sábado, 15 de setembro de 2018

CAMÕES, CANTO 3

Canto Terceiro                                                   
  
 
1 -   
        Agora tu, Calíope, me ensina 
        O que contou ao Rei o ilustre Gama: 
        Inspira imortal canto e voz divina 
        Neste peito mortal, que tanto te ama. 
        Assim o claro inventor da Medicina, 
        De quem Orfeu pariste, ó linda Dama, 
        Nunca por Dafne, Clície ou Leucotoe, 
        Te negue o amor devido, como soe. 
  


        Põe tu, Ninfa, em efeito meu desejo, 
        Como merece a gente Lusitana; 
        Que veja e saiba o mundo que do Tejo 
        O licor de Aganipe corre e mana. 
        Deixa as flores de Pindo, que já vejo 
        Banhar-me Apolo na água soberana; 
        Senão direi que tens algum receio, 
        Que se escureça o teu querido Orfeio. 
  

3 -   
        Prontos estavam todos escutando  
        O que o sublime Gama contaria, 
        Quando, depois de um pouco estar cuidando,  
        Alevantando o rosto, assim dizia: 
        "Mandas-me, ó Rei, que conte declarando  
        De minha gente a grão genealogia: 
        Não me mandas contar estranha história,  
        Mas mandas-me louvar dos meus a glória. 
  


        "Que outrem possa louvar esforço alheio, 
        Cousa é que se costuma e se deseja; 
        Mas louvar os meus próprios, arreceio 
        Que louvor tão suspeito mal me esteja; 
        E para dizer tudo, temo e creio, 
        Que qualquer longo tempo curto seja: 
        Mas, pois o mandas, tudo se te deve, 
        Irei contra o que devo, e serei breve. 
  


        "Além disso, o que a tudo enfim me obriga,  
        É não poder mentir no que disser,  
        Porque de feitos tais, por mais que diga,  
        Mais me há-de ficar inda por dizer.  
        Mas, porque nisto a ordens leve e siga,  
        Segundo o que desejas de saber,  
        Primeiro tratarei da larga terra,  
        Depois direi da sanguinosa guerra. 
  

6 -    
        "Entre a Zona que o Cancro senhoreia, 
        Meta setentrional do Sol luzente, 
        E aquela que por f ria se arreceia 
        Tanto, como a do meio por ardente, 
        Jaz a soberba Europa, a quem rodeia, 
        Pela parte do Areturo, e do Ocidente, 
        Com suas salsas ondas o Oceano, 
        E pela Austral o mar Mediterrano. 
  


        "Da parte donde o dia vem nascendo, 
        Com Ásia se avizinha; mas o rio 
        Que dos montes Rifeios vai correndo, 
        Na alagoa Meotis, curvo o frio, 
        As divide: e o mar que, fero e horrendo, 
        Viu dos Gregos o irado senhorio, 
        Onde agora de Tróia triunfante 
        Não vê mais que a memória o navegante. 
  


        "Lá onde mais debaixo está do Pólo, 
        Os montes Hiperbóreos aparecem, 
        E aqueles onde sempre sopra Eolo, 
        E co'o nome, dos sopros se enobrecem. 
        Aqui tão pouca força tem de Apolo 
        Os raios que no mundo resplandecem, 
        Que a neve está contido pelos montes, 
        Gelado o mar, geladas sempre as fontes. 
  


        "Aqui dos Citas grande quantidade 
        Vivem, que antigamente grande guerra 
        Tiveram, sobre a humana antiguidade, 
        Co'os que tinham então a Egípcia terra; 
        Mas quem tão fora estava da verdade,  
        (Já que o juízo humano tanto erra) 
        Para que do mais certo se informara, 
        Ao campo Damasceno o perguntara. 
  

10 -  
        "Agora nestas partes se nomeia 
        A Lápia fria, a inculta Noruega, 
        Escandinávia Ilha, que se arreia 
        Das vitórias que Itália não lhe nega. 
        Aqui, enquanto as águas não refreia 
        O congelado inverno, se navega 
        Um braço do Sarmático Oceano 
        Pelo Brúsio, Suécio e frio Dano. 
  

11 
        "Entre este mar e o Tánais vive estranha 
        Gente: Rutenos, Moseos e Livónios, 
        Sármatas outro tempo; e na montanha 
        Hircínia os Marcomanos são Polónios. 
        Sujeitos ao Império de Alemanha 
        São Saxones, Boêmios e Panónios, 
        E outras várias nações, que o Reno frio 
        Lava, e o Danúbio, Amasis e Albis rio. 
  

12 -  
        "Entre o remoto Istro e o claro Estreito, 
        Aonde Hele deixou co’o nome a vida, 
        Estão os Traces de robusto peito, 
        Do fero Marte pátria tão querida, 
        Onde, colo Hemo, o Ródope sujeito 
        Ao Otomano está, que submetida 
        Bizâncio tem a seu serviço indino: 
        Boa injúria do grande Constantino! 
  

13 -   
        "Logo de Macedónia estão as gentes, 
        A quem lava do Axio a água fria; 
        E vós também, ó terras excelentes 
        Nos costumes, engenhos e ousadia, 
        Que criastes os peitos eloquentes 
        E os juízos de alta fantasia, 
        Com quem tu, clara Grécia, o Céu penetras, 
        E não menos por armas, que por letras. 
  

14 -    
        "Logo os Dálmatas vivem; e no seio, 
        Onde Antenor já muros levantou, 
        A soberba Veneza está no meio 
        Das águas, que tão baixa começou. 
        Da terra um braço vem ao mar, que cheio 
        De esforço, nações várias sujeitou, 
        Braço forte, de gente sublimada, 
        Não menos nos engenhos, que na espada. 
  

15 -   
        "Em torno o cerca o Reino Neptunino, 
        Co'os muros naturais por outra parte; 
        Pelo meio o divide o Apenino, 
        Que tão ilustre fez o pátrio Marte; 
        Mas depois que o Porteiro tem divino, 
        Perdendo o esforço veio, e bélica arte; 
        Pobre está já de antiga potestade: 
        Tanto Deus se contenta de humildade! 
  

16 - 
        "Gália ali se verá que nomeada 
        Co'os Cesáreos triunfos foi no mundo, 
        Que do Séquana e Ródano é regada, 
        E do Giruna frio e Reno fundo. 
        Logo os montes da Ninfa sepultada 
        Pirene se alevantam, que segundo 
        Antiguidades contam, quando arderam, 
        Rios de ouro e de prata então correram. 
  

17 -   
        "Eis aqui se descobre a nobre Espanha, 
        Como cabeça ali de Europa toda, 
        Em cujo senhorio o glória estranha 
        Muitas voltas tem dado a fatal roda; 
        Mas nunca poderá, com força ou manha, 
        A fortuna inquieta pôr-lhe noda, 
        Que lhe não tire o esforço e ousadia 
        Dos belicosos peitos que em si cria. 
  

18 
        "Com Tingitânia entesta, e ali parece 
        Que quer fechar o mar Mediterrano, 
        Onde o sabido Estreito se enobrece 
        Co'o extremo trabalhado Tebano. 
        Com nações diferentes se engrandece, 
        Cercadas com as ondas do Oceano; 
        Todas de tal nobreza e tal valor, 
        Que qualquer delas cuida que é melhor. 
  

19 
        "Tem o Tarragonês, que se fez claro 
        Sujeitando Parténope inquieta; 
        O Navarro, as Astúrias, que reparo 
        Já foram contra a gente Mahometa; 
        Tem o Galego cauto, e o grande e raro 
        Castelhano, a quem fez o seu Planeta 
        Restituidor de Espanha e senhor dela, 
        Bétis, Lião, Granada, com Castela. 
  

20 -   
        "Eis aqui, quase cume da cabeça 
        De Europa toda, o Reino Lusitano, 
        Onde a terra se acaba e o mar começa, 
        E onde Febo repousa no Oceano. 
        Este quis o Céu justo que floresça 
        Nas armas contra o torpe Mauritano, 
        Deitando-o de si fora, e lá na ardente 
        África estar quieto o não consente. 
  

22 -  
        "Esta é a ditosa pátria minha amada, 
        A qual se o Céu me dá que eu sem perigo 
        Torne, com esta empresa já acabada, 
        Acabe-se esta luz ali comigo. 
        Esta foi Lusitânia, derivada 
        De Luso, ou Lisa, que de Baco antigo 
        Filhos foram, parece, ou companheiros, 
        E nela então os Íncolas primeiros. 
  

22 -  
        "Desta o pastor nasceu, que no seu nome 
        Se vê que de homem forte os feitos teve; 
        Cuja fama ninguém virá que dome, 
        Pois a grande de Roma não se atreve. 
        Esta, o velho que os filhos próprios come 
        Por decreto do Céu, ligeiro e leve, 
        Veio a fazer no mundo tanta parte, 
        Criando-a Reino ilustre; e foi desta arte: 
  

23 -   
        "Um Rei, por nome Afonso, foi na Espanha, 
        Que fez aos Sarracenos tanta guerra, 
        Que por armas sanguinas, força e manha, 
        A muitos fez perder a vida o a terra; 
        Voando deste Rei a fama estranha 
        Do Herculano Calpe à Cáspia serra, 
        Muitos, para na guerra esclarecer-se, 
        Vinham a ele e à morte oferecer-se. 
  

24 
        "E com um amor intrínseco acendidos 
        Da Fé, mais que das honras populares, 
        Eram de várias terras conduzidos, 
        Deixando a pátria amada e próprios lares. 
        Depois que em feitos altos e subidos 
        Se mostraram nas armas singulares, 
        Quis o famoso Afonso que obras tais 
        Levassem prêmio digno e dons iguais. 
  

25 -   
        "Destes Anrique, dizem que segundo 
        Filho de um Rei de Ungria exprimentado, 
        Portugal houve em sorte, que no mundo 
        Então não era ilustre nem prezado; 
        E, para mais sinal d'amor profundo, 
        Quis o Rei Castelhano, que casado 
        Com Teresa, sua filha, o Conde fosse; 
        E com ela das terras tornou posse. 
  

26 
        "Este, depois que contra os descendentes 
        Da escrava Agar vitórias grandes teve, 
        Ganhando muitas terras adjacentes, 
        Fazendo o que a seu forte peito deve, 
        Em prêmio destes feitos excelentes, 
        Deu-lhe o supremo Deus, em tempo breve, 
        Um filho, que ilustrasse o nome ufano 
        Do belicoso Reino Lusitano. 
  

27 
        "Já tinha vindo Anrique da conquista 
        Da cidade Hierosólima sagrada, 
        E do Jordão a areia tinha vista, 
        Que viu de Deus a carne em si lavada; 
        Que não tendo Gotfredo a quem resista, 
        Depois de ter Judeia sojugada, 
        Muitos, que nestas guerras o ajudaram, 
        Para seus senhorios se tornaram; 
  

28 - 
        "Quando chegado ao fim de sua idade, 
        O forte e famoso Úngaro estremado, 
        Forçado da fatal necessidade, 
        O espírito deu a quem lhe tinha dado, 
        Ficava o filho em tenra mocidade, 
        Em quem o pai deixava seu traslado, 
        Que do mundo os mais fortes igualava; 
        Que de tal pai tal filho se esperava. 
  

29 
        "Mas o velho rumor, não sei se errado, 
        Que em tanta antiguidade não há certeza, 
        Conta que a mãe, tomando todo o estado, 
        Do segundo himeneu não se despreza. 
        O filho órfão deixava deserdado, 
        Dizendo que nas terras a grandeza 
        Do senhorio todo só sua era, 
        Porque, para casar, seu pai lhes dera. 
  

30 -   
        "Mas o Príncipe Afonso, que desta arte  
        Se chamava, do avô tomando o nome,  
        Vendo-se em suas terras não ter parte,  
        Que a mãe, com seu marido, as manda e come,  
        Fervendo-lhe no peito o duro Marte,  
        Imagina consigo como as tome. 
        Revolvidas as causas no conceito,  
        Ao propósito firme segue o efeito. 
  

31 - 
        "De Guimarães o campo se tingia 
        Co'o sangue próprio da intestina guerra, 
        Onde a mãe, que tão pouco o parecia, 
        A seu filho negava o amor e a terra. 
        Com ele posta em campo já se via; 
        E não vê a soberba o muito que erra 
        Contra Deus, contra o maternal amor; 
        Mas nela o sensual era maior. 
  

32 
        "Ó Progne crua! ó mágica Medeia! 
        Se em vossos próprios filhos vos vingais 
        Da maldade dos pais, da culpa alheia, 
        Olhai que inda Teresa peca mais: 
        Incontinência má, cobiça feia, 
        São as causas deste erro principais: 
        Cila, por uma, mata o velho pai, 
        Esta, por ambas, contra o filho vai. 
  

33 - 
        "Mas já o Príncipe claro o vencimento 
        Do padrasto e da iníqua mãe levava; 
        Já lhe obedece a terra num momento, 
        Que primeiro contra ele pelejava. 
        Porém, vencido de ira o entendimento, 
        A mãe em ferros ásperos atava; 
        Mas de Deus foi vingada em tempo breve: 
        Tanta veneração aos pais se deve! 
  

34 -  
        "Eis se ajunta o soberbo Castelhano, 
        Para vingar a injúria de Teresa, 
        Contra o tão raro em gente Lusitano, 
        A quem nenhum trabalho agrava ou pesa. 
        Em batalha cruel o peito humano, 
        Ajudado da angélica defesa, 
        Não só contra tal fúria se sustenta, 
        Mas o inimigo aspérrimo afugenta. 
  

35 -  
        "Não passa muito tempo, quando o forte 
        Príncipe em Guimarães está cercado 
        De infinito poder; que desta sorte 
        Foi refazer-se o inimigo magoado; 
        Mas, com se oferecer à dura morte 
        O fiel Egas amo, foi livrado; 
        Que de outra arte pudera ser perdido, 
        Segundo estava mal apercebido. 
  

36 -  
        ''lulas o leal vassalo, conhecendo 
        Que seu senhor não tinha resistência, 
        Se vai ao Castelhano, prometendo 
        Que ele faria dar-lhe obediência. 
        Levanta o inimigo o cerco horrendo, 
        Fiado na promessa e consciência 
        De Egas Moniz; mas não consente o peito 
        Do moço ilustre a outrem ser sujeito. 
  
 
  
 
37 
        "Chegado tinha o prazo prometido, 
        Em que o Rei Castelhano já aguardava 
        Que o Príncipe, a seu mando sometido, 
        Lhe desse a obediência que esperava. 
        Vendo Egas que ficava fementido, 
        O que dele Castela não cuidava, 
        Determina de dar a doce vida 
        A troco da palavra mal cumprida. 
  

38 
        "E com seus filhos e mulher se parte 
        A alevantar com eles a fiança, 
        Descalços e despidos, de tal arte, 
        Que mais move a piedade que a vingança. 
        - "Se pretendes, Rei alto, de vingar-te 
        De minha temerária confiança, 
        Dizia, eis aqui venho oferecido 
        A te pagar, coa vida, o prometido. 
  

39 
        "Vês aqui trago as vidas inocentes  
        Dos filhos sem pecado e da consorte;  
        Se a peitos generosos e excelentes,  
        Dos fracos satisfaz a fera morte.   
        Vês aqui as mãos e a língua delinquentes:  
        Nelas sós exprimenta toda a sorte  
        De tormentos, de mortes, pelo estilo  
        De Cínis e do touro de Perilo"! - 
  

40 
        "Qual diante do algoz o condenado, 
        Que já na vida a morte tem bebido, 
        Põe no cepo a garganta, e já entregado 
        Espera pelo golpe tão temido: 
        Tal diante do Príncipe indinado, 
        Egas estava a tudo oferecido. 
        Mas o Rei, vendo a estranha lealdade, 
        Mais pôde, enfim, que a ira a piedade. 
  

41 
        "Ó grão fidelidade Portuguesa, 
        De vassalo, que a tanto se obrigava! 
        Que mais o Persa fez naquela empresa, 
        Onde rosto e narizes se cortava? 
        Do que ao grande Dario tanto pesa, 
        Que mil vezes dizendo suspirava, 
        Que mais o seu Zopiro são prezara, 
        Que vinte Babilónias que tomara. 
  

42 - 
        Mas já o Príncipe Afonso aparelhava 
        O Lusitano exército ditoso, 
        Contra o Mouro que as terras habitava 
        D’além do claro Tejo deleitoso; 
        Já no campo de Ourique se assentava 
        O arraial soberbo e belicoso, 
        Defronte do inimigo Sarraceno, 
        Posto que em força e gente tão pequeno. 
  

43 
        "Em nenhuma outra cousa confiado, 
        Senão no sumo Deus, que o Céu regia, 
        Que tão pouco era o povo batizado, 
        Que para um só cem Mouros haveria. 
        Julga qualquer juízo sossegado 
        Por mais temeridade que ousadia, 
        Cometer um tamanho ajuntamento, 
        Que para um cavaleiro houvesse cento. 
  

44 -   
        "Cinco Reis Mouros são os inimigos, 
        Dos quais o principal Ismar se chama; 
        Todos exprimentados nos perigos 
        Da guerra, onde se alcança a ilustre fama. 
        Seguem guerreiras damas seus amigos, 
        Imitando a formosa e forte Dama, 
        De quem tanto os Troianos se ajudaram, 
        E as que o Termodonte já gostaram. 
  

45 -   
        "A matutina luz serena e fria, 
        As estrelas do Pólo já apartava, 
        Quando na Cruz o Filho de Maria, 
        Amostrando-se a Afonso, o animava. 
        Ele, adorando quem lhe aparecia, 
        Na Fé todo inflamado assim gritava: 
        - "Aos infiéis, Senhor, aos infiéis, 
        E não a mim, que creio o que podeis!" 
  

46 -  
        "Com tal milagre os ânimos da gente 
        Portuguesa inflamados, levantavam 
        Por seu Rei natural este excelente 
        Príncipe, que do peito tanto amavam; 
        E diante do exército potente 
        Dos imigos, gritando o céu tocavam, 
        Dizendo em alta voz: - "Real, real, 
        Por Afonso alto Rei de Portugal." 
  

47 
        "Qual co'os gritos e vozes incitado, 
        Pela montanha o rábido Moloso, 
        Contra o touro remete, que fiado 
        Na força está do corno temeroso: 
        Ora pega na orelha, ora no lado, 
        Latindo mais ligeiro que forçoso, 
        Até que enfim, rompendo-lhe a garganta, 
        Do bravo a força horrenda se quebranta: 
  

48 -  
        "Tal do Rei novo o estâmago acendido 
        Por Deus e pelo povo juntamente, 
        O Bárbaro comete apercebido, 
        Co'o animoso exército rompente. 
        Levantam nisto os perros o alarido 
        Dos gritos, tocam a arma, ferve a gente, 
        As lanças e arcos tomam, tubas soam, 
        Instrumentos de guerra tudo atroam. 
  

49 
        "Bem como quando a flama, que ateada 
        Foi nos áridos campos (assoprando 
        O sibilante Bóreas) animada 
        Co'o vento, o seco mato vai queimando; 
        A pastoral companha, que deitada 
        Co'o doce sono estava, despertando 
        Ao estridor do fogo que se ateia, 
        Recolhe o fato, e foge para a aldeia: 
  

50 
        "Desta arte o Mouro atônito e torvado, 
        Toma sem tento as armas mui depressa; 
        Não foge; mas espera confiado, 
        E o ginete belígero arremessa. 
        O Português o encontra denodado, 
        Pelos peitos as lanças lhe atravessa: 
        Uns caem meios mortos, e outros vão 
        A ajuda convocando do Alcorão. 
  

51 
        "Ali se vêem encontros temerosos, 
        Para se desfazer uma alta serra, 
        E os animais correndo furiosos 
        Que Neptuno amostrou ferindo a terra. 
        Golpes se dão medonhos e forçosos; 
        Por toda a parte andava acesa a guerra: 
        Mas o de Luso arnês, couraça e malha 
        Rompe, corta, desfaz, abola e talha. 
  

52 
        "Cabeças pelo campo vão saltando 
        Braços, pernas, sem dono e sem sentido; 
        E doutros as entranhas palpitando, 
        Pálida a cor, o gesto amortecido. 
        Já perde o campo o exército nefando; 
        Correm rios de sangue desparzido, 
        Com que também do campo a cor se perde, 
        Tornado carmesi de branco e verde. 
  

53 -   
        "Já fica vencedor o Lusitano, 
        Recolhendo os troféus e presa rica; 
        Desbaratado e roto o Mauro Hispano, 
        Três dias o grão Rei no campo fiei. 
        Aqui pinta no branco escudo ufano, 
        Que agora esta vitória certifica, 
        Cinco escudos azuis esclarecidos, 
        Em sinal destes cinco Reis vencidos, 
  

54 
        "E nestes cinco escudos pinta os trinta 
        Dinheiros por que Deus fora vendido, 
        Escrevendo a memória em vária tinta, 
        Daquele de quem foi favorecido. 
        Em cada uni dos cinco, cinco pinta, 
        Porque assim fica o número cumprido, 
        Contando duas vezes o do meio, 
        Dos cinco azuis, que em cruz pintando veio. 
  

55 -  
        "Passado já algum tempo que passada 
        Era esta grão vitória, o Rei subido 
        A tomar vai Leiria, que tomada 
        Fora, mui pouco havia, do vencido. 
        Com esta a forte Arronches sojugada 
        Foi juntamente, e o sempre enobrecido 
        Scalabicastro, cujo campo ameno, 
        Tu, claro Tejo, regas tão sereno. 
  

56 -  
        "A estas nobres vilas sometidas, 
        Ajunta também Mafra, em pouco espaço, 
        E nas serras da Lua conhecidas, 
        Sojuga a fria Sintra o duro braço; 
        Sintra, onde as Naiades, escondidas 
        Nas fontes, vão fugindo ao doce laço, 
        Onde Amor as enreda brandamente, 
        Nas águas acendendo fogo ardente. 
  

57 -   
        "E tu, nobre Lisboa, que no Mundo 
        Facilmente das outras és princesa, 
        Que edificada foste do facundo, 
        Por cujo engano foi Dardânia acesa; 
        Tu, a quem obedece o mar profundo, 
        Obedeceste à força Portuguesa, 
        Ajudada também da forte armada, 
        Que das Boreais partes foi mandada. 
  

58   
        "Lá do Germânico Albis, e do Rene,  
        E da fria Bretanha conduzidos, 
        A destruir o povo Sarraceno, 
        Muitos com tensão santa eram partidos. 
        Entrando a boca já do Tejo ameno, 
        Co'o arraial do grande Afonso unidos, 
        Cuja alta fama então subia aos Céus, 
        Foi posto cerco tos muros Ulisseus. 
  

59 -  
        "Cinco vezes a Lua se escondera, 
        E outras tantas mostrara cheio o rosto,  
        Quando a cidade entrada se rendera 
        Ao duro cerco, que lhe estava posto.   
        Foi a batalha tão sanguina e fera,  
        Quanto obrigava o firme pressuposto  
        De vencedores ásperos e ousados, 
        E de vencidos já desesperados. 
  

60 
        "Desta arte enfim tomada se rendeu 
        Aquela que, nos tempos já passados, 
        A grande força nunca obedeceu 
        Dos frios povos Cíticos ousados, 
        Cujo poder a tanto se estendeu 
        Que o Ibero o viu e o Tejo amedrontados; 
        E enfim co'o Bétis tanto alguns puderam 
        Que à terra de Vandália nome deram. 
  

61 -  
        "Que cidade tão forte por ventura  
        Haverá que resista, se Lisboa 
        Não pôde resistir à força dura  
        Da gente, cuja fama tanto voa?   
        Já lhe obedece toda a Estremadura,  
        Óbidos, Alenquer, por onde soa 
        O tom das frescas águas, entre as pedras, 
        Que murmurando lava, e Torres Vedras. 
  

62 -   
        "E vós também, ó terras Transtaganas, 
        Afamadas co'o dom da flava Ceres, 
        Obedeceis às forças mais que humanas, 
        Entregando-lhe os muros e os poderes. 
        E tu, lavrador Mouro, que te enganas, 
        Se sustentar a fértil terra queres; 
        Que Elvas, e Moura, e Serpa conhecidas, 
        E Alcácere-do-Sal estão rendidas. 
  

63 -   
        "Eis a nobre Cidade, certo assento 
        Do rebelde Sertório antigamente, 
        Onde ora as águas nítidas de argento 
        Vem sustentar de longo a terra e a gente, 
        Pelos arcos reais, que cento e cento 
        Nos ares se alevantam nobremente, 
        Obedeceu por meio e ousadia 
        De Giraldo, que medos não temia. 
  

64 -  
        "Já na cidade Beja vai tomar 
        Vingança de Trancoso destruída 
        Afonso, que não sabe sossegar, 
        Por estender coa fama a curta vida. 
        Não se lhe pode muito sustentar 
        A cidade; mas sendo já rendida, 
        Em toda a cousa viva a gente irada 
        Provando os fios vai da dura espada. 
  

65 -  
        "Com estas sojugada foi Palmela, 
        E a piscosa Cezimbra, e juntamente, 
        Sendo ajudado mais de sua estrela, 
        Desbarata um exército potente: 
        Sentiu-o a vila, e viu-o a serra dela, 
        Que a socorrê-la vinha diligente 
        Pela fralda da serra, descuidado 
        Do temeroso encontro inopinado. 
  

66 -  
        "O Rei de Badajoz era alto Mouro, 
        Com quatro mil cavalos furiosos, 
        Inúmeros peões, d'armas e de ouro 
        Guarnecidos, guerreiros e lustrosos. 
        Mas, qual no mês de Maio o bravo touro, 
        Co'os ciúmes da vaca, arreceosos, 
        Sentindo gente o bruto e cego amante 
        Salteia o descuidado caminhante: 
  

67 
        "Desta arte Afonso súbito mostrado 
        Na gente dá, que passa bem segura, 
        Fere, mata, derriba denodado; 
        Foge o Rei Mouro, e só da vida cura. 
        Dum pânico terror todo assombrado, 
        Só de segui-lo o exército procura; 
        Sendo estes que fizeram tanto abalo 
        Não mais que só sessenta de cavalo. 

68 - 
        "Logo segue a vitória sem tardança 
        O grão Rei incansábil, ajuntando 
        Gentes de todo o Reino, cuja usança 
        Era andar sempre terras conquistando. 
        Cercar vai Badajoz, e logo alcança 
        O fim de seu desejo, pelejando 
        Com tanto esforço, e arte, e valentia, 
        Que a fez fazer às outras companhia. 
  

69 
        "Mas o alto Deus, que para longe guarda 
        O castigo daquele que o merece, 
        Ou, para que se emende, às vezes tarda, 
        Ou por segredos que homem não conhece, 
        Se até que sempre o forte Rei resguarda 
        Dos perigos a que ele se oferece; 
        Agora lhe não deixa ter defesa 
        Da maldição da mãe que estava presa. 
  

70 - 
        "Que estando na cidade, que cercara, 
        Cercado nela foi dos Lioneses, 
        Porque a conquista dela lhe tomara, 
        De Lião sendo, e não dos Portugueses. 
        A pertinácia aqui lhe custa cara, 
        Assim como acontece muitas vezes, 
        Que em ferros quebra as pernas, indo aceso  
        A batalha, onde foi vencido e preso. 
  

71 
        "Ó famoso Pompeio, não te pene 
        De teus feitos ilustres a ruína, 
        Nem ver que a justa Némesis ordene 
        Ter teu sogro de ti vitória dina, 
        Posto que o frio Fásis, ou Siene, 
        Que para nenhum cabo a sombra inclina, 
        O Bootes gelado e a linha ardente, 
        Temessem o teu nome geralmente. 
  

72 
        "Posto que a rica Arábia e que os ferozes 
        Eníocos e Colcos, cuja fama 
        O Véu dourado estende, e os Capadoces, 
        E Judeia, que um Deus adora e ama, 
        E que os moles Sofenos, e os atroces 
        Cilícios, com a Arménia, que derrama 
        As águas dos dous rios, cuja fonte 
        Está noutro mais alto e santo monte; 
  

 
 
  
 
73 -  
        "E posto enfim que desde o mar de Atlante 
        Até o Cítico Tauro monte erguido, 
        Já vencedor te vissem, não te espanto 
        Se o campo Emátio só te viu vencido, 
        Porque Afonso verás, soberbo e ovante, 
        Tudo render-se ser depois rendido. 
        Assim o quis o conselho alto e celeste, 
        Que vença o sogro a ti, e o genro a este. 
  

74 -  
        "Tornado o Rei sublime finalmente, 
        Do divino Juízo castigado, 
        Depois que em Santarém soberbamente 
        Em vão dos Sarracenos foi cercado, 
        E depois que do mártire Vicente 
        O santíssimo corpo venerado 
        Do Sacro Promontório conhecido 
        A cidade Ulisseia foi trazido; 
  

75 -  
        "Porque levasse avante seu desejo, 
        Ao forte filho manda o lasso velho 
        Que às terras se passasse d'Alentejo, 
        Com gente e co'o belígero aparelho. 
        Sancho, d'esforço o d'ânimo sobejo, 
        Avante passa, e faz correr vermelho 
        O rio que Sevilha vai regando, 
        Co'o sangue Mauro, bárbaro e nefando. 
  

76 
        "E com esta vitória cobiçoso, 
        Já não descansa o moço até que veja 
        Outro estrago como este, temeroso, 
        No Bárbaro que tem cercado Beja. 
        Não tarda muito o Príncipe ditoso 
        Sem ver o fim daquilo que deseja. 
        Assim estragado o Mouro, na vingança 
        De tantas perdas põe sua esperança. 
  

77 - 
        "Já se ajuntam do monte a quem Medusa 
        O corpo fez perder, que teve o Céu; 
        Já vem do promontório de Ampelusa 
        E do Tinge, que assento foi de Anteu. 
        O morador de Abila não se escusa, 
        Que também com suas armas se moveu, 
        Ao som da Mauritana e ronca tuba, 
        Todo o Reino que foi do nobre Juba. 
  

78 -  
        "Entrava com toda esta companhia 
        O Miralmomini em Portugal; 
        Treze Reis mouros leva de valia, 
        Entre os quais tem o ceptro imperial; 
        E assim fazendo quanto mal podia, 
        O que em partes podia fazer mal, 
        Dom Sancho vai cercar em Santarém; 
        Porém não lhe sucede muito bem. 
  

79 
        "Dá-lhe combates ásperos, fazendo 
        Ardis de guerra mil o Mouro iroso; 
        Não lhe aproveita já trabuco horrendo, 
        Mina secreta, aríete forçoso: 
        Porque o filho de Afonso não perdendo 
        Nada do esforço e acordo generoso, 
        Tudo provê com ânimo e prudência; 
        Que em toda a parte há esforço e resistência. 
  

80 - 
        "Mas o velho, a quem tinham já obrigado 
        Os trabalhosos anos ao sossego, 
        Estando na cidade, cujo prado 
        Enverdecem as águas do Mondego, 
        Sabendo como o filho está cercado 
        Em Santarém do Mauro povo cego, 
        Se parte diligente da cidade; 
        Que não perde a presteza coa idade. 
  

81 -  
        "E coa famosa gente à guerra usada 
        Vai socorrer o filho; e assim ajuntados, 
        A Portuguesa fúria costumada 
        Em breve os Mouros tem desbaratados. 
        A campina, que toda está coalhada 
        De marlotas, capuzes variados, 
        De cavalos, jaezes, presa rica, 
        De seus senhores mortos cheia fica. 
  

82 
        "Logo todo o restante se partiu 
        De Lusitânia, postos em fugida; 
        O Miralmomini só não fugiu, 
        Porque, antes de fugir, lhe foge a vida. 
        A quem lhe esta vitória permitiu 
        Dão louvores e graças sem medida: 
        Que em casos tão estranhos claramente 
        Mais peleja o favor de Deus que a gente. 
  

83 -   
        "De tamanhas vitórias triunfava 
        O velho Afonso , Príncipe subido, 
        Quando, quem tudo enfim vencendo andava, 
        Da larga e muita idade foi vencido. 
        A pálida doença lhe tocava 
        Com fria mão o corpo enfraquecido; 
        E pagaram seus anos deste jeito 
        A triste Libitina seu direito. 
  

84 
        "Os altos promontórios o choraram, 
        E dos rios as águas saudosas 
        Os semeados campos alagaram 
        Com lágrimas correndo piedosas. 
        Mas tanto pelo mundo se alargaram 
        Com faina suas obras valerosas, 
        Que sempre no seu Reino chamarão 
        "Afonso, Afonso" os ecos, mas em vão. 
  

85 
        "Sancho, forte mancebo, que ficara 
        Imitando seu pai na valentia, 
        E que em sua vida já se exprimentara, 
        Quando o Bétis de sangue se tingia, 
        E o bárbaro poder desbaratara 
        Do Ismaelita Rei de Andaluzia; 
        E mais quando os que Beja em vão cercaram, 
        Os golpes de seu braço em si provaram; 
  

86 -  
        "Depois que foi por Rei alevantado, 
        Havendo poucos anos que reinava, 
        A cidade de Silves tem cercado, 
        Cujos campos o bárbaro lavrava. 
        Foi das valentes gentes ajudado 
        Da Germânica armada que passava, 
        De armas fortes e gente apercebida, 
        A recobrar Judeia já perdida. 
  

87 -   
        "Passavam a ajudar na santa empresa 
        O roxo Federico, que moveu 
        O poderoso exército em defesa 
        Da cidade onde Cristo padeceu, 
        Quando Guido, coa gente em sede acesa, 
        Ao grande Saladino se rendeu, 
        No lugar onde aos Mouros sobejavam 
        As águas que os de Guido desejavam. 
  

88 
        "Mas a formosa armada, que viera 
        Por contraste de vento àquela parte, 
        Sancho quis ajudar na guerra fera, 
        Já que em serviço vai do santo Marte. 
        Assim como a seu pai acontecera 
        Quando tomou Lisboa, da mesma arte 
        Do Germano ajudado Silves toma, 
        E o bravo morador destrue e doma. 
  

89 -  
        "E se tantos troféus do Mahometa 
        Alevantando vai, também do forte 
        Lionês não consente estar quieta 
        A terra, usada aos casos de Mavorte, 
        Até que na cerviz seu jugo meta 
        Da soberba Tui, que a mesma sorte 
        Viu ter a muitas vilas suas vizinhas, 
        Que, por armas, tu, Sancho, humildes tinhas. 
  

90 -  
        "Mas entre tantas palmas salteado  
        Da temerosa morte, fica herdeiro  
        Um filho seu, de todos estimado, 
        Que foi segundo Afonso, e Rei terceiro. 
        No tempo deste, aos Mouros foi tomado 
        Alcácere-do-Sal por derradeiro; 
        Porque dantes os Mouros o tomaram, 
        Mas agora estruídos o pagaram. 
  

91 -  
        "Morto depois Afonso, lhe sucede 
        Sancho segundo, manso e descuidado, 
        Que tanto em seus descuidos se desmede, 
        Que de outrem, quem mandava, era mandado. 
        De governar o Reino, que outro pede, 
        Por causa dos privados foi privado, 
        Porque, como por eles se regia, 
        Em todos os seus vícios consentia. 
  

92 
        "Não era Sancho, não, tão desonesto 
        Como Nero, que um moço recebia 
        Por mulher, e depois horrendo incesto 
        Com a mãe Agripina cometia; 
        Nem tão cruel às gentes e molesto, 
        Que a cidade queimasse onde vivia, 
        Nem tão mau como foi Heliogabalo, 
        Nem como o mole Rei Sardanapalo. 
  

93 
        "Nem era o povo seu tiranizado, 
        Como Sicília foi de seus tiranos; 
        Nem tinha como Fálaris achado 
        Gênero de tormentos inumanos; 
        Mas o Reino, de altivo e costumado 
        A senhores em tudo soberanos, 
        A Rei não obedece, nem consente, 
        Que não for mais que todos excelente. 
  

94 -  
        "Por esta causa o Reino governou 
        O Conde Bolonhês, depois alçado 
        Por Rei, quando da vida se apartou 
        Seu irmão Sancho, sempre ao ócio dado. 
        Este, que Afonso o bravo, se chamou, 
        Depois de ter o Reino segurado, 
        Em dilatá-lo cuida, que em terreno 
        Não cabe o altivo peito, tão pequeno. 
  

95 -   
        "Da terra dos Algarves, que lhe fora 
        Em casamento dada, grande parte 
        Recupera co'o braço, e deita fora 
        O Mouro, mal querido já de Marte. 
        Este de todo fez livre e senhora 
        Lusitânia, com força e bélica arte; 
        E acabou de oprimir a nação forte, 
        Na terra que aos de Luso coube em sorte. 
  

96 -  
        "Eis depois vem Dinis, que bem parece 
        Do bravo Afonso estirpe nobre e dina, 
        Com quem a fama grande se escurece 
        Da liberalidade Alexandrina. 
        Com este o Reino próspero florece  
        (Alcançada já a paz áurea divina)  
        Em constituições, leis e costumes,  
        Na terra já tranquila claros lumes. 
  

97 -   
        "Fez primeiro em Coimbra exercitar-se 
        O valeroso ofício de Minerva; 
        E de Helicona as Musas fez passar-se 
        A pisar do Monde-o a fértil erva. 
        Quanto pode de Atenas desejar-se, 
        Tudo o soberbo Apolo aqui reserva. 
        Aqui as capelas dá tecidas de ouro, 
        Do bácaro e do sempre verde louro. 
  

98 -  
        "Nobres vilas de novo edificou 
        Fortalezas, castelos mui seguros, 
        E quase o Reino todo reformou 
        Com edifícios grandes, e altos muros. 
        Mas depois que a dura Átropos cortou 
        O fio de seus dias já maduros, 
        Ficou-lhe o filho pouco obediente, 
        Quarto Afonso, mas forte e excelente. 
  

99 
        "Este sempre as soberbas Castelhanas 
        Co'o peito desprezou firme e sereno, 
        Porque não é das forças Lusitanas, 
        Temer poder maior, por mais pequeno. 
        Mas porém, quando as gentes Mauritanas, 
        A possuir o Hespérico terreno 
        Entraram pelas terras de Castela, 
        Foi o soberbo Afonso a socorrê-la. 
  

100 -  
        "Nunca com Semirâmis gente tanta 
        Veio os campos idáspicos enchendo, 
        Nem Atila, que Itália toda espanta, 
        Chamando-se de Deus açoute horrendo, 
        Gótica gente trouxe tanta, quanta 
        Do Sarraceno bárbaro estupendo, 
        Co'o poder excessivo de Granada, 
        Foi nos campos Tartésios ajuntada. 
  

101  
        "E vendo o Rei sublime Castelhano 
        A força inexpugnábil, grande e forte, 
        Temendo mais o fim do povo hispano, 
        Já perdido uma vez, que a própria morte, 
        Pedindo ajuda ao forte Lusitano, 
        Lhe mandava a caríssima consorte, 
        Mulher de quem a manda, e filha amada 
        Daquele a cujo Reino foi mandada. 
  

102 -  
        "Entrava a formosíssima Maria 
        Pelos paternais paços sublimados, 
        Lindo o gesto, mas fora de alegria, 
        E seus olhos em lágrimas banhados; 
        Os cabelos angélicos trazia 
        Pelos ebúrneos ombros espalhados: 
        Diante do pai ledo, que a agasalha, 
        Estas palavras tais, chorando, espalha: 
  

103  
        - "Quantos povos a terra produziu 
        De África toda, gente fera e estranha, 
        O grão Rei de Marrocos conduziu 
        Para vir possuir a nobre Espanha: 
        Poder tamanho junto não se viu, 
        Depois que o salso mar a terra banha. 
        Trazem ferocidade, e furor tanto, 
        Que a vivos medo, e a mortos faz espanto. 
  

104 
        - "Aquele que me deste por marido, 
        Por defender sua terra amedrontada, 
        Co'o pequeno poder, oferecido 
        Ao duro golpe está da Maura espada; 
        E se não for contigo socorrido, 
        Ver-me-ás dele e do Reino ser privada, 
        Viúva e triste, e posta em vida escura, 
        Sem marido, sem Reino, e sem ventura. 
  

105 
        "Portanto, ó Rei, de quem com puro medo 
        O corrente Muluca se congela, 
        Rompe toda a tardança, acude cedo  
        A miseranda gente de Castela. 
        Se esse gesto, que mostras claro e ledo,  
        De pai o verdadeiro amor assela, 
        Acude e corre, pai, que se não corres,  
        Pode ser que não aches quem socorres." - 
  

106 
        "Não de outra sorte a tímida Maria 
        Falando está, que a triste Vênus, quando 
        A Júpiter, seu pai, favor pedia 
        Para Eneias, seu filho, navegando; 
        Que a tanta piedade o comovia 
        Que, caído das mãos o raio infando,  
        Tudo o clemente Padre lhe concede,  
        Pesando-lhe do pouco que lhe pede. 
  

107 - 
        "Mas já co'os esquadrões da gente armada 
        Os Eborenses campos vão coalhados: 
        Lustra co'o Sol o arnês, a lança, a espada; 
        Vão rinchando os cavalos jaezados. 
        A canora trombeta embandeirada, 
        Os corações à paz acostumados 
        Vai às fulgentes armas incitando,  
        Pelas concavidades retumbando. 
  

108 
        "Entre todos no meio se sublima, 
        Das insígnias Reais acompanhado, 
        O valeroso Afonso, que por cima 
        De todos leva o colo alevantado; 
        E somente co'o gesto esforça e anima 
        A qualquer coração amedrontado. 
        Assim entra nas terras de Castela 
        Com a filha gentil, Rainha dela. 
  
109  
        "Juntos os dous Afonsos finalmente  
        Nos campos de Tarifa estão defronte  
        Da grande multidão da cega gente,  
        Para quem são pequenos campo e monte.  
        Não há peito tão alto e tão potente,  
        Que de desconfiança não se afronte,  
        Enquanto não conheça e claro veja  
        Que co'o braço dos seus Cristo peleja.  
   

110  
        "Estão de Agar os netos quase rindo  
        Do poder dos Cristãos fraco e pequeno,  
        As terras como suas repartindo  
        Antemão, entre o exército Agareno,  
        Que com título falso possuindo  
        Está o famoso nome Sarraceno.  
        Assim também com falsa conta e nua,  
        À nobre terra alheia chamam sua.  
   

111  
        "Qual o membrudo e bárbaro Gigante,  
        Do rei Saul, com causa, tão temido,  
        Vendo o pastor inerme estar diante,  
        Só de pedras e esforço apercebido,  
        Com palavras soberbas o arrogante  
        Despreza o fraco moço mal vestido,  
        Que, rodeando a funda, o desengana  
        Quanto mais pode a Fé que a força humana:  
   

112  
        "Desta arte o Mouro pérfido despreza  
        O poder dos Cristãos, e não entende  
        Que está ajudado da Alta Fortaleza,  
        A quem o inferno horrífico se rende.  
        Co ela o Castelhano, e com destreza  
        De Marrocos o Rei comete e ofende.  
        O Português, que tudo estima em nada,  
        Se f az temer ao Reino de Granada.  
   

113  
        "Eis as lanças e espadas retiniam  
        Por cima dos arneses: bravo estrago!  
        Chamam (segundo as leis que ali seguiam)  
        Uns Mafamede, e os outros Santiago.  
        Os feridos com grita o Céu feriam,  
        Fazendo de seu sangue bruto lago,  
        Onde outros meios mortos se afogavam,  
        Quando do ferro as vidas escapavam.  
   

114  
        "Com esforço tamanho estrui e mata  
        O Luso ao Granadil, que, em pouco espaço,  
        Totalmente o poder lhe desbarata,  
        Sem lhe valer defesa ou peito de aço.  
        De alcançar tal vitória tão barata  
        Inda não bem contente o forte braço,  
        Vai ajudar ao bravo Castelhano,  
        Que pelejando está co'o Mauritano.  
   

115 -  
        "Já se ia o Sol ardente recolhendo  
        Para a casa de Tethys, e inclinado  
        Para o Ponente, o Véspero trazendo,  
        Estava o claro dia memorado,  
        Quando o poder do Mauro grande e horrendo  
        Foi pelos fortes Reis desbaratado,   
        Com tanta mortandade, que a memória  
        Nunca no mundo viu tão grã vitória.  
   

116  
        "Não matou a quarta parte o forte Mário  
        Dos que morreram neste vencimento,  
        Quando as águas co'o sangue do adversário  
        Fez beber ao exército sedento;  
        Nem o Peno asperíssimo contrário  
        Do Romano poder, de nascimento,  
        Quando tantos matou da ilustro Roma,  
        Que alqueires três de anéis dos mortos toma.  
   

117  
        "E se tu tantas almas só pudeste  
        Mandar ao Reino escuro de Cocito,  
        Quando a santa Cidade desfizeste  
        Do povo pertinaz no antigo rito:  
        Permissão e vingança foi celeste,  
        E não força de braço, ó nobre Tito,  
        Que assim dos Vates foi profetizado,  
        E depois por Jesu certificado.  
   

118 -  
        "Passada esta tão próspera vitória,  
        Tornando Afonso à Lusitana terra,  
        A se lograr da paz com tanta glória  
        Quanta soube ganhar na dura guerra,  
        O caso triste, e dino da memória,  
        Que do sepulcro os homens desenterra,  
        Aconteceu da mísera e mesquinha  
        Que depois de ser morta foi Rainha.  
   

119  
        "Tu só, tu, puro Amor, com força crua,  
        Que os corações humanos tanto obriga,  
        Deste causa à molesta morte sua,  
        Como se fora pérfida inimiga.  
        Se dizem, fero Amor, que a sede tua  
        Nem com lágrimas tristes se mitiga,  
        ]É porque queres, áspero e tirano,  
        Tuas aras banhar em sangue humano.  
   

120  
        "Estavas, linda Inês, posta em sossego,  
        De teus anos colhendo doce fruto,  
        Naquele engano da alma, ledo e cego,  
        Que a fortuna não deixa durar muito,  
        Nos saudosos campos do Mondego,  
        De teus fermosos olhos nunca enxuto,  
        Aos montes ensinando e às ervinhas  
        O nome que no peito escrito tinhas.  
   

121  
        "Do teu Príncipe ali te respondiam  
        As lembranças que na alma lhe moravam,  
        Que sempre ante seus olhos te traziam,  
        Quando dos teus fermosos se apartavam:  
        De noite em doces sonhos, que mentiam,  
        De dia em pensamentos, que voavam.  
        E quanto enfim cuidava, e quanto via,  
        Eram tudo memórias de alegria.  
   

122  
        "De outras belas senhoras e Princesas  
        Os desejados tálamos enjeita,  
        Que tudo enfim, tu, puro amor, despreza,  
        Quando um gesto suave te sujeita.  
        Vendo estas namoradas estranhezas  
        O velho pai sesudo, que respeita  
        O murmurar do povo, e a fantasia  
        Do filho, que casar-se não queria,  
   

123  
        "Tirar Inês ao mundo determina,  
        Por lhe tirar o filho que tem preso,  
        Crendo co'o sangue só da morte indina  
        Matar do firme amor o fogo aceso.  
        Que furor consentiu que a espada fina,  
        Que pôde sustentar o grande peso  
        Do furor Mauro, fosse alevantada  
        Contra uma fraca dama delicada?  
   

124  
        "Traziam-na os horríficos algozes  
        Ante o Rei, já movido a piedade:  
        Mas o povo, com falsas e ferozes  
        Razões, à morte crua o persuade.  
        Ela com tristes o piedosas vozes,  
        Saídas só da mágoa, e saudade  
        Do seu Príncipe, e filhos que deixava,  
        Que mais que a própria morte a magoava,  
   

125 - 
        "Para o Céu cristalino alevantando  
        Com lágrimas os olhos piedosos,  
        Os olhos, porque as mãos lhe estava atando  
        Um dos duros ministros rigorosos;  
        E depois nos meninos atentando,  
        Que tão queridos tinha, e tão mimosos,  
        Cuja orfandade como mãe temia,  
        Para o avô cruel assim dizia:  
   

126  
        - "Se já nas brutas feras, cuja mente  
        Natura fez cruel de nascimento,  
        E nas aves agrestes, que somente  
        Nas rapinas aéreas têm o intento,  
        Com pequenas crianças viu a gente  
        Terem tão piedoso sentimento,  
        Como coa mãe de Nino já mostraram,  
        E colos irmãos que Roma edificaram;  
   

127  
        -"Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito   
        (Se de humano é matar uma donzela   
        Fraca e sem força, só por ter sujeito   
        O coração a quem soube vencê-la)   
        A estas criancinhas tem respeito,   
        Pois o não tens à morte escura dela;   
        Mova-te a piedade sua e minha,  
        Pois te não move a culpa que não tinha.  
   

128  
        - "E se, vencendo a Maura resistência,  
        A morte sabes dar com fogo e ferro,  
        Sabe também dar vicia com clemência  
        A quem para perdê-la não fez erro.  
        Mas se to assim merece esta inocência,  
        Põe-me em perpétuo e mísero desterro,  
        Na Cítia f ria, ou lá na Líbia ardente,  
        Onde em lágrimas viva eternamente.  
   

129  
        "Põe-me onde se use toda a feridade,  
        Entre leões e tigres, e verei  
        Se neles achar posso a piedade  
        Que entre peitos humanos não achei:  
        Ali com o amor intrínseco e vontade  
        Naquele por quem morro, criarei  
        Estas relíquias suas que aqui viste,  
        Que refrigério sejam da mãe triste." -  
   

130 -   Morte de Inês de Castro  
        "Queria perdoar-lhe o Rei benino,  
        Movido das palavras que o magoam;  
        Mas o pertinaz povo, e seu destino  
        (Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.  
        Arrancam das espadas de aço fino  
        Os que por bom tal feito ali apregoam.  
        Contra uma dama, ó peitos carniceiros,  
        Feros vos amostrais, e cavaleiros?  
   

131  
        "Qual contra a linda moça Policena,  
        Consolação extrema da mãe velha,  
        Porque a sombra de Aquiles a condena,  
        Co'o ferro o duro Pirro se aparelha;  
        Mas ela os olhos com que o ar serena  
        (Bem como paciente e mansa ovelha)  
        Na mísera mãe postos, que endoudece,  
        Ao duro sacrifício se oferece:  
   

132  
        "Tais contra Inês os brutos matadores  
        No colo de alabastro, que sustinha  
        As obras com que Amor matou de amores  
        Aquele que depois a fez Rainha;  
        As espadas banhando, e as brancas flores,  
        Que ela dos olhos seus regadas tinha,  
        Se encarniçavam, férvidos e irosos,  
        No futuro castigo não cuidosos.  
   

133  
        "Bem puderas, ó Sol, da vista destes  
        Teus raios apartar aquele dia,  
        Como da seva mesa de Tiestes,  
        Quando os filhos por mão de Atreu comia.  
        Vós, ó côncavos vales, que pudestes  
        A voz extrema ouvir da boca fria,  
        O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,  
        Por muito grande espaço repetisses!  
   

134  
        "Assim como a bonina, que cortada  
        Antes do tempo foi, cândida e bela,  
        Sendo das mãos lascivas maltratada  
        Da menina que a trouxe na capela,  
        O cheiro traz perdido e a cor murchada:  
        Tal está morta a pálida donzela,  
        Secas do rosto as rosas, e perdida  
        A branca e viva cor, coa doce vida.  
   

135  
        "As filhas do Mondego a morte escura  
        Longo tempo chorando memoraram,  
        E, por memória eterna, em fonte pura  
        As lágrimas choradas transformaram;  
        O nome lhe puseram, que inda dura,  
        Dos amores de Inês que ali passaram.  
        Vede que fresca fonte rega as flores,  
        Que lágrimas são a água, e o nome amores.  
   

136 - 
        "Não correu muito tempo que a vingança  
        Não visse Pedro das mortais feridas,  
        Que, em tomando do Reino a governança,  
        A tomou dos fugidos homicidas.  
        Do outro Pedro cruíssimo os alcança,  
        Que ambos, imigos das humanas vidas,  
        O concerto fizeram, duro e injusto,  
        Que com Lépido e Antônio fez Augusto.  
   

137 -  
        "Este, castigador foi rigoroso  
        De latrocínios, mortes e adultérios:  
        Fazer nos maus cruezas, fero e iroso,  
        Eram os seus mais certos refrigérios.  
        As cidades guardando justiçoso  
        De todos os soberbos vitupérios,   
        Mais ladrões castigando à morte deu,  
        Que o vagabundo Aleides ou Teseu.  
   

138 - 
        "Do justo e duro Pedro nasce o brando,   
        (Vede da natureza o desconcerto!)  
        Remisso, e sem cuidado algum, Fernando,  
        Que todo o Reino pôs em muito aperto:  
        Que, vindo o Castelhano devastando  
        As terras sem defesa, esteve perto  
        De destruir-se o Reino totalmente;  
        Que um fraco Rei f az fraca a forte gente.  
   

139 -  
        "Ou foi castigo claro do pecado  
        De tirar Lianor a seu marido,  
        E casar-se com ela, de enlevado  
        Num falso parecer mal entendido;  
        Ou foi que o coração sujeito e dado  
        Ao vício vil, de quem se viu rendido,  
        Mole se fez e fraco; e bem parece,  
        Que um baixo amor os fortes enfraquece.  
   

140  
        "Do pecado tiveram sempre a pena  
        Muitos, que Deus o quis, e permitiu:  
        Os que foram roubar a bela Helena,  
        E com Apio também Tarquilio o viu.  
        Pois por quem David Santo se condena?  
        Ou quem o Tribo ilustre destruiu  
        De Benjamim?  Bem claro no-lo ensina  
        Por Sara Faraó, Siquém por Dina.  
   

141 - 
        "E pois se os peitos fortes enfraquece  
        Um inconcesso amor desatinado,  
        Bem no filho de Alcmena se parece,  
        Quando em Ônfale andava transformado.  
        De Marco Antônio a faina se escurece  
        Com ser tanto a Cleopatra afeiçoado.  
        Tu também, Peno próspero, o sentiste  
        Depois que uma moça vil na Apúlia viste.  
   

142 - 
        "Mas quem pode livrar-se por ventura  
        Dos laços que Amor arma brandamente  
        Entre as rosas e a neve humana pura,  
        O ouro e o alabastro transparente?  
        Quem de uma peregrina formosura,  
        De um vulto de Medusa propriamente,  
        Que o coração converte, que tem preso,  
        Em pedra não, mas em desejo aceso?  
   

143  
        "Quem viu um olhar seguro, um gesto brando,  
        Uma suave e angélica excelência,  
        Que em si está sempre as almas transformando,  
        Que tivesse contra ela resistência?  
        Desculpado por certo está Fernando,  
        Para quem tem de amor experiência;  
        Mas antes, tendo livre a fantasia,  
        Por muito mais culpado o julgaria.   

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