sábado, 16 de julho de 2011

XAVIER PLACER





XAVIER PLACER


ESCRITO NUM VOLANTE




O QUE VOCÊ AMA
em alguma parte fica e vivifica
não implode, revem de-longe
tempo puro

O QUE VOCÊ AMA
vê em caixa alta com todas as letras
partilha ou passa ao papel
seu bem de raiz

O QUE VOCÊ AMA
ninguém te tira


CERTA MADRUGADA




ruídos fortes me acordaram. Bruxas? Quadros
caindo? Jarras rompendo?
— Vai ver, Baltasar.
Sono, frio e dois dedos de medo me tolhiam entre
lençóis. Fui; eram os cacos, as cavilhas da bela
língua portuguesa —
alhures — quejando — adrede — assás —
quão — quiçá — comezinho — somenos —
debalde — entrementes — cerce — tampouco
— outrossim — amiúde

espatifados por todo o carpete verde da biblioteca.



[Miniprosas. Niterói, Letras fluminenses, 1991]

O geômetra



A Flávio & Celio (Moreira Placer)


Grande é a noite! Cabem nela
Nebulosas cabe o mar
Ecos coitos e aquela
Desrazão, a do sonhar
A mim, que o caos habitava
Mais me apraz a claridade:
Caçador, ao ombro a aljava
Avançar com agilidade
Colho de pronto evidências
Plurais. Porém as essências
Distingo-as em seu lugar
Colho palavras ao ouvido
Separo cada sentido
Oh volúpia de pensar!

In O geômetra. Niterói: Letras fluminenses, 1992, p. 9


Palavras

Voz, vocábulo, verbo – palavras! Palavras, criaturas vivas. Vivíssimas criaturas. Como as flores, os pássaros, os homens.

Palavras – umas toscas, obscuras, escravas nascidas para os humildes ofícios, dóceis a um gesto; outras, orgulhosas, esbeltas, sugestivas – jovens aloucadas que se esquivam quando lhes acenamos e vêm quando as quiséramos distantes... Aquelas têm o ar nostálgico do adeus, do aperto de mão nas despedidas; estas, a gravidade das sentenças – palavras dos lábios de Ariel, aladas palavras, e pragas de Calibã, com pés de chumbo.

E as que arrebataram ao arco-íris as mais belas tintas? Não se criaram no chão limoso das cavernas tantas outras? Odores esquisitos evolam-se das sílabas de algumas; algumas são cerradas, enxutas, solteironas.

Quantas são feitas de aurora e mel, em oposição a est’outras – negras, espessas, duras, de granito. Amoráveis palavras que têm o polimento dos seixos; e facetadas, espelhantes – cristais partindo-se ou risadas felizes – plásticas e móveis palavras, flamas batidas pelo vento – ardentes e inquietas. As que dizem demais e as que não dizem nada; as companheiras da solidão, dos altos pensamentos, das confissões patéticas. E as que gritam, que rugem e precipitam no céu ou levam ao abismo!


In O navegador solitário. Rio de Janeiro: Margem, 1956, p. 9-10.




A Hora da Criação
A hora da criação é uma hora de amor.
A alma, em êxtase, sobreleva-se a si mesma,
e arrebata no arranco todas as faculdades, todas
as potências. Brilha a luz nos subterrâneos, a luz
explode. É a hora do Espírito.
Mas por uma hora de amor, há muitas horas
de dor.
Sopra o simum, apaga-se na areia ardente o
desespero do poeta. Desce a treva, emudecem as
fontes, e a Musa se ausenta. Longo exílio. É a hora
da Vigília.
E ei-lo a errar, entre os homens, no mundo,
sob o céu sem astros e a terra inóspita, em triste
estado de realidade, o Visionário!
(O Navegador Solitário)




Poemas
Rosas na chuva. Rosas
no vendaval da tarde
A vermelhar os ramos
rostos em seu capuz
Oito, e que reais: rosas
Noivas do efêmero, asas
num ocaso do mundo
golpeadas de frio
Ou cúmplices do eterno?
em outra solidão, mansão do espaço
sempre e ainda, rubras rosas
(Memorial)




Xavier Placer
Cântico de Alegria Intelectual
Somos tropelados,
Cegados no tempo,
De ruídos e fúria.
Mas grato uma vez
Ter vindo e vagar
Vivos sob o Sol.
Cativos nos lindes
Da Cidade, o outro
Dom maior é dado:
Convívio e palavra.
E onde cresce a água
Madurece o trigo.
Para isto somos:
Ousar e sonhar.
Para isto estamos:
Conhecer e amar.
Para isto viemos:
AMAR E MORRER.
(Mosaico)




Poemas
Pássarosurpresa
Um pássaro, talvez foragido de doméstico
viveiro, ganhou a praia na clara manhã.
Na clara manhã, na praia, aqueles que
levantavam castelos na areia e os que liam jornais à
sombra das barracas e os voluptuosos da ardência
perderam o espetáculo.
Súbito, todos os que patinhavam na escassa
margem de água até onde dá pé, foram candidatos
à posse do pássaro aloucado, que ziguezagueou
sobre cabeça e braços num vôo rasante...
E veio.
E veio cair.
E veio cair nas mãos de um namorado,
que o entregou sorrindo à namorada, de olhos
espantadíssimos.
(Silêncio adentro)






Há o Silêncio dos Amantes
Há o silêncio dos amantes.
Há o silêncio do deserto.
Ainda o extremo silêncio
da palavra – todo instante
defasada no tráfico da fala,
no ruído e pântano da praça.
Silêncio de antes de o tempo
por dentro roer cada fonema,
audível na hora acesa do poema.
(SIM)




Poemas
Ver e Sentir a Chuva
Ver
e sentir a chuva!
Dilatar as narinas pro cheiro da terra e se
molhar...
O tolo-inocente, niguém o segura, corre pro
meio dela no terreiro,
Nu – grita, grita, os cabelos escorrendo nos
olhos, na cara, a água escorrendo pelo corpo.
Quando estoura o trovão, fraterno dos
elementos, berra e gargalha.
Assim que o aguaceiro acabar azulará de
horizonte a horizonte; e no ar lavado,
o ARCO-ÍRIS.
(Clareira)




...Porque para esse recalcitrante vivente,
o homem, a poesia importa pouco.
Mas está-aí. E assume muitas formas, silentes,
insidiosas, submarinas.
A poesia sabe-se destino, a poesia
sabe-se a íntima do ser, e lá
– serva não, grande senhora –
dobra a alva túnica-sem-costura e ajoelha todas as
horas.
Aqui a poesia empresta aos mármores a
matéria de seu rosto.
(Sondagem)
Porque o amor não existe
seria algo finito e acabado, eles o sabem
O que existe é o amar: edificar
a cada instante ir recriando o outro
O que existe é o amar: feito do barro
e sopro da paixão, como é tangível!
Dois na aparência
dois para melhor ser-um
tal no reinar outrora




em que eram todas as coisas e nenhuma
O que existe é o amar: vigilar
noite adentro pela madrugada
alento insuflar a um outro
que quer render-se já
O que existe é o amar
Amar? – o desafio à morte
(O Jovem Par)
Fantástico quanto o sonho, o nítido real –
Quando o dia é já menos dia
e o Sol ausente rosêa o céu de baixo a alto
– um bateau mouche passa ao longe. Não tão
longe
que não se distingam lanternas coloridas a oscilar
gentes, alegres navegantes garrafas
gargalhadas
Imagina a bojuda nau dos insensatos!
E de um ( ébrio? ) gesticulando pro vinoso mar
esta recitação de pierrô ouvi:




Si es preciso reír
quando el alma llora
Si es preciso llorar
quando el alma ríe
Vamos reír y llorar
mi alma ahora
¡ que un muerto corazón ya nada es...pe...ra !
(O Mar. O Mar)
Vir-à-Luz do Poema
Que queria? Que dizia?
Belo porque não floriu?
Intenso porque tão breve?
Sinto-o bater as asas...




Que dizia? Que queria?
Era amor? Amargo gesto?
Mal lhe toquei, oh reverso
ira e rima no dilema!
Que queria? Que dizia?
Recolhê-lo? Persegui-lo?
Em alma e corpo que seja
(esperarei) o poema
(Flor-Ação)
A relva
mais qualquer pássaro cantor
compunham a panorâmica do dia.
De-longe chegavam as palavras, as
palavras mesmo eram




imagens, tudo se consumava poema, que
o jovem poeta ia datilografando feito um
seminarista em estado-de-graça.
( Tocou o telefone ).
Ei-lo em estado-de realidade. O pássaro
voou! E o verde,
que desconforto de ver que a relva verde não é
relva,
não é relva nem é verde.
(Mosaico)
O Dicionário
Penetra surdamente no reino
das palavras.
CDA: Procura da Poesia.




É outro universo!
Está tudo no grosso livro.
Também a poesia, toda a poesia.
Por etimologia, abonações,
por entre agressivos prosaismos,
nelea poesia se entranhou.
Silente,
plena de natural rubor,
em ordenadas colunas por página,
basta deixar fugir a caça, esquecer
o que de utilitário se ia buscando.
E surpreendê-la!
A poesia que se entrega.
(Cartuns)



... Porque para esse recalcitrante vivente, o homem,

a poesia importa pouco.

Mas está-aí. E assume muitas formas, silentes,

insidiosas, submarinas.

A poesia sabe-se destino, a poesia

sabe-se a íntima do ser, e lá

- seva não, grande senhora –

dobra a alva túnica-sem-costura e ajoelha todas as horas.

Aqui a poesia empresta aos mármores a matéria de seu rosto.





XXXII



ALEGRIA nessa vitória! Destemor, eis a palavra.

Então cerravas os olhos. E os cerravas, oh labirinto!

para não ver. Romper

foi preciso lógicas e guardados,

irrisórias horas desviver, tantos fogos avivar. – Um dia

madrugou.

Contempla, contempla como esse em labaredas

consumou o prisioneiro, formidável incêndio.

UM HOMEM CAMINHA SOLITÁRIO E FORTE

EM CAMPO ABERTO.


Extraídos de Sondagem. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1977.







SÉTIMO ANDAR



Nem aurora ou galo



Três da manhã

o irreal se adensa:

conjunto nulo

o alto silêncio



Cheiro em ascensão

do pão a cozer

é o fresco BOM-DIA





O GESTO



Junto às coisas somos

que nem dão por nós



Vertigem e fúria –

tudo na voragem

fenece e perece



Só o gesto, o claro

gesto, funda

morre nunca





A ERIKA



Não desesperes, Érika

da sorte



Um a um os teus deuses

mudaram-se pra América

do Norte?



Toda-poderosa –

dança! voa! ri da morte



Extraídos de Minipoemas. Rio de Janeiro: Edições Xagorá, 1978.







Mortos os dias. Morta

a aventura. Morto o afã de absoluto

Dura o grande pinheiro na planície,

duram, sem tempo, as pedras do castelo;

naus das terras d´Irlanda e Cornualha

rompem as águas; reina el-Rei; pervivem

a aia, os felões, a felonia. Dos que acordam

a provam, desde a hora primeira,

o selo. – Que passe a amada

a Bela-dos –Cabelos-de-Oiro e junto

jaza ao amigo inerte. Foram chama.

A luz e seus contornos os negaram,

o chão e o destino, a noite os una:

deles amantes! A paixão, deles a morte





TRISTÃO & ISOLDA

aqui, legenda e símbolo se unindo para esplendor de Eros ; a Arnaldo José de Castro.







PELO QUE o acaso tenha carreado

para teus óleos de efêmero

isso, Pancetti, não conta, o tempo desagrega;



mas pelas tuas lisas pinceladas

assimiladas por mãos de grumete a pintar navios

(mãos de neto e filho de artesãos em mármore

Mestres d´obras de Massa e de Carrara);



tuas cores ascéticas

cores que entre a paleta e o lugar do quadro

ascenderam e estão; pela, neles,

aérea perspectiva, céus intuídos, adivinhados;

aquele deus-dentro-de-ti perante a tela em branda

logo palpitação de mares e de pedras, de areias

e de barcos, - isso ficará.










TAL-QUAL o vermelhar da rosa no capulho

que em círculos entorna aroma

seu pudor

o amor ama

e ama porque ama, o amor

Mas regougam feras nos fojos

pântano ciladas outros frêmitos

estão presentes são ativos



Qué deles? – os nupciais – ali

onde jorravam águas saltarinas, ali

onde a serpentina

plumagem de dois cisnes o alvo colo alongava?



Tudo conspira

então prenúncio de desastre

O dom maior, a beleza, ah! abeleza

É terrível; a posse? – o limite





Extraído de O Jovem Par. Rio de Janeiro: Edições Zagorá, 1985.





TESTAMENTO



EU, Abderame III,

Califa da ilustre Córdoba,

Por meio-século reinei.

Na guerra andei meu cavalo

minha espada me deu fama,

coroei, na paz, as letras.

Riqueza honra prazeres

chegava tudo a um aceno:

aparentemente nada faltou

a tanto poder.



Mortal, quem quer que sejas,

no esperes aqui felicidade.

isto te deixo em meu escrito:

meus dias felizes neste mundo

cuidadosamente os contei,

- sobem a catorze.





recortado de um escólio às obras

de Vauvenargues.



Extraído de Cartuns. Niterói, RJ: Letras Fluminenses, 1990.



_________________________________


Xavier Placer (Niterói, l916), bibliotecário de profissão e antigo professor universitário, além de livros na sua especialidade e de trabalhos de tradução tem obras publicadas nos gêneros poesia, ficção e ensaio. Estreou com o romance A Escolha (José Olympio, 1944), prosseguindo nas diversas áreas de sua atuação com Doze Histórias Curtas (1946, Prêmio Afonso Arinos, da ABL), a que se seguiram, entre muitos outros, Imagens da Cidade (1952, prefácio de Otto Maria Carpeaux), O Navegador Solitário (1956), O Impressionismo na Ficção: Pompéia, Graça Aranha e Adelino Magalhães (capítulo em A Literatura no Brasil, dir. de Afrânio Coutinho, 1955-59), Legendas da Terra Fluminense (1960), O Poema em Prosa (MEC, Cadernos de Cultura, 1961), Silêncio adentro (1961), Notícias da Viagem (1976), Clareira (1986), SIM (1987), Mosaico e O Mar, o Mar (1988), A Casa (1989), Mini-Prosas (1991) e O Geômetra (1992). Tem pronto para publicação o romance Arnóbio o Moço. Colaborou por muitos anos com artigos e contos em A Manhã, Diário de Notícias, Jornal do Comércio e Minas Gerais, Cultura(MEC), Leitura, Jornal de Letras e Letras Fluminenses.

Faleceu em 2008.





Nenhum comentário:

Postar um comentário