sábado, 15 de setembro de 2018

CAMÕES, CANTO 7

Canto Sétimo                                                         
 
1 - 
        Já se viam chegados junto à terra, 
        Que desejada já de tantos fora, 
        Que entre as correntes Indicas se encerra, 
        E o Ganges, que no céu terreno mora. 
        Ora, sus, gente forte, que na guerra 
        Quereis levar a palma vencedora, 
        Já sois chegados, já tendes diante 
        A terra de riquezas abundante. 
  

2 -
        A vós, ó geração de Luso, digo, 
        Que tão pequena parte sois no inundo; 
        Não digo ainda no mundo, mas no amigo 
        Curral de quem governa o céu rotundo; 
        Vós, a quem não somente algum perigo 
        Estorva conquistar o povo imundo, 
        Mas nem cobiça, ou pouca obediência 
        Da Madre, que nos céus está em essência; 
  


        Vós, Portugueses, poucos quanto fortes, 
        Que o fraco poder vosso não pesais; 
        Vós, que à custa de vossas várias mortes 
        A lei da vida eterna dilatais: 
        Assim do céu deitadas são as sortes, 
        Que vós, por muito poucos que sejais, 
        Muito façais na santa Cristandade: 
        Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade! 
  

4 - 
        Vede-los Alemães, soberbo gado, 
        Que por tão largos campos se apascenta, 
        Do sucessor de Pedro, rebelado, 
        Novo pastor, e nova seita inventa: 
        Vede-lo em feias guerras ocupado, 
        Que ainda com o cego error se não contenta, 
        Não contra o soberbíssimo Otomano, 
        Mas por sair do jugo soberano. 
  
  
  

5 - 
        Vede-lo duro Inglês, que se nomeia 
        Rei da velha e santíssima cidade, 
        Que o torpe Ismaelita senhoreia, 
        (Quem viu honra tão longe da verdade?) 
        Entre as Boreais neves se recreia, 
        Nova maneira faz de Cristandade: 
        Para os de Cristo tem a espada nua, 
        Não por tomar a terra que era sua. 
  
  

6 - 
        Guarda-lhe por entanto um falso Rei 
        A cidade Hierosólima terrestre, 
        Enquanto ele não guarda a santa lei 
        Da cidade Hierosólima celeste. 
        Pois de ti, Galo indigno, que direi? 
        Que o nome Cristianíssimo quiseste, 
        Não para defendê-lo, nem guardá-lo, 
        Mas para ser contra ele, e derrubá-lo! 
  
  


        Achas que tens direito em senhorios 
        De Cristãos, sendo o teu tão largo e tanto, 
        E não contra o Cinífio e Nilo, rios 
        Inimigos do antigo nome santo? 
        Ali se hão de provar da espada os fios  
        Em quem quer reprovar da Igreja o canto.   
        De Carlos, de Luís, o nome e a terra  
        Herdaste, e as causas não da justa guerra? 
  
  

8 -
        Pois que direi daqueles que em delícias, 
        Que o vil ócio no mundo traz consigo, 
        Gastam as vidas, logram as divícias, 
        Esquecidos de seu valor antigo? 
        Nascem da tirania inimicícias, 
        Que o povo forte tem de si inimigo: 
        Contigo, Itália, falo, já submersa 
        Em Vícios mil, e de ti mesma adversa. 
  
  

9 - 
        Ó míseros Cristãos, pela ventura, 
        Sois os dentes de Cadmo desparzidos, 
        Que uns aos outros se dão a morte dura, 
        Sendo todos de um ventre produzidos? 
        Não vedes a divina sepultura 
        Possuída de cães, que sempre unidos 
        Vos vêm tomar a vossa antiga terra, 
        Fazendo-se famosos pela guerra? 
  

10 
        Vedes que têm por uso e por decreto, 
        Do qual são tão inteiros observantes, 
        Ajuntarem o exército inquieto 
        Contra os povos que são de Cristo amantes; 
        Entre vós nunca deixa a fera Aleto 
        De semear cizânias repugnantes: 
        Olhai se estais seguros de perigos, 
        Que eles e vós sois vossos inimigos. 
  
  

11 
        Se cobiça de grandes senhorios 
        Vos faz ir conquistar terras alheias, 
        Não vedes que Pactolo e Hermo, rios, 
        Ambos volvem auríferas areias? 
        Em Lídia, Assíria, lavram de ouro os fios; 
        África esconde em si luzentes veias; 
        Mova-vos já sequer riqueza tanta, 
        Pois mover-vos não pode a Casa Santa. 
  
  

12 
        Aquelas invenções feras e novas 
        De instrumentos mortais da artilharia, 
        Já devem de fazer as duras provas 
        Nos muros de Bizâncio e de Turquia. 
        Fazei que torne lá às silvestres covas 
        Dos Cáspios montes, e da Cítia fria 
        A Turca geração, que multiplica 
        Na polícia da vossa Europa rica. 
  
  

13 
        Gregos, Traces, Arménios, Georgianos, 
        Bradando-vos estão que o povo bruto 
        Lhe obriga os caros filhos aos profanos 
        Preceptos do Alcorão (duro tributo!) 
        Em castigar os feitos inumanos 
        Vos gloriai de peito forte e astuto, 
        E não queirais louvores arrogantes 
        De serdes contra os vossos muito possantes. 
  
  

14 
        Mas entanto que cegos o sedentos 
        Andais de vosso sangue, ó gente insana! 
        Não faltarão Cristãos atrevimentos 
        Nesta pequena casa Lusitana: 
        De África tem marítimos assentos,  
        É na Ásia mais que todas soberana,  
        Na quarta parte nova os campos ara,  
        E se mais mundo houvera, lá chegara. 
  
  

15 -
        E vejamos entanto que acontece 
        Aqueles tão famosos navegantes, 
        Depois que a branda Vênus enfraquece 
        O furor vão dos ventos repugnantes: 
        Depois que a larga terra lhe aparece, 
        Fim de suas porfias tão constantes, 
        Onde vêm semear de Cristo a, lei, 
        E dar novo costume e novo Rei. 
  
  

16 
        Tanto que à nova terra se chegaram, 
        Leves embarcações de pescadores 
        Acharam, que o caminho lhe mostraram 
        De Calecu, onde eram moradores. 
        Para lá logo as proas se inclinaram, 
        Porque esta era a cidade das melhores 
        Do Malabar melhor, onde vivia 
        O Rei que a terra toda possuía. 
  
  

17 -
  

        Além do Indo jaz, e aquém do Gange, 
        Um terreno muito grande e assaz famoso, 
        Que pela parte Austral o mar abrange, 
        E para o Norte o Emódio cavernoso. 
        Jugo de Reis diversos o constrange 
        A várias leis: alguns o vicioso 
        Mahoma, alguns os ídolos adoram, 
        Alguns os animais, que entre eles morri. 
  
  

18 - 
        Lá bem no grande monte, que cortando 
        Tão larga terra, toda Ásia discorre, 
        Que nomes tão diversos vai tomando, 
        Segundo as regiões por onde corre, 
        As fontes saem, donde vêm manando 
        Os rios, cuja grã corrente morre 
        No mar Índico, e cercam todo o peso 
        Do terreno, fazendo-o Quersoneso. 
  
  

19 - 
        Entro um e outro rio, em grande espaço, 
        Sai da larga terra uma loira ponta 
        Quase piramidal, que no regaço 
        Do mar com Ceilão ínsula confronta; 
        E junto donde nasce o largo braço 
        Gangético, o rumor antigo conta 
        Que os vizinhos, da terra moradores, 
        Do cheiro se mantêm das finas flores. 
  

20 - 
        Mas agora de nomes e de usança  
        Novos e vários são os habitantes:  
        Os Delis, os Patanes, que em possança  
        De terra e gente, são mais abundantes;  
        Decanis, Oriás, que a esperança  
        Têm de sua salvação nas ressonantes  
        Águas do Gange, e a terra de Bengala  
        Fértil de sorte que outra não lhe iguala. 
  
  

21 - 
        O Reino de Cambaia belicoso 
        (Dizem que foi de Poro, Rei potente) 
        O Reino de Narsinga, poderoso 
        Mais de ouro e pedras que de forte gente. 
        Aqui se enxerga lá do mar undoso 
        Um monte alto, que corre longamente, 
        Servindo ao Malabar de forte muro, 
        Com que do Canará vive seguro. 
  
  

22 - 
        Da terra os naturais lhe chamam Gate, 
        Do pé do qual pequena quantidade 
        Se estende uma fralda estreita, que combate 
        Do mar a natural ferocidade. 
        Aqui de outras cidades, sem debate, 
        Calecu tem a ilustre dignidade 
        De cabeça de Império rica e bela: 
        Samorim se intitula o senhor dela. 
  
  

23 
        Chegada a frota ao rico senhorio, 
        Um Português mandado logo parte 
       A fazer sabedor o Rei gentio 
        Da vinda sua a tão remota parte. 
        Entrando o mensageiro pelo rio, 
        Que ali nas ondas entra, a não vista arte, 
        A cor, o gesto estranho, o trajo novo 
        Fez concorrer a vê-lo todo o povo. 
  

24 - 
        Entre a gente que a vê-lo concorria, 
        Se chega um Mahometa, que nascido 
        Fora na região da Berberia, 
        Lá onde fora Anteu obedecido: 
        Ou pela vizinhança já teria 
        O Reino Lusitano conhecido, 
        Ou foi já assinalado de seu ferro: 
        Fortuna o trouxe a tão loiro desterro. 
  

25 
        Em vendo o mensageiro, com jocundo 
        Rosto, como quem sabe a língua Hispana, 
        Lhe disse: "Quem te trouxe a estoutro mundo, 
        Tão longe da tua pátria Lusitana?" 
        - "Abrindo, lhe responde, o mar profundo, 
        Por onde nunca veio gente humana, 
        Vimos buscar do Indo a grão corrente, 
        Por onde a Lei divina se acrescente." 
  
  

26 
        Espantado ficou da grã viagem 
        O Mouro, que Monçaide se chamava, 
        Ouvindo as opressões que na passagem 
        Do mar, o Lusitano lhe contava: 
        Mas vendo enfim que a f orça da mensagem 
        Só para o Rei da terra relevava, 
        Lhe diz que estava f ora da cidade, 
        Mas de caminho pouca quantidade. 
  
  

27 - 
        E que, entanto que a nova lhe chegasse 
        De sua estranha vinda, se queria, 
        Na sua pobre casa repousasse, 
        E do manjar da terra comeria, 
        E depois que se um pouco recreasse, 
        Com ele para a armada tornaria, 
        Que alegria não pode ser tamanha, 
        Que achar gente vizinha em terra estranha. 
  
  

28 - 
        O Português aceita de vontade 
        O que o ledo Monçaide lhe oferece; 
        Como se longa fora já a amizade, 
        Com ele come, e bebe, e lhe obedece. 
        Ambos se tornam logo da cidade 
        Para a frota, que o Mouro bem conhece; 
        Sobem à capitania; e toda a gente 
        Monçaide recebeu benignamente. 
  

29 -  
        O Capitão o abraça em cabo ledo, 
        Ouvindo clara a língua de Castela; 
        Junto de si o assenta, e pronto e quedo, 
        Pela terra pergunta, e cousas dela. 
        Qual se ajuntava em Ródope o arvoredo, 
        Só por ouvir o amante da donzela 
        Eurídice, tocando a lira de ouro, 
        Tal a gente se ajunta a ouvir o Mouro. 

 
  

 
  
 
30 - 
        Ele começa: "Ó gente, que a natura 
        Vizinha fez de meu paterno ninho, 
        Que destino tão grande ou que ventura 
        Vos trouxe a cometerdes tal caminho? 
        Não é sem causa, não, oculta e escura, 
        Vir do longínquo Tejo e ignoto Minho, 
        Por mares nunca doutro lenho arados, 
        A Reinos tão remotos e apartados. 
  
  

31 - 
        "Deus por certo vos traz, porque pretende 
        Algum serviço seu por vós obrado; 
        Por isso só vos guia, e vos defende 
        Dos inimigos, do mar, do vento irado. 
        Sabei que estais na Índia, onde se estende 
        Diverso povo, rico e prosperado 
        De ouro luzente e fina pedraria, 
        Cheiro suave, ardente especiaria. 
  
  
  

32 - 
        "Esta província, cujo porto agora 
        Tomado tendes, Malabar se chama: 
        Do culto antigo os ídolos adora, 
        Que cá por estas partes se derrama: 
        De diversos Reis é, mas dum só 
        Noutro tempo, segundo a antiga fama; 
        Saramá Perimal foi derradeiro 
        Rei, que este Reino teve unido e inteiro. 
  
  

33 - 
        "Porém, como a esta terra então viessem 
        De lá do seio Arábico outras gentes, 
        Que o culto Mahomético trouxessem, 
        No qual me instituíram meus parentes, 
        Sucedeu que pregando convertessem 
        O Perimal: de sábios e eloqüentes, 
        Fazem-lhe a lei tomar com fervor tanto, 
        Que pressupôs de nela morrer santo. 
  
  

34 
        "Naus arma, e nelas mete curioso 
        Mercadoria, que ofereça rica, 
        Para ir nelas a ser religioso, 
        Onde o profeta jaz, que a Lei publica; 
        Antes que parta, o Reino poderoso 
        Com os seus reparte, porque não lhe fica 
        Herdeiro próprio, faz os mais aceitos 
        Ricos de pobres, livres de sujeitos. 
  
  

35 - 
        "A um Cochim, e a outro Cananor, 
        A qual Chalé, a qual a ilha da Pimenta, 
        A qual Coulão, a qual dá Cranganor, 
        E os mais, a quem o mais serve e contenta, 
        Um só moço, a quem tinha muito amor, 
        Depois que tudo deu, se lhe apresenta: 
       Para este Calecu somente fica, 
        Cidade já por trato nobre e rica. 
  
  

36 
        "Esta lhe dá com o título excelente 
        De Imperador, que sobre os outros mande. 
        Isto feito, se parte diligente 
        Para onde em santa vida acabe, e ande. 
        E daqui fica o nome de potente 
        Samori, mais que todos digno e grande, 
        Ao moço e descendentes; donde vem 
        Este, que agora o Império manda e tem. 
  
  

37 - 
        "A Lei da gente toda, rica e pobre,            
        De fábulas composta se imagina: 
        Andam nus, e somente um pano cobre 
        As partes, que a cobrir natura ensina. 
        Dois modos há de gente, porque a nobre 
        Naires chamados são, e a menos digna 
        Poleás tem por nome, a quem obriga 
        A Lei não misturar a casta antiga. 
  
  

38 
        "Porque os que usaram sempre um mesmo ofício, 
        De outro não podem receber consorte, 
        Nem os filhos terão outro exercício, 
        Senão o de seus passados, até morte. 
        Para os Naires é certo grande vício 
        Destes serem tocados; de tal sorte, 
        Que quando algum se toca, por ventura, 
        Com cerimônias mil se alimpa e apura. 
  
  

39 
        "Desta sorte o Judaico povo antigo 
        Não tocava na gente de Samária. 
        Mais estranhezas ainda das que digo 
        Nesta terra vereis de usança vária. 
        Os Naires sós são dados ao perigo 
        Das armas; sós defendem da contrária 
        Banda o seu Rei, trazendo sempre usada 
        Na esquerda a adarga e na direita a espada. 
  

40 - 
  

        "Brâmenes são os seus religiosos, 
        Nome antigo e de grande proeminência: 
        Observam os preceitos tão famosos 
        Dum que primeiro pôs nome à ciência: 
        Não matam coisa viva, e, temerosos, 
        Das carnes têm grandíssima abstinência; 
        Somente no venéreo ajuntamento 
        Têm mais licença e menos regimento. 
  
  

41 
        "Gerais são as mulheres, mas somente 
        Para os da geração de seus maridos: 
        Ditosa condição, ditosa gente, 
        Que não são de ciúmes ofendidos!  
        Estes e outros costumes variamente 
        São pelos Malabares admitidos. 
        A terra é grossa em trato, em tudo aquilo 
        Que as ondas podem dar da China ao Nilo." 
  
  

42 - 
        Assim contava o Mouro; mas vagando 
        Andava a fama já pela cidade 
        Da vinda desta gente estranha, quando 
        O Rei saber mandava da verdade. 
        Já vinham pelas ruas caminhando, 
        Rodeados de todo sexo e idade, 
        Os principais, que o Rei buscar mandara 
        O Capitão da armada, que chegara. 
  
  

43 
        Mas ele, que do Rei já tem licença 
        Para desembarcar, acompanhado 
        Dos nobres Portugueses, sem detença 
        Parte, de ricos panos adornado. 
        Das cores a formosa diferença 
        A vista alegra ao povo alvoroçado. 
        O remo compassado fere frio 
        Agora o mar, depois o fresco rio. 
  
  
  

44 
        Na praia um regedor do Reino estava, 
        Que na sua língua Catual se chama, 
        Rodeado de Naires, que esperava 
        Com desusada festa o nobre Gama. 
        Já na terra, nos braços o levava, 
        E num portátil leito uma rica cama 
        Lhe oferece, em que vá, costume usado, 
        Que nos ombros dos homens é levado. 
  
  
  
  

45 
        Desta arte o Malabar, destarte o Luso 
        Caminham, lá para onde o Rei o espera: 
        Os outros Portugueses vão ao uso 
        Que infantaria segue, esquadra fera. 
        O povo que concorre vai confuso 
        De ver a gente estranha, e bem quisera 
        Perguntar: mas no tempo já passado 
        Na torre de Babel lhe foi vedado.  
  

46 -
        O Gama e o Catual iam falando  
        Nas coisas, que lhe o tempo oferecia;  
        Monçaide entre eles vai interpretando  
        As palavras que de ambos entendia.   
        Assim pela cidade caminhando, 
        Onde uma rica fábrica se erguia 
        De um sumptuoso templo, já chegavam,  
        Pelas portas do qual juntos entravam. 
  
  

47 
        Ali estão das deidades as figuras 
        Esculpidas em pau e em pedra fria; 
        Vários de gestos, vários de pinturas, 
        A segundo o Demônio lhe fingia: 
        Vêem-se as abomináveis esculturas, 
        Qual a Quimera em membros se varia: 
        Os Cristãos olhos, a ver Deus usados 
        Em forma humana, estão maravilhados. 
  

48 -
        Um na cabeça cornos esculpidos, 
        Qual Júpiter Amon em Líbia estava; 
        Outro num corpo rostos tinha unidos, 
        Bem como o antigo Jano se pintava; 
        Outro com muitos braços divididos 
        A Briareu parece que imitava; 
        Outro fronte canina tem de fora, 
        Qual Anúbis Menfítico se adora. 
  
  
  

49 -
        Aqui feita do bárbaro gentio 
        A supersticiosa adoração, 
        Direitos vão, sem outro algum desvio, 
        Para onde estava o Rei do povo vão. 
        Engrossando-se vai da gente o fio, 
        Com os que vêm ver o estranho Capitão; 
        Estão pelos telhados e janelas 
        Velhos e moços, donas e donzelas. 
  
  

50 
        Já chegam perto, e não com passos lentos, 
        Dos jardins odoríferos formosos, 
        Que em si escondem os régios aposentos, 
        Altos de torres não, mas sumptuosos. 
        Edificam-se os nobres seus assentos 
        Por entre os arvoredos deleitosos: 
        Assim vivem os Reis daquela gente, 
        No campo e na cidade juntamente. 
  
  

51 -
        Pelos portais da cerca a sutileza 
        Se enxerga da Dedálea facultade, 
        Em figuras mostrando, por nobreza, 
        Da Índia a mais remota antigüidade. 
        Afiguradas vão com tal viveza 
        As histórias daquela antiga idade, 
        Que quem delas tiver notícia inteira, 
        Pela sombra conhece a verdadeira. 
  
  

52 - 
        Estava um grande exército que pisa 
        A terra Oriental, que o Idaspe lava; 
        Rege-o um capitão de fronte lisa, 
        Que com frondentes tirsos pelejava; 
        Por ele edificada estiva Nisa 
        Nas ribeiras do rio, que manava, 
        Tão próprio, que se ali estiver Semele, 
        Dirá, por certo, que é seu filho aquele. 
  
  
  

53 -  
        Mais avante bebendo seca o rio 
        Mui grande multidão da Assíria gente, 
        Sujeita a feminino senhorio 
        De uma tão bela como incontinente. 
        Ali tem junto ao lado nunca frio, 
        Esculpido o feroz ginete ardente, 
        Com quem teria o filho competência: 
        Amor nefando, bruta incontinência! 
  
  

54 - 
        Daqui mais apartadas tremulavam 
        As bandeiras de Grécia gloriosas, 
        Terceira Monarquia, e sojugavam 
        Até as águas Gangéticas undosas. 
        Dum capitão mancebo se guiavam, 
        De palmas rodeado valerosas, 
        Que já, não de Filipo, mas sem falta 
        De progênie de Júpiter se exalta. 
  
  
  

55 - 
  

        Os Portugueses vendo estas memórias, 
        Dizia o Catual ao Capitão: 
        "Tempo cedo virá que outras vitórias 
        Estas, que agora olhais, abaterão; 
        Aqui se escreverão novas histórias 
        Por gentes estrangeiras que virão; 
        Que os nossos sábios magos o alcançaram 
        Quando o tempo futuro especularam. 
  
  
  

56 
  

        "E diz-lhe mais a mágica ciência 
        Que, para se evitar força tamanha, 
        Não valerá dos homens resistência, 
        Que contra o Céu não val da gente manha; 
        Mas também diz que a bélica excelência, 
        Nas armas e na paz, da gente estranha 
        Será tal, que será no mundo ouvido 
        O vencedor, por glória do vencido," 
  
  
  
  

57 -
        Assim falando entravam já na sala, 
        Onde aquele potente Imperador 
        Numa camilha jaz, que não se iguala 
        De outra alguma no preço e no lavor. 
        No recostado gesto se assinala 
        Um venerando e próspero senhor; 
        Um pano de ouro cinge, e na cabeça 
        De preciosas gemas se adereça. 
  
  

58 
       Bem junto dele um velho reverente, 
       Com os giolhos no chão, de quando em quando 
       Lhe dava a verde folha da erva ardente, 
       Que a seu costume estava ruminando. 
       Um Brâmene, pessoa proeminente, 
       Para o Gama vem com passo brando, 
       Para que ao grande Príncipe o apresente, 
       Que diante lhe acena que se assente. 

 
 
59 - 
        Sentado o Gama junto ao rico leito, 
        Os seus mais afastados, pronto em vista 
        Estava o Samori no trajo e jeito 
        Da gente, nunca de antes dele vista. 
        Lançando a grave voz do sábio peito, 
        Que grande autoridade logo aquista 
        Na opinião do Rei e do povo todo, 
        O Capitão lhe fala deste modo: 
  
  

60 
        "Um grande Rei, de lá das partes Onde 
        O céu volúvel, com perpétua roda, 
        Da terra a luz solar com a terra esconde, 
        Tingindo a que deixou de escura noda, 
        Ouvindo do rumor que lá responde 
        O eco, como em ti da Índia toda 
        O principado está, e a majestade, 
        Vínculo quer contigo de amizade. 
  
  

61 
        "E por longos rodeios a ti manda, 
        Por te fazer saber que tudo aquilo 
        Que sobre o mar, que sobre as terras anda 
        De riquezas, de lá do Tejo ao Nilo, 
        E desde a fria plaga de Gelanda 
        Até bem donde o Sol não muda o estilo 
        Nos dias, sobre a gente de Etiópia, 
        Tudo tem no seu Reino em grande cópia. 
  
  
  

62 - 
        "E se queres com pactos e alianças 
        De paz e de amizade sacra e nua 
        Comércio consentir das abastanças 
        Das fazendas da terra sua e tua, 
        Por que cresçam as rendas e abastanças, 
        Por quem a gente mais trabalha e sua, 
        De vossos Reinos, será certamente 
        De ti proveito, o dele glória ingente. 
  
  
  

63 
  

        "E sendo assim, que o nó desta amizade 
        Entre vós firmemente permaneça, 
        Estará pronto a toda adversidade, 
        Que por guerra a teu Reino se ofereça, 
        Com gente, armas e naus, de qualidade 
        Que por irmão te tenha e te conheça; 
        E da vontade em ti sobre isto posta 
        Me dês a mim certíssima resposta." 
  
  

64 
        Tal embaixada dava o Capitão, 
        A quem o Rei gentio respondia 
        Que, em ver embaixadores de nação 
        Tão remota, grã glória recebia; 
        Mas neste caso a última tenção 
        Com os de seu conselho tomaria, 
        Informando-se certo de quem era 
        O Rei, e a gente, e terra que dissera.. 
  
  

65 - 
        E que entanto podia do trabalho 
        Passado ir repousar, e em tempo breve 
        Daria a seu despacho um justo talho, 
        Com que a seu Rei resposta alegre leve. 
        Já nisto punha a noite o usado atalho 
        As humanas canseiras, por que ceve 
        De doce sono os membros trabalhados, 
        Os olhos ocupando ao ócio dados. 
  
  

66 - 
        Agasalhados foram juntamente 
        O Gama e Portugueses no aposento 
        Do nobre Regedor da Índica gente, 
        Com festas e geral contentamento. 
        O Catual, no cargo diligente 
        De seu Rei, tinha já por regimento 
        Saber da gente estranha donde vinha, 
        Que costumes, que lei, que terra tinha. 
  
  

67 
       Tanto que os ígneos carros do formoso 
        Mancebo Délio viu, que a luz renova, 
        Manda chamar Monçaide, desejoso 
        De poder-se informar da gente nova. 
        Já lhe pergunta pronto e curioso, 
        Se tem notícia inteira e certa prova 
        Dos estranhos, quem são; que ouvido tinha 
        Que é gente de sua pátria muito vizinha; 
  
  
  

68 
        Que particularmente ali lhe desse 
        Informação mui larga, pois faria 
        Nisso serviço ao Rei, por que soubesse 
        O que neste negócio se faria. 
        Monçaide torna: - "Posto que eu quisesse 
        Dizer-te disto mais, não saberia; 
        Somente sei que é gente lá de Espanha, 
        Onde o meu ninho e o Sol no mar se banha. 
  
  

69 
        "Têm a lei dum Profeta, que gerado 
        Foi sem fazer na carne detrimento 
        Da mãe, tal que por bafo está aprovado 
        Do Deus, que tem do mundo o regimento, 
        O que entre meus antigos é vulgado 
        Deles, é que o valor sanguinolento 
        Das armas no seu braço resplandece, 
        O que em nossos passados se parece. 
  
  

70 
        "Porque eles, com virtude sobre-humana, 
        Os deitaram dos campos abundosos 
        Do rico Tejo e fresco Goadiana, 
        Com feitos memoráveis e famosos: 
        E não contentes ainda, e na Africana 
        Parte, cortando os mares procelosos, 
        Nos não querem deixar viver seguros, 
        Tomando-nos cidades e altos muros. 
  
  

71 
        "Não menos têm mostrado esforço e manha 
        Em quaisquer outras guerras que aconteças, 
        Ou das gentes belígeras de Espanha, 
        Ou lá dalguns que do Pírene desçam. 
        Assim que nunca enfim com lança estranha 
        Se tem, que por vencidos se conheçam, 
        Nem se sabe ainda, não, te afirmo e asselo, 
        Para estes Anibais nenhum Marcelo. 
  
  

72 
        "E se esta informação não for inteira 
        Tanto quanto convém, deles pretende 
        Informar-te, que é gente verdadeira, 
        A quem mais falsidade enoja e ofende: 
        Vai ver-lhe a f rota, as armas e a maneira 
        Do fundido metal, que tudo rende, 
        E folgarás de veres a polícia 
        Portuguesa na paz e na milícia." 
  
  

73 
        Já com desejos o Idolatra ardia 
        De ver isto, que o Mouro lhe contava. 
        Manda esquipar batéis que ir ver queria 
        Os lenhos em que o Gama navegava. 
        Ambos partem da praia, a quem seguia 
        A Naira geração, que o mar coalhava. 
        A capitania sobem forte e bela, 
        Onde Paulo os recebe a bordo dela. 
  
  

74 
        Purpúreos são os toldos, e as bandeiras 
        Do rico fio são que o bicho gera; 
        Nelas estão pintadas as guerreiras 
        Obras, que o forte braço já fizera: 
        Batalhas tem campais, aventureiras, 
        Desafios cruéis, pintura fera, 
        Que, tanto que ao Gentio se apresenta, 
        A tento nela os olhos apascenta. 
  
  
  
  

75 
        Pelo que vê pergunta; mas o Gama 
        Lhe pedia primeiro que se assente, 
        E que aquele deleite, que tanto ama 
        A seita Epicureia, experimente. 
        Dos espumantes vasos se derrama 
        O licor que Noé mostrara à gente: 
        Mas comer o Gentio não pretende, 
        Que a seita que seguia lho defende. 
  
  

76 
        A trombeta que, em paz, no pensamento 
        Imagem faz de guerra, rompe os ares; 
        Com o fogo o diabólico instrumento 
        Se faz ouvir no fundo lá dos mares. 
        Tudo o Gentio nota; mas o intento 
        Mostrava sempre ter nos singulares 
        Feitos dos homens, que em retrato breve 
        A muda poesia ali descreve 
  
  
  

77 - 
        Alça-se em pé, com ele o Gama junto, 
        Coelho de outra parti, e o Mauritano; 
        Os olhos põe no bélico transunto 
        De um velho branco, aspecto venerando 
        Cujo nome não pode ser defunto 
        Enquanto houver no mundo trato humano: 
        No trajo a Grega usança está perfeita, 
        Um ramo por insígnia na direita. 
  
  
  

78 - 
        Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego! 
        Eu, que cometo insano e temerário, 
        Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego, 
        Por caminho tão árduo, longo e vário! 
        Vosso favor invoco, que navego 
        Por alto mar, com vento tão contrário, 
        Que, se não me ajudais, hei grande medo 
        Que o meu fraco batel se alague cedo. 
  
  

79 
        Olhai que há tanto tempo que, cantando 
        O vosso Tejo e os vossos Lusitanos, 
        A fortuna mo traz peregrinando, 
        Novos trabalhos vendo, e novos danos: 
        Agora o mar, agora experimentando 
        Os perigos Mavórcios inumanos, 
        Qual Canace, que à morte se condena, 
        Numa mão sempre a espada, e noutra a pena. 
  

80 - 
        Agora, com pobreza avorrecida, 
        Por hospícios alheios degradado; 
        Agora, da esperança já adquirida, 
        De novo, mais que nunca, derribado; 
        Agora às costas escapando a vida, 
        Que dum fio pendia tão delgado 
        Que não menos milagre foi salvar-se 
        Que para o Rei Judaico acrescentar-se. 
  
  

81 -
        E ainda, Ninfas minhas, não bastava 
        Que tamanhas misérias me cercassem, 
        Senão que aqueles, que eu cantando andava 
        Tal prêmio de meus versos me tornassem: 
        A troco dos descansos que esperava, 
        Das capelas de louro que me honrassem, 
        Trabalhos nunca usados me inventaram, 
        Com que em tão duro estado me deitaram. 
  
  

82 
        Vede, Ninfas, que engenhos de senhores 
        O vosso Tejo cria valorosos, 
        Que assim sabem prezar com tais favores 
        A quem os faz, cantando, gloriosos! 
        Que exemplos a futuros escritores, 
        Para espertar engenhos curiosos, 
        Para porem as coisas em memória, 
        Que merecerem ter eterna glória! 
  
  

83 - 
        Pois logo em tantos males é forçado, 
        Que só vosso favor me não faleça, 
        Principalmente aqui, que sou chegado 
        Onde feitos diversos engrandeça: 
        Dai-mo vós sós, que eu tenho já jurado 
        Que não o empregue em quem o não mereça, 
        Nem por lisonja louve algum subido, 
        Sob pena de não ser agradecido. 
  
  
  

84 
        Nem creiais, Ninfas, não, que a fama desse  
        A quem ao bem comum e do seu Rei  
        Antepuser seu próprio interesse,  
        Inimigo da divina e humana Lei. 
        Nenhum ambicioso, que quisesse 
        Subir a grandes cargos, cantarei, 
        Só por poder com torpes exercícios 
        Usar mais largamente de seus vícios; 
  
  

85 
        Nenhum que use de seu poder bastante,  
        Para servir a seu desejo feio, 
        E que, por comprazer ao vulgo errante, 
        Se muda em mais figuras que Proteio. 
        Nem, Camenas, também cuideis que canto 
        Quem, com hábito honesto e grave, veio, 
        Por contentar ao Rei no ofício novo, 
        A despir e roubar o pobre povo. 
  
  

86 
        Nem quem acha que é justo e que é direito 
        Guardar-se a lei do Rei severamente, 
        E não acha que é justo e bom respeito, 
        Que se pague o suor da servil gente; 
        Nem quem sempre, com pouco experto peito, 
        Razões aprende, e cuida que é prudente, 
        Para taxar, com mão rapace e escassa, 
        Os trabalhos alheios, que não passa. 
  
  

87 
        Aqueles sós direi, que aventuraram 
        Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida,  
        Onde, perdendo-a, em fama a dilataram,  
        Tão bem de suas obras merecida. 
        Apolo, e as Musas que me acompanharam, 
        Me dobrarão a fúria concedida, 
        Enquanto eu tomo alento descansado,  
        Por tornar ao trabalho, mais folgado. 

Um comentário:

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