sexta-feira, 4 de março de 2016

Claude Lefort




A QUESTÃO DA REVOLUÇÃO


Claude Lefort




[...]Com efeito, é preciso dize-lo: a história das sociedades modernas não se resume ao curso das grandes revoluções; estas não constituem os episódios de uma Revolução universal e é aberrante supor que no intervalo delas operar-se-ia (segundo a fórmula em moda) apenas a reprodução das relações sociais de dominação e de exploração. Ë preciso dizê-lo ainda: a idéia da Revolução, como acontecimento absoluto, fundação de um mundo no qual os homens dominariam inteiramente as instituições, concordariam no conjunto de suas atividades e de seus fins, de um mundo no qual o Poder se dissolveria no fluxo das decisões coletivas, a lei no fluxo das vontades, de onde o conflito seria eliminado, essa idéia pactua secretamente com a representação totalitária; a crença em uma sociedade que se ordenasse organicamente, como inteiramente de dentro de si mesma, reenvia a uma referência inteiramente externa, à posição de um grande Outro que abarcaria o conjunto e o constituiria como Uno. 
Contudo, a critica pode parar aí? 

Primeira observação: se nos ativermos à idéia de revolução não precisaríamos perguntar de onde surgiu? Não nasceu inteiramente adulta na cabeça dos atores jacobinos, nem mesmo, como se comprazem em repetir, do germe depositado pelo discurso de Rousseau. Se, como observa justamente Furet, ela implica a noção de uma ruptura entre o antigo e o novo e, simultaneamente, na de uma repartição entre o bem e o mal, o racional e o irracional, ou ainda na de uma humanidade que faria de si mesma sua própria obra, todas essas noções surgiram bem anteriormente, na Europa, pela primeira vez, creio, no começo do século XV em Florença — e já poderosamente investidas de um sentido político. E pode-se observar de passagem que os jacobinos herdaram dos heróis do Renascimento: os romanos, os espartanos, os legisladores e os tiranicidas da Antiguidade. Ou seja, “humanismo civil” em Florença, ou na França, na metade do século XVI, ou na Inglaterra no XVII não engendra a idéia da Revolução, mas a anuncia. Ora, não é por acaso se toma impulso em sociedades de um novo tipo, sociedades que se unificam, se homogeneizam, se circunscrevem em função da pertença comum dos homens a um território, conquistam uma identidade nacional, experimentam suas divisões internas num mesmo espaço simbólico, enfim, ordenam-se em conseqüência de um poder de Estado, instância da coerção generalizada e núcleo último da legitimidade, cuja aparição revolve todos os dados da Tradição e intriga. Não penso que se possa dissociar a idéia nova da Revolução da idéia nova do Estado; a idéia da fundação originária da do surgimento de um poder que garante à sociedade sua unidade, sua identidade, apresentando-se como seu produto e, ao mesmo tempo, correndo o risco de aparecer como um órgão particular, um órgão de fato confundido com a pessoa do Príncipe — alguma coisa que se pode destruir. 
Ora, reconhecer a ligação entre essas duas idéias (a da Revolução e a do Estado) induziria a retomar a crítica do imaginário que se desvela no discurso revolucionário e a rearticulá-la com uma crítica do imaginário veiculado pela posição do poder estatal moderno. E induziria ainda a nos perguntarmos se, no nosso próprio tempo, quando se afirma, como jamais anteriormente, no detalhe da vida social, o ponto de vista do Estado, se pode apagar-se a idéia de Revolução ou se, pelo menos, pode-se imputá-la simplesmente ao fantasma. 
Segunda observação: não se pode interrogar a revolução 
atendo-se à sua idéia — ou, melhor, à representação dos atores que se comportam como os encarregados da missão da História universal e pretendem que a Revolução fale pela sua boca. A idéia de Revolução, tal como é extraída do discurso dos revolucionários, até mesmo da ação que se realiza sob o signo desse discurso, não se teria formado ou teria permanecido privada de eficácia se faltasse uma sublevação das massas. Chamaremos revolta a essa sublevação? Se se quiser. Mas então reconheçamos que não se pode cortar o cordão umbilical que liga a revolução à revolta. 
De minha parte recuso uma distinção convencional nos termos da qual a revolução se caracterizaria pela consciência que os combatentes têm de seus objetivos, como se os homens alguma vez tivessem tido, ao se sublevar, a noção clara de uma nova ordem que os libertaria da dominação e da exploração. O que dá à revolução seu caráter específico é o tipo de sociedade no qual se desenvolve (reato assim com o meu primeiro argumento), é que as massas, seja qual for o objeto de suas primeiras reivindicações, se chocam contra o Estado, contra um poder garantia da unidade e da identidade nacionais e que opondo a violência à sua violência, denegam sua legitimidade e atingem, no mesmo lance, a integridade do corpo político. Assim compreende-se que uma ação violenta aparentemente localizada adquira um alcance simbólico e provoque múltiplas sublevações a partir de focos que não se comunicam entre si. 
A Revolução, foi dito freqüentemente, é o resultado da luta de classes, mas é preciso ainda que esta se exerça num quadro em que a divisão de classes se combine com a divisão do conjunto social e do Estado e que todos os conflitos acumulados no seio da sociedade civil possam ser referidos à noção de uma oposição política e de um princípio da dominação. É preciso ainda que estejam dadas as condições de uma polarização geral entre o Alto e o Baixo, de tal maneira que em caso de enfraquecimento do Poder, aquilo que comumente está ligado a ele, a Autoridade, cristaliza contra si todos os ódios; de tal maneira, enfim, que em toda a extensão da sociedade, camadas estratificadas no seio das quais se repetia a relação dominante-dominado, possam de súbito ligar-se maciçamente ao Baixo e se sublevar contra o que aparece como o pólo adversário. 
O fenômeno revolucionário é designado pelo sinal de uma operação de revolvimento que tende a propagar-se em todos os setores de socialização e a afetar todas as redes simbólicas. Ora, é bom precisar que esse revolvimento revolucionário nada deve à idéia de Revolução, robespierrista ou leninista, ou ao que Richir chama a vontade de encarnar “a transcendência prática”. Observando-a não se poderia nem mesmo falar da Revolução “no singular, precedida do artigo definido”, de acordo com a feliz expressão de Furet, ou da Revolução com maiúscula. 
O acontecimento nada tem de uniforme e, com a permissão da palavra, é antes de uma revolução plural que se trata. Seja qual for o exemplo histórico escolhido, o espetáculo da diversidade é o mesmo. Lembremo-nos apenas da Revolução Russa: há mil teatros da revolução, nas fábricas, nos escritórios, nos bairros, no campo, no Exército, na Universidade, nos círculos de escritores e de artistas, e rapidamente todas as normas das instituições são repostas em questão. Não há diretor que regulamente o movimento dos atores. O que impressiona o observador é a paixão da auto-organização que anima múltiplas coletividades, a criação de sovietes, comitês de usina, comitês de bairro, de camponeses, soldados, milícias, associações de todo tipo, e é a afirmação reiterada por uns e outros de um direito de decidir aqui e agora sobre as ocupações de que têm experiência, direito freqüentemente reivindicado às custas do que é denunciado como a abstração Sociedade, encarnada nos decretos do governo. 
Assim não há apenas emergência do Baixo e a imagem do revolvimento é, em parte, inadequada: ao mesmo tempo que a 
sociedade bascula ela se descentra, o tecido das relações sociais adquire uma vida insuspeitada e se diferencia furtando-se às garras do poder estatal. 
Talvez, dir-se-á, mas a experiência ensina que essa revolução plural fracassa, que deixada a si mesma conduziria a uma dissolução da comunidade nacional, que na realidade a Revolução se afirma no singular. Se se fala da Revolução mais vale, pois, se interessar no vem-a-ser. Já respondi que não se pode fazer a economia de uma análise do fato revolucionário a partir do momento em que apresenta constantes notáveis e que, à sua falta, a idéia de revolução não se formaria. E, por minha vez, coloco uma questão: pode-se afirmar que nenhum ensinamento poderia ser tirado na hipótese de uma sublevação revolucionária em nosso tempo, daquilo que a Revolução se torna — o que se tomou sob o impulso dos jacobinos e dos bolcheviques? Ou, em outros termos, seguramente preferíveis: 
se uma revolução explodisse em uma sociedade que assimilou na sua. estrutura os efeitos do jacobinismo e do bolchevismo não se beneficiaria de uma experiência do fenômeno da burocracia e não engendraria uma imagem nova do possível e do impossível? 
Chego assim a uma terceira reflexão. Esta concerne à articulação estabelecida por Richir entre a Revolução e o totalitarismo. Se afirmássemos que uma engendra inelutavelmente a outra deveríamos concluir que não há revolução antitotalitária possível ou que ela não serviria senão para reforçar o regime estabelecido. Não é talvez o pensamento de Richir uma vez que apenas toma por alvo a idéia da Revolução jacobino-bolchevique e que está consciente das contradições que trabalham o totalitarismo. Mas então mais vale dizer claramente que a crítica da mitologia revolucionária, do fantasma da “boa sociedade”, da sociedade sem divisões, deixa em aberto a questão da Revolução. 
Eu me espantava, antes de ouvir Akos Puskas, que nenhuma referência fosse feita às sublevações de que a Europa do Leste foi teatro e, principalmente, à Hungria. Sua intervenção é preciosa porque chama a atenção para os traços específicos da revolução antitotalitária e tenta mostrar que esta reata com a revolta (já disse porque este termo, definitivamente, não me parecia pertinente, mas pouco importa...) manifestando uma sensibilidade nova para com os efeitos destruidores da ideologia revolucionária (o que ele chama de revolucionarismo). Não é o lugar para nos estendermos sobre o 
fenômeno húngaro. Contudo, importa sublinhar brevemente um duplo aspecto. 
De um lado, a revolução apresenta-se sob os traços que mencionei: é uma revolução plural que passa por múltiplos centros; desenvolve-se nas fábricas, na Universidade, nos setores da cultura, no da informação, vê a proliferação de comitês de fábrica e de sovietes locais, de associações diversas, de partidos políticos, de assembléias. Esse processo selvagem se parece com todos aqueles conhecidos pelo primeiro quarto do século. As formas de organização e os métodos de luta próprios ao movimento operário são espontaneamente “reencontrados”. Espontaneidade tanto mais espetacular porque a presença dos exércitos russos impede, em larga medida, a coordenação das iniciativas no conjunto do país. 
Mas, fato novo e bastante notável: de todos os lados manifesta-se a procura de um novo modelo político que combinasse vários tipos de poder e impedisse assim que um aparelho de Estado se solidificasse e se destacasse da sociedade civil. Deseja-se um Parlamento eleito pelo sufrágio universal (cuja eficácia seria garantida pela existência de múltiplos partidos em competição), um governo eleito por ele e permanecendo sob seu controle; deseja-se uma federação de conselhos operários que dirija os negócios econômicos nacionais — o que, evidentemente, lhe confere um papel político —e deseja-se também sindicatos democráticos que defendam os interesses específicos dos trabalhadores face aos órgãos socialistas dirigentes, isto é, face ao governo e face aos próprios conselhos. Simultaneamente deseja-se devolver à justiça, à informação, ao ensino, a cada setor da cultura, sua autonomia. Em suma, procura-se a fórmula de uma democracia socialista, infinitamente mais extensa do que jamais o foi a democracia burguesa. 
A meus olhos não há nada que nos informe melhor sobre a inspiração da revolução húngara que a discussão sobre a função dos conselhos operários quando da Assembléia Constituinte do conselho central de Budapeste. Prevalece a tese de que os conselhos, assumindo de imediato a responsabilidade política em escala nacional, devem abster-se de reivindicar todo o poder no futuro regime sob pena de se exporem a recriar as condições do totalitarismo após terem destruído o monopólio do Partido Comunista. A compreensão do perigo burocrático me parece, aqui, achar-se no seu mais alto 
grau, nessa assembléia operária que acaba de dar o máximo de atenção para o problema da representatividade de seus membros e que se recusa a confundir, de maneira geral, democracia e representação, que reconhece que a primeira supõe uma diferenciação das fontes de autoridade e um jogo entre direitos específicos. 
Estas indicações são, por certo, rápidas demais, porém eu queria assinalar que a revolução húngara, enquanto revolução espontânea, plural, desembocou imediatamente no problema da constituição geral da sociedade (constituição não sendo tomada numa acepção jurídica, ainda que a preocupação jurídica seja essencial face a um sistema no qual a dimensão da lei foi denegada). Desembocou imediatamente, em outros termos, no problema político e procurou a ele responder inscrevendo, projetando no espaço institucional os sinais da descompressão do social que ela instaurava por seu próprio movimento. Se nos interrogarmos sobre a revolução é preciso meditar sobre esta experiência, não nos contentarmos em imputar o projeto de revolução à ideologia (o que poderia permanecer sob o domínio da ideologia, numa posição complementar do revolucionarismo) mas nos aplicarmos em conceber a figura do novo. 
["A invenção democrática" ] 
  

Faleceu Claude Lefort, filósofo pioneiro em denunciar os totalitarismos
O filósofo francés Claude Lefort (foto), pioneiro na denúncia dos totalitarismos, faleceu no dia 3 de outubro, aos 86 anos. Colaborador da revista Les Temps Modernes até entrar em choque com Sartre pelo compromisso deste último com os comunistas e cofundador, junto com Henri Lefebvre e Cornelius Castoriadis, do Socialismo ou Barbárie, desde jovem esteve próximo ao marxismo, influenciado por seu mestre Maurice Merleau-Ponty.

A reportagem é de Paula Chouza, publicada no jornal El País, 18-10-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Lefort equilibrou em sua carreira a pesquisa e o ensino: foi professor no Liceu de Nîmes e depois no de Reims (1949-1951); foi professor da Universidade de São Paulo, no Brasil (1952- 1953); assistente na Sorbonne (1953-1955); diretor do departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade de Caen (1965- 1971); e diretor de estudos na École des Hautes Études et Sciences Sociales (1975- 1989).

Nascido em Paris em 1924, apesar de suas origens marxistas, envolveu-se, no final dos anos 40, na criação do grupo Socialismo ou Barbárie, que posteriormente lançou uma revista homônima, que surgiu na ruptura com o movimento trotskista. Esse afastamento se tornou definitivo quando descobriu "O Arquipélago Gulag" de Alexandr Solzhenitsin, sobre o qual escreveu o artigo "Un homme un trop".

Alguns dos campos de estudo de Lefort são a obra de Maquiavel e o humanismo florentino; a problemática da servidão voluntária e a imagem do corpo; o fenômeno da burocracia; o totalitarismo; a reelaboração da democracia moderna ou os caminhos abertos pela obra de Merleau-Ponty.

Por ocasião da publicação na Espanha de "O Enigma da Democracia", em 2005, Fernando Sabater o descreveu em um artigo do suplemento Babelia do El País como um pensador antitotalitário. "Foi o primeiro a denunciar o totalitarismo como a praga política do século XX, tanto na direita – o que era comumente aceito – como na esquerda, o que causava escândalo".

Ele reconhece que a sua obra havia tido, até então, um reconhecimento injustamente escasso na língua e na bibliografia espanholas. "O parcial obscurecimento de Lefort se deve ao fato de ele ter cometido um dos pecados intelectuais mais difíceis de perdoar: teve razão antes que a maioria e contra a opinião da maioria", concluía Sabater.

Em seu pensamento, o filósofo estabelece vínculos muito fortes entre o fenômeno totalitário e as carências da democracia. O Le Monde, em referência à sua obra "L`invention démocratique: les limites de la domination totalitaire" [A invenção democrática: Os limites da dominação totalitária], afirma que, para ele, "a democracia, fruto da história, é uma sociedade `sem corpo`, onde reina uma radical indeterminação, em constante desequilíbrio e que exige de todos a invenção". "A democracia não era `boa por natureza` e não garantia espontaneamente liberdade e justiça a todos os cidadãos".

O próprio Lefort refletia no El País em dezembro de 2001 sobre as causas e as consequências da situação internacional após os atentados do 11 de setembro. "Pela envergadura de sua rede, pela importância dos meios de que dispõem, pelos capitais com os quais lidam, Bin Laden e os seus irão marcar o processo de globalização. Principalmente, se os norte-americanos e os europeus não são capazes de conceber uma política de longo prazo", afirmava.

Sobre a resposta dos EUA após o ataque, acrescentava: "Estou em completo desacordo com as declarações estúpidas de certos esquerdistas que dizem que não se responde à violência com violência. É elementar que não havia outra resposta a não ser a violência".

E expressava sua concordância com a opinião de Michael Walzer, especialista em filosofia política: "Uma guerra pode ser justa e ser conduzida de uma maneira injusta".