segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Benjamin Sanches (1915-1978)

«Transe»: BENJAMIM SANCHES

Em êxtase fitava o céu molhado,
Umedecidos por um cinza brando
E o sangue nas artérias congelado,
As lágrimas no rosto vão rolando.
No espaço um olhar vívido cravado,
O pensamento no ar gesticulando,
Do meu céu ao inferno, condenado,
Eu andei sem saber se estava andando.
Quando saio daquele sobressalto,
Como quem sonha mesmo quando acorda,
Tenho minha alma presa lá no alto,
Vendo o meu corpo nesta lassidão,
Sob o peso das dores que transborda,
Um monstro se arrastando pelo chão.
("Argila", pág. 95, Manaus, 1957).



“Fé”:

                    Ver
                    sem
                    bem
                    crer.
                    Crer
                    sem
                    bem
                    ver.
                    Crer
                    é
                    fé.
                    Ver
                    não
                    é.

(Argila, Manaus: Sergio Cardoso, 1957)

Epitáfio






Quando meu barco imergir

no profundo lago desconhecido,

não construam sobre o local

outros mastros e chaminés.

Que a superfície fique limpa

e tranquila, para refletir

a beleza do firmamento.




Destino


Estou caminhando

Com destino certo,

Quando me cansar,

Estarei bem perto.




Solidão



O pássaro de barro da saudade
Revoando no aro dos meus olhos
Repousou nos meus dedos de silêncio
Partindo para as terras ignotas.

Divaguei nos roteiros do amanhã
(Quilhas cortando o ventre do espaço
Rasparam os recifes das quimeras
Encalhando nas rochas das lembranças).

E aquela argila diluída em sombras
Incensando o meu templo de memórias
Nas alvoradas dos meus sofrimentos.

Na grande solidão do inatingível
Ancorei o coração num mar de lágrimas
E adormeci num inferno entre dois céus.





SER E NÃO SER



Este ser e não ser que vive em mim
Inacessível ao meu pensamento,
No divagar meu mundo interior
Subsistindo em mim independente.
Negando-me os meus conhecimentos
Diluídos no espaço e no tempo
E o pouco que consigo recolher
Vem brotando dos meus entendimentos.
Escapando à forma do absoluto
Povoando o vácuo de minha visão,
Daquela incerteza de que estou certo.
Potência regendo este dinamismo
Do efeito que produz toda esta causa,
Do ser que acorda em mim quando adormeço.





         SINAIS DO TEMPO
Domingo...
Judite,
vai ao banho.
Teca,
vai ao banho.
Nelly,
vai ao banho.
Todas vão ao banho...
Antigamente iam à missa,
banhar um pouquinho a alma...
Antigamente o sino...  bem bão..
Atualmente a buzina.. fon  fon..
Maria,
(se Maria não está, outra qualquer serve)
dá-me lápis e papel,
quero escrever poesia.
Mas... já escrevi um poesia e
não quero escrever mais de uma por dia.



         CAMINHADA




O vento,
(não sei se o vento)
soprava
e não sei por que soprava
o meu micro organismo

que rebolava pegajoso
pelo asfalto
e outras partículas
agregavam-se ao meu EU, avolumando-me.
Mas, o tempo
(não sei se o tempo ou aquelas partículas)
ressecou-me e o asfalto vai esmerilando-me
porque o vento não parou de soprar,
mas, mesmo se parasse, a estrada, agora
inclina-se para o horizonte, até
(este até, não sei medir)
o abismo desconhecido.




IARA


Surgiu do leito do rio sem margens
Cantando a serenata do silêncio,
Do mar de desejos que a pele esconde,
Trazia sal no corpo inviolável.
Banhando-se no sol da estranha tarde
Cabelo aos pés mulher completamente,
Tatuou nas retinas dos meus olhos,
A forma perfeita da tez morena.
Com a lâmina dos raios penetrantes,
Arando fortemente as minhas carnes,
Espalhou sementes de dor e espanto.
Deixando-me abraçado à sua sombra,
Desceu no hálito da boca da argila
E, ali, adormeceu profundamente.






IRA

Surgiu do leito do rio sem margens
Cantando a serenata do silêncio,
Do mar de desejos que a pele esconde,
Trazia sal no corpo inviolável.

Banhando-se no sol da estranha tarde
Cabelo aos pés mulher completamente,
Tatuou nas retinas dos meus olhos,
A forma perfeita da tez morena.

Com a lâmina dos raios penetrantes,
Arando fortemente as minhas carnes,
Espalhou sementes de dor e espanto.

Deixando-me abraçado à sua sombra,
Desceu no hálito da boca da argila
E, ali, adormeceu profundamente.


quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Alda do Espírito Santo (1926-2010)

Alda do Espírito Santo (1926-2010)

















Lá no Água Grande



Lá no Agua Grande a caminho da roça
negritas batem que batem co'a roupa na pedra.
Batem e cantam modinhas da terra.

Cantam e riem em riso de mofa
histórias contadas, arrastadas pelo vento.

Riem alto de rijo, com a roupa na pedra
e põem de branco a roupa lavada.

As crianças brincam e a água canta.
Brincam na água felizes...
Velam no capim um negrito pequenino.

E os gemidos cantados das negritas lá do rio
ficam mudos lá na hora do regresso...

Jazem quedos no regresso para a roça.



_____________________





Noticia no Actual do Expresso:


Alda do Espírito Santo (1926-2010)

Morreu a que terá sido a figura mais materna - por isso tão solidária e carismática - do movimento emancipador contra a opressão colonial nas possessões africanas portuguesas. Alda Espírito Santo tinha 83 anos.

Alda Graça, como também era conhecida, foi poeta, ministra (da Cultura e da Informação), deputada e presidente da Assembleia Popular do seu país, São Tomé e Príncipe.

Sobretudo, foi um dos esteios da implantação do ensejo da "reafricanização dos espíritos", como dizia o seu camarada Amílcar Cabral quando ambos fundaram em Lisboa, com Mário Pinto de Andrade, Francisco José Tenreiro, Marcelino dos Santos e outros, o CEA-Centro de Estudos Africanos, estrutura que - ainda mais do que a Casa dos Estudantes do Império, que também frequentavam - foi instrumento de formação das jovens consciências emancipadas no início da década de 50.

Depois ela teve que interromper estudos e regressou a São Tomé, sempre defendendo perseguidos, acalentando desassossegos, criando esperanças.

Luto nacional durante 5 dias





A jornalista e poeta são-tomense Conceição Lima escreveu, nos 83 anos de "Mais Velha" Alda: "Brincámos, descalços, na orla das praias por ela sonhadas, navegámos a largueza do poema. Moldámos concretas utopias, no âmago da praça plantámos a raiz do verso". Esse percurso fizeram-no são-tomenses, angolanos, cabo-verdianos (que lhe entregaram, há muito, a insígnia de Combatente da Liberdade da Pátria), guineenses, moçambicanos, portugueses...calcorreando o caminho alumiado pela poeta da tão antiga casa da Chácara.

Alda Espírito Santo, autora do hino nacional de São Tomé e Príncipe morreu dia 9, em Luanda, Angola, de complicações da diabetes. O Governo são-tomense decretou cinco dias de luto.

O sangue caindo em gotas na terra
homens morrendo no mato
e o sangue caindo, caindo...
Fernão Dias para sempre na história
da Ilha Verde, rubra de sangue,
dos homens tombados
na arena imensa do cais.
Ai o cais, o sangue, os homens,
os grilhões, os golpes das pancadas
a soarem, a soarem, a soarem
caindo no silêncio das vidas tombadas
dos gritos, dos uivos de dor
dos homens que não são homens,
na mão dos verdugos sem nome.
Zé Mulato, na história do cais
baleando homens no silêncio
do tombar dos corpos.
Ai, Zé Mulato, Zé Mulato.
As vítimas clamam vingança
O mar, o mar de Fernão Dias
engolindo vidas humanas
está rubro de sangue.
- Nós estamos de pé -
nossos olhos se viram para ti.
Nossas vidas enterradas
nos campos da morte,
os homens do cinco de Fevereiro
os homens caídos na estufa da morte
clamando piedade
gritando pela vida,
mortos sem ar e sem água
levantam-se todos
da vala comum
e de pé no coro de justiça
clamam vingança...
... Os corpos tombados no mato,
as casas, as casas dos homens
destruídas na voragem
do fogo incendiário,
as vias queimadas,
erguem o coro insólito de justiça
clamando vingança.
E vós todos carrascos
e vós todos algozes
sentados nos bancos dos réus:
- Que fizeste do meu povo?...
- Que respondeis?
- Onde está o meu povo?
...E eu respondo no silêncio
das vozes erguidas
clamando justiça...
Um a um, todos em fila...
Para vós, carrascos,
o perdão não tem nome.
A justiça vai soar,
E o sangue das vidas caídas
nos matos da morte
ensopando a terra
num silêncio de arrepios
vai fecundar a terra,
clamando justiça.
É a chamada da humanidade
cantando a esperança
num mundo sem peias
onde a liberdade
é a pátria dos homens...
(É nosso o solo sagrado da terra)
(2)

Independência Total

Independência total,
Glorioso canto do povo,
Independência total,
Hino sagrado de combate.
Dinamismo
Na luta nacional,
Juramento eterno
No país soberano de São Tomé e Príncipe.

Guerrilheiro da guerra sem armas na mão,
Chama viva na alma do povo,
Congregando os filhos das ilhas
Em redor da Pátria Imortal.
Independência total, total e completa,
Costruindo, no progresso e na paz,
A nação ditosa da Terra,
Com os braços heroicos do povo.

Independência total,
Glorioso canto do povo,
Independência total,
Hino sagrado de combate.
Trabalhando, lutando, presente em vencendo,
Caminhamos a passos gigantes
Na cruzada dos povos africanos,
Hasteando a bandeira nacional.
Voz do povo, presente, presente em conjunto,
Vibra rijo no coro da esperança
Ser herói no hora do perigo,
Ser herói no ressurgir do País.

Independência total,
Glorioso canto do povo,
Independência total,
Hino sagrado de combate.
Dinamismo
Na luta nacional,
Juramento eterno
No país soberano de São Tomé e Príncipe.;



sábado, 15 de setembro de 2018

OS LUSÍADAS DE CAMÕES INTEGRAL, CANTO 1


CANTOS 
1    2    3    4    5            10


Canto Primeiro                                                            


1      As armas e os barões assinalados,
        Que da ocidental praia Lusitana,
        Por mares nunca de antes navegados,
        Passaram ainda além da Taprobana,
        Em perigos e guerras esforçados,
        Mais do que prometia a força humana,
        E entre gente remota edificaram
        Novo Reino, que tanto sublimaram;
  

2
        E também as memórias gloriosas
        Daqueles Reis, que foram dilatando
        A Fé, o Império, e as terras viciosas
        De África e de Ásia andaram devastando;
        E aqueles, que por obras valerosas
        Se vão da lei da morte libertando;
        Cantando espalharei por toda parte,
        Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
  

3
        Cessem do sábio Grego e do Troiano
        As navegações grandes que fizeram;
        Cale-se de Alexandro e de Trajano
        A fama das vitórias que tiveram;
        Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
        A quem Neptuno e Marte obedeceram:
        Cesse tudo o que a Musa antígua canta,
        Que outro valor mais alto se alevanta.
  

4      E vós, Tágides minhas, pois criado
        Tendes em mim um novo engenho ardente,
        Se sempre em verso humilde celebrado
        Foi de mim vosso rio alegremente,
        Dai-me agora um som alto e sublimado,
        Um estilo grandíloquo e corrente,
        Porque de vossas águas, Febo ordene
        Que não tenham inveja às de Hipoerene.
  

5
        Dai-me uma fúria grande e sonorosa,
        E não de agreste avena ou frauta ruda,
        Mas de tuba canora e belicosa,
        Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
        Dai-me igual canto aos feitos da famosa
        Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;
        Que se espalhe e se cante no universo,
        Se tão sublime preço cabe em verso.
  

6 -    E vós, ó bem nascida segurança
        Da Lusitana antígua liberdade,
        E não menos certíssima esperança
        De aumento da pequena Cristandade;
        Vós, ó novo temor da Maura lança,
        Maravilha fatal da nossa idade,
        Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
        Para do mundo a Deus dar parte grande;
  

7
        Vós, tenro e novo ramo florescente
        De uma árvore de Cristo mais amada
        Que nenhuma nascida no Ocidente,
        Cesárea ou Cristianíssima chamada;
        (Vede-o no vosso escudo, que presente
        Vos amostra a vitória já passada,
        Na qual vos deu por armas, e deixou
        As que Ele para si na Cruz tomou)
  

8
        Vós, poderoso Rei, cujo alto Império
        O Sol, logo em nascendo, vê primeiro;
        Vê-o também no meio do Hemisfério,
        E quando desce o deixa derradeiro;
        Vós, que esperamos jugo e vitupério
        Do torpe Ismaelita cavaleiro,
        Do Turco oriental, e do Gentio,
        Que inda bebe o licor do santo rio;
  

9
        Inclinai por um pouco a majestade,
        Que nesse tenro gesto vos contemplo,
        Que já se mostra qual na inteira idade,
        Quando subindo ireis ao eterno templo;
        Os olhos da real benignidade
        Ponde no chão: vereis um novo exemplo
        De amor dos pátrios feitos valerosos,
        Em versos divulgado numerosos.
  

10 -  Vereis amor da pátria, não movido
        De prêmio vil, mas alto e quase eterno:
        Que não é prêmio vil ser conhecido
        Por um pregão do ninho meu paterno.
        Ouvi: vereis o nome engrandecido
        Daqueles de quem sois senhor superno,
        E julgareis qual é mais excelente,
        Se ser do mundo Rei, se de til gente.
   

11 - Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,
        Fantásticas, fingidas, mentirosas,
        Louvar os vossos, como nas estranhas
        Musas, de engrandecer-se desejosas:
        As verdadeiras vossas são tamanhas,
        Que excedem as sonhadas, fabulosas;
        Que excedem Rodamonte, e o vão Rugeiro,
        E Orlando, inda que fora verdadeiro,
  

12 -  Por estes vos darei um Nuno fero,
        Que fez ao Rei o ao Reino tal serviço,
        Um Egas, e um D. Fuas, que de Homero
        A cítara para eles só cobiço.
        Pois pelos doze Pares dar-vos quero
        Os doze de Inglaterra, e o seu Magriço;
        Dou-vos também aquele ilustre Gama,
        Que para si de Eneias toma a fama.
  

13    Pois se a troco de Carlos, Rei de França,
        Ou de César, quereis igual memória,
        Vede o primeiro Afonso, cuja lança
        Escura faz qualquer estranha glória;
        E aquele que a seu Reino a segurança
        Deixou com a grande e próspera vitória;
        Outro Joane, invicto cavaleiro,
        O quarto e quinto Afonsos, e o terceiro.
  

14
        Nem deixarão meus versos esquecidos
        Aqueles que nos Reinos lá da Aurora
        Fizeram, só por armas tão subidos,
        Vossa bandeira sempre vencedora:
        Um Pacheco fortíssimo, e os temidos
        Almeidas, por quem sempre o Tejo chora;
        Albuquerque terríbil, Castro forte,
        E outros em quem poder não teve a morte.
  

15 -  E enquanto eu estes canto, e a vós não posso,
        Sublime Rei, que não me atrevo a tanto,
        Tomai as rédeas vós do Reino vosso:
        Dareis matéria a nunca ouvido canto.
        Comecem a sentir o peso grosso
        (Que pelo mundo todo faça espanto)
        De exércitos e feitos singulares,
        De África as terras, e do Oriente os marços,
  

16
        Em vós os olhos tem o Mouro frio,
        Em quem vê seu exício afigurado;
        Só com vos ver o bárbaro Gentio
        Mostra o pescoço ao jugo já inclinado;
        Tethys todo o cerúleo senhorio
        Tem para vós por dote aparelhado;
        Que afeiçoada ao gesto belo e tenro,
        Deseja de comprar-vos para genro.
  

17
        Em vós se vêm da olímpica morada
        Dos dois avós as almas cá famosas,
        Uma na paz angélica dourada,
        Outra pelas batalhas sanguinosas;
        Em vós esperam ver-se renovada
        Sua memória e obras valerosas;
        E lá vos tem lugar, no fim da idade,
        No templo da suprema Eternidade.
  

18
        Mas enquanto este tempo passa lento
        De regerdes os povos, que o desejam,
        Dai vós favor ao novo atrevimento,
        Para que estes meus versos vossos sejam;
        E vereis ir cortando o salso argento
        Os vossos Argonautas, por que vejam
        Que são vistos de vós no mar irado,
        E costumai-vos já a ser invocado.
  

19 -  Já no largo Oceano navegavam,
        As inquietas ondas apartando;
        Os ventos brandamente respiravam,
        Das naus as velas côncavas inchando;
        Da branca escuma os mares se mostravam
        Cobertos, onde as proas vão cortando
        As marítimas águas consagradas,
        Que do gado de Próteo são cortadas
  

20 - Quando os Deuses no Olimpo luminoso,
        Onde o governo está da humana gente,
        Se ajuntam em concílio glorioso
        Sobre as cousas futuras do Oriente.
        Pisando o cristalino Céu formoso,
        Vêm pela Via-Láctea juntamente,
        Convocados da parte do Tonante,
        Pelo neto gentil do velho Atlante.
  

21
        Deixam dos sete Céus o regimento,
        Que do poder mais alto lhe foi dado,
        Alto poder, que só co'o pensamento
        Governa o Céu, a Terra, e o Mar irado.
        Ali se acharam juntos num momento
        Os que habitam o Arcturo congelado,
        E os que o Austro tem, e as partes onde
        A Aurora nasce, e o claro Sol se esconde.
  

22 -  Estava o Padre ali sublime e dino,
        Que vibra os feros raios de Vulcano,
        Num assento de estrelas cristalino,
        Com gesto alto, severo e soberano.
        Do rosto respirava um ar divino,
        Que divino tornara um corpo humano;
        Com uma coroa e ceptro rutilante,
  

23 -  Em luzentes assentos, marchetados
        De ouro e de perlas, mais abaixo estavam
        Os outros Deuses todos assentados,
        Como a razão e a ordem concertavam:
        Precedem os antíguos mais honrados;
        Mais abaixo os menores se assentavam;
        Quando Júpiter alto, assim dizendo,
        C'um tom de voz começa, grave e horrendo:
  

24 - "Eternos moradores do luzente
        Estelífero pólo, e claro assento,
        Se do grande valor da forte gente
        De Luso não perdeis o pensamento,
        Deveis de ter sabido claramente,
        Como é dos fados grandes certo intento,
        Que por ela se esqueçam os humanos
        De Assírios, Persas, Gregos e Romanos.
  

25 - "Já lhe foi (bem o vistes) concedido
        C’um poder tão singelo e tão pequeno,
        Tomar ao Mouro forte e guarnecido
        Toda a terra, que rega o Tejo ameno:
        Pois contra o Castelhano tão temido,
        Sempre alcançou favor do Céu sereno.
        Assim que sempre, enfim, com fama e glória,
        Teve os troféus pendentes da vitória.
  

26 - ''Deixo, Deuses, atrás a fama antiga,
        Que coa gente de Rómulo alcançaram,
        Quando com Viriato, na inimiga
        Guerra romana tanto se afamaram;
        Também deixo a memória, que os obriga
        A grande nome, quando alevantaram
        Um por seu capitão, que peregrino
        Fingiu na cerva espírito divino.
  

27 - "Agora vedes bem que, cometendo
        O duvidoso mar num lenho leve,
        Por vias nunca usadas, não temendo
        De Áf rico e Noto a força, a mais se atreve:
        Que havendo tanto já que as partes vendo
        Onde o dia é comprido e onde breve,
        Inclinam seu propósito e porfia
        A ver os berços onde nasce o dia.
  

28
        "Prometido lhe está do Fado eterno,
        Cuja alta Lei não pode ser quebrada,
        Que tenham longos tempos o governo
        Do mar, que vê do Sol a roxa entrada.
        Nas águas têm passado o duro inverno;
        A gente vem perdida e trabalhada;
        Já parece bem feito que lhe seja
        Mostrada a nova terra, que deseja.
  

29
        "E porque, como vistes, têm passados
        Na viagem tão ásperos perigos,
        Tantos climas e céus experimentados,
        Tanto furor de ventos inimigos,
        Que sejam, determino, agasalhados
        Nesta costa africana, como amigos.
        E tendo guarnecida a lassa frota,
        Tornarão a seguir sua longa rota."
  

30 -  Estas palavras Júpiter dizia,
        Quando os Deuses por ordem respondendo,
        Na sentença um do outro diferia,
        Razões diversas dando e recebendo.
        O padre Baco ali não consentia
        No que Júpiter disse, conhecendo
        Que esquecerão seus feitos no Oriente,
        Se lá passar a Lusitana gente.
  

31 - Ouvido tinha aos Fados que viria
        Uma gente fortíssima de Espanha
        Pelo mar alto, a qual sujeitaria
        Da índia tudo quanto Dóris banha,
        E com novas vitórias venceria
        A fama antiga, ou sua, ou fosse estranha.
        Altamente lhe dói perder a glória,
        De que Nisa celebra inda a memória.
  

32
        Vê que já teve o Indo sojugado,
        E nunca lhe tirou Fortuna, ou caso,
        Por vencedor da Índia ser cantado
        De quantos bebem a água de Parnaso.
        Teme agora que seja sepultado
        Seu tão célebre nome em negro vaso
        D'água do esquecimento, se lá chegam
        Os fortes Portugueses, que navegam.
  

33 -  Sustentava contra ele Vênus bela,
        Afeiçoada à gente Lusitana,
        Por quantas qualidades via nela
        Da antiga tão amada sua Romana;
        Nos fortes corações, na grande estrela,
        Que mostraram na terra Tingitana,
        E na língua, na qual quando imagina,
        Com pouca corrupção crê que é a Latina.
  

34
        Estas causas moviam Citereia,
        E mais, porque das Parcas claro entende
        Que há de ser celebrada a clara Deia,
        Onde a gente belígera se estende.
        Assim que, um pela infâmia, que arreceia,
        E o outro pelas honras, que pretende,
        Debatem, e na porfia permanecem;
        A qualquer seus amigos favorecem.
  

  
  


35
        Qual Austro fero, ou Bóreas na espessura
        De silvestre arvoredo abastecida,
        Rompendo os ramos vão da mata escura,
        Com ímpeto e braveza desmedida;
        Brama toda a montanha, o som murmura,
        Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida:
        Tal andava o tumulto levantado,
        Entre os Deuses, no Olimpo consagrado.

36 -
        Mas Marte, que da Deusa sustentava
        Entre todos as partes em porfia,
        Ou porque o amor antigo o obrigava,
        Ou porque a gente forte o merecia,
        De entre os Deuses em pé se levantava:
        Merencório no gesto parecia;
        O forte escudo ao colo pendurado
        Deitando para trás, medonho e irado,
  

37
        A viseira do elmo de diamante
        Alevantando um pouco, mui seguro,
        Por dar seu parecer, se pôs diante
        De Júpiter, armado, forte e duro:
        E dando uma pancada penetrante,
        Com o conto do bastão no sólio puro,
        O Céu tremeu, e Apolo, de torvado,
        Um pouco a luz perdeu, como enfiado.
  

38 -   
        E disse assim: "Ó Padre, a cujo império
        Tudo aquilo obedece, que criaste,
        Se esta gente, que busca outro hemisfério,
        Cuja valia, e obras tanto amaste,
        Não queres que padeçam vitupério,
        Como há já tanto tempo que ordenaste,
        Não onças mais, pois és juiz direito,
        Razões de quem parece que é suspeito.
  

39 -   
        "Que, se aqui a razão se não mostrasse
        Vencida do temor demasiado,
        Bem fora que aqui Baco os sustentasse,
        Pois que de Luso vem, seu tão privado;
        Mas esta tenção sua agora passe,
        Porque enfim vem de estâmago danado;
        Que nunca tirará alheia inveja
        O bem, que outrem merece, e o Céu deseja.
  

40
        "E tu, Padre de grande fortaleza,
        Da determinação, que tens tomada,
        Não tornes por detrás, pois é fraqueza
        Desistir-se da cousa começada.
        Mercúrio, pois excede em ligeireza
        Ao vento leve, e à seta bem talhada,
        Lhe vá mostrar a terra, onde se informe
        Da índia, e onde a gente se reforme."
   

41 -  
        Como isto disse, o Padre poderoso,
        A cabeça inclinando, consentiu
        No que disse Mavorte valeroso,
        E néctar sobre todos esparziu.
        Pelo caminho Lácteo glorioso
        Logo cada um dos Deuses se partiu,
        Fazendo seus reais acatamentos,
        Para os determinados aposentos.
  

42 -  
        Enquanto isto se passa na formosa
        Casa etérea do Olimpo onipotente,
        Cortava o mar a gente belicosa,
        Já lá da banda do Austro e do Oriente,
        Entre a costa Etiópica e a famosa
        Ilha de São Lourenço; e o Sol ardente
        Queimava então os Deuses, que Tifeu
        Com o temor grande em peixes converteu.

  

43
        Tão brandamente os ventos os levavam,
        Como quem o céu tinha por amigo:
        Sereno o ar, e os tempos se mostravam
        Sem nuvens, sem receio de perigo.
        O promontório Prasso já passavam,
        Na costa de Etiópia, nome antigo,
        Quando o mar descobrindo lhe mostrava
        Novas ilhas, que em torno cerca e lava.
  

44
        Vasco da Gama, o forte capitão,
        Que a tamanhas empresas se oferece,
        De soberbo e de altivo coração,
        A quem Fortuna sempre favorece,
        Para se aqui deter não vê razão,
        Que inabitada a terra lhe parece:
        Por diante passar determinava;
        Mas não lhe sucedeu como cuidava.
  

45 -
        Eis aparecem logo em companhia
        Uns pequenos batéis, que vêm daquela
        Que mais chegada à terra parecia,
        Cortando o longo mar com larga vela.
        A gente se alvoroça, e de alegria
        Não sabe mais que olhar a causa dela.
        Que gente será esta, em si diziam,
        Que costumes, que Lei, que Rei teriam?
  

46 -
        As embarcações eram, na maneira,
        Mui veloces, estreitas e compridas:
        As velas, com que, vêm, eram de esteira
        Dumas folhas de palma, bem tecidas;
        A gente da cor era verdadeira,
        Que Faeton, nas terras acendidas,
        Ao mundo deu, de ousado, o não prudente:
        O Pado o sabe, o Lampetusa o sente.
  

47 -   
        De panos de algodão vinham vestidos,
        De várias cores, brancos e listrados:
        Uns trazem derredor de si cingidos,
        Outros em modo airoso sobraçados:
        Da cinta para cima vêm despidos;
        Por armas têm adargas o terçados;
        Com toucas na cabeça; e navegando,
        Anafis sonoros vão tocando.
  

48 -   
        Co'os panos e co'os braços acenavam
        As gentes Lusitanas, que esperassem;
        Mas já as proas ligeiras se inclinavam
        Para que junto às ilhas amainassem.
        A ,ente e marinheiros trabalhavam,
        Como se aqui os trabalhos se acabassem;
        Tomam velas; amaina-se a verga alta;
        Da âncora, o mar ferido, em cima salta.
  

49 -    
        Não eram ancorados, quando a gente
        Estranha pelas cordas já subia.
        No gesto ledos vêm, e humanamente
        O Capitão sublime os recebia:
        As mesas manda pôr em continente;
        Do licor que Lieo prantado havia
        Enchem vasos de vidro, e do que deitam,
        Os de Faeton queimados nada enjeitam.
  

50 -   
        Comendo alegremente perguntavam,
        Pela Arábica língua, donde vinham,
        Quem eram, de que terra, que buscavam,
        Ou que partes do mar corrido tinham?
        Os fortes Lusitanos lhe tornavam
        As discretas respostas, que convinham:
        "Os Portugueses somos do Ocidente,
        Imos buscando as terras do Oriente.
  

51 -
                   
        "Do mar temos corrido e navegado
        Toda a parte do Antártico e Calisto,
        Toda a costa Africana rodeado,
        Diversos céus e terras temos visto;
        Dum Rei potente somos, tão amado,
        Tão querido de todos, e benquisto,
        Que não no largo mar, com leda fronte,
        Mas no lago entraremos de Aqueronte.
  

52
        "E por mandado seu, buscando andamos
        A terra Oriental que o Indo rega;
        Por ele, o mar remoto navegamos,
        Que só dos feios focas se navega.
        Mas já razão parece que saibamos,
        Se entre vós a verdade não se nega,
        Quem sois, que terra é esta que habitais,
        Ou se tendes da Índia alguns sinais?"
   

53 -   
        "Somos, um dos das ilhas lhe tornou,
        Estrangeiros na terra, Lei e nação;
        Que os próprios são aqueles, que criou
        A natura sem Lei e sem razão.
        Nós temos a Lei certa, que ensinou
        O claro descendente de Abraão
        Que agora tem do mundo o senhorio,
        A mãe Hebréia teve, e o pai Gentio.
        Informações. A Ilha de Moçambique.
  

54
        "Esta ilha pequena, que habitamos,
        em toda esta terra certa escala
        De todos os que as ondas navegamos
        De Quíloa, de Mombaça e de Sofala;
        E, por ser necessária, procuramos,
        Como próprios da terra, de habitá-la;
        E por que tudo enfim vos notifique,
        Chama-se a pequena ilha Moçambique.
  

55 -   
        "E já que de tão longe navegais,
        Buscando o Indo Idaspe e terra ardente,
        Piloto aqui tereis, por quem sejais
        Guiados pelas ondas sabiamente.
        Também será bem feito que tenhais
        Da terra algum refresco, e que o Regente
        Que esta terra governa, que vos veja,
        E do mais necessário vos proveja."
  

56 -
        Isto dizendo, o Mouro se tornou
        A seus batéis com toda a companhia;
        Do Capitão e gente se apartou
        Com mostras de devida cortesia.
        Nisto Febo nas águas encerrou,
        Co'o carro de cristal, o claro dia,
        Dando cargo à irmã, que alumiasse
        O largo mundo, enquanto repousasse.
  

57 -    
        A noite se passou na lassa frota
        Com estranha alegria, e não cuidada,
        Por acharem da terra tão remota
        Nova de tanto tempo desejada.
        Qualquer então consigo cuida e nota
        Na gente e na maneira desusada,
        E como os que na errada Seita creram,
        Tanto por todo o mundo se estenderam,
  

58
        Da Lua os claros raios rutilavam
        Pelas argênteas ondas Neptuninas,
        As estrelas os Céus acompanhavam,
        Qual campo revestido de boninas;
        Os furiosos ventos repousavam
        Pelas covas escuras peregrinas;
        Porém da armada a gente vigiava,
        Como por longo tempo costumava.
  

59   
        Mas assim como a Aurora marchetada
        Os formosos cabelos espalhou
        No Céu sereno, abrindo a roxa entrada
        Ao claro Hiperiónio, que acordou,
        Começa a embandeirar-se toda a armada,
        E de toldos alegres se adornou,
        Por receber com festas e alegria
        O Regedor das ilhas, que partia.
  

60 -
        Partia alegremente navegando,
        A ver as naus ligeiras Lusitanas,
        Com refresco da terra, em si cuidando
        Que são aquelas gentes inumanas,
        Que, os aposentos cáspios habitando,
        A conquistar as terras Asianas
        Vieram; e por ordem do Destino,
        O Império tomaram a Constantino.
  

61
        Recebe o Capitão alegremente
        O Mouro, e toda a sua companhia;
        Dá-lhe de ricas peças um presente,
        Que só para este efeito já trazia;
        Dá-lhe conserva doce, e dá-lhe o ardente
        Não usado licor, que dá alegria.
        Tudo o Mouro contente bem recebe;
        E muito mais contente come e bebe.
  

62
        Está a gente marítima de Luso
        Subida pela enxárcia, de admirada,
        Notando o estrangeiro modo e uso,
        E a linguagem tão bárbara e enleada.
        Também o Mouro astuto está confuso,
        Olhando a cor, o trajo, e a forte armada;
        E perguntando tudo, lhe dizia
        "Se por ventura vinham de Turquia?"
  

63 -   
        E mais lhe diz também, que ver deseja
        Os livros de sua Lei, preceito eu fé,
        Para ver se conforme à sua seja,
        Ou se são dos de Cristo, como Crê.
        E porque tudo note e tudo veja,
        Ao Capitão pedia que lhe dê
        Mostra das fortes armas de que usavam,
        Quando co'os inimigos pelejavam.
  

64 -
        Responde o valeroso Capitão
        Por um, que a língua escura bem sabia:
        "Dar-te-ei, Senhor ilustre, relação
        De mim, da Lei, das armas que trazia.
        Nem sou da terra, nem da geração
        Das gentes enojosas de Turquia:
        Mas sou da forte Europa belicosa,
        Busco as terras da índia tão famosa.
  

65 -    
        A lei tenho daquele, a cujo império
        Obedece o visíbil e ínvisíbil
        Aquele que criou todo o Hemisfério,
        Tudo o que sente, o todo o insensíbil;
        Que padeceu desonra e vitupério,
        Sofrendo morte injusta e insofríbil,
        E que do Céu à Terra, enfim desceu,
        Por subir os mortais da Terra ao Céu.
  

66 -    As Armas de Guerra dos Portugueses
        Deste Deus-Homem, alto e infinito,
        Os livros, que tu pedes não trazia,
        Que bem posso escusar trazer escrito
        Em papel o que na alma andar devia.
        Se as armas queres ver, como tens dito,
        Cumprido esse desejo te seria;
        Como amigo as verás; porque eu me obrigo,
        Que nunca as queiras ver como inimigo."
  

67
        Isto dizendo, manda os diligentes
        Ministros amostrar as armaduras:
        Vêm arneses, e peitos reluzentes,
        Malhas finas, e lâminas seguras,
        Escudos de pinturas diferentes,
        Pelouros, espingardas de aço puras,
        Arcos, e sagitíferas aljavas,
        Partazanas agudas, chuças bravas:
  

68
        As bombas vêm de fogo, e juntamente
        As panelas sulfúreas, tão danosas;
        Porém aos de Vulcano não consente
        Que dêem fogo às bombardas temerosas;
        Porque o generoso ânimo e valente,
        Entre gentes tão poucas e medrosas,
        Não mostra quanto pode, e com razão,
        Que é fraqueza entre ovelhas ser leão.
  

69 -  
        Porém disto, que o Mouro aqui notou,
        E de tudo o que viu com olho atento
        Um ódio certo na alma lhe ficou,
        Uma vontade má de pensamento.
        Nas mostras e no gesto o não mostrou;
        Mas com risonho e ledo fingimento
        Tratá-los brandamente determina,
        Até que mostrar possa o que imagina.
  

70 -   
        Pilotos lhe pedia o Capitão,
        Por quem pudesse à Índia ser levado;
        Diz-lhe que o largo prêmio levarão
        Do trabalho que nisso for tomado.
        Promete-lhos o Mouro, com tenção
        De peito venenoso, e tão danado,
        Que a morte, se pudesse, neste dia,
        Em lugar de pilotos lhe daria.

  

  


71
        Tamanho o ódio foi, e a má vontade,
        Que aos estrangeiros súbito tomou,
        Sabendo ser sequazes da verdade,
        Que o Filho de David nos ensinou.
        ó segredos daquela Eternidade,
        A quem juízo algum nunca alcançou!
        Que nunca falte um pérfido inimigo
        Aqueles de quem foste tanto amigo!

72 -  

        Partiu-se Disto enfim coa companhia,
        Das naus o falso Mouro despedido,
        Com enganosa e grande cortesia,
        Com gesto ledo a todos, e fingido.
        Cortaram os batéis a curta via
        Das águas de Neptuno, e recebido
        Na terra do obsequente ajuntamento
        Se foi o Mouro ao cógnito aposento.
  

73 -    Ódio de Baco aos Portugueses
        Do claro assento etóreo o grão Tebano,
        Que da paternal coxa foi nascido,
        Olhando o ajuntamento Lusitano
        Ao Mouro ser molesto e avorrecido,
        No pensamento cuida um falso engano,
        Com que seja de todo destruído.
        E enquanto isto só na alma imaginava,
        Consigo estas palavras praticava:
  

74 -
        "Está do fado já determinado,
        Que tamanhas vitórias, tão famosas,
        Hajam os Portugueses alcançado
        Das Indianas gentes belicosas.
        E eu só, filho do Padre sublimado,
        Com tantas qualidades generosas,
        Hei de sofrer que o fado favoreça
        Outrem, por quem meu nome se escureça?
  

75
        "Já quiseram os Deuses que tivesse
        O filho de Filipo nesta parte
        Tanto poder, que tudo submetesse
        Debaixo de seu jugo o fero Marte.
        Mas há-se de sofrer que o fado desse
        A tão poucos tamanho esforço e arte,
        Que eu co'o grão Macedônio, e o Romano,
        Demos lugar ao nome Lusitano?
  

76
        "Não será assim, porque antes que chegado
        Seja este Capitão, astutamente
        Lhe será tanto engano fabricados
        Que nunca veja as partes do Oriente.
        Eu descerei à Terra, e o indignado
        Peito revolverei da Maura gente;
        Porque sempre por via irá direita
        Quem do oportuno tempo se aproveita."
  

77 -
        Isto dizendo, irado e quase insano,
        Sobre a terra africana descendeu,
        Onde vestindo a forma e gesto humano,
        Para o Prasso sabido se moveu.
        E por melhor tecer o astuto engano,
        No gesto natural se converteu
        Dum Mouro, em Moçambique conhecido
        Velho, sábio, e co'o Xeque mui valido.
  

78 -   
        E entrando assim a falar-lhe a tempo e horas
        A sua falsidade acomodadas,
        Lhe diz como eram gentes roubadoras,
        Estas que ora de novo são chegadas;
        Que das nações na costa moradoras
        Correndo a fama veio que roubadas
        Foram por estes homens que passavam,
        Que com pactos de paz sempre ancoravam.
  

79
        E sabe mais, lhe diz, como entendido
        Tenho destes cristãos sanguinolentos,
        Que quase todo o mar têm destruído
        Com roubos, com incêndios violentos;
        E trazem já de longe engano urdido
        Contra nós; e que todos seus intentos
        São para nos matarem e roubarem,
        E mulheres e filhos cativarem.
  

80 -   
        "E também sei que tem determinado
        De vir por água a terra muito cedo
        O Capitão dos seus acompanhado,
        Que da tensão danada nasce o medo.
        Tu deves de ir também co'os teus armado
        Esperá-lo em cilada, oculto e quedo;
        Porque, saindo a gente descuidada,
        Cairão facilmente na cilada.
  

81 -
        "E se inda não ficarem deste jeito
        Destruídos, ou mortos totalmente
        Eu tenho imaginado no conceito
        Outra manha e ardil, que te contente:
        Manda-lhe dar piloto, que de jeito
        Seja astuto no engano, e tão prudente,
        Que os leve aonde sejam destruídos,
        Desbaratados, mortos, ou perdidos."
  

82
        Tanto que estas palavras acabou,
        O Mouro, nos tais casos sábio e velho,
        Os braços pelo colo lhe lançou,
        Agradecendo muito o tal conselho;
        E logo nesse instante concertou
        Para a guerra o belígero aparelho,
        Para que ao Português se lhe tornasse
        Em roxo sangue a água, que buscasse.
  

83
        E busca mais, para o cuidado engano,
        Mouro, que por piloto à nau lhe mande,
        Sagaz, astuto, e sábio em todo o dano,
        De quem fiar-se possa um feito grande.
        Diz-lhe que acompanhando o Lusitano,
        Por tais costas e mares com ele ande,
        Que, se daqui escapar, que lá diante
        Vá cair onde nunca se alevante.
  

84 -  
        Já o raio Apolíneo visitava
        Os montes Nabatêos acendido,
        Quando o Gama, colos seus determinava
        De vir por água a terra apercebido.
        A gente nos batéis se concertava,
        Como se fosse o engano já sabido:
        Mas pode suspeitar-se facilmente,
        Que o coração pressago nunca mente.
  

85
        E mais também mandado tinha a terra,
        De antes, pelo piloto necessário,
        E foi-lhe respondido em som de guerra,
        Caso do que cuidava mui contrário;
        Por isto, e porque sabe quanto erra
        Quem se crê de seu pérfido adversário,
        Apercebido vai como podia,
        Em três batéis somente que trazia.
  

86 -
        Mas os Mouros que andavam pela praia,
        Por lhe defender a água desejada,
        Um de escudo embraçado e de azagaia,
        Outro de arco encurvado e seta ervada,
        Esperam que a guerreira gente saia,
        Outros muitos já postos em cilada.
        E, porque o caso leve se lhe faça,
        Põem uns poucos diante por negaça,
  

87 -
        Andam pela ribeira alva, arenosa,
        Os belicosos Mouros acenando
        Com a adarga e co’a hástia perigosa,
        Os fortes Portugueses incitando.
        Não sofre muito a gente generosa
        Andar-lhe os cães os dentes amostrando.
        Qualquer em terra salta tão ligeiro,
        Que nenhum dizer pode que é primeiro.
  

88
        Qual no corro sanguino o ledo amante,
        Vendo a formosa dama desejada,
        O touro busca, e pondo-se diante,
        Salta, corre, sibila, acena, e brada,
        Mas o animal atroce, nesse instante,
        Com a fronte cornígera inclinada,
        Bramando duro corre, e os olhos cerra,
        Derriba, fere e mata, e põe por terra:
  

89 -
        Eis nos batéis o fogo se levanta
        Na furiosa e dura artilharia,
        A plúmbea péla mata, o brado espanta,
        Ferido o ar retumba e assovia:
        O coração dos Mouros se quebranta,
        O temor grande o sangue lhe resfria.
        Já foge o escondido de medroso,
        E morre o descoberto aventuroso.
  

90 -  
        Não se contenta a gente Portuguesa,
        Mas seguindo a vitória estrui e mata;
        A povoação, sem muro e sem defesa,
        Esbombardeia, acende e desbarata.
        Da cavalgada ao Mouro já lhe pesa,
        Que bem cuidou comprá-la mais barata;
        Já blasfema da guerra, e maldizia,
        O velho inerte, e a mãe que o filho cria.
  

91 -
        Fugindo, a seta o Mouro vai tirando
        Sem força, de covarde e de apressado,
        A pedra, o pau, e o canto arremessando;
        Dá-lhe armas o furor desatinado.
        Já a ilha e todo o mais desemparando,
        A terra firme foge amedrontado;
        Passa e corta do mar o estreito braço,
        Que a ilha em torno cerca, em pouco espaço
  

92
        Uns vão nas almadias carregadas,
        Um corta o mar a nado diligente,
        Quem se afoga nas ondas encurvadas,
        Quem bebe o mar, e o deita juntamente.
        Arrombam as miúdas bombardadas
        Os pangaios subtis da bruta gente:
        Desta arte o Português enfim castiga
        A vil malícia, pérfida, inimiga.
  

93
        Tornam vitoriosos para a armada,
        Co'o despojo da guerra e rica presa,
        E vão a seu prazer fazer aguada,
        Sem achar resistência, nem defesa.
        Ficava a Maura gente magoada,
        No ódio antigo mais que nunca acesa;
        E vendo sem vingança tanto dano,
        Somente estriba no segundo engano.
  

94 -    
        Pazes cometer manda arrependido
        O Regedor daquela iníqua terra,
        Sem ser dos Lusitanos entendido,
        Que em figura de paz lhe manda guerra;
        Porque o piloto falso prometido,
        Que toda a má tenção no peito encerra,
        Para os guiar à morte lhe mandava,
        Como em sinal das pazes que tratava.
  

95 -   
        O Capitão, que já lhe então convinha
        Tornar a seu caminho acostumado,
        Que tempo concertado e ventos tinha
        Para ir buscar o Indo desejado,
        Recebendo o piloto, que lhe vinha,
        Foi dele alegremente agasalhado;
        E respondendo ao mensageiro a tento,
        As velas manda dar ao largo vento.
  

96 - 
        Desta arte despedida a forte armada,
        As ondas de Anfitrite dividia,
        Das filhas de Nereu acompanhada,
        Fiel, alegre e doce companhia.
        O Capitão, que não caía em nada
        Do enganoso ardil, que o Mouro urdia,
        Dele mui largamente se informava
        Da Índia toda, e costas que passava.
  

97 -  
        Mas o Mouro, instruído nos enganos
        Que o malévolo Baco lhe ensinara,
        De morte ou cativeiro novos danos,
        Antes que à Índia chegue, lhe prepara:
        Dando razões dos portos Indianos,
        Também tudo o que pede lhe declara,
        Que, havendo por verdade o que dizia,
        De nada a forte gente se temia.
  

98
        E diz-lhe mais, com o falso pensamento
        Com que Sinon os Frígios enganou:
        Que perto está uma ilha, cujo assento
        Povo antigo cristão sempre habitou.
        O Capitão, que a tudo estava a tento,
        Tanto com estas novas se alegrou,
        Que com dádivas grandes lhe rogava,
        Que o leve à terra onde esta gente estava.
  

99 -
        O mesmo o falso Mouro determina,
        Que o seguro Cristão lhe manda e pede;
        Que a ilha é possuída da malina
        Gente que segue o torpe Mahamede.
        Aqui o engano e morte lhe imagina,
        Porque em poder e forças muito excede
        A Moçambique esta ilha, que se chama
        Quíloa, mui conhecida pela fama.
  

100 -  
        Para lá se inclinava a leda frota;
        Mas a Deusa em Citere celebrada,
        Vendo como deixava a certa rota
        Por ir buscar a morte não cuidada,
        Não consente que em terra tão remota
        Se perca a gente dela tanto amada.
        E com ventos contrários a desvia
        Donde o piloto falso a leva e guia.
  

101 - 
        Mas o malvado Mouro, não podendo
        Tal determinação levar avante,
        Outra maldade iníqua cometendo,
        Ainda em seu propósito constante,
        Lhe diz que, pois as águas discorrendo
        Os levaram por força por diante,
        Que outra ilha tem perto, cuja gente
        Eram Cristãos com Mouros juntamente.
  

102 - 
        Também nestas palavras lhe mentia,
        Como por regimento enfim levava,
        Que aqui gente de Cristo não havia,
        Mas a que a Mahamede celebrava.
        O Capitão, que em tudo o Mouro cria,
        Virando as velas, a ilha demandava;
        Mas, não querendo a Deusa guardadora,
        Não entra pela barra, e surge fora.
  

103
        Estava a ilha à terra tão chegada,
        Que um estreito pequeno a dividia;
        Uma cidade nela situada,
        Que na fronte do mar aparecia,
        De nobres edifícios fabricada,
        Como por fora ao longe descobria,
        Regida por um Rei de antiga idade:
        Mombaça é o nome da ilha e da cidade.
  

104
        E sendo a ela o Capitão chegado,
        Estranhamente ledo, porque espera
        De poder ver o povo batizado,
        Como o falso piloto lhe dissera,
        Eis vêm batéis da terra com recado
        Do Rei, que já sabia a gente que era:
        Que Baco muito de antes o avisara,
        Na forma doutro Mouro, que tomara.
  

105 -   
        O recado que trazem é de amigos,
        Mas debaixo o veneno vem coberto;
        Que os pensamentos eram de inimigos,
        Segundo foi o engano descoberto.
        Ó grandes e gravíssimos perigos!
        Ó caminho de vida nunca certo:
        Que aonde a gente põe sua esperança,
        Tenha a vida tão pouca segurança!
  

106
        No mar tanta tormenta, e tanto dano,
        Tantas vezes a morte apercebida!
        Na terra tanta guerra, tanto engano,
        Tanta necessidade avorrecida!
        Onde pode acolher-se um fraco humano,
        Onde terá segura a curta vida,
        Que não se arme, e se indigne o Céu sereno
        Contra um bicho da terra tão pequeno?