sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Antonio Carlos Villaça


(Foto: ALCEU AMOROSO LIMA)

Balada para Ceceu (1983) Antonio Carlos Villaça


Nós te entregamos à noite
Nós te entregamos à terra.
Nós te entregamos à Deus.
Inquieto menino,
por que escreveste tanto?
Por que tanto te curvaste,
ao longo do tempo,
Sobre a folha branca?
Que segredos buscavas no papel?
Que segredos punhas no papel?
Que íntimas verdades
ansiosamente perseguias?
Amaste o silêncio e a solidão,
gostavas de ouvir de noite
o murmúrio das águas...
E agora te deixamos
entregue à noite
e à terra
e ao doce Absoluto
que buscaste, com pureza.
Conta para nós, Ceceu, o teu segredo,
Para lá de todas as palavras.
Diz-nos o que só importa,
o essencial do ser,
o sumo da vida,
tu que amavas Vivaldi
e eras apenas um poeta.
Teu espírito de infância
te conduzia pelas ruas
desertas
ainda madrugada
para o pão de cada dia.
E comias em silêncio,
e voltavas para casa,
em paz.
Disseste
que era a tua única certeza.
Ias e vinhas,
menino inquieto.
E depois escrevias, escrevias,
para contar a verdade, o caminho, a vida.
Não te deixamos no chão
e na profundeza da noite,
ao pé da tua Amada,
na porta dos humildes,
No limiar do Amor.
A lua estava no céu.
(Anche la luna...)
lua do Lima,
lua mais bela
que jamais vi...
Ponte do Lima,
Ponte do Lima,
O teu menino está chegando.
Chamai Abigail, em Pau.
Chamai Zaíra e Carmen.
Chamai Camila e Manuel José.
Chamai Quinquina,
A Bá Preta,
Que veja como o seu menino
está bem.
Amoroso, Amoroso,
Grande outrora nadador,
Agora mergulhas no Amor.
(Ouve-se ao longe o canto
do Magnificat, pelas monjas.)
nadador, nadador, em que águas
estás nadando?
Estou nadando no Amor.

[Nota da Redação deste Site: Este raro poema foi publicado originalmente em Aió2 (Abr.1984) e escrito na morte de Alceu Amoroso Lima].



Quando eu chegar ao Céu...



Antonio Carlos Villaça



Quando eu chegar ao Céu, de manhã, de tarde ou de noite, não sei ainda, pedirei para ir à biblioteca de Deus, onde curiosamente bisbilhotarei — com respeito — algumas obras. Quero reler a Invenção de Orfeu, de nosso Jorge de Lima, sofredor, telúrico e místico, homem bom, cirenaico, assim lhe chamou Rachel de Queiróz, quando ele morreu, novembro, 15, do ano de 1953.

E pedirei, sim, para conversar com Manu, Manuel Bandeira, que se chamava Neném. Matarei saudades do dentuço Manuel, que foi o melhor ser humano que conheci, neste mundo. E gostaria de conhecer Chiquita do Rio Negro, que recusou casar se com Ataulfo Nápoles de Paiva, conviva do baile da ilha Fiscal. Escrevi sobre Chiquita. Li a sua biografia, escrita por Garrigou-Lagrange.

Meu Deus, convocaria Jaime Ovalle, o tio Nhonhô, que morreu com a idade de Jorge de Lima. Ali, na biblioteca do Céu, conheceria o estupendo Ovalle, o do Azulão, o bêbedo místico, o amigo de Manuel, íntimo de Londres e de Nova York.

Por fim, suplicaria para falar com João Guimarães Rosa, poliglota, com quem tão poucas vezes falei. E evocaria a posse do seu sucessor, na Casa de Machado. Esqueci-me completamente dessa posse, ai de mim.

E fui. Lá estava eu, 1968. Um ano depois da morte de Rosa. Mário Palmério falou sobre ele, como seu herdeiro. E gostei tanto do discurso, equilibrado, lúcido, original. Se me lembro. Foi procurar cartas íntimas de Rosa para grande amigo, médico e fazendeiro em Minas, Moreira Barbosa. Cartas de outrora. Deliciosas, fraternais, confiantes, de pura entrega. Reveladoras do ser complexíssimo, fechado, carente, que gostava de disfarçar, despistar, ir e vir, comensal do mistério. Saudarei a uns e outros na largueza dadivosa do Céu, turbilhão de amor, como dizia o insaciável Léon Bloy.





Texto extraído do livro “Os saltimbancos da Porciúncula”, Editora Record – Rio de Janeiro, 1996, pág. 73.




ESTAS MÃOS INQUIETAS…Antonio Carlos Villaça
.
Servir foi teu destino.
Se descobres uma pequena mancha,
ou um botão ausente,
logo te levantas,
com tuas mãos inquietas,
disposta a servir.
Serviste longamente.
Teu destino foi servir.
Queres limpar os sapatos,
queres costurar as roupas,
queres lavar o que está sujo,
as meias,
os corações.
Caminhas pelo mundo como um anjo.
Nasceste para ajudar.
Com que delicadeza,
com que pressa,
te levantas e te debruças,
ó infatigável enfermeira,
ó ser misericordioso e humilde.
És tão prestativa,
tão solícita,
tão serena em meio a todos os pesares,
tão fiel a ti mesma, a teu destino.
Tens o gosto do próximo,
do pobre,
do sofrimento que ninguém viu
e tu vês, tu descobres,
ó humana criatura.
Como um anjo serviste.
Insaciável, tu prossegues.
Tens a vocação do serviço –
- a pequena mancha,
o botão caído,
o sapato a engraxar ou a limpar,
a cotidiana tarefa, que ninguém percebe,
tu cumpres tudo isso,
como um ritual secreto,
que é a vida de tua vida,
a essência de ti mesma,
a verdade do teu destino,
leve,
gracioso,

………..verdade nítida.
.
(Poema inédito, 11-09-1968)




"O Nariz do Morto":

"Ó dias, ó noites, ó vermes, que perfurais em nós a essência nossa. Que essência ? Que vermes ? Ó países em nós soterrados, ó escombros, ó múmias, ó gigantes mutilados, terras absurdas e quietas, colinas, mausoléus ,incógnitas e nós, bichos da terra, pitorescos, à procura"."A vida é numerosa. E então os sinos súbito anunciam em nós a morte,que virá. A morte vem.Cada dia, a morte vem".
"A fé religiosa como que me assaltou.Vi-me subjugado pelo entusiasmo. A vida de rapaz que amava as letras e sabia de cor os seus poetas preferidos,a vida simples, descuidada, solitária,tantas vezes,de um rapaz estudioso (e reto) ganhou esse frêmito novo e desconhecido, essa audácia, essa loucura, essa vibração absurda".
"Eu gostava das sublimidades.Eu queria as grandezas. Eu sonhava com alturas límpidas. Eu queria as nuvens. Muito menos, o duro chão dos homens".
"Ó paredes, dizei-me. "Eu quero a estrela da manhã !". Dizei-me o endereço dela. Ó sala capitular, ó claustros, ó antifonários com iluminuras, ó sinos brônzeos, estatuazinhas , capitéis, afrescos, casulas, pesadas estalas, pedras, faces, madeiras e ouro, tapetes, cálices, relicários , retábulos e móveis, crucifixos e virgens, falai ! Um sussuro que nos chegue. Que monólogo é este, dia e noite entretido ? Sombras, sombras, sussurai-me, segredai-me. Todo esse passado, esse peso, essa pátina, pureza, pecado".

"O homem morre para sempre. O abismo da morte não devolve ninguém. E então, lentamente, fui percebendo que só nos resta uma atitude, menos que atitude, uma postura - a tranquila dignidade de quem sabe e não se desespera".

"Ó interminável estrada, ó ruas do mundo, ó caminhos da vida, ó rio dos homens por onde incessantemnte rolamos como gloriosos destroços !".
"Ó caminhante sombrio e só ! Sempre sentiste o efêmero de tudo. Nunca pousaste, nem repousaste em nada. Nunca tiveste sossego. Fosto sempre um peregrino em perigo".
"Isto é apetecível, uma casa, com mulher e meninos, para a noite do homem. Nunca terás isto, ó incauto viajante, ó ser noturno, abandonado e trágico, nunca terás o limpo sossego dos homens. Não o terás, porque o recusas, ó louco, ó orgulhoso, ó só. Não conhecerás nunca a meiga tranquilidade dos serões sem agitação : viverás como um condenado, sem casa, entregue à nostalgia do paraíso absurdo, sem chave, sem nada. Caminharás sem fim. Nunca chegarás".

sábado, 17 de dezembro de 2011

CASIMIRO DE ABREU



PRIMAVERAS.

Primavera! juventud Del anno,
Mocidad! primavera della vita.
Metastasio

I.
A primavera é a estação dos risos,
Deus fita o mundo com celeste afago,
Tremem as folhas e palpita o lago
Da brisa louca aos amorosos frisos.
Na primavera tudo é viço e gala,
Trinam as aves a canção de amores.
E doce e bela no tapiz das flores
Melhor perfume a violeta exala.
Na primavera tudo é riso e festa,
Brotam aromas do vergel florido,
E o ramo verde de manhã colhido
Enfeita a fronte da aldeã modesta.
A natureza se desperta rindo,
Um hino imenso a criação modula,
Canta a calhandra, a juriti arrula,
O mar é calmo porque o céu é lindo.
Alegre e verde se balança o galho,
Suspira a fonte na linguagem meiga,
Murmura a brisa: – Como é linda a veiga!
Responde a rosa: – Como é doce o orvalho!
II.
Mas como às vezes sobre o céu sereno
Corre uma nuvem que a tormenta guia,
Também a lira alguma vez sombria
Solta gemendo de amargura um treno.
São flores murchas; – o jasmim fenece,
Mas bafejado s’erguerá de novo
Bem como o galho do gentil renovo
Durante a noite, quando o orvalho desce.
Se um canto amargo de ironia cheio
Treme nos lábios do cantor mancebo,
Em breve a virgem do seu casto enlevo
Dá-lhe um sorriso e lhe intumesce o seio
Na primavera – na manhã da vida –
Deus às tristezas o sorriso enlaça,
E a tempestade se dissipa e passa
À voz mimosa da mulher querida.
Na mocidade, na estação fogosa,
Ama-se a vida – a mocidade é crença,
E a alma virgem nesta festa imensa
Canta, palpita, s’extasia e goza.




QUANDO TU CHORAS


Quando tu choras, meu amor, teu rosto
Brilha formoso com mais doce encanto,
E as leves sombras de infantil desgosto
Tornam mais belo o cristalino pranto.
Oh! nessa idade da paixão lasciva
Como o prazer, é o chorar preciso:
Mas breve passa – qual a chuva estiva –
E quase ao pranto se mistura o riso.
É doce o pranto de gentil donzela,
É sempre belo quando a virgem chora:
– Semelha a rosa pudibunda e bela
Toda banhada do orvalhar da aurora.
Da noite o pranto, que tão pouco dura,
Brilha nas folhas como um rir celeste,
E a mesma gota transparente e pura
Treme na relva que a campina veste.
Depois o sol, como sultão brilhante,
De luz inunda o seu gentil serralho,
E às flores todas – tão feliz amante –
Cioso sorve o matutino orvalho.
Assim, se choras, inda és mais formosa,
Brilha teu rosto com mais doce encanto:
– Serei o sol e tu serás a rosa...
Chora, meu anjo, – beberei teu pranto!


Rio – 1858.




VISÃO.

Uma noite, meu Deus, que noite aquela!
Por entre as galas, no fervor da dança,
Vi passar, qual num sonho vaporoso,
O rosto virginal duma criança.
Sorri-me – era o sonho de minh’alma
Esse riso infantil que o lábio tinha:
– Talvez que essa alma dos amores puros
Pudesse um dia conversar co’a minha!
Eu olhei, ela olhou... doce mistério!
Minh’alma despertou-se à luz da vida,
E as vozes duma lira e dum piano
Juntas se uniram na canção querida.
Depois eu indolente descuidei-me
Da planta nova dos gentis amores,
E a criança, correndo pela vida,
Foi colher nos jardins mais lindas flores.
Não voltou; – talvez ela adormecesse
Junto à fonte, deitada na verdura,
E – sonhando – a criança se recorde
Do moço que ela viu e que a procura!
Corri pelas campinas noite e dia
Atrás do berço d’ouro dessa fada;
Rasguei-me nos espinhos do caminho...
Cansei-me a procurar e não vi nada!
Agora como um louco eu fito as turbas
Sempre a ver se descubro a face linda...
– Os outros a sorrir passam cantando,
Só eu a suspirar procuro ainda!...
Onde foste, visão dos meus amores!
Minh’alma sem te ver louca suspira!
– Nunca mais unirás, sombra encantada,
O som do teu piano à voz da lira?!...

Setembro – 1858




AMOR E MEDO.
***

I.
Quanto eu te fujo e me desvio cauto
Da luz de fogo que te cerca, oh! bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
“– Meu Deus! que gelo, que frieza aquela.”
Como te enganas! meu amor é chama
Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo é que te adoro louco...
És bela – eu moço; tens amor – eu medo!
Tenho medo de mim, de ti, de tudo,
Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes,
Das folhas secas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.
O véu da noite me atormenta em dores,
A luz da aurora me intumesce os seios,
E ao vento fresco do cair das tardes
Eu me estremeço de cruéis receios.
É que esse vento que na várzea – ao longe,
Do colmo o fumo caprichoso ondeia,
Soprando um dia tornaria incêndio
A chama viva que teu riso ateia!
Ai! se abrasado crepitasse o cedro,
Cedendo ao raio que a tormenta envia,
Diz: – que seria da plantinha humilde
Que à sombra dele tão feliz crescia?
A labareda que se enrosca ao tronco
Torrara a planta qual queimara o galho,
E a pobre nunca reviver pudera
Chovesse embora paternal orvalho!

II.
Ai! se eu te visse no calor da sesta,
A mão tremente no calor das tuas,
Amarrotado o teu vestido branco,
Soltos cabelos nas espáduas nuas!...
Ai! se eu te visse, Magdalena pura,
Sobre o veludo reclinada a meio,
Olhos cerrados na volúpia doce,
Os braços frouxos – palpitante o seio!...
Ai! se eu te visse em languidez sublime,
Na face as rosas virginais do pejo,
Trêmula a fala a protestar baixinho...
Vermelha a boca, soluçando um beijo!...
Diz: – que seria da pureza d’anjo,
Das vestes alvas, do candor das asas?
– Tu te queimaras, a pisar descalça,
– Criança louca, – sobre um chão de brasas!
No fogo vivo eu me abrasara inteiro!
Ébrio e sedento na fugaz vertigem
Vil, machucara com meu dedo impuro
As pobres flores da grinalda virgem!
Vampiro infame, eu sorveria em beijos
Toda a inocência que teu lábio encerra,
E tu serias no lascivo abraço
Anjo enlodado nos pauis da terra.
Depois... desperta no febril delírio,
– Olhos pisados – como um vão lamento,
Tu perguntaras: – qu’é da minha c’roa?...
Eu te diria: – desfolhou-a o vento!...
______
Oh! não me chames coração de gelo!
Bem vês: traí-me no fatal segredo.
Se de ti fujo é que te adoro e muito,
És bela – eu moço; tens amor, eu – medo!...

Outubro – 1858.



MINH’ALMA É TRISTE.
Mon coeur est plein – je veux pleurer!
Lamartine.
I
Minh’alma é triste como a rola aflita
Que o bosque acorda desde o albor da aurora,
E em doce arrulo que o soluço imita
O morto esposo gemedora chora.
E, como a rola que perdeu o esposo,
Minh’alma chora as ilusões perdidas,
E no seu livro de fanado gozo
Relê as folhas que já foram lidas.
E como notas de chorosa endecha9
Seu pobre canto com a dor desmaia,
E seus gemidos são iguais à queixa
Que a vaga solta quando beija a praia.
Como a criança que banhada em prantos
Procura o brinco que levou-lhe o rio,
Minh’alma quer ressuscitar nos cantos
Um só dos lírios que murchou o estio.
Dizem que há gozos nas mundanas galas,
Mas eu não sei em que o prazer consiste.
– Ou só no campo, ou no rumor das salas,
Não sei porque – mas a minh’alma é triste!

II
Minh’alma é triste como a voz do sino
Carpindo o morto sobre a laje fria;
E doce e grave qual no templo um hino,
Ou como a prece ao desmaiar do dia.
Se passa um bote com as velas soltas,
Minh’alma o segue n’amplidão dos mares;
E longas horas acompanha as voltas
Das andorinhas recortando os ares.
Às vezes, louca, num cismar perdida,
Minh’alma triste vai vagando à toa,
Bem como a folha que do sul batida
Bóia nas águas de gentil lagoa!
E como a rola que em sentida queixa
O bosque acorda desde o albor da aurora,
Minh’alma em notas de chorosa endecha
Lamenta os sonhos que já tive outrora.
Dizem que há gozos no correr dos anos!...
Só eu não sei em que o prazer consiste.
– Pobre ludíbrio de cruéis enganos,
Perdi os risos – a minh’alma é triste!

III
Minh’alma é triste como a flor que morre
Pendida à beira do riacho ingrato;
Nem beijos dá-lhe a viração que corre,
Nem doce canto o sabiá do mato!
E como a flor que solitária pende
Sem ter carícias no voar da brisa,
Minh’alma murcha, mas ninguém entende
Que a pobrezinha só de amor precisa!
Amei outrora com amor bem santo
Os negros olhos de gentil donzela,
Mas dessa fronte de sublime encanto
Outro tirou a virginal capela.
Oh! quantas vezes a prendi nos braços!
Que o diga e fale o laranjal florido!
Se mão de ferro espedaçou dois laços
Ambos choramos mas num só gemido!
Dizem que há gozos no viver d’amores,
Só eu não sei em que o prazer consiste!
– Eu vejo o mundo na estação das flores...
Tudo sorri – mas a minh’alma é triste!

IV
Minh’alma é triste como o grito agudo
Das arapongas no sertão deserto;
E como o nauta sobre o mar sanhudo,
Longe da praia que julgou tão perto!
A mocidade no sonhar florida
Em mim foi beijo de lasciva virgem:
– Pulava o sangue e me fervia a vida,
Ardendo a fronte em bacanal vertigem.
De tanto fogo tinha a mente cheia!...
No afã da glória me atirei com ânsia...
E, perto ou longe, quis beijar a s’reia
Que em doce canto me atraiu na infância.
Ai! Loucos sonhos de mancebo ardente!
Esp’ranças altas... Ei-las já tão rasas!...
– Pombo selvagem, quis voar contente...
Feriu-me a bala no bater das asas!
Dizem que há gozos no correr da vida...
Só eu não sei em que o prazer consiste!
– No amor, na glória, na mundana lida,
Foram-se as flores – a minh’alma é triste!

Março 12. – 1858.

sábado, 1 de outubro de 2011

EUCLIDES DA CUNHA - OS SERTÕES 3


A jurema
As juremas, prediletas dos caboclos — o seu haxixe capitoso, fornecendo-lhes, grátis, inestimável beberagem, que os
revigora depois das caminhadas longas, extinguindo-lhes as fadigas em momentos, feito um filtro mágico — derramam-se
em sebes, impenetráveis tranqueiras disfarçadas em folhas diminutas; refrondam os marizeiros raros — misteriosas árvores
que pressagiam a volta das chuvas e das épocas aneladas do verde e o termo da magrém1 — quando, em pleno flagelar da
seca, lhes porejam na casca ressequida dos troncos algumas gotas d’água; reverdecem os angicos; lourejam os juás em
moitas; e as baraúnas de flores em cachos, e os araticuns à ourela dos banhados... mas, destacando-se, esparsos pelas
chapadas, ou no bolear dos cerros, os umbuzeiros, estrelando flores alvíssimas, abrolhando em folhas, que passam em
fugitivos cambiantes de um verde pálido ao róseo vivo dos rebentos novos, atraem melhor o olhar, são a nota mais feliz do
cenário deslumbrante.
O Sertão é um paraíso
E o sertão é um paraíso...
Ressurge ao mesmo tempo a fauna resistente das caatingas: disparam pelas baixadas úmidas os caititus esquivos; passam,
em varas, pelas tigüeras, num estrídulo estrepitar de maxilas percutindo, os queixadas de canela ruiva; correm pelo tabuleiros
altos, em bandos, esporeando-se com os ferrões de sob as asas, as emas velocíssimas; e as seriemas de vozes lamentosas, e
as sericóias vibrantes, cantam nos balsedos, à fímbria dos banhados onde vem beber o tapir estacando um momento no seu
trote brutal, inflexivelmente retilíneo, pela caatinga, derribando árvores; e as próprias suçuaranas, aterrando os mocós
espertos que se aninham aos pares nas luras dos fraguedos, pulam, alegres, nas macegas altas, antes de quedarem nas tocaias
traiçoeiras aos veados ariscos ou novilhos desgarrados...
Manhãs sertanejas
Sucedem-se manhãs sem par, em que o irradiar do levante incendido retinge a púrpura das eritrinas e destaca melhor,
engrinaldando as umburanas de casca arroxeada, os festões multicores das bignônias. Animam-se os ares numa palpitação
de asas, céleres, ruflando. — Sulcam-nos notas de clarins estranhos. Num tumultuar de desencontrados vôos passam, em
bandos, as pombas bravas que remigram, e rolam as turbas turbulentas das maritacas estridentes... enquanto feliz, deslembrado
de mágoas, segue o campeiro pelos arrastadores, tangendo a boiada farta, e entoando a cantiga predileta...
Assim se vão os dias.
Passam-se um, dous, seis meses venturosos, derivados da exuberância da terra, até que surdamente, imperceptivelmente,
num ritmo maldito, se despeguem, a pouco e pouco, e caiam, as folhas e as flores, e a seca se desenhe outra vez nas ramagens
mortas das árvores decíduas...
V
Uma categoria geográfica que Hegel não citou
Resumamos; enfeixemos estas linhas esparsas.
Hegel delineou três categorias geográficas como elementos fundamentais colaborando com outros no reagir sobre o
homem, criando diferenciações étnicas:
As estepes de vegetação tolhiça, ou vastas planícies áridas; os vales férteis, profusamente irrigados; os litorais e as ilhas.
Os llanos da Venezuela: as savanas que alargam o vale do Mississippi, as pampas desmedidas e o próprio Atacama
desatado sobre os Andes — vasto terraço onde vagueiam dunas — inscrevem-se rigorosamente nos primeiros.
Em que pese aos estios longos, às trombas formidáveis de areia, e ao saltear de súbitas inundações não se incompatibilizam
com a vida.
Mas não ficam o homem à terra.
A sua flora rudimentar, de gramíneas e ciperáceas, reviçando vigorosa nas quadras pluviosas, é um incentivo à vida
pastoril, às sociedades errantes dos pegureiros, passando móveis, num constante armar e desarmar de tendas, por aqueles
plainos — rápidas, dispersas aos primeiros fulgores do verão.
Não atraem. Patenteiam sempre o mesmo cenário de uma monotonia acabrunhadora, com a variante única da cor: um
oceano imóvel, sem vagas e sem praias.
Têm a força centrífuga do deserto: repelem; desunem; dispersam. Não se podem ligar à humanidade pelo vínculo
nupcial do sulco dos arados. São um isolador étnico como as cordilheiras e o mar, ou as estepes da Mongólia, varejadas, em
corridas doudas, pelas catervas turbulentas dos tártaros errabundos.
Aos sertões do Norte, porém, que à primeira vista se lhes equiparam, falta um lugar no quadro do pensador germânico.
Ao atravessá-los no estio, crê-se que entram, de molde, naquela primeira subdivisão; ao atravessá-los no inverno,
acredita-se que são parte essencial da segunda.
Barbaramente estéreis; maravilhosamente exuberantes...
Na plenitude das secas são positivamente o deserto. Mas quando estas não se prolongam ao ponto de originarem
penosíssimos êxodos, o homem luta como as árvores, com as reservas armazenadas nos dias de abastança e, neste combate
feroz, anônimo, terrivelmente obscuro, afogado na solidão das chapadas, a natureza não o abandona de todo. Ampara-o
muito além das horas de desesperança, que acompanham o esgotamento das últimas cacimbas.
Ao sobrevir das chuvas, a terra, como vimos, transfigura-se em mutações fantásticas, contrastando com a desolação
anterior. Os vales secos fazem-se rios. Insulam-se os cômoros escalvados, repentinamente verdejantes. A vegetação recama
de flores, cobrindo-os, os grotões escancelados, e disfarça a dureza das barrancas, e arredonda em colinas os acervos de
blocos disjungidos — de sorte que as chapadas grandes, intermeadas de convales, se ligam em curvas mais suaves aos
tabuleiros altos. Cai a temperatura. Com o desaparecer das soalheiras anula-se a secura anormal dos ares. Novos tons na
paisagem: a transparência do espaço salienta as linhas mais ligeiras, em todas as variantes da forma e da cor.
Dilatam-se os horizontes. O firmamento, sem o azul carregado dos desertos, alteia-se, mais profundo, ante o expandir
revivescente da terra.
E o sertão é um vale fértil. É um pomar vastíssimo, sem dono.
Depois tudo isto se acaba. Voltam os dias torturantes; a atmosfera asfixiadora; o empedramento do solo; a nudez da
flora; e nas ocasiões em que os estios se ligam sem a intermitência das chuvas — o espasmo assombrador da seca.
A natureza compraz-se em um jogo de antíteses.
Eles impõem por isto uma divisão especial naquele quadro. A mais interessante e expressiva de todas — posta, como
mediadora, entre os vales nimiamente férteis e os estepes mais áridos.
Relegando a outras páginas a sua significação como fator de diferenciação étnica, vejamos o seu papel na economia da
terra.
A natureza não cria normalmente os desertos. Combate-os, repulsa-os. Desdobram-se, lacunas inexplicáveis, às vezes
sob as linhas astronômicas definidoras da exuberância máxima da vida. Expressos no tipo clássico do Saara — que é um
termo genérico da região maninha dilatada do Atlântico ao Índico, entrando pelo Egito e pela Síria, assumindo todos os
aspectos da enorme depressão africana ao platô arábico ardentíssimo e Nedjed e avançando daí para as areias do bejabãs, na
Pérsia — são tão ilógicos que o maior dos naturalistas lobrigou a gênese daquele na ação tumultuária de um cataclismo, uma
irrupção do Atlântico, precipitando-se, águas revoltas, num irresistível remoinhar de correntes, sobre o norte da África e
desnudando-a furiosamente.
Esta explicação de Humboldt, embora se erija apenas como hipótese brilhante, tem um significado superior.
Extinta a preponderância do calor central e normalizados os climas, do extremo norte e do extremo sul, a partir dos
pólos inabitáveis, a existência vegetativa progride para a linha equinocial. Sob esta ficam as zonas exuberantes por excelência,
onde os arbustos de outras se fazem árvores e o regime, oscilando em duas estações únicas, determina uniformidade favorável
à evolução dos organismos simples, presos diretamente às variações do meio. A fatalidade astronômica da inclinação da
eclíptica, que coloca a Terra em condições biológicas inferiores às de outros planetas, mal se percebe nas paragens onde uma
montanha única sintetiza, do sopé às cumeadas, todos os climas do mundo.
Entretanto, por elas passa, interferindo a fronteira ideal dos hemisférios, o equador termal, de traçado perturbadíssimo
de inflexões vivas, partindo-se nos pontos singulares em que a vida é impossível; passando dos desertos às florestas, do
Saara, que o repuxa para o norte, à Índia opulentíssima, depois de tangenciar a ponta meridional da Arábia paupérrima;
varando o Pacífico num longo traço — rarefeito colar de ilhas desertas e escalvadas — e abeirando, depois, em lento
descambar para o sul, a Hylaea portentosa do Amazonas.
Da extrema aridez à exuberância extrema...
É que a morfologia da Terra viola as leis gerais dos climas. Mas todas as vezes que o facies geográfico não as combate
de todo, a natureza reage. Em luta surda, cujos efeitos fogem ao próprio raio dos ciclos históricos, mas emocionante, para
quem consegue lobrigá-la ao través dos séculos sem conto, entorpecida sempre pelos agentes adversos, mas tenaz, incoercível,
num evolver seguro, a Terra, como um organismo, se transmuda por intuscepção, indiferente aos elementos que lhe tumultuam
à face.
De sorte que se as largas depressões eternamente condenadas, a exemplo da Austrália, permanecem estéreis, se anulam,
noutros pontos, os desertos.
A própria temperatura abrasada acaba por lhe dar um mínimo de pressão atraindo o afluxo das chuvas; e as areias
móveis, riscadas pelos ventos, negando largo tempo a pega à planta mais humilde, imobilizam-se, a pouco e pouco, presas
nas radículas das gramíneas; o chão ingrato e a rocha estéril decaem sob a ação imperceptível dos líquens, que preparam a
vinda das lecídeas frágeis; e, por fim, os platôs desnudos, llanos e pampas de vegetação escassa, as savanas e as estepes mais
vivazes da Ásia central surgem, num crescendo, refletindo sucessivas fases de transfigurações maravilhosas.
Como se faz um deserto
Ora, os sertões do Norte, a despeito de uma esterilidade menor, contrapostos a este critério natural, figuram talvez o
ponto singular de uma evolução regressiva.
Imaginamo-los há pouco, numa retrospecção em que, certo, a fantasia se insurgiu contra a gravidade da ciência, a
emergirem, geologicamente modernos, de um vasto mar terciário.
À parte essa hipótese absolutamente instável, porém, o certo é que um complexo de circunstâncias lhes tem dificultado
regime contínuo, favorecendo flora mais vivaz.
Esboçamos anteriormente algumas.
Esquecemo-nos, todavia, de um agente geológico notável — o homem.
Este, de fato, não raro reage brutalmente sobre a terra e entre nós, nomeadamente, assumiu, em todo o decorrer da
História, o papel de um terrível fazedor de desertos.
Começou isto por um desastroso legado indígena.
Na agricultura primitiva dos silvícolas era instrumento fundamental — o fogo.
Entalhadas as árvores pelos cortantes djis de diorito; encoivarados, depois de secos, os ramos, alastravam-lhes por
cima, crepitando, as caiçaras, em bulcão de fumo, tangidas pelos ventos. Inscreviam, depois, nas cercas de troncos combustos
das caiçaras, a área em cinzas onde fora a mata exuberante. Cultivavam-na. Renovavam o mesmo processo na estação
seguinte, até que, de todo exaurida aquela mancha de terra, fosse, imprestável, abandonada em caapuera — mato extinto —
como a denuncia a etimologia tupi, jazendo dali por diante irremediavelmente estéril porque, por uma circunstância digna
de nota, as famílias vegetais que surgiam subsecutivamente no terreno calcinado eram sempre de tipos arbustivos enfezados,
de todo distintos dos da selva primitiva. O aborígine prosseguia abrindo novas roças, novas derrubadas, novas queimas,
alargando o círculo dos estragos em novas caapueras, que ainda uma vez deixava para formar outras noutros pontos,
aparecendo maninhas, num evolver enfezado, inaptas para reagir com os elementos exteriores, agravando, à medida que se
ampliavam, os rigores do próprio clima que as flagelava, e entretecidas de carrascais, afogados em macegas, espelhando
aqui o aspecto adoentado da caatanduva sinistra, além a braveza convulsiva da caatinga brancacenta.
Veio depois o colonizador e copiou o mesmo proceder. Engravesceu-o ainda com o adotar, exclusivo, no centro do país,
fora da estreita faixa dos canaviais da costa, o regime francamente pastoril.
Abriram-se desde o alvorecer do século XVII, nos sertões abusivamente sesmados, enormíssimos campos, compáscuos
sem divisas, estendendo-se pelas chapadas em fora.
Abria-os, de idêntico modo, o fogo livremente aceso, sem aceiros, avassalando largos espaços, solto nas lufadas violentas
do nordeste. Aliou-se-lhe ao mesmo tempo o sertanista ganancioso e bravo, em busca do silvícola e do ouro. Afogado nos
recessos de uma flora estupenda que lhe escurentava as vistas e sombreava perigosamente as tocaias do tapuia e as tocas do
canguçu temido, dilacerou-a golpeando-a de chamas, para desafogar os horizontes e destacar bem perceptíveis, tufando nos
descampados limpos, as montanhas que o norteavam, balizando a marcha das bandeiras.
Atacou a fundo a terra, escarificando-a nas explorações a céu aberto; esterilizou-a com os lastros das grupiaras; feriua
a pontaços de alvião; degradou-a corroendo-a com as águas selvagens das torrentes; e deixou, aqui, ali, em toda a parte,
para sempre estéreis, avermelhando nos ermos com o intenso colorido das argilas revolvidas, onde não medra a planta mais
exígua, as grandes catas, vazias e tristonhas, com a sua feição sugestiva de imensas cidades mortas, derruídas...
Ora estas selvatiquezas atravessaram toda a nossa História. Ainda em meados deste século, no atestar de velhos habitantes
das povoações ribeirinhas do S. Francisco, os exploradores que em 1830 avançaram, a partir da margem esquerda daquele
rio, carregando em vasilhas de couro indispensáveis provisões de água, tinham, na frente, alumiando-lhes a rota, abrindolhes
a estrada e devastando a terra, o mesmo batedor sinistro, o incêndio. Durante meses seguidos viram, eles, no poente,
entrando pelas noites dentro, o reflexo rubro das queimadas.
Imaginem-se os resultados de semelhante processo aplicado, sem variantes, no decorrer de séculos...
Previu-os o próprio governo colonial. Desde 1713 sucessivos decretos visaram opor-lhes paradeiros. E ao terminar a
seca lendária de 1791-1792, a grande seca, como dizem ainda os velhos sertanejos, que sacrificou todo o Norte, da Bahia ao
Ceará, o governo da metrópole figura-se tê-la atribuído aos inconvenientes apontados estabelecendo desde logo, como
corretivo único, severa proibição ao corte das florestas.
Esta preocupação dominou-o por muito tempo. Mostram-no-lo as cartas régias de 17 de março de 1796, nomeando um
juiz conservador das matas; e a 11 de junho de 1799, decretando que “se coíba a indiscreta e desordenada ambição dos
habitantes (da Bahia e Pernambuco) que têm assolado a ferro e fogo preciosas matas... que tanto abundavam e já hoje ficam
a distâncias consideráveis, etc.”
Aí estão dizeres preciosos relativos diretamente à região que palidamente descrevemos.
Há outros, cômpares na eloqüência.
Deletreando-se antigos roteiros dos sertanistas do Norte, destemerosos catingueiros que pleiteavam parelhas com os
bandeirantes do Sul, nota-se a cada passo uma alusão incisiva à bruteza das paragens que atravessavam, perquirindo as
chapadas, em busca das “minas de prata” de Melchior Moréia — e passando quase todos à margem do sertão de Canudos,
com escala em Monte Santo, então o Piquaraçá dos tapuias. E falam nos “campos frios (certamente à noite, pela irradiação
intensa do solo desabrigado) cortando léguas de caatinga sem água nem caravatá que a tivesse e com raízes de umbu e
mandacaru, remediando a gente” no penoso desbravar das veredas.1
Já nessa época, como se vê, tinham função proverbial as plantas, para as quais, hoje, apelam os nossos sertanejos.
É que o mal é antigo. Colaborando com os elementos meteorológicos, com o nordeste, com a sucção dos estratos, com
as canículas, com a erosão eólia, com as tempestades subitâneas — o homem fez-se uma componente nefasta entre as forças
daquele clima demolidor. Se o não criou, transmudou-o, agravando-o. Deu um auxiliar à degradação das tormentas, o
machado do catingueiro; um supletivo à insolação, a queimada.
Fez, talvez o deserto. Mas pode extingui-lo ainda, corrigindo o passado. E a tarefa não é insuperável. Di-lo uma
comparação histórica.
Como se extingue o deserto
Quem atravessa as planícies elevadas da Tunísia, entre Beja e Bizerta, à ourela do Saara, encontra ainda, no desembocar
dos vales, atravessando normalmente o curso caprichoso e em torcicolos dos uedes, restos de antigas construções romanas.
Velhos muradais derruídos, embrechados de silhares e blocos rolados, cobertos em parte pelos detritos de enxurros de vinte
séculos, aqueles legados dos grandes colonizadores delatam a um tempo a sua atividade inteligente e o desleixo bárbaro dos
árabes que os substituíram.
Os romanos, depois da tarefa da destruição de Cartago, tinham posto ombros à empresa incomparavelmente mais séria
de vencer a natureza antagonista. E ali deixaram belíssimo traço de sua expansão histórica.
Perceberam com segurança o vício original da região, estéril menos pela escassez das chuvas do que pela sua péssima
distribuição adstrita aos relevos topográficos. Corrigiram-no. O regime torrencial que ali aparece, intensíssimo em certas
quadras, determinando alturas pluviométricas maiores que as de outros países férteis e exuberantes, era, como nos sertões
do nosso país, além de inútil, nefasto. Caía sobre a terra desabrigada, desarraigando a vegetação mal presa a um solo
endurecido; turbilhonava por algumas semanas nos regatos transbordantes, alagando as planícies; e desaparecia logo, derivando
em escarpamentos, pelo norte e pelo levante, no Mediterrâneo, deixando o solo, depois de uma revivescência transitória,
mais desnudo e estéril. O deserto ao sul, parecia avançar, dominando a paragem toda, vingando-lhe os últimos acidentes que
não tolhiam a propulsão do simum.
Os romanos fizeram-no recuar. Encadearam as torrentes; represaram as correntezas fortes, e aquele regime brutal,
tenazmente combatido e bloqueado, cedeu, submetido inteiramente, numa rede de barragens. Excluído o alvitre de irrigações
sistemáticas dificílimas, conseguiram que as águas permanecessem mais longo tempo sobre a terra. As ravinas recortandose
em gânglios estagnados dividiram-se em açudes abarreirados pelas muralhas que trancavam os vales, e os uedes, parando,
intumesciam-se entre os morros, conservando largo tempo as grandes massas líquidas, até então perdidas, ou levando-as, no
transbordarem, em canais laterais aos lugares próximos mais baixos, onde se abriam em sangradouros e levadas, irradiantes
por toda a parte, e embebendo o solo. De sorte que este sistema de represas, além de outras vantagens, criara um esboço de
irrigação geral. Ademais, todas aquelas superfícies líquidas, esparsas em grande número e não resumidas a um Quixadá
único — monumental e inútil — expostas à evaporação, acabaram reagindo sobre o clima, melhorando-o. Por fim a Tunísia,
onde haviam aproado os filhos prediletos dos fenícios, mas que até então se reduzira a um litoral povoado de traficantes ou
númidas erradios, com suas tendas de tetos curvos branqueando nos areais como quilhas encalhadas — se fez, transfigurada,
a terra clássica da agricultura antiga. Foi o celeiro da Itália; a fornecedora, quase exclusiva, de trigo, dos romanos.
Os franceses, hoje, copiam-lhe em grande parte os processos, sem necessitarem alevantar muramentos monumentais e
dispendiosos. Represam por estacadas, entre muros de pedras secas e terras, à maneira de palancas, os uedes mais bem
dispostos, e talham pelo alto das suas bordas, em toda a largura das serranias que os ladeiam, condutos derivando para os
terrenos circunjacentes, em redes irrigadoras.
Deste modo as águas selvagens estavam, remansam-se, sem adquirir a força acumulada das inundações violentas,
disseminando-se, afinal, estas, amortecidas, em milhares de válvulas, pelas derivações cruzadas. E a histórica paragem,
liberta da apatia do muslim inerte, transmuda-se volvendo de novo à fisionomia antiga. A França salva os restos da opulenta
herança da civilização romana, depois desse declínio de séculos.
Ora, quando se traçar, sem grande precisão embora, a carta hipsométrica dos sertões do Norte, ver-se-á que eles se apropriam
a uma tentativa idêntica, de resultados igualmente seguros.
A idéia não é nova. Sugeriu-a há muito, em memoráveis sessões do Instituto Politécnico do Rio, em 1877, o belo
espírito do conselheiro Beaurepaire Rohan, talvez sugestionado pelo mesmo símile, que acima apontamos.
Das discussões então travadas, onde se enterreiraram os melhores cientistas do tempo — da sólida experiência de
Capanema à mentalidade rara de André Rebouças — foi a única cousa prática, factível, verdadeiramente útil que ficou.
Idearam-se, naquela ocasião, luxuosas cisternas de alvenarias; miríades de poços artesianos, perfurando as chapadas;
depósitos colossais, ou armazéns desmedidos para as reservas acumuladas; açudes vastos, feitos cáspios artificiais; e por
fim, como para caracterizar bem o desbarate completo da engenharia, ante a enormidade do problema, estupendos alambiques
para a destilação das águas do Atlântico!...
O alvitre mais modesto, porém, efeito imediato de um ensinamento histórico, sugerido pelo mais elementar dos exemplos,
suplanta-os. Porque é, além de prático, evidentemente o mais lógico.
O martírio secular da terra
Realmente, entre os agentes determinantes da seca se intercalam, de modo apreciável, a estrutura e a conformação do
solo. Qualquer que seja a intensidade das causas complexas e mais remotas que anteriormente esboçamos, a influência
daquelas é manifesta desde que se considere que a capacidade absorvente e emissiva dos terrenos expostos, a inclinação dos
estratos, que os retalham, e a rudeza dos relevos topográficos, agravam, do mesmo passo, a crestadura dos estios e a
degradação intensiva das torrentes. De sorte que, saindo das insolações demoradas para as inundações subitâneas, a terra,
mal protegida por uma vegetação decídua, que as primeiras requeimam e as segundas erradicam, se deixa, a pouco e pouco,
invadir pelo regime francamente desértico.
As fortes tempestades que apagam o incêndio surdo das secas, em que pese à revivescência que acarretam, preparam de
algum modo a região para maiores vicissitudes. Desnudam-na rudemente, expondo-a cada vez mais desabrigada aos verões
seguintes; sulcam-na numa molduragem de contornos ásperos; golpeiam-na e esterilizam-na; e ao desaparecerem, deixamna
ainda mais desnuda ante a adusão dos sóis. O regime decorre num intermitir deplorável, que lembra um círculo vicioso de
catástrofes.1
Deste modo a medida única a adotar-se deve consistir no corretivo destas disposições naturais. Pondo de lado os fatores
determinantes do flagelo, oriundos da fatalidade de leis astronômicas ou geográficas inacessíveis à intervenção humana,
são, aquelas, as únicas passíveis de modificações apreciáveis.
O processo que indicamos, em breve recordação histórica, pela sua própria simplicidade dispensa inúteis pormenores
técnicos.
A França copia-o hoje, sem variantes, revivendo o traçado de construções velhíssimas.
Abarreirados os vales, inteligentemente escolhidos, em pontos pouco intervalados, por toda a extensão do território
sertanejo, três conseqüências inevitáveis decorreriam: atenuar-se-iam de modo considerável a drenagem violenta do solo, e
as suas conseqüências lastimáveis; formar-se-lhes-iam à ourela, inscritas na rede das derivações, fecundas áreas de cultura;
e fixar-se-ia uma situação de equilíbrio para a instabilidade do clima, porque os numerosos e pequenos açudes uniformemente
distribuídos e constituindo dilatada superfície de evaporação, teriam, naturalmente, no correr dos tempos, a influência
moderadora de um mar interior, de importância extrema.
Não há alvitrar-se outro recurso. As cisternas, poços artesianos e raros, ou longamente espaçados lagos como o de
Quixadá, têm um valor local, inapreciável. Visam, de um modo geral, atenuar a última das conseqüências da seca — a sede;
e o que há a combater e a debelar nos sertões do Norte — é o deserto.
O martírio do homem, ali, é o reflexo da tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da Vida.
Nasce do martírio secular da Terra...
O HOMEM
I .Complexidade do problema etnológico no Brasil. Variabilidade

domingo, 25 de setembro de 2011

ALENCAR E SILVA (1930-2011)








Os Sonetos Reunidos de Alencar e Silva, uma simples apresentação


POR


Jorge Tufic*


Escrever sobre o poeta Alencar e Silva, sobretudo quando o tema recai nos sonetos reunidos neste volume, somatório de uma vida inteira dedicada à poesia, antes de ser uma tarefa que nos empolga, é um dever que nos desarma diante de tantas facetas de sua vida e de seus múltiplos recursos de escritor preocupado em fixar pormenores da história cultural da geração madrugada, de cujos primórdios datam as primeiras estrofes de sua pena versátil.

Ainda jovem, em Manaus, escrevia e publicava sonetos, poemas, artigos e crônicas nos matutinos e vespertinos de maior circulação, inclusive na revista de Anísio Mello, “Amazonas Ilustrado”, de 1952, ano que marca sua estréia na poesia, com o livro Painéis. Em 1951 participou de uma caravana de poetas que demandara o sul, sudeste e extremo-sul do País, com paradas obrigatórias no Rio de Janeiro e São Paulo, estando esse grupo constituído pelos seus amigos de então e de sempre Farias de Carvalho, Antísthenes Pinto e Jorge Tufic. Numa segunda viagem dessa caravana, passaria a integrá-la o inesquecível Guimarães de Paula. Segundo historiadores, estas duas incursões dos “caravaneiros”, também chamados de “monges”, se inscrevem nos antecedentes do movimento madrugada, surgido em 1954, ou seja, um ano após seu retorno definitivo a Manaus, em cuja praça do Pina deu-se o encontro da geração que tomaria seu nome: a “geração madrugada”.

Um raro depoimento sobre Alencar e Silva é de Arimathéa Cavalcante, completamente avesso a qualquer manifestação desse tipo. Segundo esse mestre, também poeta e dos bons, “ALENCAR E SILVA é um Midas admirável. Moderno. Tem o Dom mágico de transformar, não no ouro que não tem importância para ele, mas em poesia tudo aquilo que toca. Respira poesia, e é dela que o mundo de hoje mais precisa, porque sendo mescla de prazer e dor, é sobretudo natureza, amor, vida, é Deus que vem para dar um novo alento ao mundo em rotação.” (Território Noturno, Coleção Madrugada, 2003). Para Max Carphentier, no prefácio de Noturno Após o Mar, livro de crônicas e poemas em prosa, “Alencar e Silva pertence a essa corporação restrita de reveladores-salvadores do divino-humano, dos que, esperançosamente sós, se fortaleceram e se consumaram, e se aceitaram majestosamente tristes, sabiamente sombrios, numa estratégia apostolar milimetrada, para poderem preparar, a partir mesmo do cerco das sombras, a hora da alegria.”

Acha-se também, e com justiça, incluído na antologia de André Seffrin, Roteiro da Poesia Brasileira – Anos 50, Global Editora, SP, 2007, sob a direção de Edla van Steen –, parte de uma série que trata das raízes até o ano 2000, um instrumento auxiliar e da maior valia para o estudo das fases e dos processos criativos de nossa literatura. “Os anos 50 foram dos períodos mais férteis da poesia brasileira do século XX.” Tempo de grandes aventuras formais, suplementos literários, debates, performances. Fazendo coro às mudanças e inovações, Alencar e Silva foi um dos teóricos da “poesia de muro”, apoiada pelo Clube da Madrugada, e outras correntes estéticas que fizeram história.

Poesia Reunida é de 1987, com três livros, apenas, de sua laboriosa oficina, editados entre 1965 e 1986. Apresentando-a, discursa o poeta e cronista L. Ruas, de saudosa memória: “Gostaríamos apenas de dizer que Alencar e Silva comprova, na edição desta obra conjunta, que permanece fiel a si mesmo, o que equivale dizer que permanece fiel à sua singular vocação poética”. E Elson Farias, no prefácio à primeira edição de Lunamarga, não deixa por menos: “O livro que temos em mãos, além do timbre pessoal característico da expressão autêntica, traz as melhores qualidades da atual poética brasileira: profundidade mítica, angústia, a palavra existindo livre dos luxos supérfluos e do comum, dolorosamente sofrida e recriada no espaço vital do seu mundo.” A fortuna crítica tonteia pelas celebridades: José Alcides Pinto, Ramayana de Chevalier, Arthur Engrácio, Antísthenes Pinto, Genesino Braga, Guimarãs de Paula, Anísio Mello...

Na qualidade de homem público e braço de Governo, sobressai-se como Diretor-Presidente da Imprensa Oficial do Estado, fazendo editar o Suplemento Literário Amazonas, que circula de novembro de 1986 a outubro de 1988. Nada disso por conta do Estado, senão através de um acordo feito junto aos assinantes do Diário Oficial, com alguns centavos a mais nas respectivas assinaturas. Foram, na verdade, vinte e quatro edições e uma distribuição nunca vista antes por toda a América do Sul. Além disso, pagavam-se as colaborações selecionadas pela Comissão Editorial e a ninguém, que eu saiba, negara-se acolhida em suas páginas abertas, quer para todos os amazonenses, quer para escritores de outros Estados brasileiros. Por falta de maiores aproximações ou tempo para isso, valeu-se o Diretor-Presidente daqueles companheiros do Clube da Madrugada que aparecem no expediente, sem, contudo, discriminar ou cercar a iniciativa de normas ou preconceitos temáticos ou linguísticos, muito menos grupais ou pessoais. Em tão pouco tempo à frente do órgão, nem por isso deixara, também, de apor o seu visto favorável à publicação de obras importantes da literatura amazônica.

Assis Brasil, no volume “A Poesia Amazonense no Século XX”, relembra que Astrid Cabral haveria de destacar o veio romântico e “o equilíbrio clássico” da poesia de Alencar e Silva, toda vazada em “dicção despojada e serena”. Enfim, “amazonense e brasileiro por circunstâncias biográficas, podendo aplicar-se a Alencar e Silva a verdade pessoana: sua pátria é a língua portuguesa”. E vai mais longe na pesquisa a que sabe imprimir o calor da descoberta: “Escrevendo desde adolescente, entre poemas e primeiros livros publicados, ativa colaboração nos jornais de Manaus, “A Tarde”, de Aristóphano Antony, e “A Crítica”, de Umberto Calderaro Filho. O jornalismo literário foi feito em “O Jornal”, onde o Clube da Madrugada mantinha um importante suplemento e no “Jornal-Cultura”, da Fundação Cultural do Amazonas, de que foi secretário e editor”. Digressões necessárias, já que o nosso Alencar é, antes do mais ou do menos, poeta. Um poeta universal desde que nascera, e mais que universal, cósmico, já que até mesmo o ponto geográfico de seu nascimento, em Fonte Boa-AM, as enchentes cíclicas arrastaram para o oceano atlântico.

Mas foi o professor e crítico Arimathéa Cavalcanti o autor que melhor estudara o poeta no livro citado linhas atrás, estudo que, pela extensão e planejamento, tem-nos encaminhado para uma compreensão global de sua obra poética. Deste modo, esclarece: “Pude agora ultimar a análise, sem caráter definitivo, mas de modesta contribuição, na certeza de uma verdade insofismável: a obra enriquece espiritualmente a quem quer que a folheie. Pois o livro Território Noturno, de Alencar e Silva, propõe amplas reflexões, eis que abrange aquelas regiões oníricas onde nem sempre mergulham escafandristas neófitos, na tentativa de desvendar-lhe quando não o hermetismo, pelo menos a aura de enigma criada pelos símbolos, ajudados do próprio autor, em comparações e confrontos textuais”. Ressalta o lírico, percebe vagamente a presença de um neomisticismo em algumas de suas escritas, dando-nos, afinal, uma investigação crítica dificilmente encontrada em monografias da espécie.

Poeta maior, escritor extensivo aos mais difíceis gêneros literários, memorialista que faz a história de sua geração e do Clube da Madrugada, Alencar e Silva conta com os seguintes livros publicados, entre prosa e poesia: Painéis, poesia, 1952; Lunamarga, poesia, 1965; Território Noturno, poesia, 1982; Sob Vésper, poesia, 1986; Poesia Reunida, 1987; Noturno Após o Mar (crônicas e poemas em prosa), 1988; Sob o Sol de Deus, poesia, 1992; Ouro, Incenso e Mirra (poema em cinco segmentos e cinquenta sonetos), l994; Solo do Outono, poesia, 2000; Jorge Tufic: As Tendas do Caminho, ensaio, 2004; Crepuscularium, poesia, 2006. A sair, tem o Autor os seguintes títulos: Prosa Vária, ensaios, e Poetas e Figuras na Paisagem, ensaios. Entretanto, como um de seus velhos companheiros, sou testemunha das inumeráveis ocasiões em que a Musa lhe dera aquele sopro extra para compor sonetos e poemas, satíricos ou não, com o único objetivo de exercitar as falanges, expor deformidades ou tirar-nos de certos apertos em nossos caminhos pelo mundo. Um fato no mínimo grandioso, ocorrido em São Paulo (1951), ao ensejo da visita que fazíamos à sede da Prudência e Capitalização, na tentativa de obtermos apoio às nossas viagens de Caravaneiros da Cultura, foi Ramayana de Chevalier, secretário particular de Adalberto Vale, Superintendente da empresa seguradora, quem nos sugeriu a idéia de formularmos o pedido que tínhamos a fazer, através de um soneto. Sem demora, Alencar e Silva tomou a si o desafio, redigiu, com a maior tranquilidade, os quatorze versos solicitados, e, assim, com este “passaporte”, oficializamos palestras e contatos em Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre.

A obra de que estamos nos ocupando reúne todos ou quase todos os sonetos do autor, recolhidos das páginas de oito títulos, com mais alguns avulsos, sem falar nos improvisos e nas circunstâncias poéticas ou de foro íntimo. Sem falar, também, nos rejeitos que vamos deixando nas cestas do lixo, nem sempre merecedores desse trágico destino. Egresso do rigor parnasiano, do neossimbolismo e dos versos livres que trazíamos conosco do sul do País, a estrutura do soneto alencarino é simples, funcional e profundamente sugestiva, quando retarda ou deixa ao leitor a fruição da beleza e da verdade. “Quero enxuto o meu verso e muito simples”, em O Soneto no Amazonas (pag. 22), eu destaco esse verso de um soneto de Lunamarga como exemplo de “linhas calmas e transparentes, despojado de lugares-comuns e dos artifícios postos em prática, na ânsia de inovação, por certos autores da corrente futurista.”

Já é hora, contudo, de entregar ao leitor este livro do poeta, representativo, como se verá, de uma de suas paixões literárias, talvez a maior, que é a arte do soneto. Mas Alencar e Silva é poeta em qualquer situação, gênero ou categoria. Um belíssimo poema ele carrega, também, no afeto e na convivência humana, de que nunca, jamais, enquanto vivermos, podemos nos esquecer.

(*) Apresentação do livro Sonetos Reunidos, de Alencar e Silva, a sair.





SONETO DE EVOCAÇÃO

Alencar e Silva

Que me fez evocar tua face ausente
e teus olhos e encantos já mudados
e cantar este canto em que ressurges
esculpida em martírio e solidão?
Foi a flor que colhi sem cheiro algum?
O som que me chegou anoitecendo?
A lua que lembrando uma outra Ofélia
me fez buscar tua face de afogada?
Pobre amada, o mistério se desvenda
e se faz claro como o fio de prantos
que abre rios de luas em teu rosto:
esta canção nasceu de tua presença
de fonte dolorosa e ave ferida
que canta enquanto mais lhe punge a vida.

(Território noturno)



%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%


Poética I

Alencar e Silva



Não o poema-verso simplesmente,
mas o poema-coisa, sim: substância
inefável, sim: coisa que funcione
como relógio e o que ele preconiza.

Assim, sem asco aceito-o integral
como uma pedra ou coisa-viva incômoda
que fere e entanto dá-se em forma e gosto
à natureza que a urdiu. Poema:

eia! deserto povoado. Fruto
onde a fome espreitava a presa. Chuva
onde a sede lavrava seu incêndio.

Incessante doar-se em ponte e veículo
ao evento da coisa – corpo vivo
intato sobre as águas do poema.


Tríptico do espanto



Alencar e Silva



I


Tudo traz sob a pele a sua morte:
a rosa e o sonho dançam sobre o abismo
as formas de uma só fatalidade
trabalhada em equívocos. Sereno,
contudo, é o meu semblante: este e o mesmo
que passeio entre as gentes. A amargura
é disposta em murais pelas paredes
do eu profundo – e me espia. Duro é vê-la
contemplando os meus gestos: de seus olhos
flui um rio de sono, um rio sem barcos,
onde bóia meu rosto repartido
em cartazes de espanto... Chove cinzas
sobre as asas de uma ave: e o canto, ausente,
talvez mudo se cumpra eternamente.



II


Amargar o teu peso e nunca mais
o sorriso que vem de não saber-te,
de ignorar teu mistério, de sentir-te
no que apenas supomos e não és.
Ah! o riso não cabe – e é vão o gesto
para colher o sonho decepado:
a mão ergue-se fria contra o vácuo
onde as sombras tropeçam seus enganos.
Nunca mais – e nos olhos e nas mãos
uma calma de angústias concentradas
ante barcos inúteis que se vão
sobre as águas do Letes... Resta apenas
a invenção de outros mitos: como um fruto
que um dia secará sobre um chão bruto.



III


Um rio corre surdo sob as horas
com seu lastro de cinzas e agonias.
Pesa-lhe sobre o curso um astro doido
que governa suicídios e naufrágios.
Uma lua também, por noite funda,
pende a face amarela sobre as águas
onde boiam pesados de silêncio
restos do que já foi – coisas que dormem
ou só derivam na corrente muda
seus corpos, ora belos, ora corpos
de mágoa e medo – sombras penduradas
em vértices de espantos... Nada conta
nesse rio que rola irreversível
carregado de sonho e de impossível.




Soneto de espera ou o 1º da morte


Alencar e Silva


De espera e espera sofro-te em meu canto,
em meu verso e nas coisas que te anseiam.
E mais sofrera se te não sonhara
nem crera em tua vinda, anjo noturno
que virás sobre o mar – pássaro, estrela
ou rosa a se elevar na noite pura –
sem outro anúncio a preceder-te, além
do teu hálito fresco sobre o vale
e esta certeza para além do sonho
de que teus olhos de mistério e flamas
descerão de repente em minha espera
e me destruirás para salvar-me:
que os noturnos jardins florescerão
e nos ventos da noite fugiremos.



Cantar de andarilho



Alencar e Silva

Não tenho pátria
determinada
nem tenho pressa
nesta jornada:

só esta sede
que têm meus olhos
de ver e ver

e este incontido
impulso de asas
sobre meus pés.

Minhas sandálias
cobrindo o mundo
que descobriram
pé ante pé,
minhas sandálias
vão-se ficando
pelos caminhos
de minha fé.

Arde em meu rosto
o sol de todos
os continentes.

Todos os ventos
já visitaram
minhas narinas.
Todas as águas
já circularam
dentro de mim.

Em minha fala
todas as falas
se misturaram.

E nos meus olhos
os céus mais vários
se despejaram.

Não tenho pátria
determinada
nem tenho pressa
nesta jornada:

só esta sede
que têm meus olhos
de ver e ver

e este incontido
impulso de asas
sobre meus pés.



Desce a noite no vale e as sombras cantam



Alencar e Silva

Desce a noite no vale e as sombras cantam
trescalantes canções de fim de dia.
Nada pode igualar-se à nostalgia
das luzes mortas que ainda se levantam
e andam na noite e à própria noite encantam
com marcados compassos de agonia,
enquanto a brisa vai ficando fria
e as sombras soltas pela noite cantam.
Fez-se noite no vale e agora é a hora
de recolher ao ninho o coração
entre as notas longínquas da canção
que em doces vozes o embalara outrora.

Vão-se os últimos pássaros do outono.
Fecha-se a noite. E já me apaga o sono.


Sob Vésper



Alencar e Silva

Antes que o grande vendaval me afaste
do teu corpo de pássaros e rosas,
deixa que eu cante uma canção sonâmbula
sob as luas ciganas de teus olhos.
Antes que o grande vendaval me arraste,
deixa-me ter-te como um lírio aberto
na hora crepuscular da tarde ardente
numa varanda toda de jasmins.
Antes que o grande vendaval quebre a haste
das rosas últimas e só espinhos
cerquem-me a fronte - deixa que me mirem
teus olhos, como sempre me miraste.
E eu canto, amor, uma canção de outono
para inundar de pássaros teu sono.



--- Poemas encontrados no Blog O fingidor


SONETO DE SETEMBRO


Eis que volve setembro e traz nos ombros
as clâmides azuis da primavera.
Vem como vinha e como virá sempre:
ressuscitando o verde pelas tardes.
Eis que volve setembro e novamente
o azul amplia o céu e o mar profundo
enquanto o amor retece uma coroa
de flores para a fronte constelada.
Eis que volve setembro e são quarenta
e sete vezes que ele a mim retorna,
e suas asas e seu hausto suave
ainda me aquecem neste claro agora.
Eis que volve setembro. A tarde larga
é ainda a mesma, só que um tanto amarga.


Prefácio de L.Ruas ao livro LUNAMARGA:

Lunamarga é um livro de maturidade, ou melhor, de maturação. Alencar e Silva é um homem voltado para as grandes realidades interiores. É um reflexivo por natureza. É um meditativo. Até o seu modo de falar nos diz isso claramente. Não é um extrovertido. Um
palrador.

Fala como se estivesse sussurrando, confessando um segredo. Há sempre um silêncio envolvendo cada palavra que ele profere. O silêncio é o seu "habitat". Ninguém pode deixar de comungar com a realidade. Mas isto pode ser feito de duas maneiras.

Há indivíduos que, por assim dizer, se deixam devorar pela realidade externa. Outros, ao contrário, se transformam em receptáculos e absorvem, na sua interioridade, o mundo exterior. Alencar e Silva é assim. A realidade, para ele, é apenas pretexto para manifestar seu universo interior. Não se transforma na paisagem. A paisagem se transforma nele. (...)

O homem mergulhado no seu próprio mistério, que é vida e morte, angústia e canto, inconsistência e rosa, não para explicá-lo, mas para vivê-lo ou sofrê-lo que é a mesma coisa. O homem diante de seu mistério, conscientemente diante dele, poeticamente diante dele, maravilhadamente diante dele:

o meu rosto se move horrorizado
sem se encontrar em qualquer dos espelhos.


%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%


Noturno do eu profundo


Adrino Aragão



Talvez o título lembre o poeta Fernando Pessoa. Não seria pra menos, acho que, de algum modo, somos todos descendentes do vate lusitano. Mas, no caso do presente artigo, o título nasceu mesmo da leitura que fiz de Lunamarga, livro de Alencar e Silva, grande poeta brasileiríssimo, lamentavelmente ainda longe dos holofotes da mídia. Como disse Mário de Andrade: “os brasileiros não conhecem o Brasil”. Parafraseando o mestre, diríamos: o Brasil não conhece os seus poetas. Espalhados por estes brasis, esses poetas tecem e enriquecem, anonimamente, o que se faz de melhor na poesia brasileira.

De fato, existe algo de eternidade na poesia de Alencar e Silva, que, por vezes, nos faz pensar no genial Fernando Pessoa. Não que isto comprometa a sua obra poética. Ao contrário, eleva-a, enriquece-a. E por uma razão: Alencar e Silva tem personalidade de poeta maduro, advinda de leituras constantes, sérias, profundas, conscientes, de grandes poetas, como Pessoa, Drummond, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Cruz e Sousa.

O livro, publicado em 1965, foi reeditado ao término de 2005, numa feliz iniciativa da Editora Valer. O tempo, entretanto, em nada envelheceu o discurso poético do poeta. A começar do título Lunamarga, de forte simbolismo, já anuncia um universo de denso conteúdo existencial. O mundo real se configura no texto sob o aspecto noturno da subjetividade. “Tudo traz sob a pele a sua morte:/ a rosa e o sonho dançam sobre o abismo/ as formas de uma só fatalidade/ trabalhada em equívocos. Sereno,/ contudo, é o meu semblante: este e o mesmo/ que passeio entre as gentes. A amargura/ é disposta em murais pelas paredes/ do eu profundo – e me espia.”

O poema “Tríptico do espanto”, do qual extraímos os versos acima, como que funda os rumos que a obra poética de Alencar e Silva haveria de seguir em livros posteriores.

Ler Alencar e Silva é um deslumbramento para a inteligência e para a emoção do leitor. Mas o poeta não se entrega fácil. É preciso descobri-lo por trás “dos frágeis cristais embaçados” e captar-lhe a imagem em cada filigrana do poema. E isto exige atenção, sensibilidade e saber. Não o saber que exibe erudição. Mas, principalmente, o saber do pensar. Do refletir. Senão, será perder-se pelos caminhos de um rio profundo que ora corre sereno ora corre veloz. Como o poeta confessa: “Neste barco passageiro/ maldisposto a viajar/ eu me invento rotas novas/ rotas de nunca chegar”.

Mas há momentos de absoluta, ou quase, transparência dos cristais: “Não sei, só sei que eu entrei/ em muitas casas de livros/ como quem vai para o cais...”. É quando os elementos do poema surgem luminosos, fulgurantes: o rio, a lua, a noite, o sonho, a solidão, a morte... – todos envolvidos na pele do tempo, que é medida, corte corrosivo a expor a finitude de tudo. Só a poesia é perene. E através do poema o poeta pode sobreviver.

Essa certeza se me anuncia com a leitura atenta e emocionada de Lunamarga. Tomo de empréstimo os versos do poeta. E canto: “não tenho pátria/ determinada/ nem tenho pressa/ nesta jornada”. 



%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%




quarta-feira, 21 de setembro de 2011

HUMBERTO DE CAMPOS - MEMÓRIAS 2




MASSENA


ENTRE as raras lembranças amáveis da minha meninice está a nossa estação anual no Massena, fazenda de meu pai, a algumas léguas de Miritiba. Em frente à casa de barro tosco, alta e grande, estende-se a várzea, limitada à direita por uma orla extensa de coqueiros novos e baixos, que acompanha o curso de um riacho marulhante. Antes do riacho, entre ele e a casa, e a uns cinquenta metros desta, levanta-se o curral sólido, de troncos superpostos, em cujos mourões os gaviões e caracarás vêm pousar ao meio-dia, em busca de pintos ou de cordeirinhos recém-nascidos, cujos olhos arrancam. Avida, aí, para mim, é, durante o dia, um deslumbramento e uma festa. Penetro no mato, sozinho, em busca dos ninhos de rola, ou dos urubus implumes, que me causam enorme espanto quando vejo que eles, como os filhos das pretas que moram na casa do patrão, também nascem brancos... Ao anoitecer, porém, quando a escuridão começa a descer sobre a várzea e os olhos perdem os contornos do horizonte, o coração se me enche de um pavor surdo e pressago. É que vem da mata, ao longe, o ronco engasgado das guaribas, as quais, pela voz que emitem na solidão, me dão a ideia de animais temíveis e fabulosos.


Nessas viagens para a fazenda, eu não vejo, entretanto, quase nunca, minha mãe ao meu lado. Quem me aparece, acompanhando-me maternalmente, é a velha Miquelina, preta africana que criara meu pai e que o não abandonara mesmo depois de alforriada por ele. Eu vou para o Massena de véspera, com ela. Quando a família chega, eu já estou coçando desespe¬radamente os pés e os joelhos com os bichos, as terríveis pulgas de pé, que me assaltam. Avó Miquelina extrai, porém, o famigerado inseto penetrante com um espinho do mato, especialmente o de mandacaru, e enche o orifício com o barro do seu cachimbo. E eu fico bom.


Certa vez eu cheguei ao Massena com febre. Paludismo, com acessos quase diários. Avó Miquelina tomou à sua conta o meu tratamento: clister de água de pimenta com outros ingredientes, aplicado com auxílio de um papo de galinha, a que adaptara um canudo do talo de mamona. Feita a aplicação do remédio, eu corria para o mato, como um doido. Elá, quieto, vermelho de dor e do esforço, ao procurar o céu azul através dos rasgos da folhagem, ficava a olhar com inveja os passarinhos pipilantes, que não conheciam, na sua vida inocente, aqueles recursos da medicina caseira...


A mezinha bárbara não deu, porém, ao que parece, o resultado previsto. Ocerto é que, uma tarde, avó Miquelina me tomou pela mão, atravessou o riacho, e me conduziu mata a dentro. Caminhamos, os dois, não sei quanto tempo. Começava a escurecer, quando paramos. Avelha africana reuniu, em torno, alguns galhos secos, fez fogo, e, ajoelhada, pôs-se a rezar, resmungando, e fazendo-me pronunciar, com ela, palavras que eu não entendia. Em seguida, fez-me passar três vezes por cima da pequena fogueira fumegante, repetindo sempre aquilo que ela me ia ensinando. Feito isso, desandamos a correr pelo caminho por onde tínhamos vindo, levando eu a recomendação que o Anjo fizera, na Bíblia, a mulher de Lot: não olhar para trás. Ao atingirmos a várzea, perguntei à avó Miquelina o que significava tudo aquilo.
– É pro menino ficar bom depressa... Agora menino não tem mais sezão...
Emais explicitamente:
– Nós fomos amarrar a febre no mato...
Foi aí, no Massena, que eu vi a festa mais bonita a que tenho assistido neste mundo. Meu pai era, como já tive ocasião de dizer em outro capítulo, um espírito claro, limpo, e alegre, palmeira elegante e erecta em que se não enroscavam, na floresta de árvores retorcidas em que vivia, as heras das superstições. Ele só admitia a religião, como culto exterior, quando ela dava oportunidade a um folguedo profano. Efoi uma festa dessa ordem, uma festa mais pagã do que católica, espécie de homenagem à Ceres dos antigos romanos, que ele promoveu na fazenda, com a cumplicidade não sei de que santo.
Na sala principal da casa, ao centro, foi armado um grande arco, tecido de folhas de coqueiro, frescas e cheirosas. Nesse arco foram pendurados toda a sorte de frutos da terra, que o transformaram em Arco da Abundância: cachos e pencas de bananas maduras, ananases, espigas de milho verde, laranjas e tangerinas, raízes de macaxeira, cocos, cestos de manga, araticuns, frutas de conde, bacuris, cachos de juçara, e outros deli¬ciosos pomos selvagens. O solo, coberto de folhas de mangueira, perfuma o ambiente, carregado, já, do cheiro agreste dos frutos. Violas e harmônicas choram fora, no terreiro iluminado a querosene ou óleo de mamona. Deslumbramento, encanto da minha imaginação.
Após o ato religioso, constante de uma ladainha ou oração equiva¬lente, rezada no pequenino altar improvisado ao fundo da sala, começa o leilão dos donativos pendurados no arco. Eeste é pretexto para a explosão da índole maliciosa da nossa gente do interior, pronta, sempre, a empregar as palavras de duplo sentido, principalmente quando um destes tem fundo francamente rabelaiseano.
– Quanto me dão pela penca de bananas que está no meio do arco?... É a penca do meio... Quanto me dão pela penca do meio ?... – grita o leiloeiro, meu tio Lídio, Anacreonte louro, barbado como Carlos Magno, e que viria morrer aos noventa anos, alegre e livre como um florentino da Renascença.
Ou, então, fazendo rir, alto, a assistência aglomerada em torno, e composta de vaqueiros, de roceiros, de pequenos fazendeiros da vizinhan¬ça:
– Quanto me dão pelo cacho de bacuri?... É o cacho que está do lado esquerdo... Quanto me dão pelo cacho?...
Terminado o leilão, cujo produto reverte, invariavelmente, em pro¬veito da igreja mais próxima, ou de alguma obra de caridade, as violas e harmônicas entram, debaixo de palmas, para começo das danças.
Episa-se folha de mangueira, até de manhã.


IX

MACACOEIRA

OUTRA recordação amável, em que me aparece a imagem viva do meu pai, é a estação que fizemos em Macacoeira, nome bizarro que ficou, para sempre, ressoando na minha memória. A vida que aí levamos caracteriza, aliás, o seu espírito jovial e boêmio.
Macacoeira é uma ilha de que jamais encontrei menção na geografia maranhense. Lembro-me, entretanto, que era batida pelas ondas do mar alto, e que para lá fomos, a família toda, em um grande barco a vela. Não sei como foi a viagem ou o tempo consumido na travessia. Sei que, um dia, acordei lá. Aos cinco anos a vida é um sonho bom e largo, de que só nos fica a suave lembrança que ordinariamente nos deixam os sonhos.
A escolha de meu pai, que pretendia comprar a fazenda ali existen¬te, não podia ser mais extravagante nem, também, mais de acordo com o seu temperamento. Quando lá chegamos, as únicas benfeitorias existentes eram o curral e, em frente a este, um albergue de palha mas inteiramente aberto em redor. Em poucas horas, porém, os canoeiros o cercaram de pindoba, dividindo-o em três compartimentos: dois quartos de dormir e uma sala de jantar. Diante desta erguia-se um grande cajueiro marchetado de frutos, a cuja sombra se improvisou a cozinha. Duas rústicas trempes de pedra serviam de fogão, em que ferviam ao ar livre grandes panelas de peixe. Alouça era arrumada nos troncos das árvores. Eao menor balanço do vento marítimo os cajus despencavam dos ramos altos, sucedendo, às vezes, caírem diretamente nas panelas, como se a natureza tivesse prazer em nos dar, a nós, seus hóspedes, sem trabalho nosso, tudo que possuía.

Tinham ido conosco, a fim de alegrar ainda mais a vilegiatura, diver¬sas moças e meninas, para as quais tudo aquilo era novidade. Omar, que espumava à nossa vista, e que urrava mais alto do que os novilhos, ofere¬cia-nos peixe saboroso e gratuito; o curral, a poucos passos dele e de nós, dava-nos o leite e a coalhada. Ea mata, em torno, era um cajueiral imenso, em que os cajus eram tantos, e tão miúdos, que se tinha a impressão de que havia baixado sobre as frondes uma grande nuvem de vaga-lumes vermelhos. Tomava-se banho de mar, comia-se peixe apanhado na hora, e bebia-se leite, ainda espumante, na cuia tosca em que era mungido. À tar¬de, cada uma com o seu cesto de palha verde, que elas mesmas teciam, as moças se dispersavam pelo mato, em busca de cajus. Eestes eram tantos, e tão variados no gosto, que algumas, repleto o seu cabaz, o derramavam no chão, por terem encontrado outros mais doces e saborosos. Eo cajuí, o caju-menino, lindo como uma joia rubra ou amarela, e cuja castanha era pequenina como uma unha de criança recém-nascida, o cajuí, ele próprio, parecia contente de ser apanhado por mãos femininas, e de sentir-se mor¬dido por aquelas bocas frescas e jovens, e virgens, quase todas, do caju-veneno, que é o beijo... À noite, misturavam-se o cheiro da maresia e o perfume acre do cajual silvestre. Eos bois, monotonamente, num orgulho de cousa viva, respondiam ao mugido contínuo e cavernoso do mar...


Essa vida sem comodidade era, para meu pai, o maior dos encantos. Ele tinha horror, parece, à vulgaridade e aos exageros do método. Por isso mesmo, os dias passados em Macacoeira foram, talvez, dos mais felizes da sua existência ativa e rápida.
– Eu não conheço nada melhor no mundo – dizia ele à minha mãe, que me repetia às vezes esta sua opinião; – eu não conheço nada melhor no mundo do que um almoço em uma velha casa esburacada, diante do mar, e em que penetre o vento atirando ao prato punhados de areia da praia. Epara despertar mais o apetite, uma galinha de pintos ciscando e fazendo barulho debaixo da mesa.
Macacoeira oferecia-lhe tudo isso. Oconforto era nenhum. Só havia o que a natureza dava. O arroz, o açúcar, a farinha, o café, as provisões, enfim, que havíamos levado, estavam ao ar livre, em torno da casa. E, diante desse espetáculo, da completa desarrumação de tudo, em contraste com a vida ordeira e organizada da nossa casa da vila, meu pai rejuvenes¬cia, sentia-se feliz, e tomado, mesmo, de um contentamento alvoroçado e quase infantil.

Foi aí, por ocasião dessa estação de agoniado repouso, que eu pra¬tiquei uma das minhas peraltices mais remotas e inexplicáveis. Minha mãe havia levado preventivamente para aquele degredo que reteria Ulisses algumas dúzias de ovos, que ficaram acondicionados em um caixão de sal, atrás da casa. Eu descobri essa ninhada prodigiosa e fiz, com ela, o que não faria nenhum ovívoro truculento: quebrei-os, um a um, dentro do caixão, como se este fosse uma frigideira, e atirei fora as cascas. Ao dar com a depredação, minha mãe aplicou-me, naturalmente, a surra merecida. Oprazer de haver feito aquela maldade inconsciente foi, porém, tão intenso, que eu não tenho a menor ideia do castigo. Ficou-me, apenas, a lembrança do estrago.
Em compensação, trouxe de lá um ensinamento que me serviu, du¬rante algum tempo, de preventivo contra a gula. Sendo a nossa despensa ao ar livre, eu vivia sempre a rondar os sacos de bolacha, as latas de açúcar e os paneiros de farinha. Enchia o estômago e corria a beber água. Até que, um dia, um vaqueiro mostrou-me um couro de bode, espichado em umas varas, e contou-me a seguinte história:
– Este bode era um animal de estimação. Mas era doido por farinha d’água. Anteontem, apanhou um paneiro de farinha, e pôs-se a comer. Comeu até não poder mais. Quando acabou, marchou no rumo do riacho, e começou a beber. Aágua misturou-se com a farinha, e a farinha princi¬piou a inchar na barriga do bode... De repente, eu ouvi um estouro para o lado do riacho. Corri para ver, e tive pena. Era o bode que tinha estourado, partindo de cima a baixo o couro do bucho!
Olhei minha barriga esticada de cheia, e desatei num berreiro doido. Tinha comido farinha e bebido água, a manhã toda.
E fiquei apavorado, até à noite, à espera do estouro.

HUMBERTO DE CAMPOS - MEMÓRIAS 1


MEUS ANTEPASSADOS


NADA é mais difícil no Brasil do que estabelecer as origens de uma família burguesa ou supostamente aristocrática, tentando desenhar, na botânica das vaidades, uma árvore genealógica. O que possuímos nesse sentido assenta, exclusivamente, sobre hipóteses. E eu, voltando-me neste momento para o Passado, sem ascendentes que me orientem e elucidem, não me podia sentir em menores dificuldades. Prefiro confessar a ignorância a recorrer à fantasia.
Que espécie de sangue circula e prevalece nas minhas veias? Português? Espanhol? Tupinambá? Ou africano? Os meus antepassados preponderantes vieram depois de Cabral, com as suas velas borboleteando nas ondas, ou já aqui se encontravam, a flecha em punho, o dente aguçado, animados de instintos sanguinários, devorando os seus semelhantes? Combati com a mão deles em Aljubarrota, matei panteras no areal, ou esperei de cócoras, dias inteiros, no refúgio da sumaumeira monstruosa, o tapir ou o índio adversário?

As informações que tenho dão-me direito a vaidades de europeu. Minha avó materna era filha de mãe brasileira e pai português. Pertencia este à família Bruzaca de que usava o nome. Um dos irmãos de minha avó, nascido no Brasil, emigrou para a África, onde fez fortuna artificial e filhos naturais. Ao falecer em 1870 ou vizinhança desse ano, os parentes de Miritiba mandaram à ilha de São Tomé um representante, para assistir ao inventário. Esse emissário voltou trazendo um açucareiro e algumas colheres de prata. Mas a viagem fora, parece, proveitosa a esse procurador, o qual, confirmando o epigrama bocageano, pouco depois do regresso começava a prosperar, construindo uma casa e comprando uma fazenda de gado com alguns sólidos patacões portugueses. Descende, talvez, desse parente remoto e benemérito um poeta africano de nome Bruzaca, que eu encontrava, às vezes, nos meus inícios literários, assinando sonetos, no Almanaque de lembranças, e no Almanaque das senhoras, de Portugal. O mesmo sangue, infiltrado em veias de negros ou de caboclos, ou de portugueses acaboclados pelo ambiente, dava, sob climas diversos, os mesmos frutos de alma e coração. Sob o meu cabelo duro, ou sob a carapinha do meu primo desconhecido, diluía-se ele na névoa dos mesmos sonhos.


Meu avô materno chegou a Miritiba, no Maranhão, vindo de Viana, no norte da Província. Era Oliveira Campos e, pela profissão e nome, devia ser, igualmente, de origem lusitana. Ligava-se, pelo sangue, às principais famílias da região de onde provinha, mas ignoro em que época os seus maiores se fixaram no Brasil. Um dos ramos de que descendia tomou o nome de Conduru, nas campanhas jacobinas pela manutenção da independência nacional, havendo um parente seu que, com esse nome, publicou uma gramática. Professor público, transmitiu os seus honrados e modestos conhecimentos, com o talhe da sua letra, a todos os meninos e meninas da vila em que exerceu o magistério. E a ideia que eu tenho dele, pelas reminiscências de minha mãe, é que era um homem pequeno, miúdo, metódico, manso, e calado. Minha avó, que se chamava Malvina, teve treze filhos, morrendo no parto do último, que, por isso, tomou o nome de Benjamin. Meu avô, de nome Manuel, assumiu o comando da casa e da tribo. Poucos anos depois, porém, sentindo indisposições de estômago, mandou vir do Maranhão um purgativo, em pó. Chegado o remédio, tomou-o. E vinte horas depois morria, deixando nos filhos e na vila a convicção de que fora envenenado por uma troca de medicamentos. Morrera mansamente, como vivera. Deixou na memória da família a recordação que deixam os santos no seu tranquilo trânsito pela terra. Ninguém soube, jamais, se ele sabia queixar-se ou gemer.

Sobre os ascendentes de meu pai, as minhas pesquisas não são mais seguras, embora alcancem um pouco mais longe. No segundo quartel do século passado, chegaram a Pernambuco, procedentes de Portugal, cinco irmãos Veras, os quais, após se terem estabelecido no Recife – onde até há pouco existia o Beco dos Veras, no centro da cidade –, se dispersaram pelo país, como os filhos de Noé depois da confusão em Babel: dois ficaram, parece, em Pernambuco mesmo; um foi para o Rio Grande do Norte; outro fixou residência em Caxias, no Maranhão, onde deixou entre os descendentes o dramaturgo Colaço Veras; e outro foi ter à Tutóia, na mesma Província, casando-se aí na família Gomes de Almeida, que possuía, na região, importantes propriedades rurais. Este último, que se chamava Joaquim, foi o meu avô, pai do meu pai.
Como se teria formado, porém, a família, na outra margem do Atlântico? Veras será um prenome ou um patronímico? Provirá do latim Verus, ou do prenome russo Vera, que corresponde ao da primeira das virtudes teológicas?


As probabilidades são, todas, em favor da primeira hipótese. Segundo se lê no Ementário luso-brasileiro de José de Sousa Menezes, o prenome Vera não era conhecido em Portugal antes de 1860, ano em que foi batizada, ali, com esse nome, a primeira criança. É verdade que, no século XVII, já existia na Argentina, vinda da Espanha, uma família Vera. A esposa do poeta cordovês Luis de Tejada, que fundou no Rio da Prata um convento à sua própria custa, chamava-se Francisca de Vera (Ricardo Rojas, La literatura argentina, v. VIII, p. 771, ed. 1925). Mas é verdade, também, que essa família pode ser perfeitamente de procedência portuguesa. Inocêncio Francisco da Silva, no seu Dicionário biográfico, dá notícia de Álvaro Ferreira de Vera, nascido, provavelmente, nos últimos decênios do século XVI. Natural de Lisboa, Ferreira de Vera escreveu e publicou aí, em 1631, duas obras consideráveis: Origem da nobreza política, brasão d’armas e apelidos, cargos e títulos nobres, e Ortografia ou modo de escrever certo na língua portuguesa, aproveitando, neste último trabalho, “a muita semelhança, que tem a língua portuguesa com a latina”. Achando-se em Madri quando se deu, em 1640, a restauração do trono em Portugal, recusou-se a reconhecer a autoridade real do Duque de Bragança, preferindo permanecer na Espanha, sob a proteção de Filipe IV. Em 1647, informa Inocêncio, ainda vivia ele na corte espanhola. E como a viúva de Luis de Tejada chegou à Argentina em 1667, é provável que se trate de uma descendente, possivelmente filha, do lexicólogo português.


A circunstância de ser o prenome Álvaro um dos mais comuns na família Veras, a ponto de ser encontrado em todas as suas gerações brasileiras, fortalece a suspeita dessa origem, isto é, de que os Veras procedem, ou têm sangue, daquele Álvaro Ferreira de Vera, da informação de Inocêncio. Não deixa de ser, todavia, interessante, que essas dúvidas se levantem, precisamente, no espírito de um descendente possível do homem
que escreveu, para evitá-las, um tratado genealógico. E quem nos dirá se os Veras não pluralizaram esse apelido já em terras do Brasil, por terem emigrado em grupo, e vivido inicialmente reunidos, como se verifica pela nomenclatura do beco do Recife, e por informações obtidas há vinte anos por alguns membros da nossa família, dos seus mais antigos moradores?

Homem empreendedor e inteligente, meu avô conseguiu, em pouco tempo, uma pequena fortuna, em gado, terras de cana, escravos e filhos. Destes, teve doze – como Jacó – sendo dez homens e duas mulheres. Ao falecer, um seu empregado e amigo, português também, de nome Farias, casou com a viúva, com as terras, o gado e os escravos. E desbaratou o que pôde, deixando, ao morrer, a prole do outro na mais elogiável pobreza. Conta-se que esse padrasto de meu pai despertava os enteados, pela madrugada, aos pontapés, mandando-os para os trabalhos da roça. E por lembrança da sua pessoa, por não ter filhos dessa união, deixou no nome dos filhos que minha avó tivera do primeiro matrimônio o seu próprio nome. Daí o nome de meu pai: Joaquim Gomes de Farias Veras. Esse intruso, como se vê, bebeu a água e cuspiu no poço. Morreu tragicamente. Tendo ido a Parnaíba em uma canoa a remos tripulada por escravos, teve aí uma discussão com um filho do coronel Simplício Dias da Silva, homem riquíssimo, senhor da Casa Grande, originando-se a desinteligência numa questão de política ou de mulheres. Farias, perseguido, corre para a sua canoa e sobe o rio Igaraçu, a fim de alcançar a sua propriedade, no delta parnaibano. O inimigo tripula também uma embarcação do mesmo gênero, e sai-lhe no encalço. Cada um leva a sua dúzia de negros robustos, prontos a morrer pelo amo. As duas canoas correm a noite toda, arrebatadas pelos remos dos negros. Ao amanhecer, alcança o português Farias o porto do seu engenho. Ao deitar, porém, o pé na terra firme, a canoa da Casa Grande vem abordando a sua. Um tiro de mosquete derruba-o na praia. Os escravos cercam o corpo do senhor. E trava-se o combate entre os dois grupos de pretos, que se exterminam a faca, e que não cessam a luta senão quando não há mais, do grupo dos perseguidos, ninguém para matar.

Meu avô Joaquim, segundo tradição corrente na região em que viveu, era um rapagão alegre e louro, com ares e hábitos de fidalgo jovial. Metido na sua jaqueta de veludo lusitano, punha nos bolsos desta pequenas moedas de ouro que deviam cair quando ele sapateava. E as moças curvavam-se, sôfregas e contentes, em torno dele, quando ele, o braço erguido, à espanhola, dançava nas salas ou nos terreiros enluarados, nas festas à maneira do Brasil, ou do Reino. Não sei se foi ele, ou se um parente de minha avó, que teve um ataque de catalepsia, e foi enterrado em uma velha capela particular, na Tutóia. O que sei é que ao exumar-lhe, anos depois, os ossos, encontraram o esqueleto retorcido no caixão. A sua sombra percorre, ainda hoje, as regiões onde viveu feliz, perseguindo as sombras daqueles que o sepultaram em vida.


Por esse retrospecto vê-se que, ao contrário do que eu desejara, o meu sangue é, quase todo, se não todo, de origem portuguesa. Nobre ou vilão, ele vem de lá. Se há alguma colaboração do bugre, ela se fez sentir por intermédio da minha bisavó materna, que nasceu no Brasil. Minha avó Malvina apresentava, porém, um claro tipo europeu. Os Veras, irmãos de meu pai, eram, todos, muito louros, patenteando, mesmo, alguns, o tipo de europeu do norte. De modo que, somando todos esses fatores, e especialmente as qualidades negativas, que me caracterizam, eu chego à seguinte conclusão: sou, física, moral e intelectualmente, o produto de quatro ou cinco famílias portuguesas que o tempo e o meio vêm debilitando, e que se aclimatou, sem se integrar, no ambiente americano.


Isso explica, talvez, as tendências disciplinadas e disciplinadoras do meu espírito, a minha paixão pela ordem clássica, e a feição puramente europeia do meu gosto. Tenho horror à insubmissão e à desordem, que assinalam os homens cujos antepassados foram escravos.


Vibram automaticamente, no meu sangue e nos meus nervos, oito séculos de civilização.


DINDINHA


DOS MEUS avós paternos e maternos, foi o único que eu conheci. Era mãe de meu pai, e chamava-se Emídia. Mas todos nós, seus netos, lhe dávamos o tratamento de Dindinha.
Conheci-a em 1893, ao chegar, pequeno e órfão, a Parnaíba. Era uma velha gorda, limpa, alegre e branca. Dava aquela impressão que Fialho de Almeida tivera diante de outra figura feminina, de uma honrada senhora esculpida em toucinho. Estando com todos os filhos sobreviventes em boas condições de fortuna, tinha vida farta e sossegada. Vivia, por esse tempo, com meu tio Emídio, cuja família a tratava com desvelo e carinho. Todos os dias meu tio Feliciano e meu tio Franklin, já encanecidos, iam vê-la e pedir-lhe a bênção. Morava em um quarto espaçoso, que se comunicava com a sala de jantar. Deitada em uma rede branca e de varandas largas, conservava sempre ao lado, armada paralelamente, outra rede, destinada à neta, ou cria caseira, que lhe fazia companhia. O seu maior encanto era escutar a leitura de romances, feita pelas pessoas da casa. Interessava-se pelos personagens dos dramas, como se fossem gente do seu conhecimento e da sua amizade. E assim era que, à custa dos olhos alheios, conhecia quase toda a obra, até então editada, e traduzida, de Júlio Verne, de Ponson, de Escrich, de Alexandre Dumas, de Richebourg, de Adolphe Melot. O seu quarto era, por isso mesmo, um pequeno centro literário, povoado de sombras felizes ou desgraçadas, saídas de romances líricos ou tormentosos, e cuja existência era ali comentada e discutida. Isso atraía as netas já moças, ou pouco mais que meninas, que se alternavam na leitura, transmitindo umas às outras o assunto do capítulo porventura lido na sua ausência.


Nós, os netos pequenos, tínhamos, também, uma atração especialíssima naquele quarto em que a velhice aguardava a mansa visita da morte. É que os meus tios levavam sempre, para a velha mãe, frutas e guloseimas, que ela não raro distribuía pelos visitantes miúdos. Foi ali, no seu quarto, que travei relações com a doce e tenra marmelada portuguesa, que vinha em pequeninas latas redondas, e que era partida em talhadas flexíveis e morenas. Essa marmelada, e algumas frutas, levavam-me a tomar a bênção à pesada senhora duas e, não raro, três vezes por dia.



Não me lembro se, além dessas manifestações de prodigalidade que me seduziam, essa minha avó me dava a mim, seu neto órfão, outra demonstração de carinho. Parece-me que não. Minha memória infantil guardou, apenas, a lembrança da sua figura, do seu quarto, dos seus romances e da sua marmelada. Depois, só me recordo que, indo um dia, à tarde, à casa de meu tio Emídio, encontrei-a com as janelas todas abertas e, na sala, um grande caixão preto, com enfeites de galão dourado. Não havia lágrimas nem soluços. Apenas tristeza, e conversas em voz baixa. Meu tio, vestido de preto, espalhava pela sala e pelos compartimentos próximos uma esquisita mistura de aguarrás e ácido fênico, destinada, parece, a disfarçar o mau cheiro do corpo em decomposição.


Não sei de que morreu, nem como. Parece-me, porém, que foi do coração. Eu tinha oito anos e no cérebro não cabia tudo. Sei, apenas, e com certeza, que, a mandado de minha mãe, fui me sentar na pedra da calçada e que, metido na minha roupinha nova, olhava dali com uma superioridade orgulhosa os meninos do sr. Antônio Martins Ribeiro, morador da casa fronteira, os quais deviam estar com enorme inveja de mim, pois a avó que tinha morrido era a minha, e não a deles.


E assim foi que, embora por pouco tempo, eu tive uma avó.


MEU PAI


QUANDO meu pai morreu, eu tinha seis anos e vinte e dois dias. Mas lembro-me, ainda, perfeitamente, dos seus modos e da sua figura.
Era um homem de estatura acima de mediana, ágil, airoso e elegante. Claro e corado, olhos azuis, cabeleira farta e ondulada, de ouro queimado, quase vermelha; bigode da mesma cor; e umas suíças baixas, que lhe chegavam até ao meio da face. Olhando neste momento o retrato que dele me resta, encontro, entre a sua fisionomia e a de Pedro I, curiosa semelhança. Apenas, em meu pai, os traços são mais finos, graciosos e corretos: o nariz bem feito, e sem as bochechas do primeiro Imperador. Um belo tipo de homem, em suma, no porte e nas linhas – ideia que me é confirmada pelas pessoas que o conheceram.

Guapo, alegre, sempre disposto e em movimento, era o que se chama hoje um tipo esportivo. Bom cavaleiro, fazia constantemente viagens de centenas de léguas, em que consumia semanas ou meses, comprando gado e cereais que exportava para São Luís. Quando permanecia em Miritiba, saía, quase todas as manhãs, em cavalos fogosos e inquietos, nos quais gostava de experimentar a sua destreza arrogante e jovial. Quando eu nasci, tinha ele vinte e nove anos; e trinta e cinco quando morreu, pois que havia nascido em 1857. Na sua casa comercial, jamais saía do interior do estabelecimento pela portinhola a isso destinada: espalmava a mão na tábua do balcão, e saltava por cima com extrema agilidade.


A sua figura me vem à lembrança, hoje, apenas em meia dúzia de quadros, que a memória fixou com tintas claras e precisas, sobre fundo brumoso. Vejo-o, primeiro, em nossa casa antiga, apeando-se do cavalo, o chicote na mão, entrando pelo pequeno jardim que há ao lado, e em que floresce grande roseira, todo-o-ano, sempre enfeitada de rosas. Eu e minha irmã – eu com quatro anos ou cinco, ela com dois ou três – montamos cada um o seu cavalo humano: ela, a negra Bárbara, a sua Babu; eu, a negra Antônia – amas de nós ambos. Entrando no jardim, e encontrando as pretas de quatro pés, e nós montados, meu pai descarregava alegremente o seu chicote sobre as nossas cavalgaduras, que logo se erguem e disparam na carreira, arrebatando-nos nos seus braços amigos... Vejo-o pulando o balcão da loja, num salto rápido e firme. Vejo-o, ainda, chegando de viagem, estirado na sua rede branca e larga, armada no meio do quarto. Minha mãe acorre, solícita, com um prato de carne seca, picadinha, misturada com ovos, preparada na ocasião e de que ele se serve, deitado mesmo, com farinha d’água amarela – ceia da sua predileção e que lhe era trazida todas as noites no quarto, à hora de dormir... E vejo-o no instante mais trágico do seu destino. Ele havia saído a passeio em um cavalo árdego, que exigia espora de fidalgo e pulso de cavaleiro. De regresso, com o animal coberto de espuma, vai estacar diante da porta num puxão repentino das rédeas, quando minha irmã, que tinha apenas dois anos e vestia uma simples camisinha de rendas, sai na carreira de casa e cai, na rua, sob as patas do animal em marcha. Meu pai sofreia o cavalo e solta um grito. Olha para baixo, e vê: a filha está no chão, de braços, entre as patas do animal, que lhe pisam a roupa ligeira. A aproximação de qualquer pessoa é impossível. O quadrúpede resfolega impaciente, mordendo o freio. Um movimento qualquer, e, sentando-lhe uma das patas na espinha frágil, pode matar a menina. Vem, então, a meu pai, uma ideia súbita e desesperada: crava de repente, e com violência, as esporas no ventre do animal, que dá um arranco, saltando longe. A filha estava salva, mas ele estava morto: ao apear-se, muito pálido, pediu um copo d’água. A datar, porém, desse dia, não teve mais saúde. Ano e meio, ou dois anos depois, morria do coração.


Tudo nele era atividade febril, inteligente e irrequieta. Emigrado da Tutóia, onde nascera, chegara a Miritiba ainda rapazola. Antes disso, fora ao Maranhão, tentar a vida. Espírito aventureiro, meteu-se em um navio, que tocava em São Luís, e rumou para o sul, como simples marinheiro e, no ventre do barco, onde avermelhavam as chamas, deu comida às fornalhas famintas. Esteve no Rio de Janeiro como um louro vagabundo de Gorki. E aos dezenove anos encontrava-se, de novo, na sua terra, com um curso completo de ensinamentos do mundo.


Em 1877, achando-se ele, já, estabelecido, teve começo no Ceará o flagelo da seca. Centenas ou milhares de famílias tomaram o caminho do exílio, espalhando-se pelas províncias mais próximas não atingidas pela calamidade. Na sua inclemência, o sol nivelara, ali, os homens de todas as condições. O rico e o pobre tornaram-se, todos, miseráveis. E é uma família outrora afortunada, mas reduzida à miséria extrema, que vai ter, então, a Miritiba.


Era a família Mendonça Furtado, que tivera as suas fazendas prósperas, para as bandas do Sobral ou do Ipu. O chefe morrera em caminho, de dor e de fome. Os filhos homens tinham-se dispersado, na travessia do Piauí. De modo que apenas chegaram aí, como despojos preciosos de um naufrágio que o oceano atira a praias longínquas, duas pobres moças de excepcional formosura, acompanhadas de uma velha senhora aniquilada pelo tormento da vida. Meu pai era jovem e solteiro. E passou a viver com uma das moças. Um seu sobrinho, quase da sua idade, José Veras Machado, filho da sua irmã Felicidade, assumiu a responsabilidade do destino da outra.


Em março de 1880 nascia o primeiro fruto dessa união que a lei considerava ilícita, mas que meu pai, com seu espírito sem preconceitos, achava naturalíssima. Era uma menina, e foi levada à pia por meu pai e pela moça com que[m] vivia.
– O nome da menina? – pergunta o padre.
– Prosérpina – respondeu meu pai.
– É nome de santo?
– Não, senhor. Prosérpina é mulher de Plutão, rei dos Infernos.


O sacerdote propõe outro nome, mas meu pai recusa. E o padre batiza a menina mesmo com esse nome, o qual define, com outros episódios da sua vida breve, o que era, em um ambiente acanhado e de aldeia, o espírito livre e, mesmo, irreverente, de meu pai.


Na mesma ocasião, o sobrinho e companheiro que vivia com a outra moça, batizou, também, uma filha nascida nas mesmas circunstâncias. E deu-lhe, por inspiração do tio, o nome de Eurídice, que igualmente habitava o Inferno grego. Do que se conclui, talvez, que meu pai, meio século antes do filho, e habitando uma remota vila de uma província do norte, mostrava, já, um pronunciado interesse pela mitologia.
Meu pai possuía um gosto inequívoco pelas letras. Não sei, nem posso avaliar, os limites da sua cultura. Lembro-me, porém, que, ao começar a ler, encontrei, entre os papéis de minha mãe, dois velhos cadernos amarrotados, com letras dele. Eram versos que havia escrito: não versos de amor, líricos e piegas, mas dois poemas no metro dos Lusíadas, em oitavas ou décimas rimadas, que eu lia alto, embalando-me em uma grande rede doméstica. Um deles cantava uma viagem a um “sítio São João”, e falava em mangueiras e laranjeiras, num canto virgiliano à natureza mansa da sua terra. O assunto do outro apagou-se na minha memória. Com a minha ida, aos treze anos, para o Maranhão, esses versos, a que minha mãe não emprestava grande importância, desapareceram. A lembrança deles é bastante, entretanto, para que eu reconheça, hoje, que, se o meu gosto pelas letras é hereditário, devo-o, na sua maior parte, a meu pai.

As outras filhas que lhe vieram depois, e das mesmas ligações com a moça cearense, não ficaram mais, todavia, sob o patrocínio de entidades mitológicas, mas sob o de excelentes santos católicos: uma, nascida em 1882, foi batizada com o nome de Lourença; a outra, vinda ao mundo em 1884, tomou o de Raimunda. Nesse ano, morreu a mulher com quem meu pai vivia e tivera essa prole, e que era, segundo o depoimento dos que a conheceram, dedicada e boa.


E um ano depois, a 23 de agosto de 1885, ele casava com uma das filhas do falecido professor Campos, que viria a ser minha mãe.

IV


MINHA MÃE


É DIGNO de nota que eu tenha de meu pai recordações muito mais antigas e precisas do que de minha mãe. Em épocas em que a figura dele me aparecia nítida, concreta, definida, a imagem dela é ainda, apenas, uma nebulosa, uma sombra, uma nuvem sem contorno e sem forma. Isso é, todavia, explicável. Meu pai morreu logo, quando eu era pequeno; as impressões primitivas que eu dele tinha não foram substituídas por outras mais frescas. Ao passo que minha mãe há quarenta e seis anos me acompanha na vida, superpondo o seu vulto e as suas atitudes novas às imagens mais remotas. A memória é um grande museu de fotografias, em cujos muros consagramos determinado espaço a cada criatura querida. Uma vez cheio esse espaço, temos que retirar os retratos mais antigos, pondo no lugar outros mais recentes, da mesma pessoa. Meu pai não deixou retratos bastantes para povoar o trecho de muro que lhe estava destinado no meu coração; de modo que conservei todos, mesmo os mais tênues, que dele tive nos seis anos que passamos juntos na terra.


A ideia mais recuada que tenho de minha mãe é a de fins de 1892, isto é, após a morte de meu pai. É, precisamente, da época em que ela o chorava. Tinham ido os dois a São Luís consultar os médicos e tratar de negócios comerciais, quando ele morreu. Ela regressou sozinha para Miritiba. E é, então, que ela me aparece, e grava-se na minha lembrança. Vejo-a chegada da capital na tristeza da sua viuvez. É um quarto espaçoso e fechado, da nossa casa nova, que meu pai construíra antes de partir. A um dos cantos, uma rede, em que minha mãe se acha sentada, os olhos vermelhos de chorar. Os cabelos negros, longos e soltos. Amigas, sentadas em torno, em cadeiras, ouvem-na contar como se deu o desenlace. Ela conta, e chora.


Minha mãe tinha, então, trinta anos, pois que nascera em 1862. Não me parece que tivesse tido, jamais, algum traço especial de beleza. Morena, longos cabelos negros, olhos castanho-escuros, havia tido varíola, quando menina, possuindo, por isso, a pele marcada, mas muito fina. Estatura regular, dava-me a impressão de perfeição plástica, e de certa graça natural nos movimentos. Creio, mesmo, que não foi a sua fisionomia, mas a sua elegância, a harmonia do seu tipo, que encantou meu pai. Ele era, todavia, mais bonito do que ela; o que não impedia, no entanto, que vivessem felizes, e que ela se conformasse com as extensas e constantes viagens que ele fazia, e nas quais dava liberdade ao seu gênio folgazão e ao seu gosto pelas amáveis cousas da vida. Minha mãe foi, em síntese, na sua mocidade, uma senhora sem altos atributos de graça feminina, casada com um homem moço e bonito, mas que soube prendê-lo com a sua solicitude, com o seu instinto doméstico, perdoando-lhe as faltas, as pequenas e possíveis infidelidades, em nome da harmonia conjugal. O gênio de meu pai, alegre, festivo, brincalhão, facilitava, aliás, a minha mãe, esse sentimento de renúncia e de resignação, que era uma das virtudes específicas das mulheres do seu meio e do seu tempo.


Define esse feitio a sua atitude em relação às filhas ilegítimas de meu pai; após o seu casamento, minha mãe consentiu não só que ele as reconhecesse, mas, ainda, que delas cuidasse. As duas mais novas foram confiadas a duas senhoras das relações de minha mãe; e a mais velha, ficou minha mãe com ela, tratando-a como se fora fruto do seu sangue e do seu leito, e de tal modo, que teve, sempre, nela, em todas as circunstâncias, amiga solícita, filha carinhosa, e companheira dedicada e leal.
Viúva, moça, com dois filhos, e com essa filha que adotara, minha mãe enfrentou a vida com heroísmo sereno e silencioso, e com um tranquilo espírito de decisão. Liquidou os negócios comerciais de meu pai; vendeu as casas, o gado, a fazenda, apurou o que pôde, e pelo preço da liquidação e do custo da vida do interior, não ia além de uma dezena de contos de réis. E com os filhos legítimos e a filha adotiva, mudou-se para Parnaíba, no Piauí, onde já se haviam fixado os seus cunhados e irmãos. Do dinheiro apurado, depositou na Caixa Econômica do Maranhão um conto de réis para mim e minha irmã legítima – pois que a parte das ilegítimas foi em gado, que elas venderam com lucro quando se casaram. Com a parte que lhe coube, adquiriu um terreno, construiu uma casa. E aí passou a viver conosco e com as suas irmãs e irmãos solteiros, trabalhando, lutando, batalhando pela conquista do pão.
Mentalmente, era, talvez, entre as irmãs, o espírito culminante da família. Filha de professor público, e irmã de professor, a quem auxiliara até os 23 anos, idade em que constituíra o seu lar, possuía caligrafia bonita e enérgica, em que fixava os seus pensamentos com clareza e relativa correção. Gostava de romances e modinhas tristes, que cantava baixinho, nas horas de trabalho. Conversava com alegria, e não desdenhava uma risada boa e sadia. Estas foram, porém, se tornando cada vez mais raras, sendo substituídas pelos suspiros. O tempo e a vida fizeram do vinho doce, que extravasava dos cântaros em Caná, o vinagre amargo e ingrato, que encheu a esponja de Cristo no Gólgota.


O resto da sua vida, após a nossa chegada a Parnaíba, acha-se entrelaçado com a minha. As duas aparecerão, assim, unidas, juntas, confundidas, no correr destes capítulos.





XXV



PEDRA DO SAL
HUMBERTO DE CAMPOS, MEMÓRIAS




COM a presença dos meus tios maternos ainda em Parnaíba, em 1895, fomos passar alguns meses na Pedra do Sal, ponto desabrigado e rochoso do estreito litoral piauiense em que fica situado o farol desse nome, e que figura, nas cartas marítimas, sob o nome de Farol da Amarração. Sobre uma pedra, que desafia o mar, levantava-se a torre de ferro, cuja ascensão era feita por uma escada interior, em espiral. Sobre outra pedra, coberta de telha, e caiada, a casa do faroleiro, cuja cozinha era lavada, às vezes, pelas ondas mais fortes. Em frente ao farol, o oceano largo e vário, raramente riscado por um navio costeiro, que se arrastava pela superfície verde como uma lagarta escura e insignificante sobre uma folha de bananeira. À direita e à esquerda as linhas de rochedos altos, que orlavam a praia arenosa. E, para trás de tudo isso, as dunas alvas, ligeiramente vestidas de cajueiros, e em cujas depressões se agasalhavam pequenas casas de palha, humildes habitações de pescadores.
Chegamos aí ao anoitecer, a cavalo. Horas depois chegavam os cargueiros com a bagagem. Muitas famílias de Parnaíba tinham ido veranear ali naquele ano, de modo que nos foi impossível conseguir uma casa me­nos desconfortável. Aque meus tios haviam alugado devia ser coberta, ainda, de palmas de carnaúba, no dia seguinte: de modo que tivemos de nos contentar, por aquela noite, com uma esburacada em torno, a poucos metros do mar. Para podermos dormir, tivemos de amarrar lençóis nos grandes rombos abertos na palha, pelos quais entrava, assobiando como garotos e cortando como navalhas, o vento salitroso e inclemente. Obarulho do oceano, rugindo ao largo e estourando nas pedras, era, mesmo, tão profundo e alto, que se tornava necessário gritar para ser ouvido, a dois metros de distância.
Lembro-me, entretanto, que, nessa mesma noite, minha mãe nos tomou pela mão, a minha irmã e a mim, e saiu a passear pela praia. O oceano rolava e guinava, na sombra, atirando-nos ao rosto seu hálito úmido de gigante bêbado. E o vento gritava, gemia, repuxava-nos para trás as roupas e os cabelos, como se nos quisesse arrastar para longe. Minha mãe caminhava e cantava. Ela que sempre cantara baixinho, levantava, agora, a voz acima das vozes do mar e do vento. Canto de dor e de saudade. Grito de gaivota viúva pedindo ao oceano mergulhado na noite que lhe restitua o companheiro sepultado nas ondas. Lamento de mulher moça e solitária no mundo; gemido de mãe aflita, de andorinha do mar que se vê sozinha, e fraca, e desamparada, numa anfractuosidade de rochedo, cobrindo com as asas frágeis duas avezitas implumes. Vencendo o vento e o mar, a sua voz me chega ao ouvido, em dois versos que nele ficaram em toda a pureza de sua toada nostálgica e dolorida:
Com o sangue das minhas veias
Sete cartas te escrevi...
No dia seguinte, mudávamos para a casa que nos estava destinada. Era um albergue novo, de chão de barro batido, coberto e cercado de palha de carnaúba. Ficava longe do farol, mas dispunha, embora a alguma distância, de praia melhor para banho. Nessa praia, inteiramente aberta, existiam cavaletes mais altos do que um homem, os quais eram sumariamente cobertos de palha e serviam de barraca em que as senhoras mudavam a roupa. O vento era, porém, aí, tão rijo e permanente, que virava e revirava essas pequenas construções, fazendo-se mister ir buscá-las cada dia a grande distância, não obstante o seu volume e o seu peso. E esse vento, que arrastava barracas e assobiava e corria à noite como um louco em liberdade, era o mesmo que me aplicava nas pernas violentas surras de areia, fazendo-me invejar as mulheres de saia longa e os homens de calças compridas.
Situada na última trincheira de dunas, mais perto da várzea que se estendia para o interior do que do mar, a nossa casa possuía nos fundos, a três dezenas de metros, uma pequena lagoa em que viviam alguns peixes miúdos, característicos da água doce e parada. Armado de um caniço que trazia na ponta da linha de costura um anzol improvisado com um alfinete torcido, eu ia, todos os dias, a essa pescaria, voltando com alguns peixes achatados e negros a que davam, ali, a denominação de cará. Certo dia, porém, minha mãe me recomendou que não fosse à lagoa. Era Sexta-Feira Santa, dia consagrado ao jejum e à oração. Dia nublado, escuro, triste, como se o céu inteiro se tivesse coberto de um véu polvilhado de cinza. Uma das minhas virtudes era, no entanto, a desobediência. Ao ver que a família se achava entregue aos cuidados caseiros, tomei o caniço e corri para a lagoa. Alguns peixes beliscaram, mas não vieram. Os peixes sabem, parece, quando os meninos estão pescando sem a permissão dos pais, e não lhes dão o prazer de engolir a isca. Eu insisti, todavia. Se Deus não quisesse que o homem apanhasse o peixe não teria consentido que ele inventasse o anzol. Em determinado momento, porém, senti que vinha alguma cousa volumosa e pesada. Puxei a linha, aos poucos, desconfiado, e com cautela. De repente, emerge a presa. Olho e esfrio. Vinha no anzol uma botina velha!
É desnecessário dizer que abandonei botina, anzol, caniço, e até o meu chapéu de carnaúba, à margem da lagoa, e que desandei na carreira, apavorado, rumo de casa. Chamei minha mãe à parte, e contei-lhe o ocorrido, os olhos fora das órbitas. E ela:
– Eu não te disse? É castigo... Eenchendo-me de terror:
– Quem pesca em lagoa Sexta-Feira Santa, o anzol só apanha sapato de defunto...
Situada perto da várzea, nossa casa era uma das primeiras do arraial, à entrada deste, e o caminho natural de quem vinha de Parnaíba. As pessoas que procediam da cidade, e que eram portadores de encomendas –- café, açúcar, cereais ou carne, pois que aí não havia nenhuma casa de comércio –, chegavam à Pedra do Sal já noite fechada. Mas a aproximação desses emissários, que haviam partido pela madrugada a vender o produto da sua pescaria, era anunciada de longe pelos téu-téus, o indiscreto quero-quero das coxilhas do Sul, o qual é, no norte, o guarda infatigável das várzeas adormecidas. Ao perceberem, com os seus olhos que varam a sombra, vulto de cavaleiro ou de peão, essas aves erguem em bando o seu voo, em gritaria assustada. E com uma precisão tal que, pelo grito delas, se sabia, em casa, em que várzea e a que distância vinha o viajante.
A maior curiosidade do lugarejo marítimo eram, entretanto, os seus rochedos. Havia pedras enormes, de feitios bizarros, de dez e mais metros de altura. Algumas constituíam, mesmo, a reprodução da fisionomia humana. E eu ainda me lembro de uma, grande e alta como uma casa, que possuía dois olhos, e nariz, e a boca imensa, rota em uma das extremidades. A onda vinha de longe, e atirava-se à cara do monstro. Ele bebia-a; engolia-a; mas vomitava-a de novo com asco e com estrondo, repelindo o resto pelo rasgão de pedra, que a água cavara durante séculos.
Na Pedra do Sal, vivi cerca de três meses, dos meus nove anos, sem saber, sequer, se existia, com as suas largas folhas, o livro do Destino. Olhava o oceano durante o dia, e escutava, à noite, gritar assustadora­mente os téu-téus da várzea. Eencontrei, também, ali, a síntese da minha atividade no mundo.
Que tenho eu feito, em verdade, na vida, senão pescar sapato de defunto!

VII

O ÚLTIMO ESTIO DE ATENAS

Enquanto eu, no balcão da Casa Trasmontana, embrulhava açúcar e pesava batatas, ou, no seu tanque, lavava garrafas para encher do mais vermelho e genuíno vinho português, a quinze metros de mim se elaborava, sem que o suspeitasse, a destino literário do Maranhão. Diante da formiga anônima, e sem que ela as ouvisse, cantavam as primeiras cigarras do último estio de Atenas.

O Maranhão ressonava, desde o crepúsculo vesperal da monarquia, quando haviam emigrado para o sul e para o norte os mais belos espíritos que a província então produzira, num fundo sono, vizinho da morte. De súbito, aparece-lhe, cercado da sua glória risonha e nascente, em visita ao seu berço natal, em 1899, Coelho Neto. À sua voz de pastor, as ovelhas se levantam. A juventude maranhense, vencida antes de combater, toma-se de coragem. Um sopro ardente de vida e de esperança congrega os atenienses, que já haviam esquecido os grandes vultos da pátria. E funda-se a Oficina dos Novos, destinada a operar, num milagre, a ressurreição do espírito literário, e que veio a oferecer, efetivamente, ao Maranhão, a sua última geração de escritores com projeção fora do Estado.

Quando, em 1900, eu entrei, como caixeiro, para a mercearia na rua da Paz, germinava, precisamente no edifício fronteiro, a semente que a mão de Coelho Neto lançara. Do meu balcão, ou do meu tanque, nos momentos em que me punha de pé, a fim de reanimar a musculatura cansada, eu via entrar todas as tardes, ou à noite, os lavradores encarregados de fazer fecundar aquela semeadura. Eram eles, além de outros menos expressivos na ação e na figura, Antônio Lobo, Fran Pachêco, Francisco Serra e Antônio Marques, aos quais devia caber, especialmente aos dois primeiros, a missão de galvanizar para as letras, numa tentativa suprema e heroica, o velho Maranhão de Odorico e de João Lisboa, de Gomes de Souza e de Sotero, de Gonçalves Dias e de Henriques Leal.

[...]

(CAMPOS, 1935, p.59-61)

[...]

XIV

A HORA SAGRADA

Foi por esse tempo que surgiu, e verdadeiramente, em mim, a paixão literária. É possível que eu a tivesse trazido do Maranhão, escondida nas camadas subterrâneas do espírito. No discurso com que me recebeu na Academia Brasileira de Letras, na noite de 8 de maio de 1920, Luiz Murat, examinando a passagem da minha oração em que eu atribuía a influência de Coelho Neto à modificação do meu destino, opinou pela falsidade dessa suposição. O sentimento literário estava em mim; e quaisquer que fossem os fatores externos, eu viria a ser, tarde ou cedo, prosador e poeta. O que eu supunha causa desse fenômeno, constituíra, e apenas, um pretexto para a revelação, que se daria, em qualquer circunstância.

É possível que, durante a minha permanência no Maranhão, eu tivesse lançado às leiras profundas do cérebro, ignoradamente, o gosto da criação. Ele ficara, todavia, no subconsciente, como a semente d’anunziana, que os gelos do inverno escondem, mas que germina tempos depois, quando lhe é propício o clima da primavera. O que é verdade é que, um dia, eu me sentei em uma pedra tosca, na ponta da calçada de nossa casa, na parte que dava para o quintal, tendo à mão dois jornaiszinhos literários, publicados em São Luís. Intitulava-se um Os Novos, e era órgão da Oficina dos Novos, associação constituída pela geração moça, orientada por Antônio Lobo e Fran Pacheco. Renascença, denominava-se o outro, e reunia uma dissidência combativa e heroica, sob a chefia de Nascimento Morais. O primeiro era sereno, ponderado, mergulhado em sonho e meditação. Trazia versos de Francisco Serra, Costa Gomes, e outro, cujo nome se me apagou na memória; e prosa de Godofredo Viana, Domingos Barbosa, Viriato Corrêa, João Quadros, e Astolfo Marques. A. J. Alves de Farias, que foi mais tarde, no Rio, diretor do Lloyd Brasileiro e era, então, chefe do distrito telegráfico no Maranhão, assinava uns alexandrinos severos, em que havia tamareiras debruçadas no Deserto. O outro periódico era mais variado e mais vivo. Nascimento Morais, professor de português, criticava a língua d’Os Novos, arremetendo de palmatória em punho contra os rapazes do outro grupo. O que, porém, caracterizava a Renascença era a fartura de sonetos. Nas suas seis páginas amplas, espalhavam-se mais de trinta, cada um dos quais assinado por um poeta novo. Desses poetas, ao que parece, não vingou um só. À semelhança do que sucede, às vezes, as ninhadas de peru, desapareceram todos. Eu, porém, os achava, a todos, admiráveis. O que mais me impressionou foi, todavia, um de nome Otávio Galvão, autor de quatorze decassílabos realistas, de que faziam parte estes, num terceto, que nunca mais me desapareceu da lembrança:

“E, enquanto lá por fora cai a chuva,

A carne agrilhoada de desejos

Treme de gozo ao lado da viúva!”

Nos trinta e dois anos que rolaram sobre essa tarde parnaibana em que, na calçada do quintal de nossa casa, mergulhei na leitura d’ Os Novos e da Renascença, eu li grandes poemas, as obras capitais de quase todos os gênios da Humanidade. Li Homero e Virgílio; Hesíodo e Ovídio; Dante e Petrarca; Ariosto e Tasso; Shakespeare e Klopstock; Lope de Vega e Camões; Schiller e Goethe; Longfellow e Vitor Hugo. Milhões de versos passaram sob os meus olhos, entraram pelo meu entendimento, fixaram-se na minha memória, viveram na minha imaginação. Nenhum deles conseguiu, entretanto, jamais, apagar no meu cérebro esses três decassílabos de Otávio Galvão. Viva eu um século e eles viverão comigo. E quem sabe se, abusando da minha inconsciência, não serão eles as palavras que me virão à boca, profanando a santa hora da minha morte?...

Maranhão Sobrinho colaborava nos dois jornais, emprestando a cada um deles, com um punhado de versos, uma das asas da sua inspiração. Lembro-me, ainda, de dois sonetos seus, que vinham, se bem me lembro, n’”Os Novos”. Tinham por título Símbolos.

Concluída a leitura das duas folhas maranhenses, quedei-me quieto, os olhos perdidos no horizonte, que os coqueiros de Dona Páscoa enfeitavam de aranhas buliçosas. Seria difícil fazer versos? Evidentemente, não; porque, se fosse, aqueles jornaiszinhos não estariam repletos. Quem, porém, me ensinaria a fazê-los?

Resolvi examinar mais profundamente o assunto, consultando os almanaques, viveiro inesgotável de poetas. E levantei-me. O primeiro raio de sol havia tocado a semente. Ia começar, no meu coração e no meu cérebro, o milagre da germinação. Soara, para mim, a hora sagrada.

(Id. ibid., p. 119-123)

(CAMPOS, Humberto de. Memórias Inacabadas. Rio de Janeiro: Livrara José Olympio Editora, 1935)