sábado, 15 de setembro de 2018

OS LUSÍADAS DE CAMÕES INTEGRAL, CANTO 1


CANTOS 
1    2    3    4    5            10


Canto Primeiro                                                            


1      As armas e os barões assinalados,
        Que da ocidental praia Lusitana,
        Por mares nunca de antes navegados,
        Passaram ainda além da Taprobana,
        Em perigos e guerras esforçados,
        Mais do que prometia a força humana,
        E entre gente remota edificaram
        Novo Reino, que tanto sublimaram;
  

2
        E também as memórias gloriosas
        Daqueles Reis, que foram dilatando
        A Fé, o Império, e as terras viciosas
        De África e de Ásia andaram devastando;
        E aqueles, que por obras valerosas
        Se vão da lei da morte libertando;
        Cantando espalharei por toda parte,
        Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
  

3
        Cessem do sábio Grego e do Troiano
        As navegações grandes que fizeram;
        Cale-se de Alexandro e de Trajano
        A fama das vitórias que tiveram;
        Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
        A quem Neptuno e Marte obedeceram:
        Cesse tudo o que a Musa antígua canta,
        Que outro valor mais alto se alevanta.
  

4      E vós, Tágides minhas, pois criado
        Tendes em mim um novo engenho ardente,
        Se sempre em verso humilde celebrado
        Foi de mim vosso rio alegremente,
        Dai-me agora um som alto e sublimado,
        Um estilo grandíloquo e corrente,
        Porque de vossas águas, Febo ordene
        Que não tenham inveja às de Hipoerene.
  

5
        Dai-me uma fúria grande e sonorosa,
        E não de agreste avena ou frauta ruda,
        Mas de tuba canora e belicosa,
        Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
        Dai-me igual canto aos feitos da famosa
        Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;
        Que se espalhe e se cante no universo,
        Se tão sublime preço cabe em verso.
  

6 -    E vós, ó bem nascida segurança
        Da Lusitana antígua liberdade,
        E não menos certíssima esperança
        De aumento da pequena Cristandade;
        Vós, ó novo temor da Maura lança,
        Maravilha fatal da nossa idade,
        Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
        Para do mundo a Deus dar parte grande;
  

7
        Vós, tenro e novo ramo florescente
        De uma árvore de Cristo mais amada
        Que nenhuma nascida no Ocidente,
        Cesárea ou Cristianíssima chamada;
        (Vede-o no vosso escudo, que presente
        Vos amostra a vitória já passada,
        Na qual vos deu por armas, e deixou
        As que Ele para si na Cruz tomou)
  

8
        Vós, poderoso Rei, cujo alto Império
        O Sol, logo em nascendo, vê primeiro;
        Vê-o também no meio do Hemisfério,
        E quando desce o deixa derradeiro;
        Vós, que esperamos jugo e vitupério
        Do torpe Ismaelita cavaleiro,
        Do Turco oriental, e do Gentio,
        Que inda bebe o licor do santo rio;
  

9
        Inclinai por um pouco a majestade,
        Que nesse tenro gesto vos contemplo,
        Que já se mostra qual na inteira idade,
        Quando subindo ireis ao eterno templo;
        Os olhos da real benignidade
        Ponde no chão: vereis um novo exemplo
        De amor dos pátrios feitos valerosos,
        Em versos divulgado numerosos.
  

10 -  Vereis amor da pátria, não movido
        De prêmio vil, mas alto e quase eterno:
        Que não é prêmio vil ser conhecido
        Por um pregão do ninho meu paterno.
        Ouvi: vereis o nome engrandecido
        Daqueles de quem sois senhor superno,
        E julgareis qual é mais excelente,
        Se ser do mundo Rei, se de til gente.
   

11 - Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,
        Fantásticas, fingidas, mentirosas,
        Louvar os vossos, como nas estranhas
        Musas, de engrandecer-se desejosas:
        As verdadeiras vossas são tamanhas,
        Que excedem as sonhadas, fabulosas;
        Que excedem Rodamonte, e o vão Rugeiro,
        E Orlando, inda que fora verdadeiro,
  

12 -  Por estes vos darei um Nuno fero,
        Que fez ao Rei o ao Reino tal serviço,
        Um Egas, e um D. Fuas, que de Homero
        A cítara para eles só cobiço.
        Pois pelos doze Pares dar-vos quero
        Os doze de Inglaterra, e o seu Magriço;
        Dou-vos também aquele ilustre Gama,
        Que para si de Eneias toma a fama.
  

13    Pois se a troco de Carlos, Rei de França,
        Ou de César, quereis igual memória,
        Vede o primeiro Afonso, cuja lança
        Escura faz qualquer estranha glória;
        E aquele que a seu Reino a segurança
        Deixou com a grande e próspera vitória;
        Outro Joane, invicto cavaleiro,
        O quarto e quinto Afonsos, e o terceiro.
  

14
        Nem deixarão meus versos esquecidos
        Aqueles que nos Reinos lá da Aurora
        Fizeram, só por armas tão subidos,
        Vossa bandeira sempre vencedora:
        Um Pacheco fortíssimo, e os temidos
        Almeidas, por quem sempre o Tejo chora;
        Albuquerque terríbil, Castro forte,
        E outros em quem poder não teve a morte.
  

15 -  E enquanto eu estes canto, e a vós não posso,
        Sublime Rei, que não me atrevo a tanto,
        Tomai as rédeas vós do Reino vosso:
        Dareis matéria a nunca ouvido canto.
        Comecem a sentir o peso grosso
        (Que pelo mundo todo faça espanto)
        De exércitos e feitos singulares,
        De África as terras, e do Oriente os marços,
  

16
        Em vós os olhos tem o Mouro frio,
        Em quem vê seu exício afigurado;
        Só com vos ver o bárbaro Gentio
        Mostra o pescoço ao jugo já inclinado;
        Tethys todo o cerúleo senhorio
        Tem para vós por dote aparelhado;
        Que afeiçoada ao gesto belo e tenro,
        Deseja de comprar-vos para genro.
  

17
        Em vós se vêm da olímpica morada
        Dos dois avós as almas cá famosas,
        Uma na paz angélica dourada,
        Outra pelas batalhas sanguinosas;
        Em vós esperam ver-se renovada
        Sua memória e obras valerosas;
        E lá vos tem lugar, no fim da idade,
        No templo da suprema Eternidade.
  

18
        Mas enquanto este tempo passa lento
        De regerdes os povos, que o desejam,
        Dai vós favor ao novo atrevimento,
        Para que estes meus versos vossos sejam;
        E vereis ir cortando o salso argento
        Os vossos Argonautas, por que vejam
        Que são vistos de vós no mar irado,
        E costumai-vos já a ser invocado.
  

19 -  Já no largo Oceano navegavam,
        As inquietas ondas apartando;
        Os ventos brandamente respiravam,
        Das naus as velas côncavas inchando;
        Da branca escuma os mares se mostravam
        Cobertos, onde as proas vão cortando
        As marítimas águas consagradas,
        Que do gado de Próteo são cortadas
  

20 - Quando os Deuses no Olimpo luminoso,
        Onde o governo está da humana gente,
        Se ajuntam em concílio glorioso
        Sobre as cousas futuras do Oriente.
        Pisando o cristalino Céu formoso,
        Vêm pela Via-Láctea juntamente,
        Convocados da parte do Tonante,
        Pelo neto gentil do velho Atlante.
  

21
        Deixam dos sete Céus o regimento,
        Que do poder mais alto lhe foi dado,
        Alto poder, que só co'o pensamento
        Governa o Céu, a Terra, e o Mar irado.
        Ali se acharam juntos num momento
        Os que habitam o Arcturo congelado,
        E os que o Austro tem, e as partes onde
        A Aurora nasce, e o claro Sol se esconde.
  

22 -  Estava o Padre ali sublime e dino,
        Que vibra os feros raios de Vulcano,
        Num assento de estrelas cristalino,
        Com gesto alto, severo e soberano.
        Do rosto respirava um ar divino,
        Que divino tornara um corpo humano;
        Com uma coroa e ceptro rutilante,
  

23 -  Em luzentes assentos, marchetados
        De ouro e de perlas, mais abaixo estavam
        Os outros Deuses todos assentados,
        Como a razão e a ordem concertavam:
        Precedem os antíguos mais honrados;
        Mais abaixo os menores se assentavam;
        Quando Júpiter alto, assim dizendo,
        C'um tom de voz começa, grave e horrendo:
  

24 - "Eternos moradores do luzente
        Estelífero pólo, e claro assento,
        Se do grande valor da forte gente
        De Luso não perdeis o pensamento,
        Deveis de ter sabido claramente,
        Como é dos fados grandes certo intento,
        Que por ela se esqueçam os humanos
        De Assírios, Persas, Gregos e Romanos.
  

25 - "Já lhe foi (bem o vistes) concedido
        C’um poder tão singelo e tão pequeno,
        Tomar ao Mouro forte e guarnecido
        Toda a terra, que rega o Tejo ameno:
        Pois contra o Castelhano tão temido,
        Sempre alcançou favor do Céu sereno.
        Assim que sempre, enfim, com fama e glória,
        Teve os troféus pendentes da vitória.
  

26 - ''Deixo, Deuses, atrás a fama antiga,
        Que coa gente de Rómulo alcançaram,
        Quando com Viriato, na inimiga
        Guerra romana tanto se afamaram;
        Também deixo a memória, que os obriga
        A grande nome, quando alevantaram
        Um por seu capitão, que peregrino
        Fingiu na cerva espírito divino.
  

27 - "Agora vedes bem que, cometendo
        O duvidoso mar num lenho leve,
        Por vias nunca usadas, não temendo
        De Áf rico e Noto a força, a mais se atreve:
        Que havendo tanto já que as partes vendo
        Onde o dia é comprido e onde breve,
        Inclinam seu propósito e porfia
        A ver os berços onde nasce o dia.
  

28
        "Prometido lhe está do Fado eterno,
        Cuja alta Lei não pode ser quebrada,
        Que tenham longos tempos o governo
        Do mar, que vê do Sol a roxa entrada.
        Nas águas têm passado o duro inverno;
        A gente vem perdida e trabalhada;
        Já parece bem feito que lhe seja
        Mostrada a nova terra, que deseja.
  

29
        "E porque, como vistes, têm passados
        Na viagem tão ásperos perigos,
        Tantos climas e céus experimentados,
        Tanto furor de ventos inimigos,
        Que sejam, determino, agasalhados
        Nesta costa africana, como amigos.
        E tendo guarnecida a lassa frota,
        Tornarão a seguir sua longa rota."
  

30 -  Estas palavras Júpiter dizia,
        Quando os Deuses por ordem respondendo,
        Na sentença um do outro diferia,
        Razões diversas dando e recebendo.
        O padre Baco ali não consentia
        No que Júpiter disse, conhecendo
        Que esquecerão seus feitos no Oriente,
        Se lá passar a Lusitana gente.
  

31 - Ouvido tinha aos Fados que viria
        Uma gente fortíssima de Espanha
        Pelo mar alto, a qual sujeitaria
        Da índia tudo quanto Dóris banha,
        E com novas vitórias venceria
        A fama antiga, ou sua, ou fosse estranha.
        Altamente lhe dói perder a glória,
        De que Nisa celebra inda a memória.
  

32
        Vê que já teve o Indo sojugado,
        E nunca lhe tirou Fortuna, ou caso,
        Por vencedor da Índia ser cantado
        De quantos bebem a água de Parnaso.
        Teme agora que seja sepultado
        Seu tão célebre nome em negro vaso
        D'água do esquecimento, se lá chegam
        Os fortes Portugueses, que navegam.
  

33 -  Sustentava contra ele Vênus bela,
        Afeiçoada à gente Lusitana,
        Por quantas qualidades via nela
        Da antiga tão amada sua Romana;
        Nos fortes corações, na grande estrela,
        Que mostraram na terra Tingitana,
        E na língua, na qual quando imagina,
        Com pouca corrupção crê que é a Latina.
  

34
        Estas causas moviam Citereia,
        E mais, porque das Parcas claro entende
        Que há de ser celebrada a clara Deia,
        Onde a gente belígera se estende.
        Assim que, um pela infâmia, que arreceia,
        E o outro pelas honras, que pretende,
        Debatem, e na porfia permanecem;
        A qualquer seus amigos favorecem.
  

  
  


35
        Qual Austro fero, ou Bóreas na espessura
        De silvestre arvoredo abastecida,
        Rompendo os ramos vão da mata escura,
        Com ímpeto e braveza desmedida;
        Brama toda a montanha, o som murmura,
        Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida:
        Tal andava o tumulto levantado,
        Entre os Deuses, no Olimpo consagrado.

36 -
        Mas Marte, que da Deusa sustentava
        Entre todos as partes em porfia,
        Ou porque o amor antigo o obrigava,
        Ou porque a gente forte o merecia,
        De entre os Deuses em pé se levantava:
        Merencório no gesto parecia;
        O forte escudo ao colo pendurado
        Deitando para trás, medonho e irado,
  

37
        A viseira do elmo de diamante
        Alevantando um pouco, mui seguro,
        Por dar seu parecer, se pôs diante
        De Júpiter, armado, forte e duro:
        E dando uma pancada penetrante,
        Com o conto do bastão no sólio puro,
        O Céu tremeu, e Apolo, de torvado,
        Um pouco a luz perdeu, como enfiado.
  

38 -   
        E disse assim: "Ó Padre, a cujo império
        Tudo aquilo obedece, que criaste,
        Se esta gente, que busca outro hemisfério,
        Cuja valia, e obras tanto amaste,
        Não queres que padeçam vitupério,
        Como há já tanto tempo que ordenaste,
        Não onças mais, pois és juiz direito,
        Razões de quem parece que é suspeito.
  

39 -   
        "Que, se aqui a razão se não mostrasse
        Vencida do temor demasiado,
        Bem fora que aqui Baco os sustentasse,
        Pois que de Luso vem, seu tão privado;
        Mas esta tenção sua agora passe,
        Porque enfim vem de estâmago danado;
        Que nunca tirará alheia inveja
        O bem, que outrem merece, e o Céu deseja.
  

40
        "E tu, Padre de grande fortaleza,
        Da determinação, que tens tomada,
        Não tornes por detrás, pois é fraqueza
        Desistir-se da cousa começada.
        Mercúrio, pois excede em ligeireza
        Ao vento leve, e à seta bem talhada,
        Lhe vá mostrar a terra, onde se informe
        Da índia, e onde a gente se reforme."
   

41 -  
        Como isto disse, o Padre poderoso,
        A cabeça inclinando, consentiu
        No que disse Mavorte valeroso,
        E néctar sobre todos esparziu.
        Pelo caminho Lácteo glorioso
        Logo cada um dos Deuses se partiu,
        Fazendo seus reais acatamentos,
        Para os determinados aposentos.
  

42 -  
        Enquanto isto se passa na formosa
        Casa etérea do Olimpo onipotente,
        Cortava o mar a gente belicosa,
        Já lá da banda do Austro e do Oriente,
        Entre a costa Etiópica e a famosa
        Ilha de São Lourenço; e o Sol ardente
        Queimava então os Deuses, que Tifeu
        Com o temor grande em peixes converteu.

  

43
        Tão brandamente os ventos os levavam,
        Como quem o céu tinha por amigo:
        Sereno o ar, e os tempos se mostravam
        Sem nuvens, sem receio de perigo.
        O promontório Prasso já passavam,
        Na costa de Etiópia, nome antigo,
        Quando o mar descobrindo lhe mostrava
        Novas ilhas, que em torno cerca e lava.
  

44
        Vasco da Gama, o forte capitão,
        Que a tamanhas empresas se oferece,
        De soberbo e de altivo coração,
        A quem Fortuna sempre favorece,
        Para se aqui deter não vê razão,
        Que inabitada a terra lhe parece:
        Por diante passar determinava;
        Mas não lhe sucedeu como cuidava.
  

45 -
        Eis aparecem logo em companhia
        Uns pequenos batéis, que vêm daquela
        Que mais chegada à terra parecia,
        Cortando o longo mar com larga vela.
        A gente se alvoroça, e de alegria
        Não sabe mais que olhar a causa dela.
        Que gente será esta, em si diziam,
        Que costumes, que Lei, que Rei teriam?
  

46 -
        As embarcações eram, na maneira,
        Mui veloces, estreitas e compridas:
        As velas, com que, vêm, eram de esteira
        Dumas folhas de palma, bem tecidas;
        A gente da cor era verdadeira,
        Que Faeton, nas terras acendidas,
        Ao mundo deu, de ousado, o não prudente:
        O Pado o sabe, o Lampetusa o sente.
  

47 -   
        De panos de algodão vinham vestidos,
        De várias cores, brancos e listrados:
        Uns trazem derredor de si cingidos,
        Outros em modo airoso sobraçados:
        Da cinta para cima vêm despidos;
        Por armas têm adargas o terçados;
        Com toucas na cabeça; e navegando,
        Anafis sonoros vão tocando.
  

48 -   
        Co'os panos e co'os braços acenavam
        As gentes Lusitanas, que esperassem;
        Mas já as proas ligeiras se inclinavam
        Para que junto às ilhas amainassem.
        A ,ente e marinheiros trabalhavam,
        Como se aqui os trabalhos se acabassem;
        Tomam velas; amaina-se a verga alta;
        Da âncora, o mar ferido, em cima salta.
  

49 -    
        Não eram ancorados, quando a gente
        Estranha pelas cordas já subia.
        No gesto ledos vêm, e humanamente
        O Capitão sublime os recebia:
        As mesas manda pôr em continente;
        Do licor que Lieo prantado havia
        Enchem vasos de vidro, e do que deitam,
        Os de Faeton queimados nada enjeitam.
  

50 -   
        Comendo alegremente perguntavam,
        Pela Arábica língua, donde vinham,
        Quem eram, de que terra, que buscavam,
        Ou que partes do mar corrido tinham?
        Os fortes Lusitanos lhe tornavam
        As discretas respostas, que convinham:
        "Os Portugueses somos do Ocidente,
        Imos buscando as terras do Oriente.
  

51 -
                   
        "Do mar temos corrido e navegado
        Toda a parte do Antártico e Calisto,
        Toda a costa Africana rodeado,
        Diversos céus e terras temos visto;
        Dum Rei potente somos, tão amado,
        Tão querido de todos, e benquisto,
        Que não no largo mar, com leda fronte,
        Mas no lago entraremos de Aqueronte.
  

52
        "E por mandado seu, buscando andamos
        A terra Oriental que o Indo rega;
        Por ele, o mar remoto navegamos,
        Que só dos feios focas se navega.
        Mas já razão parece que saibamos,
        Se entre vós a verdade não se nega,
        Quem sois, que terra é esta que habitais,
        Ou se tendes da Índia alguns sinais?"
   

53 -   
        "Somos, um dos das ilhas lhe tornou,
        Estrangeiros na terra, Lei e nação;
        Que os próprios são aqueles, que criou
        A natura sem Lei e sem razão.
        Nós temos a Lei certa, que ensinou
        O claro descendente de Abraão
        Que agora tem do mundo o senhorio,
        A mãe Hebréia teve, e o pai Gentio.
        Informações. A Ilha de Moçambique.
  

54
        "Esta ilha pequena, que habitamos,
        em toda esta terra certa escala
        De todos os que as ondas navegamos
        De Quíloa, de Mombaça e de Sofala;
        E, por ser necessária, procuramos,
        Como próprios da terra, de habitá-la;
        E por que tudo enfim vos notifique,
        Chama-se a pequena ilha Moçambique.
  

55 -   
        "E já que de tão longe navegais,
        Buscando o Indo Idaspe e terra ardente,
        Piloto aqui tereis, por quem sejais
        Guiados pelas ondas sabiamente.
        Também será bem feito que tenhais
        Da terra algum refresco, e que o Regente
        Que esta terra governa, que vos veja,
        E do mais necessário vos proveja."
  

56 -
        Isto dizendo, o Mouro se tornou
        A seus batéis com toda a companhia;
        Do Capitão e gente se apartou
        Com mostras de devida cortesia.
        Nisto Febo nas águas encerrou,
        Co'o carro de cristal, o claro dia,
        Dando cargo à irmã, que alumiasse
        O largo mundo, enquanto repousasse.
  

57 -    
        A noite se passou na lassa frota
        Com estranha alegria, e não cuidada,
        Por acharem da terra tão remota
        Nova de tanto tempo desejada.
        Qualquer então consigo cuida e nota
        Na gente e na maneira desusada,
        E como os que na errada Seita creram,
        Tanto por todo o mundo se estenderam,
  

58
        Da Lua os claros raios rutilavam
        Pelas argênteas ondas Neptuninas,
        As estrelas os Céus acompanhavam,
        Qual campo revestido de boninas;
        Os furiosos ventos repousavam
        Pelas covas escuras peregrinas;
        Porém da armada a gente vigiava,
        Como por longo tempo costumava.
  

59   
        Mas assim como a Aurora marchetada
        Os formosos cabelos espalhou
        No Céu sereno, abrindo a roxa entrada
        Ao claro Hiperiónio, que acordou,
        Começa a embandeirar-se toda a armada,
        E de toldos alegres se adornou,
        Por receber com festas e alegria
        O Regedor das ilhas, que partia.
  

60 -
        Partia alegremente navegando,
        A ver as naus ligeiras Lusitanas,
        Com refresco da terra, em si cuidando
        Que são aquelas gentes inumanas,
        Que, os aposentos cáspios habitando,
        A conquistar as terras Asianas
        Vieram; e por ordem do Destino,
        O Império tomaram a Constantino.
  

61
        Recebe o Capitão alegremente
        O Mouro, e toda a sua companhia;
        Dá-lhe de ricas peças um presente,
        Que só para este efeito já trazia;
        Dá-lhe conserva doce, e dá-lhe o ardente
        Não usado licor, que dá alegria.
        Tudo o Mouro contente bem recebe;
        E muito mais contente come e bebe.
  

62
        Está a gente marítima de Luso
        Subida pela enxárcia, de admirada,
        Notando o estrangeiro modo e uso,
        E a linguagem tão bárbara e enleada.
        Também o Mouro astuto está confuso,
        Olhando a cor, o trajo, e a forte armada;
        E perguntando tudo, lhe dizia
        "Se por ventura vinham de Turquia?"
  

63 -   
        E mais lhe diz também, que ver deseja
        Os livros de sua Lei, preceito eu fé,
        Para ver se conforme à sua seja,
        Ou se são dos de Cristo, como Crê.
        E porque tudo note e tudo veja,
        Ao Capitão pedia que lhe dê
        Mostra das fortes armas de que usavam,
        Quando co'os inimigos pelejavam.
  

64 -
        Responde o valeroso Capitão
        Por um, que a língua escura bem sabia:
        "Dar-te-ei, Senhor ilustre, relação
        De mim, da Lei, das armas que trazia.
        Nem sou da terra, nem da geração
        Das gentes enojosas de Turquia:
        Mas sou da forte Europa belicosa,
        Busco as terras da índia tão famosa.
  

65 -    
        A lei tenho daquele, a cujo império
        Obedece o visíbil e ínvisíbil
        Aquele que criou todo o Hemisfério,
        Tudo o que sente, o todo o insensíbil;
        Que padeceu desonra e vitupério,
        Sofrendo morte injusta e insofríbil,
        E que do Céu à Terra, enfim desceu,
        Por subir os mortais da Terra ao Céu.
  

66 -    As Armas de Guerra dos Portugueses
        Deste Deus-Homem, alto e infinito,
        Os livros, que tu pedes não trazia,
        Que bem posso escusar trazer escrito
        Em papel o que na alma andar devia.
        Se as armas queres ver, como tens dito,
        Cumprido esse desejo te seria;
        Como amigo as verás; porque eu me obrigo,
        Que nunca as queiras ver como inimigo."
  

67
        Isto dizendo, manda os diligentes
        Ministros amostrar as armaduras:
        Vêm arneses, e peitos reluzentes,
        Malhas finas, e lâminas seguras,
        Escudos de pinturas diferentes,
        Pelouros, espingardas de aço puras,
        Arcos, e sagitíferas aljavas,
        Partazanas agudas, chuças bravas:
  

68
        As bombas vêm de fogo, e juntamente
        As panelas sulfúreas, tão danosas;
        Porém aos de Vulcano não consente
        Que dêem fogo às bombardas temerosas;
        Porque o generoso ânimo e valente,
        Entre gentes tão poucas e medrosas,
        Não mostra quanto pode, e com razão,
        Que é fraqueza entre ovelhas ser leão.
  

69 -  
        Porém disto, que o Mouro aqui notou,
        E de tudo o que viu com olho atento
        Um ódio certo na alma lhe ficou,
        Uma vontade má de pensamento.
        Nas mostras e no gesto o não mostrou;
        Mas com risonho e ledo fingimento
        Tratá-los brandamente determina,
        Até que mostrar possa o que imagina.
  

70 -   
        Pilotos lhe pedia o Capitão,
        Por quem pudesse à Índia ser levado;
        Diz-lhe que o largo prêmio levarão
        Do trabalho que nisso for tomado.
        Promete-lhos o Mouro, com tenção
        De peito venenoso, e tão danado,
        Que a morte, se pudesse, neste dia,
        Em lugar de pilotos lhe daria.

  

  


71
        Tamanho o ódio foi, e a má vontade,
        Que aos estrangeiros súbito tomou,
        Sabendo ser sequazes da verdade,
        Que o Filho de David nos ensinou.
        ó segredos daquela Eternidade,
        A quem juízo algum nunca alcançou!
        Que nunca falte um pérfido inimigo
        Aqueles de quem foste tanto amigo!

72 -  

        Partiu-se Disto enfim coa companhia,
        Das naus o falso Mouro despedido,
        Com enganosa e grande cortesia,
        Com gesto ledo a todos, e fingido.
        Cortaram os batéis a curta via
        Das águas de Neptuno, e recebido
        Na terra do obsequente ajuntamento
        Se foi o Mouro ao cógnito aposento.
  

73 -    Ódio de Baco aos Portugueses
        Do claro assento etóreo o grão Tebano,
        Que da paternal coxa foi nascido,
        Olhando o ajuntamento Lusitano
        Ao Mouro ser molesto e avorrecido,
        No pensamento cuida um falso engano,
        Com que seja de todo destruído.
        E enquanto isto só na alma imaginava,
        Consigo estas palavras praticava:
  

74 -
        "Está do fado já determinado,
        Que tamanhas vitórias, tão famosas,
        Hajam os Portugueses alcançado
        Das Indianas gentes belicosas.
        E eu só, filho do Padre sublimado,
        Com tantas qualidades generosas,
        Hei de sofrer que o fado favoreça
        Outrem, por quem meu nome se escureça?
  

75
        "Já quiseram os Deuses que tivesse
        O filho de Filipo nesta parte
        Tanto poder, que tudo submetesse
        Debaixo de seu jugo o fero Marte.
        Mas há-se de sofrer que o fado desse
        A tão poucos tamanho esforço e arte,
        Que eu co'o grão Macedônio, e o Romano,
        Demos lugar ao nome Lusitano?
  

76
        "Não será assim, porque antes que chegado
        Seja este Capitão, astutamente
        Lhe será tanto engano fabricados
        Que nunca veja as partes do Oriente.
        Eu descerei à Terra, e o indignado
        Peito revolverei da Maura gente;
        Porque sempre por via irá direita
        Quem do oportuno tempo se aproveita."
  

77 -
        Isto dizendo, irado e quase insano,
        Sobre a terra africana descendeu,
        Onde vestindo a forma e gesto humano,
        Para o Prasso sabido se moveu.
        E por melhor tecer o astuto engano,
        No gesto natural se converteu
        Dum Mouro, em Moçambique conhecido
        Velho, sábio, e co'o Xeque mui valido.
  

78 -   
        E entrando assim a falar-lhe a tempo e horas
        A sua falsidade acomodadas,
        Lhe diz como eram gentes roubadoras,
        Estas que ora de novo são chegadas;
        Que das nações na costa moradoras
        Correndo a fama veio que roubadas
        Foram por estes homens que passavam,
        Que com pactos de paz sempre ancoravam.
  

79
        E sabe mais, lhe diz, como entendido
        Tenho destes cristãos sanguinolentos,
        Que quase todo o mar têm destruído
        Com roubos, com incêndios violentos;
        E trazem já de longe engano urdido
        Contra nós; e que todos seus intentos
        São para nos matarem e roubarem,
        E mulheres e filhos cativarem.
  

80 -   
        "E também sei que tem determinado
        De vir por água a terra muito cedo
        O Capitão dos seus acompanhado,
        Que da tensão danada nasce o medo.
        Tu deves de ir também co'os teus armado
        Esperá-lo em cilada, oculto e quedo;
        Porque, saindo a gente descuidada,
        Cairão facilmente na cilada.
  

81 -
        "E se inda não ficarem deste jeito
        Destruídos, ou mortos totalmente
        Eu tenho imaginado no conceito
        Outra manha e ardil, que te contente:
        Manda-lhe dar piloto, que de jeito
        Seja astuto no engano, e tão prudente,
        Que os leve aonde sejam destruídos,
        Desbaratados, mortos, ou perdidos."
  

82
        Tanto que estas palavras acabou,
        O Mouro, nos tais casos sábio e velho,
        Os braços pelo colo lhe lançou,
        Agradecendo muito o tal conselho;
        E logo nesse instante concertou
        Para a guerra o belígero aparelho,
        Para que ao Português se lhe tornasse
        Em roxo sangue a água, que buscasse.
  

83
        E busca mais, para o cuidado engano,
        Mouro, que por piloto à nau lhe mande,
        Sagaz, astuto, e sábio em todo o dano,
        De quem fiar-se possa um feito grande.
        Diz-lhe que acompanhando o Lusitano,
        Por tais costas e mares com ele ande,
        Que, se daqui escapar, que lá diante
        Vá cair onde nunca se alevante.
  

84 -  
        Já o raio Apolíneo visitava
        Os montes Nabatêos acendido,
        Quando o Gama, colos seus determinava
        De vir por água a terra apercebido.
        A gente nos batéis se concertava,
        Como se fosse o engano já sabido:
        Mas pode suspeitar-se facilmente,
        Que o coração pressago nunca mente.
  

85
        E mais também mandado tinha a terra,
        De antes, pelo piloto necessário,
        E foi-lhe respondido em som de guerra,
        Caso do que cuidava mui contrário;
        Por isto, e porque sabe quanto erra
        Quem se crê de seu pérfido adversário,
        Apercebido vai como podia,
        Em três batéis somente que trazia.
  

86 -
        Mas os Mouros que andavam pela praia,
        Por lhe defender a água desejada,
        Um de escudo embraçado e de azagaia,
        Outro de arco encurvado e seta ervada,
        Esperam que a guerreira gente saia,
        Outros muitos já postos em cilada.
        E, porque o caso leve se lhe faça,
        Põem uns poucos diante por negaça,
  

87 -
        Andam pela ribeira alva, arenosa,
        Os belicosos Mouros acenando
        Com a adarga e co’a hástia perigosa,
        Os fortes Portugueses incitando.
        Não sofre muito a gente generosa
        Andar-lhe os cães os dentes amostrando.
        Qualquer em terra salta tão ligeiro,
        Que nenhum dizer pode que é primeiro.
  

88
        Qual no corro sanguino o ledo amante,
        Vendo a formosa dama desejada,
        O touro busca, e pondo-se diante,
        Salta, corre, sibila, acena, e brada,
        Mas o animal atroce, nesse instante,
        Com a fronte cornígera inclinada,
        Bramando duro corre, e os olhos cerra,
        Derriba, fere e mata, e põe por terra:
  

89 -
        Eis nos batéis o fogo se levanta
        Na furiosa e dura artilharia,
        A plúmbea péla mata, o brado espanta,
        Ferido o ar retumba e assovia:
        O coração dos Mouros se quebranta,
        O temor grande o sangue lhe resfria.
        Já foge o escondido de medroso,
        E morre o descoberto aventuroso.
  

90 -  
        Não se contenta a gente Portuguesa,
        Mas seguindo a vitória estrui e mata;
        A povoação, sem muro e sem defesa,
        Esbombardeia, acende e desbarata.
        Da cavalgada ao Mouro já lhe pesa,
        Que bem cuidou comprá-la mais barata;
        Já blasfema da guerra, e maldizia,
        O velho inerte, e a mãe que o filho cria.
  

91 -
        Fugindo, a seta o Mouro vai tirando
        Sem força, de covarde e de apressado,
        A pedra, o pau, e o canto arremessando;
        Dá-lhe armas o furor desatinado.
        Já a ilha e todo o mais desemparando,
        A terra firme foge amedrontado;
        Passa e corta do mar o estreito braço,
        Que a ilha em torno cerca, em pouco espaço
  

92
        Uns vão nas almadias carregadas,
        Um corta o mar a nado diligente,
        Quem se afoga nas ondas encurvadas,
        Quem bebe o mar, e o deita juntamente.
        Arrombam as miúdas bombardadas
        Os pangaios subtis da bruta gente:
        Desta arte o Português enfim castiga
        A vil malícia, pérfida, inimiga.
  

93
        Tornam vitoriosos para a armada,
        Co'o despojo da guerra e rica presa,
        E vão a seu prazer fazer aguada,
        Sem achar resistência, nem defesa.
        Ficava a Maura gente magoada,
        No ódio antigo mais que nunca acesa;
        E vendo sem vingança tanto dano,
        Somente estriba no segundo engano.
  

94 -    
        Pazes cometer manda arrependido
        O Regedor daquela iníqua terra,
        Sem ser dos Lusitanos entendido,
        Que em figura de paz lhe manda guerra;
        Porque o piloto falso prometido,
        Que toda a má tenção no peito encerra,
        Para os guiar à morte lhe mandava,
        Como em sinal das pazes que tratava.
  

95 -   
        O Capitão, que já lhe então convinha
        Tornar a seu caminho acostumado,
        Que tempo concertado e ventos tinha
        Para ir buscar o Indo desejado,
        Recebendo o piloto, que lhe vinha,
        Foi dele alegremente agasalhado;
        E respondendo ao mensageiro a tento,
        As velas manda dar ao largo vento.
  

96 - 
        Desta arte despedida a forte armada,
        As ondas de Anfitrite dividia,
        Das filhas de Nereu acompanhada,
        Fiel, alegre e doce companhia.
        O Capitão, que não caía em nada
        Do enganoso ardil, que o Mouro urdia,
        Dele mui largamente se informava
        Da Índia toda, e costas que passava.
  

97 -  
        Mas o Mouro, instruído nos enganos
        Que o malévolo Baco lhe ensinara,
        De morte ou cativeiro novos danos,
        Antes que à Índia chegue, lhe prepara:
        Dando razões dos portos Indianos,
        Também tudo o que pede lhe declara,
        Que, havendo por verdade o que dizia,
        De nada a forte gente se temia.
  

98
        E diz-lhe mais, com o falso pensamento
        Com que Sinon os Frígios enganou:
        Que perto está uma ilha, cujo assento
        Povo antigo cristão sempre habitou.
        O Capitão, que a tudo estava a tento,
        Tanto com estas novas se alegrou,
        Que com dádivas grandes lhe rogava,
        Que o leve à terra onde esta gente estava.
  

99 -
        O mesmo o falso Mouro determina,
        Que o seguro Cristão lhe manda e pede;
        Que a ilha é possuída da malina
        Gente que segue o torpe Mahamede.
        Aqui o engano e morte lhe imagina,
        Porque em poder e forças muito excede
        A Moçambique esta ilha, que se chama
        Quíloa, mui conhecida pela fama.
  

100 -  
        Para lá se inclinava a leda frota;
        Mas a Deusa em Citere celebrada,
        Vendo como deixava a certa rota
        Por ir buscar a morte não cuidada,
        Não consente que em terra tão remota
        Se perca a gente dela tanto amada.
        E com ventos contrários a desvia
        Donde o piloto falso a leva e guia.
  

101 - 
        Mas o malvado Mouro, não podendo
        Tal determinação levar avante,
        Outra maldade iníqua cometendo,
        Ainda em seu propósito constante,
        Lhe diz que, pois as águas discorrendo
        Os levaram por força por diante,
        Que outra ilha tem perto, cuja gente
        Eram Cristãos com Mouros juntamente.
  

102 - 
        Também nestas palavras lhe mentia,
        Como por regimento enfim levava,
        Que aqui gente de Cristo não havia,
        Mas a que a Mahamede celebrava.
        O Capitão, que em tudo o Mouro cria,
        Virando as velas, a ilha demandava;
        Mas, não querendo a Deusa guardadora,
        Não entra pela barra, e surge fora.
  

103
        Estava a ilha à terra tão chegada,
        Que um estreito pequeno a dividia;
        Uma cidade nela situada,
        Que na fronte do mar aparecia,
        De nobres edifícios fabricada,
        Como por fora ao longe descobria,
        Regida por um Rei de antiga idade:
        Mombaça é o nome da ilha e da cidade.
  

104
        E sendo a ela o Capitão chegado,
        Estranhamente ledo, porque espera
        De poder ver o povo batizado,
        Como o falso piloto lhe dissera,
        Eis vêm batéis da terra com recado
        Do Rei, que já sabia a gente que era:
        Que Baco muito de antes o avisara,
        Na forma doutro Mouro, que tomara.
  

105 -   
        O recado que trazem é de amigos,
        Mas debaixo o veneno vem coberto;
        Que os pensamentos eram de inimigos,
        Segundo foi o engano descoberto.
        Ó grandes e gravíssimos perigos!
        Ó caminho de vida nunca certo:
        Que aonde a gente põe sua esperança,
        Tenha a vida tão pouca segurança!
  

106
        No mar tanta tormenta, e tanto dano,
        Tantas vezes a morte apercebida!
        Na terra tanta guerra, tanto engano,
        Tanta necessidade avorrecida!
        Onde pode acolher-se um fraco humano,
        Onde terá segura a curta vida,
        Que não se arme, e se indigne o Céu sereno
        Contra um bicho da terra tão pequeno?
  

CAMÕES, CANTO 2

Canto Segundo    
 
                                                    
1 -    Já neste tempo o lúcido Planeta,  
        Que as horas vai do dia distinguindo,   
        Chegava à desejada e lenta meta,  
        A luz celeste às gentes encobrindo,  
        E da casa marítima secreta  
        Lhe estava o Deus Noturno a porta abrindo,  
        Quando as infidas gentes se chegaram  
        As naus, que pouco havia que ancoraram.  
  
   
2 -    

        Dentre eles um, que traz encomendado  
        O mortífero engano, assim dizia:  
        "Capitão valeroso, que cortado  
        Tens de Neptuno o reino e salsa via,  
        O Rei que manda esta ilha, alvoroçado  
        Da vinda tua, tem tanta alegria,  
        Que não deseja mais que agasalhar-te,  
        Ver-te, e do necessário reformar-te.  
   

3 -       
        "E porque está em extremo desejoso  
        De te ver, como cousa nomeada,  
        Te roga que, de nada receoso,  
        Entres a barra, tu com toda armada:  
        E porque do caminho trabalhoso  
        Trarás a gente débil e cansada,  
        Diz que na terra podes reformá-la,  
        Que a natureza obriga a desejá-la.  
   

4  
        "E se buscando vás mercadoria  
        Que produze o aurífero Levante,  
        Canela, cravo, ardente especiaria,  
        Ou droga salutífera e prestante;  
        Ou se queres luzente pedraria,  
        O rubi fino, o rígido diamante,  
        Daqui levarás tudo tão sobejo  
        Com que faças o fim a teu desejo."  
   

5 -    
        Ao mensageiro o Capitão responde  
        As palavras do Rei agradecendo:  
        E diz que, porque o Sol no mar se esconde,  
        Não entra para dentro, obedecendo;  
        Porém que, como a luz mostrar por onde  
        Vá sem perigo a frota, não temendo,  
        Cumprirá sem receio seu mandado,  
        Que a mais por tal senhor está obrigado.  
   

6  
        Pergunta-lhe depois, se estão na terra  
        Cristãos, como o piloto lhe dizia;  
        O mensageiro astuto, que não erra,  
        Lhe diz, que a mais da gente em Cristo cria.  
        Desta sorte do peito lhe desterra  
        Toda a suspeita e cauta fantasia;  
        Por onde o Capitão seguramente  
        Se fia da infiel e falsa gente.  
   

7 -   
        E de alguns que trazia condenados  
        Por culpas e por feitos vergonhosos,  
        Por que pudessem ser aventurados  
        Em casos desta sorte duvidosos,  
        Manda dous mais sagazes, ensaiados,  
        Por que notem dos Mouros enganosos  
        A cidade e poder, e por que vejam  
        Os Cristãos, que só tanto ver desejam.  
   

8 -   
        E por estes ao Rei presentes manda,  
        Por que a boa vontade, que mostrava,  
        Tenha firme, segura, limpa e branda;  
        A qual bem ao contrário em tudo estava.  
        Já a companhia pérfida e nefanda  
        Das naus se despedia e o mar cortava:  
        Foram com gestos ledos e fingidos,  
        Os dous da frota em terra recebidos.  
   

9 -  
        E depois que ao Rei apresentaram,  
        Co'o recado, os presentes que traziam,  
        A cidade correram, e notaram  
        Muito menos daquilo que queriam;  
        Que os Mouros cautelosos se guardaras   
        De lhes mostrarem tudo o que pediam:   
        Que onde reina a malícia, está o receio,   
        Que a faz imaginar no peito alheio.  
   

10 -   
        Mas aquele que sempre a mocidade  
        Tem no rosto perpétua, e foi nascido  
        De duas mães, que urdia a falsidade  
        Por ver o navegante destruído,  
        Estava numa casa da cidade,  
        Com rosto humano e hábito fingido,  
        Mostrando-se Cristão, e fabricava  
        Um altar sumptuoso, que adorava.  
   

11  
        Ali tinha em retrato afigurada  
        Do alto e Santo Espírito a pintura:  
        A cândida pombinha debuxada  
        Sobre a única Fênix, Virgem pura;  
        A companhia santa está pintada  
        Dos doze, tão torvados na figura,  
        Como os que, só das línguas que caíram,  
        De fogo, várias línguas referiram.  
   

12 -   
        Aqui os dous companheiros conduzidos      
        Onde com este engano Baco estava,         
        Põem em terra os giolhos, e os sentidos  
        Naquele Deus que o mundo governava.  
        Os cheiros excelentes, produzidos  
        Na Pancaia odorífera, queimava  
        O Tioneu, e assim por derradeiro  
        O falso Deus adora o verdadeiro.  
   

13  
        Aqui foram de noite agasalhados,  
        Com todo o bom e honesto tratamento,  
        Os dous Cristãos, não vendo que enganados  
        Os tinha o falso e santo fingimento.  
        Mas assim como os raios espalhados  
        Do Sol foram no mundo, e num momento  
        Apareceu no rúbido horizonte  
        Da moça de Titão a roxa fronte,  
   

14 -   
        Tornam da terra os Mouros co'o recado  
        Do Rei, para que entrassem, e consigo  
        Os dous que o Capitão tinha mandado,  
        A quem se o Rei mostrou sincero amigo;  
        E sendo o Português certificado  
        De não haver receio de perigo,  
        E que gente de Cristo em terra havia,  
        Dentro no salso rio entrar queria.  
   

15 -   
        Dizem-lhe os que mandou, que em terra  
        Sacras aras e sacerdote sinto; viram  
        Que ali se agasalharam o dormiram,  
        Enquanto a luz cobriu o escuro manto;  
        E que no Rei e gentes não sentiram  
        Senão contentamento e gosto tanto,  
        Que não podia certo haver suspeita  
        Numa mostra tão clara e tão perfeita.  
   

16 -  
        Com isto o nobre Gama recebia  
        Alegremente os Mouros que subiam;  
        Que levemente um ânimo se fia  
        De mostras, que tão certas pareciam.  
        A nau da gente pérfida se enchia,  
        Deixando a bordo os barcos que traziam.  
        Alegres vinham todos, porque crêm  
        Que a presa desejada certa têm.  
   

17 -   
        Na terra. cautamente aparelhavam  
        Armas e munições que, como vissem  
        Que no rio os navios ancoravam,  
        Neles ousadamente se subissem;  
        E, nesta treição determinavam  
        Que os de Luso de todo destruíssem,  
        E que incautos pagassem deste jeito  
        O mal que em Moçambique tinham feito.  
   

18 
        As âncoras tenaces vão levando   
        Com a náutica grita costumada;   
        Da proa as velas sós ao vento dando  
        Inclinam para a barra abalizada.   
        Mas a linda Ericina, que guardando   
        Andava sempre a gente assinalada,   
        Vendo a cilada grande, e tão secreta,   
        Voa do Céu ao mar como uma seta.  
   

19  
        Convoca as alvas filhas de Nereu,  
        Com toda a mais cerúlea companhia,  
        Que, porque no salgado mar nasceu,  
        Das águas o poder lhe obedecia.  
        E propondo-lhe a causa a que desceu,   
        Com todas juntamente se partia,  
        Para estorvar que a armada não chegasse  
   

20 -   
        Já na água erguendo vão, com grande pressa,  
        Com as argênteas caudas branca escuma;  
        Cloto eo'o peito corta e atravessa  
        Com mais furor o mar do que costuma.  
        Salta Nise, Nerine se arremessa  
        Por cima da água crespa, em força suma.  
        Abrem caminho as ondas encurvadas  
        De temor das Nereidas apressadas.  
   

21 -  
        Nos ombros de um Tritão, com gesto aceso,  
        Vai a linda Dione furiosa;  
        Não sente quem a leva o doce peso,  
        De soberbo com carga tão formosa.  
        Já chegam perto donde o vento teso  
        Enche as velas da frota belicosa;  
        Repartem-se e rodeiam nesse instante  
        As naus ligeiras, que iam por diante.  
   

22  
        Põe-se a Deusa com outras em direito  
        Da proa capitaina, e ali fechando  
        O caminho da barra, estão de jeito,  
        Que em vão assopra o vento, a vela inchando.  
        Põem no madeiro duro o brando peito,  
        Para detrás a forte nau forçando;  
        Outras em derredor levando-a estavam,  
        E da barra inimiga a desviavam.  
   

23  
        Quais para a cova as próvidas formigas,  
        Levando o peso grande acomodado,  
        As forças exercitam, de inimigas  
        Do inimigo inverno congelado;  
        Ali são seus trabalhos e fadigas,  
        Ali mostram vigor nunca esperado:  
        Tais andavam as Ninfas estorvando  
        A gente Portuguesa o fim nefando.  
   

24 -   
        Torna para detrás a nau forçada,  
        Apesar dos que leva, que gritando  
        Mareiam velas; ferve a gente irada,  
        O leme a um bordo e a outro atravessando;  
        O mestre astuto em vão da popa brada,  
        Vendo como diante ameaçando  
        Os estava um marítimo penedo,  
        Que de quebrar-lhe a nau lhe mete medo.  
   

25  
        A celeuma medonha se alevanta  
        No rudo marinheiro que trabalha;  
        O grande estrondo a Maura gente espanta,  
        Como se vissem hórrida batalha;  
        Não sabem a razão de fúria tanta,  
        Não sabem nesta pressa quem lhe valha;  
        Cuidam que seus enganos são sabidos,  
        E que hão de ser por isso aqui punidos.  
   

26 - 
        Ei-los subitamente se lançavam  
        A seus batéis velozes que traziam;  
        Outros em cima o mar alevantavam,  
        Saltando n’água, a nado se acolhiam;  
        De um bordo e doutro súbito saltavam,  
        Que o medo os compelia do que viam;  
        Que antes querem ao mar aventurar-se  
        Que nas mãos inimigas entregar-se.  
   

27  
        Assim como em selvática alagoa  
        As rãs, no tempo antigo Lícia gente,  
        Se sentem por ventura vir pessoa,  
        Estando fora da água incautamente,  
        Daqui e dali saltando, o charco soa,  
        Por fugir do perigo que se sente,  
        E acolhendo-se ao couto que conhecem,  
        Sós as cabeças na água lhe aparecem:  
   

28  
        Assim fogem os Mouros; e o piloto,  
        Que ao perigo grande as naus guiara,  
        Crendo que seu engano estava noto,  
        Também foge, saltando na água amara.  
        Mas, por não darem no penedo imoto,  
        Onde percam a vida doce e cara,  
        A âncora solta logo a capitaina,  
        Qualquer das outras junto dela amaina.  
   

29  
        Vendo o Gama, atentado, a estranheza  
        Dos Mouros, não cuidada, e juntamente  
        O piloto fugir-lhe com presteza,  
        Entende o que ordenava a bruta gente;  
        E vendo, sem contraste e sem braveza  
        Dos ventos, ou das águas sem corrente,  
        Que a nau passar avante não podia,  
        Havendo-o por milagre, assim dizia:  
   

30 -   
        "Ó caso grande, estranho e não cuidado,   
        Ó milagre claríssimo e evidente,   
        Ó descoberto engano inopinado,   
        Ó pérfida, inimiga e falsa gente!    
        Quem poderá do mal aparelhado   
        Livrar-se sem perigo sabiamente,   
        Se lá de cima a Guarda soberana   
        Não acudir à fraca força humana?  
   

31  
        "Bem nos mostra a divina Providência   
        Destes portos a pouca segurança;   
        Bem claro temos visto na aparência,   
        Que era enganada a nossa confiança.   
        Mas pois saber humano nem prudência   
        Enganos tão fingidos não alcança,   
        Ó tu, Guarda Divina, tem cuidado   
        De quem sem ti não pode ser guardado!  
   

32  
        "E se te move tanto a piedade   
        Desta mísera gente peregrina,   
        Que só por tua altíssima bondade,   
        Da gente a salvas pérfida e malina,   
        Nalgum porto seguro de verdade   
        Conduzir-nos já agora determina,   
        Ou nos amostra a terra que buscamos,   
        Pois só por teu serviço navegamos."  
   

33 -   
        Ouviu-lhe essas palavras piedosas  
        A formosa Dione, e comovida,  
        Dentre as Ninfas se vai, que saudosas  
        Ficaram desta súbita partida.  
        Já penetra as Estrelas luminosas,  
        Já na terceira Esfera recebida  
        Avante passa, e lá no sexto Céu,  
        Para onde estava o Padre, se moveu.  
   

34  
        E como ia afrontada do caminho,  
        Tão formosa no gesto se mostrava,  
        Que as Estrelas e o Céu e o Ar vizinho,  
        E tudo quanto a via namorava.  
        Dos olhos, onde faz seu filho o ninho,  
        Uns espíritos vivos inspirava,  
        Com que os Pólos gelados acendia,  
        E tornava do Fogo a esfera fria.  
   

35  
        E por mais namorar o soberano  
        Padre, de quem foi sempre amada e eriça,  
        Se lhe apresenta assim como ao Troiano,  
        Na selva Idea, já se apresentara.  
        Se a vira o caçador, que o vulto humano  
        Perdeu, vendo Diana na água clara,  
        Nunca os famintos galgos o mataram,  
        Que primeiro desejos o acabaram.  
   

36 -    
        Os crespos fios d'ouro se esparziam  
        Pelo colo, que a neve escurecia;  
        Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,  
        Com quem Amor brincava, e não se via;  
        Da alva petrina flamas lhe saíam,  
        Onde o Menino as almas acendia;  
        Pelas lisas colunas lhe trepavam  
        Desejos, que como hera se enrolavam.  
   

37  
        C'um delgado sendal as partes cobre,  
        De quem vergonha é natural reparo,  
        Porém nem tudo esconde, nem descobre,  
        O véu, dos roxos lírios pouco avaro;  
        Mas, para que o desejo acenda o dobre,  
        Lhe põe diante aquele objeto raro.  
        Já se sentem no Céu, por toda a parte,  
        Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.  
   

38  
        E mostrando no angélico semblante   
        Co'o riso uma tristeza misturada,  
        Como dama que foi do incauto amante  
        Em brincos amorosos mal tratada,  
        Que se aqueixa e se ri num mesmo instante,  
        E se torna entre alegre magoada,  
        Desta arte a Deusa, a quem nenhuma iguala,  
        Mais mimosa que triste ao Padre fala:  
   

39 -   
        "Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso,  
        Que, para as cousas que eu do peito amasse,  
        Te achasse brando, afábil e amoroso,  
        Posto que a algum contrário lhe pesasse;  
        Mas, pois que contra mim te vejo iroso,  
        Sem que to merecesse, nem te errasse,  
        Faça-se como Baco determina;  
        Assentarei enfim que fui mofina.  
   

40  
        "Este povo que é meu, por quem derramo  
        As lágrimas que em vão caídas vejo,  
        Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo,  
        Sendo tu tanto contra meu desejo!  
        Por ele a ti rogando choro e bramo,  
        E contra minha dita enfim pelejo.  
        Ora pois, porque o amo é mal tratado,  
        Quero-lhe querer mal, será guardado.  
  
 
41  
        "Mas moura enfim nas mãos das brutas gentes,  
        Que pois eu fui..." E nisto, de mimosa,  
        O rosto banha em lágrimas ardentes,  
        Como co'o orvalho fica a fresca rosa.  
        Calada um pouco, como se entre os dentes  
        Se lhe impedira a fala piedosa,  
        Torna a segui-la; e indo por diante,  
        Lhe atalha o poderoso e grão Tonante.  
   

42 -   
        E destas brandas mostras comovido,  
        Que moveram de um tigre o peito duro,  
        Co'o vulto alegre, qual do Céu subido,  
        Torna sereno e claro o ar escuro,  
        As lágrimas lhe alimpa, e acendido  
        Na face a beija, e abraça o colo puro;  
        De modo que dali, se só se achara,  
        Outro novo Cupido se gerara.  
   

43  
        E co'o seu apertando o rosto amado,  
        Que os soluços e lágrimas aumenta,  
        Como menino da ama castigado,  
        Que quem no afaga o choro lhe acrescente,  
        Por lhe pôr em sossego o peito irado,  
        Muitos casos futuros lhe apresenta.  
        Dos fados as entranhas revolvendo,  
        Desta maneira enfim lhe está dizendo:  
   

44 -     
        "Formosa filha minha, não temais  
        Perigo algum nos vossos Lusitanos,  
        Nem que ninguém comigo possa mais,  
        Que esses chorosos olhos soberanos;  
        Que eu vos prometo, filha, que vejais  
        Esquecerem-se Gregos e Romanos,  
        Pelos ilustres feitos que esta gente  
        Há-de fazer nas partes do Oriente.  
   

45 - 
        "Que se o facundo Ulisses escapou  
        De ser na Ogígia ilha eterno escravo,  
        E se Antenor os seios penetrou  
        Ilíricos e a fonte de Timavo;  
        E se o piedoso Eneias navegou  
        De Cila e de Caríbdis o mar bravo,  
        Os vossos, mores cousas atentando,  
        Novos mundos ao mundo irão mostrando.  
   

46 -   
        "Fortalezas, cidades e altos muros,  
        Por eles vereis, filha, edificados;  
        Os Turcos belacíssimos e duros,  
        Deles sempre vereis desbaratados.  
        Os Reis da índia, livres e seguros,  
        Vereis ao Rei potente sojugados;  
        E por eles, de tudo enfim senhores,  
        Serão dadas na terra leis melhores.  
   

47  
        "Vereis este, que agora pressuroso  
        Por tantos medos o Indo vai buscando,   
        Tremer dele Neptuno, de medroso   
        Sem vento suas águas encrespando.   
        Ó caso nunca visto e milagroso,  
        Que trema e ferva o mar, em calma estando!  
        Ó gente forte e de altos pensamentos,  
        Que também dela hão medo os Elementos!  
   

48 -   
        "Vereis a terra, que a água lhe tolhia,  
        Que inda há-de ser um porto mui decente,  
        Em que vão descansar da longa via  
        As naus que navegarem do Ocidente.  
        Toda esta costa enfim, que agora urdia  
        O mortífero engano, obediente  
        Lhe pagará tributos, conhecendo  
        Não poder resistir ao Luso horrendo.  
   

49 -  
        "E vereis o mar Roxo, tão famoso,   
        Tornar-se-lhe amarelo, de enfiado;   
        Vereis de Ormuz o Reino poderoso   
        Duas vezes tomado e sojugado.  
        Ali vereis o Mouro furioso  
        De suas mesmas setas traspassado:  
        Que quem vai contra os vossos, claro veja   
        Que, se resiste, contra si peleja.  
   

50 -   
        "Vereis a inexpugnábil Dio forte,  
        Que dous cercos terá, dos vossos sendo.  
        Ali se mostrará seu preço e sorte,  
        Feitos de armas grandíssimos fazendo.  
        Invejoso vereis o grão Mavorte  
        Do peito Lusitano fero e horrendo:  
        Do Mouro ali verão que a voz extrema  
        Do falso Mahamede ao Céu blasfema.  
   

51 -  
        "Goa vereis aos Mouros ser tomada,  
        A qual virá depois a ser senhora  
        De todo o Oriente, e sublimada  
        Co'os triunfos da gente vencedora.  
        Ali soberba, altiva, e exalçada,  
        Ao Gentio, que os ídolos adora,  
        Duro freio porá, e a toda a terra  
        Que cuidar de fazer aos vossos guerra.  
   

52 -   
        "Vereis a fortaleza sustentar-se  
        De Cananor, com pouca força e gente;  
        E vereis Calecu desbaratar-se,  
        Cidade populosa e tão potente:  
        E vereis em Cochim assinalar-se  
        Tanto um peito soberbo e insolente,  
        Que cítara jamais cantou vitória,  
        Que assim mereça eterno nome e glória.  
   

53  
        "Nunca com Marte instructo e furioso,  
        Se viu ferver Leucate, quando Augusto  
        Nas civis Actias guerras animoso,  
        O Capitão venceu Romano injusto,  
        Que dos povos da Aurora, e do famoso  
        Nilo, e do Bactra Cítico e robusto  
        A vitória trazia, e presa rica,  
        Preso na Egípcia linda e nego pudica.  
   

54 -  
        Como vereis o mar fervendo aceso  
        Colos incêndios dos vossos pelejando,  
        Levando o Idololatra, e o Mouro preso,  
        De nações diferentes triunfando.  
        E sujeita a rica Áurea Quersoneso,  
        Até ao longínquo China navegando,  
        E as ilhas mais remotas do Oriente,  
        Ser-lhe-á todo o Oceano obediente.  
   

55  
        "De modo, filha minha, que de jeito  
        Amostrarão esforço mais que humano,  
        Que nunca se verá tão forte peito,  
        Do Gangético mar ao Gaditano,  
        Nem das Boreais ondas ao Estreito,  
        Que mostrou o agravado Lusitano,  
        Posto que em todo o mundo, de afrontados,  
        Ressuscitassem todos os passados."  
   

56  
        Como isto disse, manda o consagrado  
        Filho de Maia à Terra, por que tenha  
        Um pacífico porto o sossegado,  
        Para onde sem receio a frota venha;  
        F, para que em Mombaça, aventurado,  
        O forte Capitão se não detenha,  
        Lhe manda mais, que em sonhos lhe mostra  
        A terra, onde quieto repousasse.  
   

57 -   
        Já pelo ar o Cileneu voava;  
        Com as asas nos pés à Terra desce;  
        Sua vara fatal na mão levava,  
        Com que os olhos cansados adormece:  
        Com esta, as tristes almas revocava  
        Do Inferno, e o vento lhe obedece.  
        Na cabeça o galero costumado.  
        E desta arte a Melinde foi chegado.  
   

58  
        Consigo a Fama leva, por que diga  
        Do Lusitano o preço grande e raro,  
        Que o nome ilustre a um certo amor obriga  
        E faz, a quem o tem, amado e caro.  
        Desta arte vai fazendo a gente amiga,  
        Co rumor famosíssimo, e perclaro.  
        Já Melinde em desejos arde todo  
        De ver da gente forte o gesto e modo.  
   

59    
        Dali para Mombaça logo parte,  
        Aonde as naus estavam temerosas,  
        Para que à gente mande que se aparte  
        Da barra amiga e terras suspeitosas:  
        Porque mui pouco val esforço e arte,  
        Contra infernais vontades enganosas;  
        Pouco val coração, astúcia e siso,  
        Se lá dos Céus não vem celeste aviso.  
   

60 -  
        No feio caminho a noite tinha anelado,  
        E, as estrelas no Céu, coa luz alhea,  
        Tinham o largo Mundo alumiado;  
        E só co'o sono a gente se recreia.  
        O Capitão ilustre, já cansado  
        De vigiar a noite que arreceia,  
        Breve repouso então aos olhos dava,  
        A outra gente a quartos vigiava;  
   

61 -  
        Quando Mercúrio em sonhos lhe aparece,  
        Dizendo: "Fuge, fuge, Lusitano,  
        Da cilada que o Rei malvado tece,  
        Por te trazer ao fim, e extremo dano;  
        Fuge, que o vento, e o Céu te favorece;  
        Sereno o tempo tens e o Oceano,  
        E outro Rei mais amigo, noutra parte,  
        Onde podes seguro agasalhar-te.  
   

62  
        "Não tens aqui senão aparelhado  
        O hospício que o cru Diomedes dava,  
        Fazendo ser manjar acostumado  
        De cavalos a gente que hospedava;  
        As aras de Busíris infamado,  
        Onde os hóspedes tristes imolava,  
        Terás certas aqui, se muito esperas.  
        Fuge das gentes pérfidas e feras.  
   

63 - 
        "Vai-te ao longo da costa discorrendo,  
        E outra terra acharás de mais verdade,  
        Lá quase junto donde o Sol ardendo  
        Iguala o dia e noite em quantidade;  
        Ali tua frota alegre recebendo  
        Um Rei, com muitas obras de amizade,,  
        Gasalhado seguro te daria,  
        E, para a índia, certa e sábia guia."  

64  
        Isto Mercúrio disse, e o sono leva  
        Ao Capitão, que com mui grande espanto  
        Acorda, e vê ferida a escura treva  
        De uma súbita luz e raio santo.  
        E vendo claro quanto lhe releva  
        Não se deter na terra iníqua tanto,  
        Com novo espírito ao mestre seu mandava  
        Que as velas desse ao vento que assopravam.  
   

65 -  
        "Dai velas, disse, dai ao largo vento,  
        Que o Céu nos favorece e Deus o manda;  
        Que um mensageiro vi do claro assento  
        Que só em favor de nossos passos anda."  
        Alevanta-se nisto o movimento  
        Dos marinheiros, de uma e de outra banda;  
        Levam gritando as âncoras acima,  
        Mostrando a ruda força, que se estima.  
   

66 -  
        Neste tempo, que as âncoras levavam,  
        Na sombra escura os Mouros escondidos  
        Mansamente as amarras lhe cortavam,  
        Por serem, dando à costa, destruídos;  
        Mas com vista de linces vigiavam  
        Os Portugueses, sempre apercebidos.  
        Eles, como acordados os sentiram,  
        Voando, e não remando, lhe fugiram.  
   

67  
        Mas já as agudas proas apartando  
        Iam as vias húmidas de argento;  
        Assopra-lhe galerno o vento, e brando,  
        Com suave e seguro movimento.  
        Nos perigos passados vão falando,  
        Que mal se perderão do pensamento  
        Os casos grandes, donde em tanto aperto  
        A vida em salvo escapa por acerto.  
   

68 - 
        Tinha uma volta dado o Sol ardente  
        E noutro começava, quando viram  
        Ao longe deus navios, brandamente  
        Co'os ventos navegando, que respiram:  
        Porque haviam de ser da Maura gente,  
        Para eles arribando, as velas viram:  
        Um, de temor do mal que arreceava,  
        Por se salvar a gente à costa dava.  
   

69 -  
        Não é o outro que fica tão manhoso;  
        Mas nas mãos vai cair do Lusitano,  
        Sem o rigor de Marte furioso,  
        E sem a fúria horrenda de Vulcano;  
        Que como fosse débil e medroso  
        Da pouca gente o fraco peito humano,  
        Não teve resistência; e se a tivera,  
        Mais dano resistindo recebera.  
   

70 -  
        E como o Gama muito desejasse  
        Piloto para a Índia que buscava,  
        Cuidou que entre estes Mouros o tomasse;  
        Mas não lhe sucedeu como cuidava,  
        Que nenhum deles há que lhe ensinasse  
        A que parte dos céus a Índia estava;  
        Porém dizem-lhe todos, que tem perto  
        Melinde, onde achará piloto certo.  
   

71  
        Louvam do Rei os Mouros a bondade,  
        Condição liberal, sincero peito,  
        Magnificência grande e humanidade,  
        Com partes de grandíssimo respeito.  
        O Capitão o assela por verdade,  
        Porque já lhe dissera, deste jeito,  
        Cileneu em sonhos; e partia  
        Para onde o sonho e o Mouro lhe dizia.  
   

72 - 
        Era no tempo alegre, quando entrava  
        No roubador de Europa a luz Febeia,  
        Quando um e outro corno lhe aquentava,  
        E Flora derramava o de Amalteia:  
        A memória do dia renovava  
        O pressuroso Sol, que o Céu rodeia,  
        Em que Aquele, a quem tudo está sujeito,  
        O selo pôs a quanto tinha feito;  
   

73 -  
        Quando chegava a frota àquela parte,  
        Onde o Reino Melinde já se via,  
        De toldos adornada, e leda de arte  
        Que bem mostra estimar o santo dia.  
        Treme a bandeira, voa o estandarte,  
        A cor purpúrea ao longe aparecia;  
        Soam os atambores o pandeiros,  
        E assim entravam ledos e guerreiros.  
   

74  
        Enche-se toda a praia Melindana  
        Da gente que vem ver a leda armada,  
        Gente mais verdadeira, e mais humana,  
        Que toda a doutra terra atrás deixada.  
        Surge diante a frota Lusitana,  
        Pega no fundo a âncora pesada;  
        Mandam fora um dos Mouros que tomaram,  
        Por quem sua vinda ao Rei manifestaram.  
   

75 -  
        O Rei, que já sabia da nobreza  
        Que tanto os Portugueses engrandece,  
        Tomarem o seu porto tanto preza,  
        Quanto a gente fortíssima merece:  
        E com verdadeiro ânimo e pureza,  
        Que os peitos generosos enobrece,  
        Lhe manda rogar muito que saíssem,  
        Para que de seus reinos se servissem.  
   

76 -  
        São oferecimentos verdadeiros,  
        E palavras sinceras, não dobradas,  
        As que o Rei manda aos nobres cavaleiros,  
        Que tanto mar e terras tem passadas.  
        Manda-lhe mais lanígeros carneiros,  
        E galinhas domésticas cevadas,  
        Com as frutas, que então na terra havia;  
        E a vontade à dádiva excedia.  
   

77 -  
        Recebe o Capitão alegremente  
        O mensageiro ledo e seu recado;  
        E logo manda ao Rei outro presente,   
        Que de longe trazia aparelhado:   
        Escarlata purpúrea, cor ardente,  
        O ramoso coral, fino e prezado,  
        Que debaixo das águas mole cresce,   
        E como é fora delas se endurece.  
   

78 -   
        Manda mais um, na prática elegante,  
        Que co'o Rei nobre as pazes concertasse,  
        E que de não sair naquele instante  
        De suas naus em terra o desculpasse.  
        Partido assim o embaixador prestante,  
        Como na terra ao Rei se apresentasse,  
        Com estilo que Palas lhe ensinava,  
        Estas palavras tais falando orava:  
   

79 -  
        "Sublime Rei, a quem do Olimpo puro  
        Foi da suma Justiça concedido  
        Refrear o soberbo povo duro,  
        Não menos dele amado, que temido:  
        Como porto mui forte e mui seguro,  
        De todo o Oriente conhecido,  
        Te vimos a buscar, para que achemos  
        Em ti o remédio certo que queremos.  
   

80  
        "Não somos roubadores, que passando  
        Pelas fracas cidades descuidadas,  
        A ferro e a fogo as gentes vão matando,  
        Por roubar-lhe as fazendas cobiçadas;  
        Mas da soberba Europa navegando,  
        Imos buscando as terras apartadas  
        Da Índia grande e rica, por mandado  
        De um Rei que temos, alto e sublimado.  
  
 
81 - 
        "Que geração tão dura há hi de gente,  
        Que bárbaro costume e usança feia,  
        Que não vedem os portos tão somente,  
        Mas inda o hospício da deserta areia?  
        Que má tenção, que peito em nós se sente,  
        Que de tão pouca gente se arreceia?  
        Que com laços armados, tão fingidos,  
        Nos ordenassem ver-nos destruídos?  
   

82  
        "Mas tu, e quem mui certo confiamos  
        Achar-se mais verdade, ó Rei benigno,  
        E aquela certa ajuda em ti esperamos,  
        Que teve o perdido Ítaco em Alcino,  
        A teu porto seguro navegamos,  
        Conduzidos do intérprete divino;  
        Que, pois a ti nos manda, está mui claro,  
        Que és de peito sincero, humano e raro.  
   

83  
        "E não cuides, ó Rei, que não saísse  
        O nosso Capitão esclarecido  
        A ver-te, ou a servir-te, porque visse  
        Ou suspeitasse em ti peito fingido:  
        Mas saberás que o fez, porque cumprisse  
        O regimento, em tudo obedecido,  
        De seu Rei, que lhe manda que não saia,   
        Deixando a frota, em nenhum porto ou praia.  
   

84  
        "E porque é, de vassalos o exercício,   
        Que os membros tem regidos da cabeça,   
        Não quererás, pois tens de Rei o ofício,   
        Que ninguém a seu Rei desobedeça;   
        Mas as mercês e o grande benefício,   
        Que ora acha em ti, promete que conheça  
        Em tudo aquilo que ele e os seus puderem,   
        Enquanto os rios para o mar correrem."  
   

85  
        Assim dizia; e todos juntamente,  
        Uns com outros em prática falando,  
        Louvavam muito o estâmago da gente,  
        Que tantos céus e mares vai passando.  
        E o Rei ilustre, o peito obediente  
        Dos Portugueses na alma imaginando,  
        Tinha por valor grande e mui subido  
        O do Rei que é tão longe obedecido.  
   

86 -   
        E com risonha vista e ledo aspeito,  
        Responde ao embaixador, que tanto estima:  
        "Toda a suspeita má tirai do peito,  
        Nenhum frio temor em vós se imprima;  
        Que vosso preço e obras são de jeito  
        Para vos ter o mundo em muita estima;  
        E quem vos fez molesto tratamento,  
        Não pode ter subido pensamento.  
   

87 -  
        "De não sair em terra toda a gente,  
        Por observar a usada preminência,  
        Ainda que me pese estranhamente,  
        Em muito tenho a muita obediência;  
        Mas, se lho o regimento não consente,  
        Nem eu consentirei que a excelência  
        De peitos tão leais em si desfaça,  
        Só porque a meu desejo satisfaça.  
   

88  
        "Porém, como a luz crástina chegada  
        Ao mundo for, em minhas almadias  
        Eu irei visitar a forte armada,  
        Que ver tanto desejo, há tantos dias;  
        E se vier do mar desbaratada,  
        Do furioso vento e longas vias,  
        Aqui terá, de limpos pensamentos,  
        Piloto, munições e mantimentos."  
   

89 -  
        Isto disse; e nas águas se escondia  
        O filho de Latona; e o mensageiro  
        Coa embaixada alegre se partia  
        Para a frota, no seu batel ligeiro.  
        Enchem-se os peitos todos de alegria.  
        Por terem o remédio verdadeiro  
        Para acharem a terra que buscavam;  
        E assim ledos a noite festejavam.  
   

90 -   
        Não faltam ali os raios de artifício,  
        Os trêmulos cometas imitando;  
        Fazem os bombardeiros seu ofício,  
        O céu, a terra e as ondas atroando.  
        Mostra-se dos Ciclopas o exercício  
        Nas bombas que de fogo estão queimando;  
        Outros com vozes, com que o céu feriam,  
        Instrumentos altíssonos tangiam.  
   

91  
        Respondem-lhe da terra juntamente,  
        Co'o raio volteando, com zunido;  
        Anda em giros no ar a roda ardente,  
        Estoura o pó sulfúreo escondido.  
        A grita se alevanta ao céu, da gente;  
        O mar se via em fogos acendido,  
        E não menos a terra; e assim festeja  
        Um ao outro, a maneira de peleja.  
   

92 -  
        Mas já o Céu inquieto revolvendo,  
        As gentes incitava a seu trabalho,  
        E já a mãe de Menon a luz trazendo,  
        Ao sono longo punha certo atalho;  
        Iam-se as sombras lentas desfazendo,  
        Sobre as flores da terra em frio orvalho,  
        Quando o Rei Melindano se embarcava  
        A ver a frota, que no mar estava.  
   

93  
        Viam-se em derredor ferver as praias  
        Da gente, que a ver só concorre leda;  
        Luzem da fina púrpura as cabaias,  
        Lustram os panos da tecida seda;  
        Em lugar das guerreiras azagaias  
        E do arco, que os cornos arremeda  
        Da Lua, trazem ramos de palmeira,  
        Dos que vencem, coroa verdadeira.  
   

94  
        Um batel grande e largo, que toldado  
        Vinha de sedas de diversas cores,  
        Traz o Rei de Melinde, acompanhado  
        De nobres e seu Reino e de senhores:  
        Vem de ricos vestidos adornado,  
        Segundo seus costumes e primores;  
        Na cabeça uma fota guarnecida  
        De ouro, e de seda e de algodão tecida.  
   

95  
        Cabaia de Damasco rico e dino,  
        Da Tíria cor, entre eles estimada,  
        Um colar ao pescoço, de ouro fino,  
        Onde a matéria da obra é superada,  
        C'um resplendor reluze adamantino;  
        Na cinta, a rica bem lavrada;  
        Nas alparcas dos pés, em fim de tudo,  
        Cobrem ouro e aljôfar ao veludo.  
   

96  
        Com um redondo emparo alto de seda,  
        Numa alta e dourada hástia enxerido,  
        Um ministro à solar quentura veda.  
        Que não ofenda e queime o Rei subido.  
        Música traz na proa, estranha e leda,  
        De áspero som, horríssono ao ouvido,  
        De trombetas arcadas em redondo,  
        Que, sem concerto, fazem rudo estrondo.  
   

97  
        Não menos guarnecido o Lusitano  
        Nos seus batéis, da frota se partia  
        A receber no mar o Melindano,  
        Com lustrosa e lograda companhia.  
        Vestido o Gama vem ao modo Hispano,  
        Mas Francesa era a roupa que vestia,  
        De cetim da Adriática Veneza  
        Carmesi, cor que a gente tanto preza:  
   

98  
        De botões douro as mangas vêm tomadas,  
        Onde o Sol reluzindo a vista cega;  
        As calças soldadescas recamadas  
        Do metal, que Fortuna a tantos nega,  
        E com pontas do mesmo delicadas  
        Os golpes do gibão ajunta e achega;  
        Ao Itálico modo a áurea espada;  
        Pluma na gorra, um pouco declinada.  
   

99  
        Nos de sua companhia se mostrava  
        Da tinta, que dá o múrice excelente,  
        A vária cor, que os olhos alegrava,  
        E a maneira do trajo diferente.  
        Tal o formoso esmalte se notava  
        Dos vestidos, olhados juntamente,  
        Qual aparece o arco rutilante  
        Da bela Ninfa, filha de Taumante.  
   

100  
        Sonorosas trombetas incitavam  
        Os ânimos alegres, ressoando;  
        Dos Mouros os batéis, o mar coalhavam,  
        Os toldos pelas águas arrojando;  
        As bombardas horríssonas bramavam,  
        Com as nuvens de fumo o Sol tomando;  
        Amiúdam-se os brados acendidos,  
        Tapam com as mãos os Mouros os ouvidos.  
   

101 - 
        Já no batel entrou do Capitão  
        O Rei, que nos seus braços o levava;  
        Ele coa cortesia, que a razão  
        (Por ser Rei) requeria, lhe falava.  
        C'umas mostras de espanto e admiração,  
        O Mouro o gesto e o modo lhe notava,  
        Como quem em mui grande estima tinha  
        Gente que de tão longe à índia vinha.  
   

102 - 
        E com grandes palavras lhe oferece  
        Tudo o que de seus Reinos lhe cumprisse,  
        E que, se mantimento lhe falece,  
        Como se próprio fosse, lho pedisse.  
        Diz-lhe mais, que por fama bem conhece  
        A gente Lusitana, sem que a visse;  
        Que já ouviu dizer, que noutra terra  
        Com gente de sua Lei tivesse guerra.  
   

103  
        E como por toda África se soa,  
        Lhe diz, os grandes feitos que fizeram,  
        Quando nela ganharam a coroa  
        Do Reino, onde as Hespéridas viveram;  
        E com muitas palavras apregoa  
        O menos que os de Luso mereceram,  
        E o mais que pela fama o Rei sabia.  
        Mas desta sorte o Gama respondia:  
   

104 -  
        "Ó tu, que só tiveste piedade,  
        Rei benigno, da gente Lusitana,  
        Que com tanta miséria e adversidade  
        Dos mares experimenta a fúria insana;  
        Aquela alta e divina Eternidade,  
        Que o Céu revolve e rege a gente humana,  
        Pois que de ti tais obras recebemos,  
        Te pague o que nós outros não podemos.  
   

105  
        "Tu só, de todos quantos queima Apolo,  
        Nos recebes em paz, cio mar profundo;  
        Em ti dos ventos hórridos de Eolo  
        Refúgio achamos bom, fido e jocundo.  
        Enquanto apascentar o largo Pólo  
        As Estrelas, e o Sol der lume ao Mundo,  
        Onde quer que eu viver, com fama e glória  
        Viverão teus louvores em memória."  
   

106 - 
        Isto dizendo, os barcos vão remando  
        Para a frota, que o Mouro ver deseja;  
        Vão as naus uma e uma rodeando,  
        Porque de todas tudo note e veja.  
        Mas para o céu Vulcano fuzilando,  
        A frota coas bombardas o festeja,  
        E as trombetas canoras lhe tangiam;  
        Co'os anafis os Mouros respondiam.  
   

107  
        Mas depois de ser tudo já notado  
        Do generoso Mouro, que pasmava  
        Ouvindo o instrumento inusitado,  
        Que tamanho terror em si mostrava,  
        Mandava estar quieto e ancorado  
        N’água o batel ligeiro que os levava,  
        Por falar de vagar co'o forte Gama,  
        Nas cousas de que tem notícia e faina.  
   

108 
        Em práticas o Mouro diferentes  
        Se deleitava, perguntando agora  
        Pelas guerras famosas e excelentes  
        Co'o povo havidas, que a Mafoma adora;  
        Agora lhe pergunta pelas gentes  
        De toda a Hespéria última, onde mora;  
        Agora pelos povos seus vizinhos,  
        Agora pelos úmidos caminhos.  
   

109  
        "Mas antes, valeroso Capitão,  
        Nos conta, lhe dizia, diligente,  
        Da terra tua o clima, e região  
        Do mundo onde morais distintamente;  
        E assim de vossa antiga geração,  
        E o princípio do Reino tão potente,  
        Co'os sucessos das guerras do começo,  
        Que, sem sabê-las, sei que são de preço.  
   

110  
        "E assim também nos conta dos rodeios  
        Longos, em que te traz o mar irado,  
        Vendo os costumes bárbaros alheios.  
        Que a nossa África ruda tem criado.  
        Conta: que agora vêm co'os áureos freios  
        Os cavalos que o carro marchetado  
        Do novo Sol, da fria Aurora trazem,  
        O vento dorme, o mar e as ondas jazem.  
   

111 - 
        "E não menos co'o tempo se parece  
        O desejo de ouvir-te o que contares;  
        Que quem há, que por fama não conhece  
        As obras Portuguesas singulares?  
        Não tanto desviado resplandece  
        De nós o claro Sol, para julgares  
        Que os Melindanos têm tão rudo peito,  
        Que não estimem muito um grande feito.  
   

112  
        "Cometeram soberbos os Gigantes,  
        Com guerra vã, o Olimpo claro e puro;  
        Tentou Pirítoo e Teseu, de ignorantes,  
        O Reino de Plutão horrendo e escuro.  
        Se houve feitos no mundo tão possantes,  
        Não menos é trabalho ilustre e duro,  
        Quanto foi cometer Inferno o Céu,  
        Que outrem cometa a fúria de Nereu.  
   

113  
        "Queimou o sagrado templo de Diana,  
        Do subtil Tesifónio fabricado,  
        Heróstrato, por ser da gente humana  
        Conhecido no mundo e nomeado:  
        Se também com tais obras nos engana  
        O desejo de um nome avantajado,  
        Mais razão há que queira eterna glória  
        Quem faz obras tão dignas de memória."