Maria Tereza Pereira Cardoso
Viagem
Gostaria de pintar o entardecer
Cores azuis rosadas amarelas
Sobre as cores
Com tinta de nanquim
Pintaria a sombra dos morros
Da mata e o rio a correr escuro
Então desenharia um barco
E nele partiria
Em direção ao nada
Devoção
Todos os padres que conheci eram ruins de cama. Todos tensos, afoitos, prepotentes. O dinheiro que me davam era por caridade. Nunca reclamei. Minha mãe ensinou-me assim, e de tanto frequentar confessionários tornei-me devota.
Desespero
I
Dói-me o estômago sem motivo certo. Raiva gestada em tempos imemoriais. Como se voltasse de repente, invasiva, sem pedir licença, se arrastasse por meu corpo, pernas, sexo, veias, inundando tudo. Corazón espinado, língua envenenada. Corto devagarzinho o pulso com o cuidado de quem prepara o alimento para o filho que retorna a casa.
II
Tantas vezes tive vontade de vê-la morta. De ficar livre dela dentro de mim. Arrancá-la a fórceps para que eu emerja e desobstrua minha pele e minha alma. Meus pulmões estão intoxicados de suas lágrimas, de seus pesares. Meu rosto traz escarificações que me impedem esconder minha semelhança com ela. Seu medo, sua fragilidade, o meu grito de pena represado. Quero reduzi-la a feto, negar-lhe a palavra, o balbucio. Rasgar-lhe as roupas e impedir que a menina saia à rua. Vesti-la com calças largas de homem, botas, cheiro de macho, caralho duro. Enforcar-lhe, cortar-lhe o pulso, furar-lhe os olhos, decidir a vida.
A moça e a janela
Tudo ocorreu no dia 23 de janeiro de 1893, me lembro bem. Dia de Santo Ildefonso falecido em Toledo no ano de 667. Os organizadores da festa se preparavam para as comemorações. Missa, fim da novena, batizados, primeiras comunhões, crismas e barraquinhas. Do alto-falante ouviam-se as músicas dedicadas às moças que faziam o futing na pracinha. Foi quando estourou a notícia. Sete presos fugiram da cadeia. Vestiram os uniformes dos guardas e levaram consigo as carabinas. Esconderam-se no mato e por lá ficaram até que um deles conseguisse um carro para levá-los a outro lugar. De boca em boca corriam as notícias. Os fugitivos disseram que se fossem denunciados às autoridades da vila tomariam como refém o representante do povoado, estimado por todos. O reboliço era geral naquele ermo onde até as folhas pareciam quietas. Do casarão silencioso, de pé direito alto e janelas de sacada com treliças, a moça espiava o mundo. Vestia-se de luto após a morte dos pais, costume da época. E assim continuou, anos após anos, com roupas austeras e aquele comedimento. Soube da notícia da rebelião, mas não disse nada. Herdara o silêncio de sua bisavó materna que, como ela, nunca saíra de casa. O mundo desfilava-se diante de sua janela. Dali ficava sabendo que viajantes chegavam ao povoado, quais as moças que pegaram barriga. Ficava sabendo de tudo. Uma mulher da casa a alfabetizara. Lia o que lhe caísse em mãos. Romances, folhetins, jornais antigos. Assim, juntando notícias e histórias, inventava a vida. Um dos foragidos, quando lhe permitiam pagar pena na capina das ruas, dela se enamorou. A moça o recebia faceira. O moço de olhos grandes e negros fora o único a ultrapassar os umbrais de sua vida. Ele era um dos fugitivos. Com uma tristeza que lhe apertava a alma ela sabia que não voltaria a vê-lo. Sem derramar lágrimas trancou-se em seu quarto a olhar tristemente a caixinha de presentes.
Loucos em um sábado qualquer
À tarde, sentados nos bancos da praça, viram os primeiros sinais de chuva. Está leve como a brisa do mar disseram. Estefânia olhava intrigada. Alheia mirava o céu e sentia o silêncio do mar em seus cabelos. Ao anoitecer, sonolentos, deitaram-se nos bancos da praça e dormiram de olhos abertos a acompanhar o movimento dos insetos e se preparar para a chegada dos leões.
Poema triste
Mãos secas
Alma seca
Lábios secos
De onde surgirá
O teu poema?
Ossos
Era sexta-feira. Sentado do lado de fora ele esperava que o homem chegasse. O sol forte o incomodava. Tinha ido sozinho sem avisar a ninguém. Olhava a caixa e os documentos e pensava no pai. O homem chegou abriu o portão e convidou-o a entrar. Era a segunda vez que ia naquele lugar. O homem abriu a lápide, pegou a pá e começou a cavar em silêncio. Logo saíram pedaços de madeira, uma argola de ferro, alguns botões grandes de terno fora de moda. Ele pensou em puxar conversa, falar do tempo ou pedir informações. Não se atrevia. Não havia o que dizer. Exalava um cheiro estranho de mofo.
Puseram tudo no carro. Os ossos em uma bolsa ficaram do lado do passageiro. Então teve vontade de falar. A voz lhe saiu baixinha como a segredar.
— Já sei, não vou correr. Você não gosta. Sabe fico pensando no pouco que conversamos durante todos estes anos. Houve sempre silêncio entre nós. Eu nunca consegui lhe dizer... Você foi sempre tão estranho... Possivelmente em outra circunstância também estaríamos calados.
Chorou baixinho com vergonha do pai.
Devoção
Todos os padres que conheci eram ruins de cama. Todos tensos, afoitos,prepotentes. O dinheiro que me davam era por caridade. Nunca reclamei. Minha mãe ensinou-me assim e, de tanto frequentar confessionários tornei-me
devota.
Dói-me o estômago sem motivo certo. Raiva gestada em tempos imemoriais. Como se voltasse de repente, invasiva, sem pedir licença e se arrastasse por meu corpo, pernas, sexo, veias, inundando tudo. Corazón espinado língua envenenada. Corto devagarzinho o pulso com o cuidado de quem prepara o alimento para o filho que retorna a casa.
Tantas vezes tive vontade de vê-la morta. De ficar livre dela dentro de mim. Arrancá-la a fórceps para que eu emerja e desobstrua minha pele e minha alma. Meus pulmões estão intoxicados de suas lágrimas, de seus pesares. Meu rosto traz escarificações que me impedem esconder minha semelhança com ela. Seu medo, sua fragilidade, o meu grito de pena represado, minha pulsão de morte. Quero reduzi-la a feto, negar-lhe a palavra, o balbucio. Rasgar-lhe as roupas, meus vestidinhos rodados, e impedir que a menina saia à rua. Vesti-la com calças largas de homem, com botas, cheiro de macho, caralho duro. Enforcar-lhe,cortar-lhe o pulso, furar-lhe os olhos, decidir a vida.
Ele chegou do mercado com uma faca embrulhada no jornal. Era para destrinchar o porco, me disse. À noite ouviu-se o grito alucinante e ao amanhecer duas bandas de porco sobre a mesa. Tripas para fazer chouriço, disse. Notei que suas mãos tremiam. É o cansaço, pensei. O dia escurecia e embora o frio da noite se avizinhasse ele suava muito. Só no outro dia ficamos sabendo. O homem foi encontrado enforcado, com a barriga cortada de alto a baixo.
Confissões de viagem
O calor sufocante aumentava o tédio. A vizinha do lado dormia.
Ares de professora primária, pensei. Que idade teria? Gorducha, com roupa de cores fortes e o cabelo preso. Aparentava uns 50 anos.
Hora da parada. O trocador informou categórico:
- Quinze minutos.
A vizinha acordou sobressaltada.
- Eu ronquei, perguntou sem graça.
- Não.
Ela pareceu sentir-se aliviada com a resposta.
Saímos do ônibus. Banheiro, água, sorvete, jornal. Os quinze minutos se arrastavam. Já estávamos parados há vinte e cinco minutos. O tédio aumentava.
Subimos no ônibus. Todos se acomodaram e entraram os passageiros sem passagem. Empurra daqui e dali. Crianças chorando, sacos de aniagem e muito tédio.
Pedaços de conversas. Fico sabendo que o moço era professor de academia. O tédio diminuiu um pouquinho. O moço tinha lindas pernas e não apenas eu as reparei.
- Que pena, disse a vizinha, depois de olhá-lo de cima a baixo. Tão bonito, mas usa brinquinho.
- Você não gosta?
- Não. O meu filho quis usar mas eu não deixei. Coitado, deve ter ficado chateado.
- Eu acho muito charmoso. E gosto também de cabelo comprido, trança, rabo e tudo, não resisti. Essa era, sem dúvida, uma rápida descrição do rapaz.
A vizinha me olhou com um meio sorriso e se apresentou. Descobri então que fomos contemporâneas de colégio interno. Isso há mais ou menos uns quarenta anos atrás. Ela estava voltando à cidade para visitar uns amigos e distanciar-se dos aborrecimentos cotidianos.
- Meu marido aposentou-se, disse tristonha. Se antes não me fazia caso, agora piorou. Trabalhava em um banco. Saia bem cedo e voltava tarde. Nunca me convidou para nada. Sabe de uma coisa, ele tem vergonha de mim. Das duas únicas vezes que nós saímos com os colegas de trabalho dele, ele me disse que eu fosse a um cabeleireiro porque eu estava muito feia.
Fui pega de surpresa, não sabia o que lhe dizer. A tristeza daquela mulher a envelhecera.
- Eu sei que ele sai com mulheres mais jovens. As camisas chegam com cheiros e marcas de batom. Sexo? Não temos vida sexual há tempos. E também, eu acho que ele nunca gostou de fazer sexo comigo. Fazia rapidinho e depois dormia.
- Há quantos anos você está casada?
- Há vinte e oito anos. Minha filha mais velha tem 27. O caçula está com 18.
- Você trabalha? Pergunta boba pensei. Essa mulher lava, passa, cozinha, cuida dos filhos e do crápula do marido.
Eu já estava imaginando um homem barrigudo, grisalho, idiota, saindo com a secretária, fazendo firula para as mulheres mais jovens. Com certeza sua competência sexual entre 0 e 10 seria 1,5. Calçaria 1,5 também, como comentariam as minhas tias mais velhas, associando o tamanho do pé a outras peculiaridades.
- Sou professora primária. É o que me dá algum alento. Há anos trabalho com alfabetização. Quando os meninos eram pequenos eu me dedicava inteiramente a eles. Agora, não precisam mais de mim. Umas amigas, vizinhas de bairro, sabe? Elas não são casadas. Saem todos os finais de semana. Alugam um carro e vão pras noitadas. Dançam, namoram, fazem sexo. Me contam os casos, recebem telefonemas, marcam encontros. Elas me chamaram pra sair. Estou muito nova, ainda tenho as minhas necessidades. Vou acabar saindo com elas.
- Isso mesmo. Aproveite a vida.
- É mesmo. Vou me arrumar, me cuidar um pouco, comprar umas roupas novas. Já falei com o meu marido que se ele continuar saindo cedo e voltando de madrugada, pode ir embora. Eu não quero mais. Basta. Eu pensei que quando ele se aposentasse as coisas iam melhorar. Mas qual o quê. Pioraram ainda mais. Agora ele tem mais tempo pra ficar na rua. Outro dia, chegou em casa e me disse:
- Dadinha, que gatos são estes em cima do sofá?
- Mas, esses gatos sempre estiveram aí? Há anos criamos gatos nesta casa.
Fiquei estupefacta. Diabos, como alguém pode viver assim, infeliz por tantos anos. O idiota nunca olhou em torno de si mesmo. Ficou centrado no seu umbigo e no seu reles 1,5. Tem dedo daquelas malditas freiras nessa história. Também, seguramente, Dadinha nunca foi daquelas que pulavam o muro do colégio para os seus namoricos nos finais de semana. Era o que devia ter feito. Nessa altura eu já estava com um sentimento confuso de pena e raiva. Por sorte o ônibus já estava chegando. E eu apenas lhe disse:
- Saia com as suas amigas. Arranje um namorado, um amante. E lhe disse convicta: dois amantes, é melhor. Seja feliz.
Ela me agradeceu timidamente.
Nos despedimos, não sem antes repararmos no par de pernas morenas que passaram na nossa frente.
Short stories
I
Vou ser sincero com o senhor. Andei vagamundeando por aí. Fui longe, pralém daquelas mantanhas. Corri com o vento. Mesmo assim não deu certo. Achei que ele ficaria pratrás, mas qual o quê. Ele veio junto, não houve como me livrar daquele infeliz. Eu chegava nos lugares e logo ficava sabendo que ele já tinha passado por lá. Caboclo danado. Tinha se escondido no Ausente, lá no chapadão da serra do Espinhaço. No sertão, onde a vida às vezes carece de sentido. Rolou serra abaixo numa noite de muita bebedeira. Uns dizem que foi morte matada. Não acredito não. A mania dele era eu e a cachaça. Não era de arrumar encrencas.
II
O corpo quente, a pele macia e envelhecida. O afeto que transborda mas não aparece nos gestos. As rugas, o cheiro, o silêncio, as linhas e agulhas de tricô e o compasso marcado pelas batidas do relógio. Sobre a mesa o bolo de cenoura e a cesta de frutas. Os anos passam enquanto ela tece. Uma fresta de luz a ilumina. Eu a vejo de longe. Talvez ela saiba que ele não volta mais. Mas ainda assim, ela continua tecendo em silêncio.
III
Me desculpem, na verdade eu não tinha a intenção de falar sobre isso. Não queria incomodar vocês, ou causar algum aborrecimento. Mas fui eu que fiquei na pioral. Ele já se havia comprometido comigo. Eu contava com o dinheiro. Fiz dívidas, gastei adiantado. Sabe como é, né? Quem podia imaginar que ele ia embora assim, de repente. Passou a perna em todos nós. A passagem de ida já estava marcada, só o dia certo é que ele não sabia. Mãe Joana me contou. Parece até que fez tudo de caso pensado. Naquele dia ele levantou cedo, tomou banho, café forte com um pedaço de broa e saiu. Passou pelo bar do Gurinho e tomou uma pinga. Comprou fatiota nova com gravata, meia e sapatos de couro. Caminhou pela orla até as 12 e depois foi almoçar. Chegou assim, nos trinques. Abriu uma garrafa de cidra, pôs um disco de Cauby na vitrola e voltou a sair. Só hoje vimos nos jornais que ele tinha deixado um bilhete sobre a mesinha da sala. Ele sempre me falou que o seu maior sonho era voar.
IV
O som das panelas, da água saindo da torneira, do vozerio das mulheres. Receitas trocadas. O cheiro da comida, as brincadeiras das crianças pulando debaixo da chuva fininha. O homem da cobra vendeu pomadas e beberagens na praça. Disse que andou pelo mundo. Muitos viajaram com ele, olhos arregalados. Benandantes imaginários foram do Oiapoque ao Chuí, atravessaram o oceano, cruzaram cordilheiras ao som da voz do ilusionista. Os meninos voltaram pra casa. Cavaram um poço para as tartarugas, subiram na árvore, caçaram uma lagarta, enquanto as mulheres continuaram a falar. As vozes e os cheiros tornaram-se cada vez mais suaves. A tarde terminou calma naquele domingo chuvoso.
CONTOS
Maria Tereza Pereira Cardoso
A mala e a vida
Parada diante da vitrine ela a olhava. Justinha, azul, com detalhes no cós e nos bolsos. O pano macio, cheiroso. Cheiro de coisa nova, de supresa.
Surpresa mesmo teria o marido se soubesse que ela gastou quase todo o salário naquele pedaço de pano.
Já vinha urdindo o plano há dias. Acordaria cedo na terça-feira, prepararia o café para o marido e para os filhos e tomaria o ônibus para a cidade.
Ia segura como quem comete um crime premeditado. Pensou na viagem a Aimorés à casa dos pais. Pensou na roupa para lavar, no pedido da menina:
- mãe, me dá uma boneca de presente? O marido bem que estava precisando de uma camisa nova.
Seguia os seus passos meio a cegas. E eles eram determinados como se soubessem com certeza aonde ir, como se não tivessem dúvidas e nem culpa.
A cabeça rodava um pouco como quando sentia o cheiro suave de margaridas, ou como quando o marido a beijava na boca. Já fazia tanto tempo...
O vendedor a atendeu solícito.
Ela se sentiu envergonhada de se despir na loja, atrás daquele pano que não parecia capaz de protegê-la do mundo. Agora já era tarde pensou ao sentir a calça apertando suas coxas, suavemente. Melhor ainda do que havia imaginado.
Deixou-se ficar ali, saboreando a sua coragem. De lá podia ouvir a respiração do vendedor do outro lado. Tão cheio de delicadezas:
- A senhora deseja experimentar outro número?
- Não, obrigada. Esse me caiu como uma luva.
Sentia-se com demasiadas coragens. Ria baixinho..
Saiu da loja, andou pelo quarteirão sem rumo. O que diria em casa.
Tomou o ônibus. As ruas esburacadas por causa das chuvas, o ônibus em solavancos como o seu coração.
No dia seguinte viajariam de trem para Aimorés.
Arrumaram as malas. Ela não diria nada, já estava decidido.
Acordaram cedo.
Estação cheia, cheiro de suor. Os meninos correndo alegres com a novidade. E a mala lá no canto esperava por um lugar.
Viagem longa, cheiro de fuligem. Cansaço.
A família os esperava. A mãe tinha feito quitanda. O pai contente mostrava os presentes aos meninos. Carrinho de boi e uma mobília de quarto. Tudo de madeira cheirosa, pequenininho, feito por ele mesmo. Ela se lembrou com alegria dos seus presentes de criança. O pai sempre lhe fazia surpresas.
Religioso, crente, sem afagos. Mas tão carinho o pai. Se ele soubesse do seu segredo no fundo da mala. Com certeza ia achar que ela tinha perdido a decência.
- mulheres não usam calça comprida, ainda mais as casadas, afirmara.
A mãe concordava solícita:
- não fique rindo menina, seu pai vai se aborrecer.
Adulta, sua alegria tinha que ser nos conformes. Alegria com as gracinhas das crianças, com as promoções do marido, com os casos contados na igreja e com a prédica do pastor.
Não queria ser descoberta. A mala era sua, o marido não ia olhar.
Em casa tinha um criado-mudo, onde guardava as miudezas. Botões coloridos, dois cartões que o marido lhe enviara quando fora trabalhar em São Paulo, uma caixinha de brincos, recortes de histórias bonitas da revista que a vizinha lhe emprestara. Era garantido, ninguém mexia.
Na casa da mãe rezaram juntos. Os irmãos, as cunhadas de vestidos compridos. Roupas sem colorido, sem forma.
Vieram os parentes mais próximos, a tia de Montes Claros. Todos alegres, de alegrias verdadeiras, às claras. E a mala lá, reservada.
No dia da partida a família acompanhou-os até a estação.
Compraram água, sorvete para os meninos. Fazia muito calor.
Poltronas apertadas. O marido sonolento não lhe fazia caso.
As árvores corriam. Foi reconhecendo os lugares, os vilarejos, as ruas e por fim a estação.
Muitos embrulhos para carregar, muito barulho, empurrões, outros trens chegando. A estação lotada.
- cadê os meninos?
Ela ficou cuidando das coisas miúdas e dos pequenos. O marido foi atrás das malas. Teve que contratar um carregador e um táxi. De ônibus seria impossível chegar em casa com tudo o que traziam.
A vizinha solícita tinha cuidado da casa, regado as plantas. Ajudou a desembarcar as coisas e a levar tudo para dentro. Ela a tudo assistindo, no distanciado do tempo.
Muitas perguntas:
- Foram bem de viagem?
- Encontraram todos com saúde?
O coração batendo, o sangue queria jorrar fora do corpo. O corpo doendo de cansaço.
- O que foi Marta?, você está tão pálida!
Vontade de chorar contida:
- Cadê a mala?
O marido contou as bolsas e malas. A dela tinha ficado na estação.
(09-01-96)
Romualdo,
a mulher, a amante e o texto
Noite quente, papéis por toda parte, Romualdo sentia-se perdido entre suas anotações. Contas a pagar, café frio e aquele barulho que não parava nunca.
A rua em obras. A britadeira trabalhava há horas. O barulho irritante tirava-lhe a concentração. O texto deveria ser entregue na quinta-feira, lhe avisara o editor.
Mais um cigarro, mais uma xícara de café frio.
- Afinal, aonde tinha ido a empregada? Logo cedo ela lhe pedira dinheiro para fazer compras. Já passava das 10.
A mulher viajara na segunda, bem cedo. Fora para Petrópolis, tratar de assuntos profissionais, como diria ela. Tinha sido categórica.
- Você se cuide. Isso não é uma simbiose benzinho mas um matrimônio. E dos mais periclitantes.
E lá ficara ele com a britadeira, a empregada, o café frio e o maldito texto para quinta-feira.
Barulho na porta.
- Dona Carmem? Finalmente, a senhora chegou.
- Desculpe-me seu Romualdo, mas o trânsito está uma loucura. E o calor, nem se fala. A cidade está repleta de poeira. O prefeito está parecendo uma topeira, tem buraco por todo lado.
Como falava aquela mulher.
- A senhora trouxe o maço de cigarro que eu pedi?
- Aqui está. Era sem filtro, não é?
Vida idiota aquela. O olhar vazio sobre a mesa do escritório: anotações por toda a parte. Idéias dispersas, espalhadas como os papéis.
O assunto do texto era complexo, mas esse não era o problema. O problema mesmo era a construção, do texto, da casa lá no Engenho de Dentro. O problema era a vida. Em matéria de construção ele nunca tinha sido mesmo muito bom. Até o seu casamento.
O prazo esgotava-se e Romualdo havia escrito apenas uma página. É claro que o editor não o perdoaria por isso. Na verdade, ele também não se perdoaria. Tantos anos de trabalho, tantos artigos e textos publicados.
Romualdo era jornalista conceituado. Desses que tem espaço semanal, que recebem carta dos leitores, que são convidados para dar entrevista. E, no entanto, não conseguia ter dinheiro para terminar a construção da casa e parar de pagar aluguel. E, mais sério ainda, estava em plena crise. A pena secara, a máquina quebrara e o computado entrara em pane. Enfim, nada de texto.
Na quinta, logo cedo, o telefone tocou, antes da empregada acordar e das britadeiras começarem o seu estrago. Que horas seriam aquela? Seis horas da manhã?
- Pois não? Fazia silêncio e a manhã ainda fresca tinha um cheiro agradável.
- Desculpe te acordar Romualdo mas eu estava morta de saudade.
- Não acredito. Você teve coragem de ligar aqui pra casa? E a essa hora? E se a minha mulher tivesse atendido?
- Hei Romu, eu acho que você está com a doença do pânico. Você se esqueceu que me disse que ela ia viajar toda a semana? Além do que, se ela atendesse eu inventaria qualquer coisa, diria que era engano, ou mesmo, desligaria o telefone. O que é que está havendo Romualdo? Você ainda não conseguiu escrever o texto. Vem aqui pra casa, traz o seu material, eu te prometo um café quente e uma boa massagem. Aposto que isso vai ajudar.
Ah, maldita tentação. Ela era a secretária do editor. Encontravam-se a miúdo, nos jardins frente ao jornal, nos cafés, antes de fechar a edição. De manhã cedinho, antes de abrir a redação. Ninguém sabia. Nem o Carneiro.
- Compadre, como é que você agüenta aquela mulher te olhando todo o tempo? Que mulherão. Eu já teria investido. Será que você não vê a bola que ela te dá?
- Deixa disso Carneiro. É imaginação sua.
Mal sabia ele que o caso já se arrastava por quase dois anos.
Ela era o seu texto preferido. O mais bem construído, o que mais prazer lhe dava. Aí, as orações cadenciavam, os parágrafos bonitos deslizavam leves, as pontuações certas, as idéias fluíam, borbulhavam e ele conhecia bem o léxico. Só tinha um pequeno porém, o marido. Eles não tinham muito tempo, nem sossego para nada. Naquela manhã excepcional os anjos tinham dito amém. Todos viajaram.
Levantou-se, tomou uma ducha e um pouco de café e caminhou em direção ao ponto de ônibus. Na pasta levava o material para consulta e o texto inacabado.
Desceu em Laranjeiras. O ônibus o deixou frente ao prédio. Tomou as precauções necessárias para entrar. Lembrou-se de outros tempos, quando os cuidados com a segurança tinham uma função política, mais arriscada e menos saborosa. Os riscos não eram poucos, o escândalo seria enorme. O marido também trabalhava no jornal.
Ficaria no apartamento todo o dia. Ana tirara folga e o ajudaria com as correções. Às vezes ela fazia sugestões sobre o texto. Em outras ocasiões o trabalho tinha sido feito a quatro mãos. Como tocar piano. E que piano. Afinadinho...
Ana, em um canto da sala, olhava-o. Romualdo trabalhou todo o dia.
À tardinha deitou-se na rede, na varanda do apartamento. Uma chuvinha fina de veranico trouxe o cheiro de maresia e de terra molhada. Os pés de Ana junto aos seus. Sonhou que era menino e soltava papagaio na praia e que o vento forte o fazia sentir-se feliz.
(22/06/96)
Clara
Uma pequena palavra foi anotada no canto do livro. Ela não alcançou lê-la, embora procurasse muito com os olhos. Lá estava o juízo final.
A enfermeira indicou-lhe o caminho:
- A senhora pode entrar. Logo iremos acompanhá-la até o seu quarto.
A filha procurava acalmá-la.
- Não se preocupe mãe. Você ficará bem, será bem cuidada. E nós viremos visitá-la todas as semanas.
Todas as semanas? Muitas semanas? Não conseguia descobrir o destino que lhe estaria reservado naquele edifício branco. Apenas observara a nuvem negra que perambulava em torno da filha e se instalara em seus olhos grandes.
Clara já não queria, não podia falar. As palavras nem chegavam a serem pensadas ou balbuciadas. Não tamborilavam em sua cabeça. Mas o silêncio não era só sua condição momentânea, era desejo do nada.
Gostaria de ter dito à Sarah que regasse suas plantas, que cuidasse da casa. Gostaria de contar a ela ...
O que sentia era um enorme torpor. O silêncio invadira tudo. Entrara há muitos anos com a friagem, pelos pés.
Sua mãe lhe dizia:
- “Vá se agasalhar, menina. Ponha uma meia de lã. Essa friagem vai te adoecer”.
Depois a friagem entrou no seu sexo, no seu estômago, nos ouvidos. Tudo em silêncio. Como o frio em dia de cerração.
Silêncio com cheiro, ousou rir baixinho. Só ela sabia como o silêncio às vezes tem cheiro de margaridas e zumbido de abelha.
Uma vez lhe disseram “o silêncio da igreja é sagrado”. Essa frase provocou-lhe uma pequena vertigem. Naquela época ela já sabia que isso não era coisa que se dissesse em público.
- “Que menina esquisita, essa filha da dona Gertrudes. Você já reparou que ela fica cheirando as coisas? Outro dia eu a vi brincando sozinha no adro. Coitadinha. Essa não arranja marido”. Ela ouvira essa conversa de relance, rápida como um pé de vento.
Outros ventos vieram. Alguns ventinhos mansos e outros vendavais. Redemoinho com cheiro forte só mesmo quando ela conheceu Oduvaldo. Silenciosamente tiveram uma filha. E ela continuou assim, quase sem falar.
Ele parecia entendê-la. Saía cedo para trabalhar. Às vezes também saía à noite e voltava de madrugada. Ele não tinha do que reclamar. Sua roupa estava sempre limpa e cheirosa. A comida era servida à hora. De vez em quando ela sentia o seu cheiro no meio da noite. Então fingia dormir, embora o corpo de homem roçasse no dela. Com o passar do tempo ela perdera por completo a necessidade das palavras e, então, ele deixou de tocá-la.
Sua irmã fazia as compras da casa e ela, com o olhar, organizava mais ou menos a vida.
Chegou a enfermeira.
- O seu apartamento é o 254. A senhora ficará bem. Pode colocar a camisola. Sua filha ajuda, não é? O apartamento é confortável e logo aqui ao lado fica o banheiro. Quando a senhora já estiver melhor, daremos uns passeios pelo jardim.
Era bom ficar assim, vagando, sozinha, vendo as coisas. O vôo dos mosquitos, o cheiro da tarde. Clara aprendera a distinguir as horas pelo cheiro. Podia fechar os olhos e ir reconhecendo o dia.
Na noite escura, quando todos dormiam, Clara escutava. Ao longe um vago latido de cachorro, o choro amargo da vizinha, risadas dos homens no bar. Às vezes ia olhar sua criança no berço. Tão pequenina. Herdaria o seu silêncio?
Tinha trazido agulha e lã para o hospital. Assim, poderia ficar alheia por mais tempo.
- Dona Clara, a senhora parece estar muito bem disposta esta manhã. Aqui estão os seus remédios.
Cápsulas coloridas que não cheiravam a nada conhecido. Tudo estranho. O quarto branco, vazio, sem suas coisas. As pessoas tratavam-na como se fosse criança e nada entendesse. Queriam vesti-la, desvesti-la.
A enfermeira voltou ao quarto e avisou:
- Amanhã virei buscá-la cedinho para a primeira sessão de terapia. Mais tarde o doutor vai passar aqui para explicar para a senhora.
Veio o médico e ela não o escutou. Ele gesticulava e sua boca se movia ao mesmo tempo que um dos olhos parecia querer sair da órbita.
Aquela friagem de outros tempos, que trouxera o seu silêncio, se estendia por todo o seu corpo.
Veio outra vez a enfermeira. Clara tomou os comprimidos e, sonolenta, foi levada para um outro quarto. Os braços pesados, já não podia mover um músculo. Abriu os olhos. Cama, aparelhos, balão de oxigênio, um oratório. A janela entreaberta, entrava uma nesga do dia.
Ela já dormia quando a enfermeira afivelou os cintos e a descarga percorreu seu corpo. Não soube de nada. Nem do cheiro, nem do vômito incontido, nem que Oduvaldo chorava do lado de fora do hospital.
Vários dias, semanas, eternas.
- A senhora vai ficar boa, dona Clara parecia dizer o médico com gestos seguros.
Ela continuava a não ouvi-lo. E, com as náuseas, a sonolência e as contínuas idas ao quarto branco, os sons foram se afastando ainda mais. O silêncio tornou-se um ruído pesado, disforme.
Uma manhã a colocaram ao sol, como um vaso de flores. Outras mulheres vieram. Todas faziam o mesmo. Teciam. O soar das agulhas parecia anunciar uma batalha. O frio gelava os ossos de Clara. Pouco a pouco seus movimentos foram tornando-se mais lentos até que, por fim, as agulhas caíram ao chão.
Foi colocada às pressas em uma banheira de água morna. As faces crispadas. Enfermeiras, médicos e o silêncio mais profundo. Só ficaram as agulhas: tec, tec, tec, tec. A água foi ficando vermelha, da cor das rosas do jardim de sua avó. Bonitas, perfumadas.
Seus olhos se voltaram para cima e então pôde ver que do oratório, de onde estátuas rígidas olhavam para a terra, um anjo ousou um vôo rasante sobre sua cabeça. Clara então sorriu.
17/07/96
As Palavras e as pequenas coisas
Acordei cedo, tomei o café da manhã, fiz meus exercícios matinais e comecei a executar o plano. Papéis de lembretes com caneta azul para as plantas. Begônia, chefrera, palma, avenca, margarida, violeta, aonde buscar o resto? Preciso nomear tudo, do contrário não tenho como me referir a elas. Não estou louca, não é isso. Só estou com uma pequena e, espero, passageira ausência de memória. Não se preocupem. Não tive nenhum acidente. Mas, aí vamos. Outras cores, outros papéis e outros objetos. Lupa, caneta, borracha, lápis. O problema acontece quando quero me referir às coisas pequenas. Computador, teclado, carro, estante, geladeira, isso eu não esqueço. O que fazer com os pensamentos, as idéias, os conceitos? Claro!! Para isso servem os dicionários. Vou anotar as palavras. Vou deixá-las bem a vista. Assim, quando a Marta do 401 vier me perguntar sobre o livro que eu tinha sugerido um outro dia para ela ler, eu a conduzo ao escritório e aí estarei a salvo. Lá está: As palavras e as coisas, do Foucault. Palavras sacralizadas, odiadas, inventadas, esboçadas, sussurradas. Um universo imerso nas palavras. O que faz um ser humano quando essas lhe faltam? De qualquer forma, a idéia do escritório como o lugar das palavras soa bem e dá até para ir levando com um certo ar intelectual até que eu consiga recuperá-las do fundo do baú? E se elas nunca mais voltarem? Então serei a única pessoa a se enforcar em lençóis aleatoriamente grafados. Caso único e triste na história. Na lápide os seguintes dizeres: aqui jaz Ana Gonçalves que se matou por haver perdido a memória das palavras. Descanse em paz!
Antes que isso aconteça vou acender uma vela para Mnemosine e outra para São Assis. Não, não é o dos pássaros é aquele, o outro, o da Capitu.
TARDE DE PRIMAVERA
Na verdade, ainda não são as "vésperas". Hora terrível pela música e o alto falante do padre e mágica pelas cores e odores que invadem a casa. A situação é mais corriqueira. São 14:30 e eu estou aqui esperando a empregada chegar. Não sei se saio para ir ao mercado, se vou ao correio, se troco de empregada. Acho que vivo esperando por elas. A anterior era alcoólatra, essa só vem quando quer. Enquanto isso, faço anotações do livro de viagens do reverendo Robert Walsh, que andou por estas plagas nos idos de 1828. Liguei mais cedo e para falar com a mãe da Rita - esqueci de te dizer que esse é o nome da moça - ela me assegurou que eu não ficaria na mão. A resposta me trouxe um certo alívio, embora eu desconfiasse desde o princípio que não havia nada de verdade no que a dona Maria havia dito. Dona Maria, seu Vicente, Everaldo, Sidney, eu já sei o nome de todos. Conheço a história da família, dos que vivem aqui e dos que moram em São Paulo. Sei do caráter e da falta de caráter de cada um, das doenças, dos batizados e casamentos. E tudo isso porque cada vez eu falo com um deles, pedindo para ela vir. Ah mãe, tudo por sua culpa! Eu devia ter feito como as outras que mesmo com as suas proibições entraram na cozinha e fizeram desde cedo os seus experimentos. Barulhos no portão. Meu Deus, ela chegou. "Ana, a Rita apareceu". Não há nenhuma ironia nisso, não me digam o contrário pois não acredito! "Ás vezes eu apronto, sabe. Eu gosto de sair escondido. Eu mesmo fico rindo de mim". "Fui lá em Resende Costa", "Não contei para ninguém". Eu escuto isso e acho simpático. Gosto do jeito dela. Imagine, sair assim, no meio da tarde. Além do que, ela cozinha como ninguém e tem um humor ótimo. É delicada, diz que é melhor fazer as comidas no dia para elas ficarem fresquinhas. Fala que o chão ficou levinho, que está tudo com cherozinho. E eu que não posso com um diminutivo, caio mesmo. Como eu ia te contando, ela chegou. Mas chegou tarde. Depois do passeio, é claro. Eu a dispensei, hoje não dá mais. Ela vem amanhã, disse que bem cedinho. Você acredita? O problema é que eu acredito. Ela quase sempre vem. O negócio é que não dá para ter certeza absoluta, sobretudo da hora. Quando ela chega aqui em casa traz uma lufada de ar. Talvez seja a minha herança de sinhazinha. Aos poucos o ar vai ficando morno e começa a cheirar a comida gostosa. Os lençóis ficam deliciosos, macios. E eu me sinto embalada. É assim que eu fico dependente delas. Acho que vou voltar para a terapia.
Minha vida de cachorro
Na verdade, não fiquei nada triste quando ele partiu. Não sei ainda se fui impiedosa, se podia ter agüentado um pouco mais aquela situação. Afinal, ele era tão carinhoso e até que nos dávamos bem.
Ao mesmo tempo, eu não podia mais com os seus momentos de destempero, com seu olhar deprimido, com suas necessidades básicas e intransferíveis. Também, ninguém é de ferro e aquilo me dava nos nervos.
Meus hábitos já estavam sendo alterados por sua presença. Até as minhas plantas, silenciosas e já ressentidas pelo meu descaso, se davam conta do meu desassossego.
Quando o conheceu meu amigo apenas disse:
- Puxa, além da empregada agora você tem um cachorro para mandar em você? Pensei, isso lá é coisa que se fale com alguém já tão esgotada pelo trabalho que o outro me dava?
No dia seguinte telefonei para uma amiga. Estávamos conversando um assunto sério quando, de repente, fui surpreendida com um grito do outro lado da linha. Estremeci. Não parecia ser comigo. Além do mais, por que ela gritaria comigo? Pensei em choque elétrico, assalto, escapamento de gás e até na possibilidade do filho dela ter-se machucado. Fiquei muito preocupada. Por um momento, quis sair correndo e ir socorrê-la. Então ela me contou o que ocorrera. Seu sofá havia sido devorado por dentes ferozes.
Meu Deus, ela sofria do mesmo mal que eu. Seria este um destino comum? Despedi-me solidária e fui olhar o meu próprio sofá. Sujo, imundo, cheio de pelos e marcas de patas.
A empregada, contrariada, olhava de esguelha para o assoalho, observando sinais até então desconhecidos em minha casa. Eu já não agüentava mais. E olha que já era a hora de levá-lo para fazer xixi e cocô, lá do outro lado da rua, no canteiro entre as calçadas. Que inferno.
Meu braço doía de tanto puxar a coleira e o meu humor tornava-se aziago.
- Vamos lindinho, faz logo esse xixi que eu tenho que trabalhar. Os jatos escorriam em todos os postes, arbustos, passeios mas, até então, o danado ainda estava escolhendo com calma o matinho mais apropriado para terminar o meu sofrimento. Eu puxava daqui, puxava dali, tentava demonstrar alguma paciência com aquele ritual canino e nada do cocô sair. Por fim, voltamos para casa.
Tirar a coleira, dar água, dar ração. Por que você não come nada, em? Quem sabe umas vitaminas? Tentei dar-lhe algumas uvas deliciosas que eu havia trazido do mercado. Nada. E lá ia ele atrás do lixo do banheiro.
- Larga esse papel higiênico, seu idiota.
O tempo passava e outra vez já era hora do xixi e do cocô. Quatro vezes ao dia [!!!].
Minhas plantas em silêncio observavam a minha tragédia. Nunca me deram problemas, a não ser aquele bonsai que resolveu, de pura pirraça, secar inteirinho.
No quarto dia, ocorreu-me uma idéia maravilhosa. Comprei um maço de cigarro e dei-o à empregada a troco de levar aquele monstro ao matinho. Senti-me inteligente e até ardilosa.
Só então tomei uma resolução. No outro dia, o monstro seria, definitivamente, retirado de minha casa.
- Calma, sensatez e pé no chão ajudam a viver, costumava dizer o meu pai. Pena que eu herdei tão pouco dessas qualidades. Aliás, a bem da verdade, ele também carecia daquela última.
Enquanto a empregada acompanhava o cão, a terceira vez naquele dia, eu fazia a conta dos prejuízos: cigarros, veterinária, vacinas. Ah, eu ia me esquecendo do vermífugo.
Ao mesmo tempo em que recolhia tapetes e colchas para lavar [como tirar estas manchas horríveis, vai ficar tudo encardido], arrumei suas bagagens.
No outro dia, à tardinha ele foi embora.
Foi então que o silêncio voltou à minha casa. Nada mais de gritos, correrias, coleiras, lixos, xixis e cocôs.
Só as plantas, minhas caras companheiras momentâneas de infortúnio, já fartas dos intempestivos jatos de urina daquele cãozinho, compreendiam minha alegria.
Resultado: dois a um. Só quero ver agora quem vai ousar dizer que aquele bicho mandava em mim.
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