrumaste meu quarto?
― Não.
Arrumaremos juntos. O Reduto dos Capetas tem que ficar com a nossa cara. Paz e
amor, bicho!
― Só paz!
Só preciso de paz. Muita paz!
O assunto
Maria Olívia foi arquivado em definitivo. Entre um chazinho de canela e outro
de camomila, o sossego fez casa de morada. Os champignons há muito aposentados.
A marijuana, idem. Na vida nova não
há sinais dos momentos undergrounds,
exceção apenas para alguns discos de Eduardo Gudin e um enorme pôster de Janis
Joplin.
Na
brincadeira das brincadeiras, já lá se vão três anos de harmonia e companheirismo
no novo Reduto dos Capetas. Clara sabe tudo dos astecas, cherokees, maias,
kulinas, katukinas, ashaninkas, kaigangs e guaranis. Sabe muito da cultura útil
das velhas civilizações e aprendeu a gostar de música de câmara e de trovadores
de todos os tempos e lugares. Para ela, mais que tudo, vale a companhia. E o Zé
Fabiano, sem querer, querendo, encontrou a mulher da sua vida. Cada um no seu
quadrado, como sempre quis deixar claro.
Tia
Neca, Zé Taveira e São João
Danei a faca
No tronco da bananeira
Não gostei da brincadeira
Santo Antonio me enganou
Sai correndo
Lá pra beira da fogueira
Ver meu rosto na bacia
A água se derramou[†]
O Recanto da
Serrinha, do velho Antonio João de Campinas e de Dona Constância, virou reduto
das grandes comemorações juninas nas redondezas do Riozinho das Antas.
Por ter
nascido no dia de Santo Antonio, ainda no início do século passado, o chefão e
bom nordestino começava pelo novenário, já no primeiro dia, só dando por encerrada
a festança no morrer do mês. Ficavam as saudades…
Os filhos,
Adonay e João Alberto de Campinas, pessoas de forte influência na cidade,
traziam amigos e mais um magote de gente da classe alta. Quem fazia a festa,
mesmo, eram os sitiantes e os filhos deles. O povo da cidade só comia e apreciava
de longe, quase por imposição das relações de amizade. Essa gente melindrosa
não se mistura facilmente. E nem gosta de aluá!
Na cozinha,
suando que nem chaleira, Sebastiana Preta, ainda que manquitolando sobre a
perna menor que a outra uns vinte centímetros, comandava as quituteiras de
acordo com as ordens de Dona Constância. Com olhos de lince e sorriso de gavião,
ela espiava o ponto do mungunzá (ou chá de burro, como chamava), a corada do
guisado de capelão ou guariba e o acerto do ponto das demais iguarias dos
santos de junho. “Comidas pra inglês nenhum ponhar defeito”, dizia a dona da
casa.
Tia Neca e
Zé Taveira, viúva e filho do finado Aldenor Taveira, assumiam o terreiro. A
lenha das fogueiras era “ponhada” em lugar seco e coberta com uma lona de caminhão
para não ficar enjambrada com a umidade. “Fogo bom é fogo pipocante e sem
fumacê”, asseverava Tia Neca, vaidosa e consciente de sua relevante função.
Quando elogiada pelo dentista Dr. Calixto ou por outro visitante pela beleza do
fogaréu, alargava o sorriso de dois dentes e, abraçada ao filho, dizia:
― Seu dotô,
eu e Zé Taveira num queremo omilhar o Aldenor, nem depois dele mortinho e
enterradinho. Era dele a função de atiçar o fogo pra alegria e viço dos santo.
Enquanto viveu, foi vaqueiro e responsavi de fazer arder os pau. Agora, nas
memória e nas honra dele, é eu e esse menino aqui, o meu Zé. Ele só tem doze
ano maise já se declara como homi e pau pra toda obra.
Doutor
Calixto, escutando aquela prosa, virou-se para Tia Neca e reclamou:
― Pois
bem, Dona Neca, todas as crianças estão brincando, menos seu menino Zé Taveira.
Deixe ele ir brincar com os garotos. Não prenda ele, tá certo?
A resposta
veio da ponta do bico e bem do seu jeito:
― Tudo
bem, ele vai, mais só adispois de fazer o que tem que ser feito. Minhas pernas
não atura mais ir pra lá e pra cá pegá pau pra atiçar a fogueira. No final,
fique tronquilo. Ele vai se desbaldá de brincá e fazê zoeira. Deixe o Padre
Antunes sair, tás me ouvindo? O padre disse pra nóis que os santo fica triste
quando o fogo não alteia e fica murcho, vosmicê entende? Ele ainda me avisou
que, sem fogueira, na outra festa os santinho fica aborrecido, não passa nem na
frente da casa e zarpa pra outras banda.
Por volta
das duas da manhã do dia 24, foi-se a comitiva da cidade. Quase não havia mais
comida nem aluá e, só então, Zé Taveira pôde ir para a corrida da caça ao boi
fujão. A corrida consistia numa variação do esconde-esconde. Um menino era o
boi e saía em disparada para um esconderijo. Os outros, feito malucos,
procuravam encontrar o fujão. Quem encontrasse ganhava prenda. A prenda da vez
era uma bola de futebol, das legítimas, patrocinada pela esposa do Dr. Calixto.
O Zé Taveira, que conhecia cada palmo das terras, mas nunca havia possuído uma
bola, aloprou na busca. Desabou com gana e não passou pela cerca de arame
farpado.
A pancada
foi grande demais e, quando voltou do impacto, tascou a cabeça num toco de pau
de aquariquara e desmaiou. Não achou o boi fujão, mas ganhou a bola. Na
impossibilidade de ir até o hospital da cidade, a sangue frio, Dr. Calixto
remendou a boca do moleque e deu uma olhada no seu coco para ver se não tinha
afundado. A bola, assim, virou uma espécie de moeda de enganar besta e anestesiar
curativos. Deu certo!
Cinco anos depois
desse acontecido, já em 1975, com o olhar perdido da bobeira, Tia Neca não mais
cuidou de atiçar os “pau” da fogueira. Seu menino Zé Taveira, engraçado e
“enfeitiçado” por Nina Rosa, uma moça velha de seus trinta e lá vai pancada de
anos, largou a mãe e foi viver com seu rabo de saia bem longe do Recanto da
Serrinha. Desde então ela não quis mais saber de fogueira. Numa cadeira de
balanço, ao lado de Seu Antonio João de Campinas e do Dr. Calixto, agarrada à
bola ganha por Zé Taveira, ela escutava a música preferida do falecido marido Aldenor.
Olha
pro céu, meu amor
Vê como
ele está lindo
Olha
praquele balão multicor
Como no
céu vai sumindo
Foi
numa noite, igual a esta
Que tu
me deste o teu coração
O céu
estava, assim em festa
Pois
era noite de São João
Havia
balões no ar
Xote,
baião no salão
E no
terreiro
O teu
olhar, que incendiou
Meu
coração.[‡]
Do nada pro nada, deu um pulo e berrou a plenos
pulmões:
― Zé
Taveira, garoto encapetado, te achega aqui seu danado! Ocê num vai correr atrás
de boi ninhum! Toma, pega tua bola e brinca aqui perto d’eu e de teu pai! Anda,
diabo!
Violenta, arremessou
o brinquedo de estimação do filho, ganho na noite em que perseguiu um boi
fujão, rasgou a cara e quase teve o crânio afundado.
A bola
quicou no terreiro, uma, duas, três e mais vezes. Até que parou...
Famosos e Reencarnados
Desde novo,
ainda em Baturité, onde foi dado à luz, Seu Thomé Avelino dedicou-se ao estudo
de biografias, textos bíblicos e assuntos ligados à mitologia. De filósofos,
personagens do Grande Livro, reis, rainhas, imperatrizes e figuras mitológicas,
sabia tudo. Citava Platão ao padeiro como se falasse de um velho conhecido do
Ceará. Inclusive sobre a sexualidade do filósofo. Se duvidassem, daria detalhes
dos particulares de Hipócrates como se este fosse um dos vaqueiros de suas
fazendas de gado.
Casado com Zuleika
(nome nobre, exaltava Thomé), batizou os onze filhos, por ordem cronológica
como: Regina Vitória, Thor, Sócrates, Catarina, Cassandra, Fernando de Castela,
Nabucodonosor, Napoleão, Ísis, Hilquias e Maria.
O tratamento
em casa, principalmente com as meninas, era com deferências e honrarias. Sua
Alteza Regina Vitória, por ser mais velha, achava tudo aquilo muito louco. Já
adulta, não esquecia o mico que pagou na festa de 15 anos, (ul)trajada com um
modelito do século XIX, cheio de babados e frufrus. Na sua lembrança, a coroa
improvisada, mais parecia um solidéu, ornado com pérolas baratas e que, em
nada, combinava com o vestido. Por ser a mais velha, recaiu sobre seus ombros o
peso das alucinações paternas.
Dos irmãos,
não tinha inveja. Exceto de Maria. Os outros, a depender das idiotias do pai,
também pagaram preço. Não tão alto, mas pagaram. Maria, não. Não era princesa,
nem imperatriz, menos deusa de coisa nenhuma. Não era filha de Príamo e Hécuba,
nem tinha premonições. Era Maria, por descuido, ainda bem! No dia em que foi
registrar a caçula, o gado das fazendas estava caindo como peças de dominó e
Thomé não pensava noutra coisa. Só na aftosa. E ficou Maria, quando, na
verdade, deveria ser Maria Francisca Isabel Josefa Antónia Gertrudes Rita Joana
- a louca! Não houvesse acontecido o incidente com as vacas e com os bois,
Thomé estaria morto. O gênio de Maria, bipolar e impiedoso, não deixaria por
menos.
Felizmente,
reconhecia Regina Vitória, ainda que seus irmãos carregassem esses nomes,
nenhum levava a sério as explicações dadas pelo pai. Thor, por exemplo, fazia
galhofa dos trovões. Nas tempestades, quando moleque, corria para o terreiro e
tomava altos banhos de chuva. Afinal, ao Deus dos Trovões, não era permitido
temer estalicos de bufas vindos do céu. Nabucodonosor, por sua vez, estava
pouco se lixando para a Babilônia e seus suspensos jardins. “Não gosto de
flores, nem no chão, nem penduradas. Odeio samambaias!”, dizia, rindo-se do
pai. Hilquias, o menino santinho que virou ateu, nada tinha a ver com sua
origem bíblica e seu significado hebraico de ser a porção de Javé. - “Só se for
a porção dos culhões” - admitia.
Regina
Vitória, dentre a ninhada de irmãos, foi a única que não quis casar. Por opção.
Mesmo! Em casa, assumiu a responsabilidade das fazendas e dos pais - idosos, a
esta altura. Vendo que os velhos Thomé e Zuleika, dia após dia, perdiam a noção
do tempo e da realidade, resolveu anotar alguns depoimentos deles. Um dia,
talvez, escrevesse sobre a história de um bravo cearense e sua analfabeta
companheira. Munida de caderno e caneta sempre ao alcance de suas mãos, entre
uma e outra refeição, fazia perguntas.
―Pai, por
qual razão você nos colocou estes nomes tão feios? Feios, não! Exóticos! Por
quê?
―Rainha
Regina Vitória, minha filha, não são nomes feios, menos ainda exóticos. A
Rainha Vitória, que dominou o império britânico no perío…
―Não, pai,
isso eu já sei. Quero saber se você não pensou que a gente poderia sofrer
gozação na vida toda. Que a gente poderia ser infelizes? Responda!
―Regina
Vitória, minha rainha, você já foi uma reencarnação de Messalina. Voltou como
escrava e está na sexta ou sétima fase de retorno ao mundo dos vivos. E não
terminará como Vitória. Ainda terá de vingar a sua vida escrava. Voltará como
mãe de seus antigos donos. Fará com eles pior do que a si fizeram. Seu irmão
Thor, em vidas anteriores, foi carrasco. Na morte de Jesus, ele esteve
presente. Depois, viveu um pintor dinamarquês que foi assassinado. Voltou como
boêmio das noites francesas, seduziu mulheres e contraiu doenças do mundo até
morrer debaixo de uma ponte, na companhia de miseráveis. Ainda reencarnou como
astrólogo. De seus irmãos, infelizmente, é o que mais voltará. Ele não se
redimirá tão facilmente. Leia sobre a lei do carma, minha rainha! Só nela encontrará
respostas para as suas dúvidas e poderá entender seu velho pai.
Quando
percebia que o pai estava cansado, titubeando, ou brigando com a memória,
Regina Vitória encerrava os questionamentos. Era a vez de ir “entrevistar” a
mãe.
―Mãezinha, como
você se sentia quando papai escolhia os nossos nomes? Não achava esquisito?
―Não, minha
querida. Todas as vezes que ele dizia os nomes que queria dar pra vocês, eu
achava lindos. Concordei com todos. Escute: da vida, você desconhece os mistérios.
Não sei dar grande explicação. No campo da espiritualidade, não sei. Minha vida
atual pertence ao mundo da ignorância, mas, em outras vidas, já fui mãe e,
também, amante do seu pai. Ele pode explicar os detalhes para você. Apenas uma
coisa eu lhe peço: perdoe seu pai e, se possível, me perdoe também. Ele tem
coração mole. É um pote de manteiga derretida de amor por vocês.
Aquela breve
resposta de Zuleika deixou Regina Vitória pensativa e intrigada. Decididamente,
no outro dia, esclareceria a confissão. Somente o pai seria capaz de desvendar
os fatos. Os mistérios, seja lá!
―Pai, quem
você foi em vidas passadas?
―Onde quer
chegar, Regina Vitória?
―Apenas
quero saber. Posso?
―Minha
filha, fui duas vezes papa. Primeiro, fui Urbano II, o fundador das Cruzadas.
Tempos de guerra, minha filha. Tempos difíceis. Essa dor que sinto no ombro é resultado
da estocada de uma lança. Fui atingido por um herege. Depois, muitíssimos anos
depois, já no século XVII, reencarnei como o Alexandre VIII. Antes de ser este
papa, meu nome era Pietro. Lembra-se quando eu gostava de fazer a citação latina
"Tu es
Petrus et super hanc petram ædificabo ecclesiam meam”? Sempre mantive essa frase na minha cabeça. Já fui Pedro, minha rainha! Tenho mais de dez reencarnações. Numa
delas, fui amante de uma renomada cafetina europeia de nome Arethusa, hoje, no
corpo de Zuleika, sua querida mãe e minha atual e magnânima esposa.
―Vá devagar,
papai!
―Depois de
ter sido duas vezes ligado à igreja, não retornei ao mundo para um aperfeiçoamento
de minha fé. Pelo contrário. Naveguei no mundo do pecado. Você, Regina Vitória,
quando Jade, foi minha filha e fruto do meu amor pela cafetina Arethusa. Já nos
cruzamos antes, entende? Saiba, desde já, que sua passagem pelo mundo não terminará
na presente vida. Você voltará. Seu cuidado conosco não encerra sua obrigação
aqui na terra. Mais duas vezes e sua missão neste fedorento mundo estará
cumprida. Depois, irá para um recanto de purificação de almas e encontrará, à
sua espera, o verdadeiro Hilquias, um anjo de bondade, que lhe conduzirá ao
céu, ao verdadeiro reino de Javé. Antes disso, haverá sofrimento. Amortize suas
dívidas, pois!
Regina
Vitória, satisfeita, ou não, lacrou as páginas do caderno. Deu-se por feliz em
cuidar de Thomé Avelino e Zuleika, pais de sua vida no aqui e no agora. No
mundo fedorento, no dizer de Thomé. É feliz solteirona. Sempre que pode, nas
reuniões com amigos, conta as graças e traquinagens senis do velho pai. Como
piada, por exemplo, a reação dele ao ver Fernando Collor na televisão pela
primeira vez, quando afirmou: “Minha filha, esse menino já foi meu filho. Ele
descende da linha direta do anjo Lúcifer”. Um dia, junto aos irmãos, quando contou
essa passagem, Nabucodonosor, gargalhando, perguntou:
―Regina
Vitória, papai não falou para Vossa Alteza Reverendíssima se alguma das vidas
passadas dele não pertenceu a Alois Alzheimer? Também foi um rei!!! Rei dos
gagás!
―Posso perguntar,
Nabucodonosor. Agora, me responda você, sem gaguejar, por que o nome de sua
filha é Sissi? Tem a ver com a imperatriz? Não poderia ser Romy? Hein?
―Taí uma boa
idéia para batizar minha próxima filha!
Nas
fazendas, chifres lustrosos, os reprodutores Nostradamus e Natanael gozavam de
plena saúde, para alegria de Regina Vitória e felicidade das vacas de Thomé
Avelino. Muita gente famosa ainda dependia do dinheiro do velho cearense que
foi duas vezes papa e amante de uma cafetina europeia que se chamava Arethusa.
Se nas outras vidas foi provido, nesta agora é provedor. Como manda a lei do
carma!
Lições
de Antônio Mulato Benevides
De tanto
bater roda naquele trecho, de cor, salteado e até de olhos fechados, Antônio
Mulato Benevides sabia de cada curva, cada buraco e dos caminhos onde os bichos
atravessavam a pista mais comumente e de forma inesperada. Já lá se iam vinte e
cinco anos de pneus furados, calor massacrante, chuvas impiedosas, atoleiros a
perder de vista e quase intransponíveis, poeira maldita e passageiros
desnorteados.
A hora de
parar se aproximava. Seu espinhaço não mais respondia a uma freada brusca. As
pernas arroxeadas anunciavam uma trombose a qualquer momento. Era hora de
parar, sim, mas antes deveria treinar dois novos motoristas para a renovação do
quadro da empresa. Ensinar, precisamente, não o caminho. Este e outros,
inclusive os descaminhos, qualquer um poderia aprender sozinho. Deveria, isto
sim, dizer das armadilhas e dos percalços. Regras básicas de defesa e de
ataque, inevitáveis e necessárias à arte do bem viver de um trotamundos.
Pé de Chumbo
e Pega à Unha, como eram conhecidos Odonias Firmino e Joel de Souza,
acreditando, ou não, prestavam atenção ao que dizia Mulato Benevides. Às vezes,
pelo pecado do excesso, eram tantas as marolas e tão detalhadas as fantasias
que, em coro, apenas diziam: “Conta outra, Benevides!” Durante a viagem, de
forma sacana, se revezavam nas perguntas cretinas.
― Conte,
vamos!
― Ó,
bando de otários, vou contar não. Rezem para que nunca aconteça com vocês o que
já aconteceu comigo. Nesta BR, eu já vi caboclo peludo atravessando a estrada
em noite de lua cheia. Já vi mulher parindo menino com cabeça do tamanho de um
coité grande e sem dar um único gemido. Vi índios segurando sucuri de quase
oito metros e com um bezerro na pança. Vi de tudo, moços! Mais até do que
precisava ver.
― Vá
dizendo, vá!
― Eu já
carreguei o menino Zezé de Camargo quando ele começou a cantar.
― Virgem
Maria! E ele cantou pro senhor ouvir?
― Não,
seu bestalhão, ele cantava pra quem quisesse ouvir. Até hoje sou fã desse
menino pelo tanto que era humilde. Se um dia encontrar com Zezé, pergunte se
ele já cantou na praia da Base e na balsa do Madeira.
― E o
Roberto Carlos? Carregou?
― Não,
quem carregou o Roberto Carlos foi teu pai, filho duma égua! E nas costas!
Cabra besta! Só burro carrega alguém no lombo, ouviste bem?
― Qual
foi o pior passageiro que o senhor já transportou nesta vida?
― Ó,
rapaz, já carreguei até defunto. O pior dos piores entre os piores, entretanto,
foi uma mulher. O castigo dos castigos e o maior desgosto que já passei na minha
vida. Deixem chegar ali na balsa que eu conto. É uma longa história.
― Era
bonita ou bruaca e requenguela?
― Era uma
mulher. Uma mulher... Espera chegar à balsa, demente! Não sabes que o apressado
come cru!
A fila de
espera para a travessia do Rio Madeira era quilométrica. Os passageiros desceram
para comer os “brebotes” gordurosos e os três motoristas ficaram na cabine
conversando. Pelo fato de serem responsáveis pelas vidas que conduziam, eram terminantemente
proibidos de ingerir “quebes” de macaxeira e arroz. Na maioria deles havia
bactérias e todo tipo de porcarias próprias das comidas de beira de estrada.
Naquelas bandas, sim. Isto posto, só biscoitos Maria e bolachas Cream Cracker.
Para engolir com refrigerantes ou sucos naturais.
― Desembucha,
Benevides! Como é que era a sua mulher fatal? Loura, linda, morena, magra,
gorda, nova, velha, sorriso Colgate ou desdentada?
― Vejam,
a dona era de meia idade e forte, tipo setenta e cinco a oitenta quilos bem
distribuídos. A BR-364 ainda era (e é!!!) um inferno de piuns, mucuins e
carapanãs. Peguei o carro em Vilhena, tão logo depois da vacinação contra a
febre amarela, e o colega antecedente me avisou que tinha uma passageira
trabalhosa e impertinente, com destino a Rio Branco. Ela queria fumar quando as
janelas estavam fechadas e descompunha quem tentasse sentar na cadeira vazia ao
seu lado. Era bonita a danada!
―Passou
ela no toco e no rolo?
Fazendo de
conta que não ouviu a insolência de Pega à Unha, Antonio Mulato Benevides
continuou.
―A dona
acendeu um cigarro bem na hora em que um senhor de idade entrou e sentou-se ao
lado dela. Tossindo e espirrando como se tivesse cheirado rapé, o velhinho foi
à cabine para fazer a reclamação. Parei o carro, fui falar com ela e o desaforo
veio na hora: “Negro filho da puta, quem você pensa que é? Por esta e por
outras razões é que não gosto de preto nem de pobre! Ô raças vagabundas!”. A
“zinha” era negra como eu, fiquem sabendo!
Pega à Unha,
revoltado, vociferou:
― Benevides,
homem, mas tu foste muito frouxo demais da conta! Eu teria jogado esta égua na
beira da rodagem e metido o pé no acelerador.
― Não é
assim, meu caro! Houvesse um posto policial eu teria tomado a decisão acertada
e registrado uma queixa. É assim que deve ser, e assim é de lei. O comandante
do navio, o do avião, o condutor de veículos coletivos, seja trem, seja ônibus,
é o responsável por manter a ordem e a segurança, ouviram? Não havia posto
policial e tive que continuar. Agora, por favor, não interrompam mais. D’uma
encarrilhada só, eu conto o fim do drama.
E continuou:
―Durante
a travessia da balsa, vocês sabem, nem que seja a mãe de vocês, pode ficar a
bordo. Jamais esqueçam essa regra de segurança! É sempre melhor tirar um
afogado de dentro de um rio do que tirar um afogado de dentro de um ônibus
afogado num rio, entenderam? E a dona queria porque queria ficar lá dentro,
mas, sem alisados e com voz grossa, obriguei-a a descer. Lasquei-me de cabo a
rabo, mas cumpri minha obrigação. A dona desceu e, na rampa de pranchas de
madeira, enfiou a canela numa das brechas e ficou engatada.
― Bem
feito! Deus é justo!
― Cala-te,
Pé de Chumbo! Posso acabar? Tu queres ser motorista, açougueiro, carrasco ou
Deus?
― Nestas
horas, juro, só queria mesmo ser era doido!!!
― Pois
bem, o grito de dor que a dona deu, nem que eu viva duzentos anos vou esquecer.
Foi um verdadeiro esturro de fera ferida…
E seguiu contando:
― Corri,
meti meus braços debaixo dos sovacos dela e puxei-a pra cima. A canela já
estava roxa e sangrando. Juntei-a do chão, carreguei aquele monte de quilos
para o ônibus e fui fazer um primeiro socorro. Peguei minha toalha de banho no
encosto da cadeira, tirei as pedras de gelo da minha frasqueira de água e
embrulhei a perna da distinta. Rapazes, ela se urinava de tanta dor. Ainda
assim ela me xingava de negro filho da puta, corno e de veado pra baixo! A
diaba blasfemava contra Deus e contra todos. Confesso que nunca ouvi tantos
palavrões duma boca só! Minha coberta de lã, para que o mijo da braba dama não
escorresse pelo ônibus inteiro, lhe serviu de fraldas. A cada mijada, debaixo
de gritos, eu parava o carro, descia e torcia a coberta para recolocá-la
debaixo da bunda da sofredora e irascível criatura. Quando cheguei ao primeiro
local que tinha telefone, ainda cumprindo minha obrigação, liguei para a
empresa e pedi que fosse mandada uma ambulância para a rodoviária a fim de
encaminhá-la para atendimento. Também dei o número do telefone da casa de uma
irmã da madame para que fosse aguardá-la e providenciar internação e tudo o que
fosse necessário. É assim que vocês têm que fazer numa situação dessas.
Esqueçam as raivas, ofensas e tudo o mais.
― E pode
ter mais?
― Pode! Pega
à Unha e Pé de Chumbo, entendam de uma vez por todas: aqui nesse finzão de
trecho e de mundo, sem lei e sem ordem, tudo pode! Tanto é que, ao retirar a
senhora acidentada de dentro do ônibus e colocá-la dentro da ambulância, a irmã
dela cuspiu na minha cara e, por ser influente na cidade, através de um
político, conseguiu que eu fosse dispensado da empresa.
Nesse
momento a fisionomia de Benevides mudou. Mãos crispadas, olhos avermelhados
pela retenção das lágrimas e parecendo ter trazido o ontem para o agora, disse
aos futuros motoristas que o escutavam atentamente:
― Ao
chegar em casa, encontrei minha esposa muito doente. Ela veio a falecer logo em
seguida, e, creiam, sem que nada disso soubesse. Paguei o preço por ser negro e
honesto em total silêncio. Meses depois fui recontratado pela mesma empresa que
agora emprega vocês. Espero que tenham a mesma sorte e a mesma serenidade que
tive no cortar estradas e lidar com gente e animais. Honrem a profissão.
O restante
da viagem foi com pouca prosa e muitos pensares. Pé de Chumbo e Pega à Unha
entenderam o pranto e a dor de Mulato Benevides. Sequer pediram para escutar os
CDs com as músicas do seriado Carga Pesada e os da Sula Miranda, reverenciada rainha
dos caminhoneiros e viajantes das estradas deste bravo e esburacado país.
Em Vilhena,
no ponto de apoio, a janta foi tranquila, mas não tanto. Pega à Unha mexia-se
na cadeira como se tivesse pregos na bunda. Captando as razões, ouviu de Mulato
Benevides:
― Pergunta
logo, homem! O que queres saber mais?
― O que
aconteceu com a mulher? Ficou sabendo de alguma notícia dela?
― Não
sei. A vida dos passageiros não importa. O próprio nome já diz que são
passageiros, que passam… Espero que ela tenha sido muito feliz e arranjado
dinheiro para só viajar de avião.
No outro
dia, pela manhã cedo, embarcaram para a viagem de volta. Conferidos os
passageiros, bem na primeira poltrona, Mulato Benevides viu uma índia com duas
crianças. A “mais” grandinha tinha cara de capeta e, antes mesmo da partida, já
estava dando uma ideia do que poderia aprontar. Não deu outra!
O moleque
fazia cooper, salto com vara e salto
a distância no estreito corredor do carro. Era um atleta. Depois tropeçava,
caía, levantava e abria um berreiro enlouquecedor. Uma melequeira danada
escorria da boca e do nariz do cabeça de bagre olímpico. Ainda assim, corria
novamente, se esfregava nos passageiros, limpava o nariz na capa das poltronas,
até que, exausto, deitou no colo da mãe e dormiu. De repente, danou-se a
vomitar e a chorar.
― Pega à
Unha, vai ver o que está acontecendo ali e cuida! Tens que limpar o carro!
Ninguém aguenta pixé de vômito. Cuida!
― Logo
eu, Benevides?
― Sim!
Depois o Pé de Chumbo, se precisar, vai atender o pajé mirim. Cuida, homem!
Ao voltar
para a cabine, cara de poucos amigos, foi recebido pelos colegas com galhofas e
piadinhas. Benevides, muito sério, olhando para o ajudante roxo de raiva, faz a
pergunta pronta e ajustada para a hora:
― Queres
dirigir?
― Por
qual motivo?
― Ora,
ora. Para que possas parar o carro, jogar o indiozinho filho d’uma égua na beira
da rodagem e pisar no acelerador!!! Não é assim que pensas?
― É o que
dá vontade! Bom seria poder estrangular!!! Vida de merda!
― Calma,
amigo! Muita calma!
Daí pra
frente, muito esperto, o indiozinho ainda fez umas danações. Nada que atrapalhasse
o trânsito e a audição da música Fogão de Lenha, nas vozes dos arrepiados
canarinhos Chitãozinho e Xororó, e muitas outras dos novos e velhos cantantes
que sabem da vida errante, inclusive as dos filhos de Francisco, Roberta
Miranda e as do eterna cara de sofrença, mais conhecido por Amado Batista.
Estava
cumprida a missão de Antônio Mulato Benevides.
Titio Callilla
Estamos num dia qualquer do ano de 1960 d.C.
Tarde cedo, na velha banheira da casa do dentista
Dr. Angelim, cedida para que morássemos eu e mamãe, escutei um grito rouco chamando
meu nome. Fechei a velha torneira enferrujada, pulei fora do banho e, sentada
no vaso sanitário de tampa amarelada pelo tempo, fiquei a bater queixo. Estaria
louca?
A chamada do grito rouco soou novamente, mais
desesperada, até:
― Sumaia! Sumaia!
Só mamãe estava em casa, dormindo e roncando em sua
rede branca, coberta tão somente por uma pequena toalha xadrez que lhe escondia
os seios. Acordei-a aos pulos, segundo ela, mais branca que uma vela, e
disse-lhe firmemente:
― Mãe, titio Callilla morreu! Gritou por mim um
grito de muita dor. Levante, vamos até a casa dele!
Mal acabei de falar, ouço a voz de Joshua em tom
aflito. Abri a porta e fui falando:
― Titio morreu? Fala, Joshua, ele morreu? Como?
Joshua baixou a cabeça, triste e envergonhado como
nunca o tinha visto. Deduzi, sem dificuldades: titio, viciado em sexo que era,
morreu de quatro no ato, fazendo amor. Deixamos mamãe entregue à sua preguiça,
com os peitos de fora, e zarpamos para os cômodos onde moravam titio e Joshua a
três quadras dali.
A expressão “ninho de amor” nunca foi tão cabível
para dizer daquele ambiente onde viviam os pombinhos Callilla, de quase 60 anos,
e Joshua, de apenas 18, mal e mal completados. Tudo cheirava a almíscar e
alfazema. A mesa pequena, forrada com toalhinha branca de crochê, estava
impecavelmente arrumada para o lanche. Um raminho de lilases dentro de um copo
d’água, dois pratos de sobremesa de cerâmica barata, dois jogos de talheres de
alumínio e duas taças verde-garrafa de cristal grosseiro.
Devido à solteirice, e para não criar indagações,
dormiam em camas separadas. Sobre as camas, além das cobertas com dobraduras
especiais, os robes de chambre de cores neutras. No chão, entre as camas, uma
passadeira de feltro marrom. Sobre ela e lado a lado, as fofas pantufas dos
apaixonados.
Encontramos o morto despido e ainda morno. Sua
compleição gigante impediu que o franzino Joshua pudesse sozinho vesti-lo e colocá-lo
sobre uma das camas. Não foi a mais bela cena que vi. Nem nos filmes havia
visto! Da região do prazer, uma imagem bizarra. Aquilo se assemelhava a uma
camélia azulada e murcha. Limpa, porém.
Desviramos o corpo, esticamos suas pernas e, após
vestir nele uma camisa social de listras, adquirida nas Lojas Garcia e ainda
com o selo e alfinetes nas mangas e colarinho, entrelaçamos suas mãos sobre o
abdome. Uma calça de gabardine preta, do tempo que era mais magro, foi, a
bastante custo, vestida. Conseguimos, eu e Joshua, deixá-lo decente e bem apessoado.
Meias e sapatos pretos não nos exigiu esforços. Empoamos seu rosto para tirar o
grosso da oleosidade e aspiramos um perfuminho for men por todo o seu inerte corpo. Ao final, deixei sobre a cama
a boina que titio mais usava. Deveria levá-la junto, fosse para onde fosse. Era
sua marca registrada. Pronto! Estava pronto! Pronto para chegar ao Reino.
Durante toda a ritualística da preparação Joshua
chorou. Em várias passagens, muitas até, beijava o rosto de titio Callilla. Uma
demonstração de afeto que nunca havia presenciado. Nem em filmes. Com aquela meiguice,
não! Era a maior e mais pura demonstração de ternura de um menino por um velho.
― Joshua, vá chamar o Niasi Sharife e o Elifas Chaar.
Diga-lhes do acontecido e peça-lhes que providenciem o restante do serviço
funerário. Fizemos a nossa parte. Contenha o choro e não dê explicações
desnecessárias. Pense que titio morreu por ter chegado a sua hora e que da hora
ninguém pode passar.
Puxei a cabeça de Joshua até meu colo, beijei sua
testa e ordenei que fosse encontrar os amigos e conterrâneos de titio.
Nenhum homem foi tão bem atendido no depois da
morte como o velho Callilla. No salão onde funcionava uma espécie de clube
libanês, em alto estilo, foi velado, elogiado por sua destreza no jogo de gamão
e, enfim, pela sua bondade. Poucos parentes compareceram. Aliás, além de mim e
de mamãe, mais ninguém. Se apareceu, duvido muito, entrou e saiu como um relâmpago.
Do único irmão vivo, meu avô Anuar, foi a falta mais sentida, notada e
comentada com sotaque de repreensão. Por quê? Era a pergunta que não queria calar!
No final da manhã do outro dia, debaixo de uma fina
garoa, o corpo de titio Callilla desceu para a clausura eterna de uma gaveta.
Joshua estava para além do choque. Estava em letargia. Nem chorava, nem de mim
desgrudava. Passamos no ninho de amor, pegamos alguns dos seus pertences e
fomos para minha velha casa. Deixei-o descansar, assimilar a morte e sentir o vazio
da perda.
Somente quase na hora de dormir é que decidi
abordá-lo. Tomou um caldo de frango reforçado com aveia feito por mãe Fayma,
bebeu uma dose de Maracujina e desabou em pranto. Refeito, perguntou-me quem
tinha sido titio Callilla. Estava ávido por respostas e ofegante por carinhos.
Por que vovô não foi ao enterro do irmão? Seria por conta da sua desviada
escolha sexual? Seria por culpa dele? Não via motivos para culpas, então, por
quê?
Decidi ser melhor abreviar o momento das
declarações de culpas e das demonstrações de comiseração. Abrindo o jogo,
falei:
― Escute Joshua, não há culpas. Entenda, de uma vez
por todas, que você foi importante na vida de tio Callilla. Talvez tenha sido a
melhor experiência amorosa dele. Saiba que ele morreu feliz e amado. Titio era
maronita e vovô muçulmano sunita. Maronitas e muçulmanos – sunitas e xiitas – travavam
uma batalha, silenciosa ou barulhenta que fosse, sem dia e hora para terminar.
Não era uma guerra religiosa, apenas, como podia parecer. Era guerra pelo
poder. A coisa tem se modificado, mas persiste. As batalhas vão desde a divisão
territorial até por causa de uma simples esfiha. Joshua, menino, fica certo de
uma coisa: se o fato de um homem gostar de outro homem for coisa do demônio,
quem menos contou nesse caso foi o demônio. É briga de gente grande!
― Sumaia, obrigado! Muito obrigado! Que Deus
abençoe você. Sua explicação tirou um enorme peso da minha alma, da minha consciência
e do meu coração.
― Que Allah cuide de você, Joshua! Que prossiga no
seu rumo, garoto! O caminho será longo. Logo aparecerá um novo amor, tomara que
da sua idade! O que sentia e demonstrava por titio eram resultados de afeição e
agradecimento. Que sabe dizer do amor?
Independente da talagada do calmante de folhas, sem
mudar de posição, Joshua dormiu um sono quieto, típico dos inocentes. Mal acordou,
no outro dia, quis saber mais sobre a origem de titio.
Embora o assunto não despertasse em mim nenhuma
alegria, pelo contrário, atendi aos apelos de Joshua. Disse-lhe sobre a origem
da discórdia: vovô e titio eram filhos apenas do mesmo pai. Meio irmãos,
portanto. Minha bisa, Zainab, morreu de parto do vovô e este acabou sendo
acabado de criar por Sulema, a nova esposa.
Sulema, por sua vez, veio a ser a mãe de duas meninas
– Johara e Yaminah – e de titio Callilla. Ser criado por madrasta, expliquei
para Joshua, nem sempre é um mau negócio. Sulema criou vovô com todo carinho do
mundo. Deu a ele o mesmo que deu aos filhos, sem qualquer diferenciação. Assim
contava vovô.
Na juventude dos dois meninos é que começou o
racha. Titio ficou amigo de uma patota maronita e bandeou-se para o outro lado
da fé. Fica difícil para os ocidentais o entendimento dessa estúpida cisão,
expliquei para Joshua. O certo é que, por conta do desgosto com a inimizade
entre os filhos, a morte de meu bisavô foi antecipada. Titio saiu de casa e
vovô assumiu as funções de administrador da fábrica de refrigerantes nos
arredores do aeroporto de Beirute. Foi então que tio Callilla exigiu sua parte
para iniciar um próprio negócio. Deu tudo errado. Sulema, induzida pelo filho,
ordenou a venda da empresa.
Ouvi de vovô uma história que me deixou confusa.
Foi sobre o sumiço de uma miniatura do Corão, com capa banhada a ouro, e de um
anel com um enorme diamante que valia uma fortuna. Eram objetos que pertenciam
ao falecido pai deles. Vovô sempre teve certeza de que o nome do ladrão era
Callilla. Este negava e o resultado foi o peso da dúvida e da desconfiança. Sulema
vacilou. Entre acreditar no enteado e no filho…
Desolado, vovô ainda ficou um tempo na companhia da
madrasta e das irmãs, até que, numa ação bruta e covarde, foi perseguido e
quase morto pelos trogloditas amigos de meu tio. O que poderia ser uma guerra
religiosa virou uma contenda familiar. O fato de titio Callilla ter se bandeado
para a ala cristã implicava mais um voto para a bandeira de seu partido no parlamento
libanês. O ambiente familiar ficou insustentável. Isso motivou vovô Anuar a, no
ano de 1906, creio eu, migrar para o Brasil. Em São Paulo, ajudado por
patrícios, estabeleceu-se.
Seu primeiro comércio, na região do Brás, foi numa
pequena loja de miudezas e armarinhos. Lojinha de uma porta só. Cresceu, cansou
e entrou no ramo da hotelaria, em sociedade com dois amigos. O primeiro hotel
“de luxo”, e quase que exclusivo para migrantes libaneses, tinha quatro andares
e ficava na Rua Líbero Badaró, então centro nervoso da comunidade
sírio-libanesa. Nos redutos dos “brimos”, incluindo os judeus israelenses,
ortodoxos, ou não, não havia Faixa de Gaza. Quisessem, ou não, conviviam
pacificamente, deixando as diferenças para trás.
A tranquilidade de vovô Anuar foi quebrada com a
chegada inesperada de um novo hóspede. Ninguém mais, ninguém menos que titio
Callilla. No início, evitando indisposições com os sócios, vovô nada falou. Por
sua vontade, dependesse dele, titio não teria ultrapassado o batente da
portaria. Mas ultrapassou. De gênio contrastante e espírito falante, titio
abriu o bedelho e contou aos amigos de meu avô, sem nenhuma cerimônia, fatos
que nunca aconteceram. Por exemplo: que vovô havia quebrado os negócios da
família na tal fábrica de refrigerantes em Beirute.
Decepcionado com as inverdades ditas pelo meio
irmão e pela desconfiança dos amigos na sociedade do hotel, o velho Anuar pediu
as contas e seguiu sua vida. Voltou ao comércio, desta vez num restaurante.
Não demorou e os antigos sócios de vovô entraram em
desespero por conta das atitudes de titio. O antes hotel familiar para
migrantes libaneses estava se transformado num ponto de encontro de amores
proibidos. Penso eu, imagino, no tal prédio não circulavam mosquitos: os espermatozoides
não permitiam intrusos e o cheiro de sêmen os afugentava.
O apartamento que titio ocupava, fazia algum tempo,
registrava um vai e vem de homens de todas as idades e nacionalidades. Seguindo
o exemplo (que mau exemplo sempre é seguido) e por ele ajudados, outros
habitantes do local acharam-se no direito de ali receberem mulheres e homens.
Em resumo: titio era um proxeneta de marca maior. Sua renda mensal básica não
vinha do suor do seu rosto, mas do das prostitutas que gerenciava.
― Quer saber mais, Joshua?
― Sim.
Não me fiz de rogada. E desatei a contar os fatos
que ouvi contar pela minha avó, por meu avô e que até hoje tenho por verdadeiros.
Bem, não tardou muito, titio foi expulso do hotel.
Estava apaixonado por um moleque cigano. Com aquiescência e permissão da
família do moço, juntou-se à caravana e instalou-se em Campinas. Campinas já
prometia ser a segunda, maior e mais desenvolvida cidade de São Paulo.
Sem grandes dificuldades para a vida nômade, viveu
tranquilo num trailer com o seu menino Perun, o ciganinho. Tinha conforto.
Dentro do possível, o maior. Perun, filho de Katina, era bonito e rico. Titio
Callila estava vivendo nas nuvens. Por um lado, sim. Precisava, ainda, não se
deixar ser julgado um aproveitador de meninos ingênuos. Queria trabalhar para
mostrar-se útil.
Por escolha, e com a ajuda de Perun, entrou no
mercado imobiliário. Campinas florescia a passos largos e deixou meu tio passando
um pouco mais do padrão dos milionários locais. Sabia ser mercador. Tinha lábia
e disposição de mercador.
Aconteceu que, seguindo a lei, nômade que é nômade,
não cria limo. Perun e toda a comunidade cigana desarmaram acampamento e foram
para outra cidade, desta vez no Rio Grande do Sul, mais precisamente para o
sulzinho, nas cercanias do Uruguai. Longe, pois! Titio Callilla preferiu deixar
a trupe seguir sozinha.
O amor de Perun fez-lhe falta? Fez! Não tanta,
asseguro! Titio vivia um período dourado e não lhe faltavam namorados e mais
namorados. Dentre eles, uns mais tortos e outros mais tolos. O certo é que
caiu. Faliu. Cada menino que teve abocanhou sua parte. Quando ficou na lona,
totalmente sozinho, descobriu estar tuberculoso. Não havendo a quem recorrer em
Campinas, por estar sujo na praça, pediu ajuda à Katina, mãe de Perun. Ajudado
com presteza, tratou-se em Campos do Jordão e ficou curado.
De volta a São Paulo, chapéu na mão, procurou
Anuar, meu avô e meio irmão dele. Vovô ajudou, mas, por mágoa ou por bem conhecer-lhe
a má índole, não quis manter nenhum vínculo ou proximidade. Ajudou como se estivesse
ajudando a qualquer um que lhe pedisse auxílio. Foi essa a trajetória de titio
Callila. Resumida, mas é esta a história dele.
― E sua história, Joshua? Qual é? Tem nome hebraico
e cabeça chata. Quem é você?
― Sou paraibano, Sumaia. Sei que meu nome, no
português, corresponde a Josué. Sou órfão e fui criado por uma família
pernambucana. Gente muito boa! Só saí da convivência dela quando conheci o
Callilla.
― Entendi.
― Sumaia, gostaria de ficar consigo e com Dona
Fayma até que possa resolver o rumo a tomar. Posso?
― Claro, Joshua! Claro Josué!
Enquanto Joshua foi buscar seus panos, mais que
rapidamente tratei de arrumar o quarto que ocuparia. Pedi para que trouxesse os
alimentos perecíveis, as fôrmas de doces sírios e alguma outra coisa ou coisas
que o fizessem lembrar titio. Achei que ele deveria dar continuidade na fabricação
caseira dos doces e melados de aletria, amendoim e sêmola. Manter-se ocupado,
sempre, é uma das boas saídas para amainar as lembranças dos mortos. Ou
desaparecidos!
Missão cumprida! Joshua já não apresentava a cara
de tédio que as pessoas estampam depois da passagem dos entes queridos. Ficou sereno.
No cair da noite, enquanto mamãe fazia suas orações, Joshua me entregou uma caixinha
de marchetaria, linda, diga-se, com trava e cadeado dourados. Dentro dela, em
perfeito estado de conservação, estavam a miniatura do Corão de capa dourada,
uma bela cruz cravejada de brilhantes e um enorme anel chapeado, de
estranhíssimo desenho e que mais parecia uma arma. Um tijolo, diria.
― Sumaia, por direito, estes objetos pertencem ao
seu avô. Quanto antes, agora, se possível, preciso entregá-los. Se o Callilla
os deixou por tanto tempo guardados, se não os vendeu no período das vacas
magras, outra razão não existe senão a de devolvê-los ao legítimo dono.
― Deixe-me que faça isto. Vovô Anuar, talvez, nunca
se sabe, não se sinta confortável diante de você. Vou lá agora.
Vovô jantava.
Pacientemente esperei que jantasse, andasse e
arrotasse. Seu ritual digestivo era sempre o mesmo: vinte voltas e vinte
arrotos debaixo do caramanchão da videira. Somente após a oração de agradecimento
da refeição é que pude tomar chegada. Imaginei que vovô ficaria acometido por
algum tipo de emoção ao ver aqueles objetos do passado. Qual nada! Segurou o Corão,
apertou-o contra o peito, falou uns halabidalahs
e devolveu-me a caixa, dizendo:
― Entregue ao menino. Ele precisará disso! Diga-lhe
que mande derreter o ouro do anel e a pedra aparecerá. Não preciso de diamantes.
Menos ainda de cruzes!
Assim foi feito. Assim estava escrito!
É o seu fim, madame! Assim falou Zoroastro!
O cruel progresso chegou à pacata
Placilândia. Pleonasmo, aqui, é farinha pouca e molhada! Invadida por
forasteiros, perdeu-se o estreito convívio social. As famílias desapareceram
das calçadas.
O centro histórico foi o primeiro a
prostituir-se, como é de praxe acontecer. As cidades são entes respirantes,
creiam os que me estão a ler. No entanto, a depender dos administradores,
infelizmente, podem fenecer antes do tempo. Assim aconteceu com a pequena
Placilândia, rota dos oleodutos e gasodutos da Petrobras. Virou monstrengo e
sem personalidade, desde a estrutura física até o perder de vista da corrupção
e das injustiças.
No Bairro do Baixio, a fila que se
formava todo dia e o dia todo defronte ao sobrado portentoso parecia interminável.
Formada quase que somente por mulheres, aquele movimento começou a despertar
curiosidades na vizinhança. E mais que isso, alguns transtornos na ordem da via
e da vida pública. Não havia placa de propaganda, razão pela qual causava
maiores estranhezas e especulações. Uma clínica de abortos? Uma empresa de
recrutamento de empregados provisórios? Um SPA?
O crescimento desordenado implica
contradições de ordens diversas. Como dizia o farmacêutico Nestor, dono da rede
de drogarias, “O que é incapaz de subir é passível de descer”. Placilância empacou
no meio da ladeira. Nem pra riba e nem pra baixo. Saiu dos eixos. O que quis
permanecer forte, graças ao povo, foi a lucidez do próprio povo. Isto é o que
basta! Do desenvolvimento sustentável alardeado em ritmo de frevo, ninguém sabe,
ninguém viu. Só baderna!
O certo é que o mistério da fila do
sobrado foi desfeito. Ali, da aurora à meia noite, no que antes morou o casal
Salgado Fontes, por locação, passou a funcionar uma espécie de gabinete para o atendimento
de almas perturbadas. Auxiliados por um garoto de modos bastante femininos e
que respondia pelo apelido de Dina, Dona Celeste e o esposo Carmelo Galvão
revezavam-se nas “consultas” e prescrições dos “remédios” para as doenças da
alma e do coração.
Sobre a mesa ovalada da sala,
devidamente coberta por uma toalha de renda branca, havia um castiçal com sete
velas sempre acesas, uma imagem de Iemanjá, um baralho cigano e uma peneira de
palha onde se praticava o jogo dos búzios. Até aí, nenhuma novidade. Tudo muito
igual a tantos outros “cafofos” que existem para a prática dessas atividades
esotéricas questionáveis sob todos os pontos de vista, principalmente quando
desempenhadas por gente de má fé.
Em menos de seis meses, por aí, a fila
começou a encurtar. Surgiram alguns rumores de charlatanice que, de boca em
boca, foram se espalhando de forma irrefreável. Três fatos foram determinantes.
O primeiro e menos importante que pôde
justificar o distanciamento da clientela foi a presença inesperada da polícia,
de fraque e cartola, trazida por um consulente que levou o terceiro maior calote
de toda sua vida. Aconteceu assim: José Cassiano de Melo, comerciante de calçados,
era casado com Maísa Melo. Esta, no ambiente de trabalho, apaixonou-se
perdidamente por Clériston Aguiar, um empregado da loja. A firma foi desfalcada
pelos amantes que, não bastando a traição e o surrupio da quase a totalidade da
mercadoria, fugiram, deixando José Cassiano de Melo com um comércio falido e
com a responsabilidade da criação dos cinco filhos do casal.
Completamente transtornado – e ferrado
financeiramente –, José Cassiano procurou ajuda espiritual com o casal Celeste
e Carmelo Galvão. Quando lá chegou, por deferência, toda a clientela da fila
foi dispensada por Dina, o auxiliar. Tratava-se de uma situação grave e que
requeria trabalhos especiais que demandariam tempo e sacrifícios.
Nada de baralho, nada de búzios. José
Cassiano de Melo foi levado para outro compartimento da casa. Segundo descreveu
no Boletim de Ocorrência, nos mínimos detalhes, o local parecia o inferno. Nele,
diante de uma imagem do Satanás, rodeado de velas vermelhas, foi compelido a
prestar um juramento ao “das trevas” e, terminada a primeira fase do tratamento,
a entregar dez mil reais em moeda viva aos seus benfeitores Celeste e Carmelo.
E assim foi feito para que, em dez dias, tivesse de volta a esposa, o dinheiro
e os pares de sapatos, botas, tênis e sandálias levados por ela e por
Clériston, o amante. O resultado, livre de surpresas, estava na cara, o que
deixou o pobre José Cassiano de Melo mais corno, mais pobre e mais estúpido. A
última das criaturas, pois!
Não deu em nada! Celeste e Carmelo
tinham amigos na cidade. Foram conselheiros e fazedores de mandingas que,
alegadamente, puderam garantir as vitórias de vereadores e do prefeito nas
eleições. Valeu a máxima do “Só morre pagão quem não tem padrinho”. Desiludido
e acabrunhado, José Cassiano de Melo tratou desair do chão por conta própria.
O segundo registro, de grave a
gravíssimo, foi por conta do aborto da vizinha do castelo dos horrores. Milena
Castro, mãe de oito guris ainda pequenos, buscou socorro com a mãe dos
desvalidos, mais conhecida por Celeste Galvão. Por conta da brincadeira de tirar
neném com uma agulha de crochê, no velho estilo “Jarinilda”[§] de
furar cabeças de fetos, foi parar na UTI do Hospital das Clínicas Oswaldo Cruz.
Sem queixas, mas com repercussão. Não deu polícia, infelizmente. O bate-boca,
no entanto, foi feroz. O marido de Milena Castro “pocou” a cara safada de
Carmelo e ainda abriu sua testa em quatro departamentos roxos e ensanguentados.
Demorou um pouco até que Milena deixasse a frieza da unidade intensiva.
Foi outro episódio que caiu no vazio.
O terceiro gravíssimo e fatal movimento
dos bruxos de araque deu-se quando, numa sala imunda e mal equipada, morreu de
parada respiratória um moleque de dezesseis anos. Era noite alta de um domingo
de outubro. Depois de ter tido injetado quase um litro de silicone industrial
nos seios, nádegas e maçã do rosto. O que fazer diante da tragédia, principalmente
depois que Dina saiu desesperado e gritando pelo meio da rua, debaixo do toró
que inundava a cidade?
Não demorou para, sob guarda-chuvas e
capas de nylon, vizinhos acorressem ao local e invadissem o sobrado dos
criminosos. O corpo estava quentinho e sendo retirado do “centro cirúrgico”
para ser deitado sobre a mesa ovalada da sala. Um linchamento foi tentado e só
evitado com a chegada dos pais de Rodiney, o garoto, devidamente acompanhados
por policiais do distrito mais próximo.
Um tempinho a mais e chegaram as
equipes de jornalistas da rádio e do Diário de Placilândia. Já era manhã de
segunda-feira. A estas alturas, cheios de hematomas e com os cabelos
desgrenhados, Celeste e Carmelo Galvão foram conduzidos à delegacia, sem que
emitissem uma única palavra. Do menino Dina, nem Seu Souza! Escafedeu-se no
meio do alagado do Bairro do Baixio.
O crime comoveu a cidade e adjacências.
Toda a comunidade condoeu-se com os estragos no rosto de Rodiney, antes um belo
rapaz, cuja ambição era ser uma bela menina. A qualquer custo, esclareça-se. Filho
único de uma família pobre, porém distinta, por falta de orientações e por ser
Maria vai com as outras, encerrou sua vida nas mãos de dois desclassificados
que brincavam de enganar pessoas incautas e/ou desesperadas diante das emboscadas
da vida e dos seus próprios destinos.
O povo de Placilândia ficou de pés
inchados e brios esmigalhados. Altivo, altaneiro, justo e honrado, passado o
enterro, postou-se garbosamente frente ao DP, e de forma solidária e
consciente, abriu caminho para que passassem os pais de Rodiney até a cela
tosca onde se pensavam seguros os meliantes Celeste e Carmelo Galvão. A troca
de olhares foi cortante. Palavras, por inúteis, foram dispensadas. Enojados e
com os corações partidos, deram meia volta e juntaram-se aos populares.
No outro dia a cela estava vazia.
Completamente vazia. Na parede suja, em letras garrafais, o recado:
“É o fim, madame! É o seu fim.
Assinado: Zoroastro!”
Os cadáveres jamais foram encontrados.
Sabe-se apenas que, na cidade de Japiá, distante 600 km de Placilândia, um
casal de esotéricos bem conceituados, resolve qualquer problema de ordem
espiritual, matrimonial e financeira. Serviço garantido e sigilo absoluto.
As mortes pré-datadas
Verônica, até
perto dos quarenta anos, não quis acordo com casamento. Para além disso, não se
privava a, de vez em quando, deixar-se acompanhar de uns namorados. E ficava,
ficando, mesmo! Isso, sim. Nem puta, nem donzela pia. Relaxava as tensões e
terminava os namoricos que não deveriam atingir tempos superlativos. Sua vida
era para jogos rápidos e sem raízes. Desde que perdera os pais num acidente de
carro na Curva do Tarumã, só pensava em cumprir seu tempo de emprego e partir
para junto da única irmã, há tempos residindo e muito bem instalada em São Luís
do Maranhão. Viviane, assim se chamava o seu único laço sanguíneo na comunidade
terrena. Com ela, artista plástica e também solteira, faria par na fase
avançada da vida. Esses eram os planos.
Bancária,
séria e solitária, até mesmo em função do emprego, tinha experiência em árdua
rotina. Chefiava a carteira do FGTS, acumulando com as do crédito imobiliário e
a do PIS/PASEP. Precisava ter olhos aguçados para não permitir que os
auxiliares confundissem as cores das cópias para arquivamento. As brancas,
referentes às da primeira via, pertenciam aos clientes. As verdes e as rosas
não iam parar na Estação Primeira de Mangueira e sim na pasta do órgão financiador.
As azuladas, por fim, eram do arquivo do próprio Banco. Tolerância ZERO no
controle das vias dos papelotes recheados de nomes e números. Trabalho chato. Para
além, muito além, disso.
Mas nem só de
trabalho pode viver a mente mais dedicada e chegou o tempo de Verônica suspirar
por uma costela para se aninhar nas noites frias e, especialmente, nas quentes.
E, por fim, fez-se o homem que imaginava ser sua alma trigêmea, que a suportaria
no modo de ser, na profissão e no pouco tempo que dispunha para namorar em
tempo integral; logo ao vê-lo um dia no banco, recém chegado à pequena e pacata
cidade, considerou ser o carioca Evandro Mário o par perfeito. Não era de todo
lindo, mas seus olhos foram capturados pelo morenão de sorriso largo e olhos encantadores.
Evandro Mário
também reparou nela de imediato. Entre um pedido de extrato aqui e consulta de
limite de crédito acolá, eles engataram um jantar e um namorico. Daí que o
pedido de casamento não levou mais que três semanas para ser feito.
Tudo bonito,
mas “eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá”, como diria o Chico.
O príncipe logo revelou seu pior lado. Evandro tinha ciúmes de tudo, inclusive
do mar que pudesse um dia vir a tocar seus pés e beijar sua saia. Amor doentio.
Claro que não demonstrou isso no início do relacionamento. Defeitos são de
aparecimento tardio; os começos são sempre florados. Dizem.
Verônica viu-se
embrulhada. Jogou-se na aventura, casou e, bem antes que pudesse prever,
arrependeu-se. O escolhido (ou achado) a sufocava. Quanto mais se perguntava o
porquê de ter assinado os papéis de casamento, menos encontrava respostas.
Asnice pura! Não precisava e nem queria aquilo para si.
Pensando que
o que não tem jeito remediado está, e usando das suas boas relações pessoais,
quis que Evandro ocupasse a mente. Naquela pequena cidade onde residiam, a
princípio, um forasteiro sempre era olhado com reservas. De cara, sim! Bastava
um mínimo de tempo, entretanto, logo entrava nas fronhas e passava a ser
respeitado. Até exercer poder de mando. Evandro teve muita ajuda para que se
tornasse enfronhado. Ele precisou dessa mãozinha para que não permanecesse
vinte e quatro horas grudado no calcanhar de Verônica. Produtivo, ocupado e
remunerado poderia vir a ser capaz de entender uma mulher independente e bela
sem que estivesse ameaçado pelas sombras da traição. E não só isso. Precisava
entender a realidade da cultura local. Necessitava curar-se da doença e saber
que “trair e coçar é só começar” não passava do título de uma peça teatral de
grande sucesso. Com fundo de verdade, talvez. Mulher vencedora, necessariamente,
não é mulher que trai. Apesar das coceiras!
Precisando
abrir coração e ouvir conselho, furtiva como quem rouba, procurou Marissanta,
solteiríssima, amiga de tempos e datas perdidas, e pediu emprestado o ouvido
amigo. Recebeu mais do que pediu. A enfermeira tinha pavor de engatar compromissos
eternos. Nada que a prendesse. Em matéria de viver solta era maestrina. Duas vezes
com o mesmo homem era casamento e avental todo sujo de ovo, dizia.
No entender
de Marissanta, o mais aconselhado para uma mulher, principalmente para a amiga
Verônica, agora séria candidata a sofrer com a síndrome de Amélia, seria
conciliar trabalho e homem na base do meio para um e meio para outro. Qualquer
recuo implicaria atraso de vida. Mulher que se quer independente tem que
equilibrar os cofres do coração e os outros que lhe permitam emancipação e
liberdade. Nem tanto ao mar, nem tanto aos peixes, ponderava.
Mas o
conselho não funcionou como esperado. Para pior, Evandro, como que adivinhando
uma mudança no horizonte e dando a sorte de ter em sua porta uma noite uma
enjeitadinha, convenceu que adotassem aquela que batizaram Luena Maria. Para ele,
uma obrigação de Verônica prendendo-a ao lar; para Verônica, a criança se tornou
seu alento e amor. Mas aquele encontro com Marissanta ficou martelando na
cabeça. Mais que isso, não conseguia mais ser contido na garganta o que se
delineava lá dentro da cachola.
E foi num dezembro,
o melhor e o pior dos meses. Não é mês de festa apenas. É mês que fecha o ano e
prepara as contas para a entrada do outro. É tempo de limpeza!
O Estado, o
mais paternal da federação, sem reservas de caixa, daquela vez atrasou o
pagamento de três secretarias e dos seus aposentados. A fila dobrava dois quarteirões
e meio. Reclamações eram gritadas. Autoridades eram insultadas. Blasfêmias de
toda ordem se instalavam e, num efeito ecoante, repassadas de boca em boca dos que
dobravam os dois quarteirões e meio. Palavrões eram disparados. O mundo parecia
estar pegando fogo. E Marissanta estava ali. Precisava dos trocados para sanar
débitos e evitar degolas. Na extensa fila, banhada de suor, Marissanta era
mortal comum tanto quanto mortais comuns eram todos os enfileirados.
As portas do
Banco foram abertas. Um batalhão de seguranças organizava a turba enfastiada e
em fúria. Pessoas desmaiavam. Povo querendo água e dinheiro para voltar para
casa. Pessoas querendo ordem. Em meio a dificuldades e entre cordas e riscados
de faixas amarelas traçadas no chão da agência central, seguiam a fila e esperavam
a ação dos caixas de caras empalidecidas pelo medo. Dedos nas línguas foram passados
e repassados para a conferência das notas. Dez, vinte, trinta, cem, cento e cinquenta,
cento e sessenta e pouco mais. Povo do salário abaixo do que se pretende mínimo,
estonteado, faminto e apressado. E raivoso. E puto! Depois de três meses sem
ver a cor de dinheiro…
Marissanta
estava ali posando de paciente. Para receber os oitocentos e pouquinho a mais
de dinheiro precisou ter resistência e calma. Pensou procurar Verônica no andar
de cima, entre as saletas e divisórias de fórmica do mezanino. Precisava.
Pensou, mas não foi. Tráfico de influência não lhe apetecia. Gente que é gente
não sobe em gente. Estava prestes a ser atendida. Esperaria…
De repente,
em meio ao burburinho, quatro estalidos. Um, dois, três e quatro. Marissanta,
já na boca do caixa, viu cair a primeira gota de sangue, a segunda, e as muitas
outras, até formar-se a poça. Na sala 2 do mezanino, sobre o chão, o corpo de
Verônica estremecia. Ao lado, o de Evandro já estava imóvel. A paixão e o ciúme
aprontaram mais uma tragédia executada em nome do amor. Uma das balas
transfixou a divisória e, por pouco, não levou a cabo e enxotou do mundo o
jovem Chico Viegas Ypólito, de todo inocente e recente casado.
“O marido
matou a mulher!”, diziam as desencontradas informações. Mataram Verônica. “E
ele atirou na própria boca depois!”
Marissanta
ficou sem fala. Por instantes, sem ouvidos. Quis sentir-se culpada. Não, não
era. Tinha razão em insistir ser uma mulher só. Apesar das dificuldades de ser
só. Ato de inteligência. Saindo do transe, confirmada a morte, lembrou-se do
bebê adotado e disparou para a casa da amiga. A polícia já estava se dirigindo
para lá e aproveitou carona. Precisava ligar para Viviane em São Luís. A
direção do estabelecimento de crédito cuidaria dos cadáveres e ela de Luena
Maria, quem agora mais precisava de atenção.
As portas do
Banco foram fechadas até segunda ordem. A polícia abriu passagem para os
corpos. Mais atrás, vinha o jovem Chico Viegas Ypólito ainda desmaiado. O
pagamento foi suspenso. A turba vociferava. É que toda turba é burra. E descomunal
é a sua força. Foi a pior manhã já vivida na cidade.
Viviane desembarcou
já era noite. Do aeroporto direto para a capela onde estava o que sobrou da
irmã. O banco não deixou que faltasse nada àquela que foi uma de suas mais
competentes funcionárias. E, por extensão, ao esposo. Os dois caixões, lado a
lado, tinham a mesma qualidade: a melhor. Corbeilles
e coroas para um e para o outro. As vidas se extinguiram juntas.
Cedo da madrugada,
até por cansaço da viagem, chamou Marissanta. Precisava de banho e cama. Luena
Maria e a babá estavam sozinhas. Na sala, de pernas trepadas, pegou sua bolsa,
abriu-a e dela retirou uma carta. Entregou-a para que Marissanta lesse em voz
alta. A data dizia doze dias antes da tragédia e continha a revelação da ameaça
cumprida. Ao escrever para a irmã, não escondeu a infelicidade ao lado de
Evandro. Sabia que tinha as horas contadas e demonstrava medo.
Conversas
antes de dormir disseram que Viviane, por telefone, pediu à irmã que se protegesse,
por não ser verdadeira a inteligência que afirma que quem muito ameaça nada
faz. Faz. Fez. Verônica estava morta.
Luena Maria
dormia inquieta e acordou chorando. Mãe Verônica já não existia para dar-lhe o
beijo de boa noite e arrumar-lhe a coberta no berço. Parecia saber do
acontecido. E sabia! Quem costuma crer que crianças têm no coração as idiotices
pensadas por adultos, está redondamente enganado. Elas têm percepção maior.
Acertam sempre! Têm o dom da premonição, parece até!
Marissanta organizou
todas as ações. Viviane viajaria com a pequena Luena para, no Maranhão, fazerem
viver melhor o já traçado caminho. Tanto quanto pudesse, seria mãe e tia, ao
mesmo tempo.
O ser amigo ultrapassa
os acidentes e determinismos. Vai além. Marissanta ficaria responsável por
deixar resolvidos papéis, bens e garantias. Vendeu os móveis, doou roupas e
coisas menores, regularizou a pensão da pequena órfã e, feito isso, viajou para
acertar os ponteiros de sua própria vida. Gostou de São Luís e ali ficou. Com
Viviane, como se fosse uma espécie de madrinha, cuidaria da filha de sua melhor
amiga.
Não só ficou.
Sucumbiu aos carinhos de um moço de Imperatriz. Sem papéis, claro!
O banco onde
trabalhou Verônica, na base do escândalo, encerrou em definitivo suas
atividades. Vinte e tantas agências no estado, no centro financeiro do país e
no exterior seguiram o mesmo destino. Todo o patrimônio (que não era pouco) foi
engolido por sucessivas diretorias. Transformou-se em fazendas de gado, antro
de agiotas, mansões, espigões de concreto e contas secretas no exterior. O
imponente prédio de vitrais azulados da matriz, antes altaneiro e motivo de
orgulho, agora apodrece a olhos nus e mais parece um condomínio de fantasmas.
Nenhuma outra atividade aconteceu no interior de suas amplas instalações.
Conta-se que é possível ouvir, mais que nitidamente, a qualquer hora do dia ou
da noite, o barulho dos estalidos: um, dois, três, quatro…
Entre Versículos e Insultos
A cidade de Otaciano Pinté, pouco mais de 11.000
viventes, é um retrato riscado e sujo do que pode e deve ser uma cidade, tanta
é a falta de estrutura básica. Antes um aglomerado de seringais e fazendolas,
foi elevado à categoria de município por mais uma das catrepagens políticas que
imperam no país. Como aumentar o dinheirinho que vem do Fundo de Participação
dos Estados e Municípios senão criando, a toque de caixa, esqueletos urbanos
que não deveriam ser nada mais além do que pequenas vilas?
Num arremedo de império romano, uma igreja sem
padre, um fórum para os tribunos, uma escola caindo aos pedaços, duas ruelas de
tijolos, nenhum posto de saúde, hospital inexistente, um armazém desfalcado, um
filho ilustre bem relacionado com os morubixabas da capital e, pimba, nasce um
município! Bem, nasce não é bem o termo: aborta-se um ente público, fadado ao
fracasso. Assim está, sempre esteve e será Otaciano Pinté por muitos anos:
fracassada!
As poucas melhorias que surgiram desde o fenomenal
rito de passagem foram por imposições legais. As maiores “obras” executadas até
o presente momento, reconheça-se, foram as aberturas de fossas negras com vasos
sanitários e caixas de descarga, em substituição aos antigos cagadores de
madeira. Não fosse a continuidade de contaminação do lençol freático, seria uma
boa e higiênica ideia. Como está, nada mais é que um arranjo para desarranjos. As
instalações da delegacia, do cartório, do destacamento militar e da escola de segundo
grau, que não passa de quatro salas de alfabetização de adultos e crianças, são
precárias. Merenda escolar ainda é coisa rara e, quando há, é na base do feijão
podre, frango podre, carne de sol com bichos tapurus, biscoitos molhados e
farinha das boas. A farinha de Otaciano Pinté é das melhores da região. Pelo
menos isso!
Quando da elevação a município, em 1996, o
patriarca e até hoje prefeito, Otaviano Pinté, herdeiro político de Otaciano Pinté,
sonhava alto. Por um mandato e por exigência da legislação eleitoral, o cargo
foi ocupado por sua esposa Madalena. Só para inglês ver. Quem mandava era ele
mesmo.
Refestelado em sua cadeira de vime, com pose de
entronado, vislumbrava uma comunidade rica e feliz que honrasse a figura de seu
falecido pai. Ele e os irmãos José Otávio e José Olavo Pinté faziam arquiteturas
na areia. Uma fonte luminosa, um palacete imponente, uma praça infantil e outra
para adultos e mais outras e outras edificações vistosas para os poderes
legislativo, executivo e judiciário. Quase nada saiu do devaneio. A Câmara de
Vereadores ainda está num velho barracão que pertence a José Otávio. O lugar
foi revitalizado com as cores da bandeira do município. Azul e vermelho, como
nas Cruzadas, são os matizes do lábaro que vive pendurado e ostentado num cano
de PVC na Praça dos Três Poderes Pintecianos.
O fórum, um pouco melhor alojado, ainda está sem a
escultura cimentosa da Deusa Minerva no pátio de entrada. A casa onde morou o
velho Otaciano Pinté continua locada para o pleno exercício da justiça por uma
mensalidade exorbitante e incompatível com os valores regionais. O tal
palacete, sede do governo, é a própria casa de Otaviano, recuperada e ampliada
com dinheiro público. Tudo em família, pois!
Os irmãos Pinté, antes católicos por conveniência,
resolveram fundar a própria igreja. Como homens de visão, assistiram e comprovaram
pela TV com possantes antenas parabólicas que as “igrejas de crentes” eram um
bom negócio. Num zás, lás e trás, com toras de madeiras extraídas da mata
próxima, ergueram o templo da Igreja Cristo é Rei. José Olavo, o mais desocupado
dos irmãos, foi “nomeado” pastor.
O primeiro culto da mais nova denominação foi em ritmo
pop. Os funcionários da prefeitura, evidentemente, foram todos convocados para
a grande manifestação de fé da comunidade pinteciana. Ai, ai, dos que não
comparecessem! Muitas músicas gospel de Jamily, Regis Danese, Robson Monteiro e
companhia limitada foram entoadas antes da celebração inaugural. O povo em
geral, na marra, cooptou e compareceu.
Às vinte horas, depois do corte da fita inaugural,
sobe ao púlpito o pastor José Olavo. Para honra e glória dele mesmo, sua roupa
de apóstolo mais parecia com a beca dos gaúchos dos pampas em dias de churrasco
fincado no solo e danças com as prendas nas noitadas frias do Rio Grande do
Sul. No lugar do terno preto e gravata sóbria, vestia bombachas e camisa branca
com um lenço vermelho atado em seu pescoço. Várias meninas da comunidade, devidamente
ungidas, saltitavam pelo palco, vestidas com gazes e tules, como se fadinhas tontas
fossem. A palavra foi pregada e o público aplaudiu. Qualquer pessoa que
dissesse que o culto não foi bonito estaria faltando com a verdade. E a verdade,
a bem da verdade, é bem de Deus!
À época da inauguração do templo, soberana no
IBOPE, Glória Perez ditava o conhecimento da cultura da Índia. Juliana Paes,
Laura Cardoso, Tony Ramos, Márcio Garcia e o veterano Lima Duarte interpretavam
os maiores e melhores da trama. Pois bem, no templo Cristo é Rei, de olhos
fechados e em transe, homens e mulheres dançavam ao som da música de convite ao
coito, da trilha sonora dos namorados, amantes e calientes, Maya e seu maridão
Raj. Aproveitando a deixa e o sucesso, um compositor ungido e desconhecido deu
nova versão à letra da música. Sem as fantasias e joias, tik? Só com os are
babas, correto?
José Otávio animou-se com a renda da igreja do
irmão. Medindo numérica e qualitativamente a clientela, verificou ser
perfeitamente possível e estratégica a existência de outra denominação
“cristã”.
Munido de toda a documentação exigida, em tempo
recorde, deu entrada nos papéis para a criação da Igreja Deus é Pai. Noutro barracão
com toras de madeira das cercanias ergueu o toldo do novo templo. A costureira
Francismar Milhomen criou o uniforme branco com cinco estrelas azuis bordadas
no peito. Um brinco de uniforme, inspirado na constelação do Cruzeiro do Sul. Para
a festa inaugural, viajando de barco, veio de Belém um cantor de rock gospel,
com cachê de dois mil contos.
A partir desse evento, não poderia ser diferente, a
notícia carece de exatidão. Uns dizem que a igreja Cristo é Rei ficou
desfalcada em cerca de trinta por cento. Os mais exagerados falaram em quarenta
e até cinquenta por cento. Motivo mais que suficiente para que ocorresse a
cisão. José Otávio e José Olavo apartaram as farinhas depois da péssima divisão
das almas-reses.
Inconformado, José Olavo foi à luta. Vereador,
tanto quanto José Otávio, a contenda foi parar na plenária da Câmara. Não mais
se falavam informalmente. E partiram para o debate. Os podres dos edis eram do
conhecimento público, porém tratados na penumbra do fuxico e da maledicência.
Melhor, então, escancarar. Na sessão única da semana, galeria lotada, aconteceu
a primeira dentre muitas e seguidas lavações de roupa suja.
― Vossa Excelência, vereador José Olavo, não passa
de um enganador de almas. Está no Livro o aparecimento dos falsos profetas.
Vossa Excelência é o pior deles. Anotei uns poucos textos santos e veja o que
encontrei sobre o que representa Vossa Excelência: “Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós disfarçados em ovelhas,
mas interiormente são lobos devoradores. Pelos seus frutos os conhecereis.
Colhem-se, porventura, uvas dos espinheiros, ou figos dos abrolhos? Assim, toda
árvore boa produz bons frutos; porém a árvore má produz frutos maus. Uma árvore
boa não pode dar maus frutos; nem uma árvore má dar frutos bons. Toda árvore
que não produz bom fruto é cortada e lançada no fogo. Portanto, pelos seus
frutos os conhecereis”, Mateus 7:15-20; “Rogo-vos, irmãos, que noteis os que promovem dissensões e escândalos
contra a doutrina que aprendestes; desviai-vos deles. Porque os tais não servem
a Cristo nosso Senhor, mas ao seu ventre; e com palavras suaves e lisonjas
enganam os corações dos inocentes”, Romanos 16:17-18; “E a besta foi presa, e com ela o falso profeta que fizera diante dela
os sinais com que enganou os que receberam o sinal da besta e os que adoraram a
sua imagem. Estes dois foram lançados vivos no lago de fogo que arde com
enxofre”. Apocalipse 19:20.
― E o que direi de Vossa Excelência, Vereador José
Otávio? Que é um ladrão da pior espécie? Que engana viúvas e órfãos? Também
está na sagrada escritura, fique Vossa Excelência sabendo! Qual o destino das
cestas básicas de sua igreja? Quem varre sua casa e cozinha para sua família?
Quantos salários Vossa Excelência paga para os fiéis que cuidam de suas propriedades?
Indiferentes às brigas dos pais, os primos Grace e
Ruslander Pinté engataram um namorico às escondidas. Largaram as igrejas dos
pais e caíram na gandaia da juventude moderna. Na base do faça amor, não faça
guerra, em lugar de louvores e discursos, passaram a ouvir os batidões do funk
e a bebericar uns drinks de Tang de tangerina com Caninha 51.
E aconteceu que, numa certa noite, foram apanhados
num flagra sobre a cama de José Otávio, pai da menina Gracezinha. O fato elevou
a ira do Pastor-Vereador. Não esperava que sua bonequinha de luxo, sua princesa
adolescente tivesse sido desvirginada justo por seu sobrinho e filho do seu
principal desafeto no âmbito familiar, religioso e político. A cena da sua
menina nua e bêbada nos braços do canalha Ruslander Pinté foi deveras chocante.
Até ensaiou uma síncope cardíaca, com direito a dor no peito, falta de ar, formigamento
nas mãos e vômito.
― Como evitar o escândalo? Como posso impedir o
vazamento desta trepada infame entre primos? Minha reputação e a de minha filha
vão parar na lata do lixo! Meu Deus, o que fazer? – repetia desesperadamente o
desatinado pai.
Medicado e aconselhado pela esposa e pelo irmão
José Otaviano, prefeito, patriarca e pensador da família, José Otávio deitou e
dormiu sedado. Ficou acertado que dali mesmo o prefeito iria à casa de José
Olavo relatar o acontecido e preparar os irmãos para uma conversa franca. Assim
procedeu. Ruslander, que a tudo ouviu, revelou ao pai que Gracezinha não era
mais virgem e que isso não tinha a menor importância. Ele tinha intenção de casar-se
com ela e só não revelaram o namoro antes, por medo dos pais.
No dia seguinte, ainda cedo, José Olavo e José
Otávio, no Gabinete do Prefeito-irmão mais velho, iniciaram o “debate” de
reconciliação. Pela preservação do nome e honra da família, sem maiores
questionamentos, acertaram a data de casamento dos filhos. José Olavo não
estava nem um pouco preocupado com as vergonhas de José Otávio. É da voz
corrente dos homens da comunidade pinteciana que: “quem tem suas éguas soltas,
que prendam, pois meus cavalos continuarão soltos”. Também não é raro ouvir
dizer que “xereca não tem lombada e piroca não tem freio”.
Outros acertos foram consolidados na base do fio do
bigode: por uma semana os cultos seriam suspensos e, passado esse prazo, a
igreja Deus é Pai seria definitivamente fechada, para honra e glória de José
Olavo que assistiu, pesaroso, a debandada de seus fiéis para a igreja do irmão,
como se fosse uma verdadeira revoada de jacus.
Na câmara, na igreja e na cidade inteira, a mudança
de comportamento dos irmãos foi notada. Encerradas as atividades da Deus é Pai,
a normalidade voltou à igreja Cristo é Rei. Por decisão e a pedido de José
Otávio, as reses desgarradas voltaram a colocar lenços vermelhos em volta dos
pescoços, apagando de uma vez a constelação do Cruzeiro do Sul de suas vidas.
Um novo templo foi erguido por voluntários capitaneados
pelo irmão de José Olavo, seu ex-detrator e irmão José Otávio. Na região não há
outra igreja tão grandiosa e moderna. Foi nele – no templo –, que aconteceu o
casamento de Ruslander e Gracezinha e é ele – o templo –, a última grande obra
da cidade de Otaciano Pinté. O mais continua a passos de lesma, inclusive a
instalação de fossas negras com vasos de louça e descarga, em substituição aos
antigos cagadores de madeira. Na merenda escolar continuam sendo servidos
alimentos estragados.
Em pesquisa recente realizada pelo Ibope local, na
próxima eleição, o chefe do Executivo Municipal, na cabeça, com previsão de setenta
e cinco por cento dos votos válidos, será eleito o Pastor-Vereador José Olavo
Pinté. Ruslander e Grace disputarão vagas na vereança, ambos com sucesso
garantido. Para a honra e glória de quem?
É promessa do futuro prefeito aos irmãos de fé e
correligionários a contratação de Luan Santana para abrilhantar a festa.
A escola Sarneyziana é eficiente. Os irmãos Pinté
sabem disso!
___________
Nota da
autora:
Tenho
convicção de que a fé em Deus independe de igrejas, padres e pastores.
Demonstro profundo respeito por todos os credos, apesar de não professar
nenhum. Minha fé é solitária e sou feliz assim. Sentir asco pelos que enganam
pessoas incautas, como é prática atual no país, honestamente, é o mínimo que
posso sentir. São de uma enorme canalhice as mesclagens de fé com política. No
meu entender, e no entender dos que se dispuserem a pensar, essas fusões abrem
caminhos para crimes hediondos. Tão hediondos quanto o abandono de idosos, o
trabalho escravo, a pedofilia, o preconceito de gênero ou cor, e todos os atos
que atingem de morte ou mancham a dignidade de seres humanos indefesos ou em
minoria.
Aos meus
leitores, peço: entendam assim!
Orelha
Muito lisonjeada eu fico, ao ser agraciada, pela autora Leila
Jalul, para rabiscar algumas linhas para as orelhas de seu novo livro de
contos. Leila Jalul é um furacão para escrever e todo ano nos brinda com mais
um livro sempre cativante, engraçado na medida certa, recheado de ironias e
críticas sutis à mediocridade que impera em nossa sociedade acomodada,
preguiçosa nas leituras e que só gosta de viver dando jeitinho nas coisas. É
praticamente esta sociedade, dividida entre espertalhões e povo incauto que se
deixa manipular tão fácil, que temos retratada nos deliciosos contos de Leila,
para deleite de um(a) leitor(a) mais ávido por livros que tenham algo de
concreto para apresentar.
Leila Jalul começou escrevendo poemas, publicando seu
primeiro livro de poesias em 1995, intitulado Coisas de Mulher, coisas
comuns, coisas de mim. Anos mais tarde, fez um segundo livro de poesias e enveredou
de “mala e cuia” pelos varadouros da prosa, da qual nunca mais se apartou. Com
uma veia criativa cada vez mais afiada para narrativas curtas, desde suas
primeiras crônicas para os blogs e jornais locais da cidade de Rio Branco, e,
posteriormente, reunidas em livro, intitulado Suindara, publicado em 2007, a
autora nunca mais cessou de escrever lindos contos. Sejam contos sobre o cotidiano
das matas, do interior do Acre ou da Bahia, tudo serve de inspiração e motivo
para suas histórias e causos. Escritora, poeta e artista plástica,
Leila Jalul foi uma das primeiras acreanas a publicar periodicamente uma literatura
de respeito e valor estético e documental em livros isolados. No Acre, somente
Robélia Fernandes de Souza e Francis Mary têm publicado com igual folego
oriundo da verve fecunda e inesgotável de Leila Jalul.
Memórias Andantes é
o segundo livro de contos de Leila Jalul. O primeiro foi o Minhas Vidas Alheias, em 2011. De crônicas já publicou Suindara
- 2007; Das cobras, meu veneno, em
2010 e Luzinete, de 2012. Se considerarmos a pitoresca
obra Luzinete como uma novela, mas se olharmos as histórias
leves e recheadas de humor da última novela da autora como pequenos contos,
arriscaria dizer que Memórias Andantes é a quinta aventura de
Leila no mundo das narrativas curtas e bem humoradas, bem de acordo com o
estilo “livre, leve e solto” desta autora pós-moderna e ousada, com o qual o
Acre nos brindou neste início alvissareiro das letras acreanas no século vinte
e um.
O livro é composto de cerca de dezessete textos. Os que
descrevem as mulheres são de estilo superior e escritos com a sensibilidade e
perspicácia que somente uma mulher teria ao escrever sobre outras mulheres. Os
leitores podem comprovar isto na leitura instigante da narrativa “As meninas de
Renoir” ou ainda em “A casa dos avós traquinas”, em que pude ler o melhor que
já degustei das letras de autoria feminina no Acre em termos de conto. Leila
Jalul sabe tratar das relações de gênero como ninguém, sejam entre pais e filhos,
entre amantes, entre avós e netos, meros vizinhos ou daquelas amizades que transcendem
os tempos. Ela entende da alma humana, principalmente da alma feminina como se
fosse psicóloga, sabe das feridas do coração de toda mulher e do caos que cada
uma de nós vai transformando em flores e perfumes a cada dia de nossa
existência. No mais, é começar a ler, sem demora, mais uma despretensiosa e envolvente
produção desta autora que nasceu para as letras e não nega a fama.
Profª
Drª Margarete Edul Prado de Souza Lopes – Cadeira nº32 da Academia Acreana de Letras.
ESTE É UM BELO LIVRO DE UMA GRANDE ESCRITORA...
ResponderExcluirGrata, muito grata!
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