sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

PABLO CID


Pablo Cid
(Moacyr Rosas)
As amazonas amerígenas
(Rio de Janeiro, Bruno Buccini, 1971)




 A LENDA DAS AMAZONAS AMERIGENAS que está no fôro da inteligência humana paramentada de mirífica fantasia, tem fascinantemente empolgado sempre espíritos de formoso saber científico e literário, como o de Alexandre Von Humboldt e de Carlos Maria de La Condamine. A sua existência é um caso labirintado que não nos deixa tirar uma conclusão lógica, pois tôdas as tentativas nesse sentido oferecem ao nosso juízo a impressão de um pêndulo, que oscilasse entre duas poderosas opiniões, sendo fácil portanto, aceitar qualquer delas.
Esta peremptória afirmativa não nos inibe de tentar uma honesta investigação.
Bilac, o primoroso poeta patrício, numa página de deliciosa prosa sobejamente conhecida, comenta:

“Esta lenda é uma ressurreição de uma das velhas tradições helênicas. As Amazonas, segundo Heródoto e Plínio, eram mulheres guerreiras, fabulosas cavaleiras, que viviam em nação misteriosa, na Capadócia, às margens do rio Termodoonte. Hércules venceu-as e destroçou-as, e aprisionou a sua rainha, Antíopa ou Ripólita, dando-a em casamento a Teseu. Foi Francisco D’Orellana, aventureiro espanhol, companheiro de Pizarro, primeiro explorador do Amazonas, em 1541, quem encontrou ou sonhou encontrar nas margens do grande rio as Amazonas americanas. Pizarro incumbira Oreilana de descer até o mar a prodigiosa corrente, descoberta por Pinzon e então denominada Mar-dulce. O fim da expedição era o achamento da magnífica região do Eldorado. Essa viagem foi uma estupenda sortida de heroismo alto. Durante muitos meses de combates, de misérias, de fadigas, de fomes, procurando, cada dia ao alvorecer, avistar as tôrres e as armaduras de ouro do país fantástico, Orellana e a sua bandeira percorreram 1.700 léguas, até a foz do imenso curso. Ao chegar à Europa, Orellana narrou o seu encontro com as belicosas índias, cuja existência, ardentemente discutida, foi afirmada e negada, durante muito tempo, por viajantes e geógrafos. As Amazonas brasileiras eram, segundo uns, brancas louras; segundo outros, morenas e de cabelos negros; e eram fortes e belas, ágeis e valentes, zelosas da sua independência; e tinham costumes extraordinários. Ouvi, textualmente, o que delas disse o padre Simão de Vasconcelos, autor da “Crônica da Companhia de Jesus no Estado do Brasil”: há outra nação de mulheres monstruosas no modo de viver (são as que hoje chamamos Amazonas, semelhantes às da antigüidade, e de que tomou o nome o rio), porque são mulheres guerreiras, que vivem por si sós; habitam grandes povoações de uma província inteira, cultivando as terras, sustentando—se de seus próprios trabalhos ; vivem entre grandes montanhas; são mulheres de valor conhecido, que sempre se hão conservado sem consórcio ordinário de varões...”
Tal é a lenda das Amazonas brasileiras. “Não é possível que Orellana tenha inventado de todo esta fábula. É possível que o aventureiro espanhol tenha visto, entre os índios que o guerreavam, algumas índias, e tenha acreditado que a multidão dos combatentes fôsse exclusivamente composta de mulheres; ou, talvez, como acreditam alguns escritores, êle tenha combatido com tribos de Omáguas ou Cumurus, todos homens, mas que pelo seu aspecto ou vestuário lhe tenham parecido mulheres; ou, ainda, talvez, como acreditava o padre Ivo d’Evreux, existiram realmente no Amazonas tribos só de mulheres, da raça dos Tupinambás, que, fatigadas do cativeiro em que os seus maridos as retinham, dêles se separaram e viveram à parte das outras tribos. .

Outro, Karl Von Den Steinen, que se deixara maravilhar com a história destas guerreiras mulheres, tanto que não temeu abalar a reputação de seu nome, disse: —“Ainda quando nunca tivéssemos ouvido falar das Amazonas da antiguidade, eu acreditaria, sem hesitar, nas da América, cuja existência é a mais verossímil”.
Enquanto Barbosa Rodrigues, Alfredo Ladislau, Raimundo Morais e outros negam a veracidade dêsse mito famoso, atribuindo-o a caprichos de fantasia de cronistas primévos.
O primeiro, autor do famoso O Muyrakitã, afirma, naquelas páginas de real erudição histórica, que os índios, que auxiliaram como capitães de grupo (si é que existem entre êles) a horda de aborígenas que ofereceu combate aos espanhóis do bergantim, os quais Orellana e o bom frade Carvajal tomaram por mulheres, sendo os índios aupés, cujo porte, penteado e ar efeminado e o hábito de levarem consigo as suas mulheres ao combate, bem podem ser tomados por evas belicosas. E Raimundo Morais, nem isso admite. Partindo das lendas de terras estranhas conhecidas na Europa, formula assim a sua conclusão:
“Não admira pois que Orellana, quarenta anos mais tarde da descoberta assinalada pelos lusos, para amortecer e apagar talvez a deslealdade cometida ao abandonar Pizarro à fome e ao frio nos alcantis nevados do Peru, inventasse, como incidente teatral da sua descida ao sabor de uma caudalosa corrente, as tremendas Amazonas, que, de arco e flecha, o assaltaram e o escorraçaram rio abaixo. Se na Amazônia já refloriam as histórias do variado folk-lore atual, referto de iáras e botos, de veados e jabotis, de irapurus e curupiras, Orellana juntou-lhe mais esta, reminiscência lendária da Hellade”.

OS SONHOS DOS NAVEGADORES. No século XV, todos os intrépidos nautas tinham na vulcânica imaginação um estranho país, da qual faziam brotar sonhos fantásticos, que animados pela sua tão apregoada paixão das ‘aventuras os impeliam a arrojar-se aos mares bravios, em busca, às vêzes, de ignoradas terras. Os caminhos marítimos seduziram as imaginações dos aventureiros cansados das trilhas áridas dos cavaleiros andantes, que tão sàbiamente o primoroso Cervantes soube aniquilar numa incomparável chacota. Pois as graças escudeirais enfeixadas em tôrno do cavaleiro da triste figura que é o Dom Quizote de la Mancha, fizeram os intrépidos sonhadores trocar o dorso das bêstas pela condução em barcos à vela. Era corrente, naqueles tempos, a imaginária narração do cavaleiro inglês João de Mendeville no Livro das Maravilhas, cuja autoria, na opinião hodierna, pertence ao astrólogo de Lião João de Borgonha. Outra obra que convulsionou a mente da inquieta família marítima, foi o Livro das Maravilhas do Mundo, ditado pelo famoso Marco Polo a Rusticiano de Pisa, que o passou ao idioma de Voltaire, acompanhada a versão, para não se pôr em dúvida o seu cunho verídico, da seguinte nota: “Marco Polo, prudente e nobre cidadão de Veneza, viu tudo isto com os seus próprios olhos, e o que não viu, ouviu-o da bôca de homens de muita verdade”. Marco Polo foi, no conceito do prodigioso romancista Júlio Verne, “o mais ilustre viajante de tôda essa época”.
Outros mais livros, não de tanta monta, que também corriam impressos, e ficaram conhecidos na história com o nome de incunábulos, contribuíram para incitar nos mareantes sua parcela de encorajamento para buscarem seus objetivos.
Voltando as nossas vistas ao descobridor do Nôvo Continente, sabemos que “Colombo e Pinzon, como bem o diz Blasco Ibañez, “Em busca do Grão Kan” eram simplesmente dois sócios com direitos iguais nos lucros da viagem, embora Pinzon tivesse gasto mais que o outro, e se um era almirante, Martin Afonso era o verdadeiro armador da esquadrilha”. Portanto, bem fundados podemos afirmar que para Colombo e seu sócio Pinzon, que ambicionavam o ouro do Grão Kan da China, tinham valor as notícias das curiosas ilhas Macho e Fêmea, das quais nos fala Marco Polo. A segunda era habitada por gente do sexo frágil exclusivamente, que recebia, nos meses de março, abril e maio, visitas dos seus vizinhos, que eram povoadores da outra ilha e viviam a sós. Aqui é fácil deduzir: pois, se tal era do conhecimento da família Pinzon também o podia ser do seu aparentado Francisco de Orellana que, como os demais da mesma lida, trazia o cérebro e o coração repletos de esperanças de realizarem feitos tão’ grandes como aquêles que consagraram Hércules.
E não ‘é ignorado por pessoa alguma afeita a labutar com livros históricos em tôrno da Quarta Orbis Pars, que o próprio Almirante don Cristóbal Colón (grafia pessoal dêle), morreu ignorando a terra que havia descoberto, se o Japão ou a China, ou, ainda, as índias. A respeito de Colombo ter sido influenciado pela obra do nobre viajante genovês, o historiador patrício Mário Ypiranga Monteiro, nega-o em seu precioso livro Quarta Orbis Parsr estribado na autoridade do insigne alemão Humboldt. “Humboldt afastou esta suposição, pondo em dúvida a influência do livro de Marco Polo na grandiosa emprêsa do genovês. Cf. Cristóbctl Colón, I, 53.
Acreditamos no sábio investigador, porque entre os. livros comentados por Colombo não foi encontrado nenhum exemplar das viagens do italiano. A tese de Vignaud caracteriza-se pelo espírito de individualidade que empresta ao descobrimento, dando o marinheiro como pai espiritual da famosa idéia de encontrar um continente, sem a ajuda de ninguém, fôsse de Marco Polo ou mesmo de Toscanelli (Sic)“
Com a transcrição dêstes conceitos do acatado membro da Academia Amazonense de Letras professor Mário. Ypiranga Monteiro, queremos evidenciar o ecletismo, com. que nos comportamos diante dos nossos leitores. Em trabalho desta ordem as afirmativas, mesmo cavilosas, atuam sugestivamente no juízo dos que nos lêem.
 
 

NOTICIAS DAS AMAZONAS AMERIGENAS NA EUROPA. A quem cabe o louro de ter, em primeira mão, levado noticias destas mulheres à Europa?
Segundo o repetido conceito da História, cabe o galardão triunfal a Francisco de Orellana. É uma glória espinhosa essa, pois, tem motivado verdadeiros panegíricos em sua honra, de par com as mais violentas verrinas incendiadas de ódio.
Cabe, em são espírito de justiça, a Colombo êsse privilégio. Porém mais uma vez o almirante Dom Cristóvão Colombo foi logrado. Ainda não passou um indivíduo na história, cujos feitos fôssem tão contestados como os dêsse homem que nem pátria tem, a ponto de se lhe darem duas, para negar a verdadeira. Até ao nôvo continente, sua descoberta, dão o apelido de um mareante embusteiro Américo Vespúcio. Cerra os olhos pensando que as terras encontradas eram complementos das índias. E até às pequenas coisas, a tradição cavilosa sonega-lhe o direito.
Na famosa epístola, cujo original é desconhecido, endereçada ao tesoureiro da monarquia espanhola, de então, Don Raphael Sanches, deu notícia das amazonas, e êsse, por sua vez afirmou: “Estas mulheres não se dedicam a trabalho algum próprio de seu sexo, pois usam arcos e frechas, segundo se disse das anteriores, e se colocam por defesa lâminas de cobre, de que têm em grande abundância”. Aqui, sem desmentir a ardente e imaginosa raça latina, o real tesoureiro deu largas à sua imaginação no que diz respeito aos apetrechos cuprinos.
No curioso Diário da Primeira Viagem de Colombo, Pedro Martin, pormenorizadamente, conta que os amerígenas disseram ao almirante que mulheres sem homens habitavam a ilha de Matityma (Martinica), as quais se defendiam com armas, sem receber comando do sexo forte, e sim, de si mesmas; e foi então que o almirante apelidou-as - amazonas. Eis como se refere a êste passo, na obra citada, Blasco Ibañez: “Além disso interessava a todos conhecerem a ilha de Matinino, tôda ela povoada de mulheres que anualmente recebiam a visita dos da vizinha ilha de Caribe. Se depois da entrevista anual davam a luz meninos, mandavam-nos para a ilha dos homens, se meninas, deixavam-’nas ficar consigo para serem amazonas.
Afirma Hakluyts, citado pelo glorioso Gonçalves Dias, que disseram ao navegante florentino que a ilhota de Madanino (Monserrate), estava povoada exclusivamente por mulheres guerreiras, que passavam a maior parte do ano afastadas do comércio dos homens.
A Espanha, porém, só viera ficar inebriada com as. coisas fantásticas do nôvo continente, após a chegada do homem que a história condecorou com péssimos adjetivos. o capitão Francisco de Orellana. E quem descreveu esta cruciante e assombradora história foi o cronista Fernandez de Oviedo, que teve a oportunidade de ainda se encontrar em S. Domingos e ouvir a narração do próprio herói que, na sua opinião, foi uma das maiores coisas acontecidas a homens e que valia a pena fazê-la. desde logo conhecida na Europa. Na relação apresentada. ao cardeal Bembo — Pietro Bembo, um dos entusiásticos. evangelizadores do neo-platonismo e favorito da estranha Lucrécia Borja, diz, entre muitas outras coisas imaginárias, que aquelas mulheres combatiam em guerra; que viviam a sós sob o comando de uma mulher; que possuiam ambos os peitos e não matavam os filhos, mas entregavam-nos aos pais. Foi aquêle seu depoimento apresentado no dia 20 de janeiro de 1543 e publicado no ano de 1555.
Outro que também muito contribuiu para a divulgação dêste fato lendário foi W. Raleigh, que na curiosa opinião do grande bardo maranhense G. Dias, dava “ao vulgo o maravilhoso, -  para o govêrno o interêsse  - e vara a rainha a lisonja”. Raleigh, nascido em 1552 e decapitado em Londres a 29 de outubro de 1618, dotado de incomum espírito aventureiro, figura galharda e insinuante que se tornou um dos mais ricos magnatas da côrte isabelina, foi favorito da rainha. Esta circunstância perimitiu-lhe com a palavra eloqüente, sugestiva e colorida de que era dotado, dizer nos serões reais que havia ensinado as cunhãs guerreiras a pronunciar o sagrado nome de sua majestade. Aqui fica bem a sentença hugoana: “O cinismo vale tanto quanto a hipocrisia. Humboldt. comentando a astúcia do pirata inglês, disse que isso, sem dúvida alguma, excitara a sensibilidade da vaidosa rainha. “Isabel, — comenta V. Hugo — é um tipo que em Inglaterra, dominou três séculos, o décimo-sexto, o décimo-sétimo e o décimo-oitavo. Isabel é mais que uma inglêsa, é uma anglicana... Isabel traduzia Horácio. Isabel, sendo feia, decretava que era formosa, gostava dos quartetos e dos acrósticos, fazia que as chaves da cidade lhe fôssem apresentadas por cupidos, mordia o beiço à italiana, e volteava as pupilas à espanhola, tinha no guarda-roupa três mil vestuários, entre os quais figuravam vários trajos de Minerva e de anfitrite, avaliava os irlandeses’ pela largura dos ombros, cobria de palhetas de ouro as anquinhas, adorava as rosas, jurava, praguejava, batia o pé, dava murros nas damas de honor, mandava Dudley para o diabo, batia no chanceler Burleigh que chorava como idiota já caduco, cuspia em Mathew, agarrava Hatton pelo pescoço, esbofeteava Essex, mostrava a coxa a Bassompierre, e era virgem”. Ora, numa côrte que tinha uma rainha desta têmpera a palavra de um cínico encantador como Raleigh só podia ser acatada festivamente. Dêsse modo, a notícia das amazonas amerígenas pronunciarem o nome real, constitui uma nota sensacional nos meios palacianos.
Até esta altura os dados advogam a favor de Orellana, como não sendo êle o criador do mito, do embuste ou coisa que o valha. Se o ter compartilhado é razão suficiente para o acoimarem de mentiroso como até aqui tem procedido a posteridade para com êle, é oportuno que nos precatemos com a sentença de Montesquieu: “Uma injustiça feita a um só é uma ameaça feita a todos”.. Isto para evitar que continuem os historiadores a enxovalhar-lhe o nome, fundado neste motivo injusto. Robertson Works, em uma das páginas de sua História da América, taxa aquela narração de artifício de um aventureiro Gómara, depois de aniquilar as suas marcantes qualidades, classifica-o, com seu terrível e convincente estilo, de infiel e de mentiroso. Sant’Anna Nery, no seu citadíssimo Le Pays des Amazones, no mesmo rítmo, também crimina-o de traiçoeiro e de desumano; “Orellana se débarrasse de ces braves gens qui n’étaient pas faits pour le comprendre”. “L’un de ces infortunés était un domificam, Gaspar de Carvajal l’autre, un hidalgo de Badajoz, Hernando Sanches de Vargas”. Hoje, porém, tal juízo é integralmente refutado pela leitura da Relação do frade dominicano Gaspar Carvajal. Referindo-se a êste documento, A. Santa Rosa em sua História do Rio Amazonas (Pará 1926), diz: “a luz se derramou em orros sôbre fatos, e a memória de Orellana tem-se imposto à consideração mais condigna do renome da gloriosa aventura”.
Acuña, que viera a estas plagas um século após Orellana, defende-o, despido de qualquer paixão. Apreciêmo-lo na tradução do distinto escritor patrício C. de Mello Leitão: “não me persuado de sua nobreza, nem é crível que tendo êste rio tantas grandezas a que pudesse lançar mão, baixeza ordinária de quem, não podendo por seus braços alcançar a honra que deseja, procura mendigar a do vizinho”.
Em suma, se fôsse criação do cérebro de Orellana —a lenda das Amazonas amerígenas — seria caso para lhe consagrarmos admiração. Pois se há mentira construtora, esta foi uma feliz e maravilhosa mentira! Ela tem dado à mesopotâmia brasileira um comprovado prestígio nas esferas pensantes dos povos cultos. Para não apontar quantiosos nomes de talentos que se deixaram impressionar por ela, basta recordar: o citadíssimo La Condamine e Humboldt, cujo gênio está eternizado em suas obras como se fõssem letras de ouro em páginas de bronze.
REGIÃO DO FAMOSO REINO — A grande senhora na língua dos naturais era Coniupuiara e a capital de seu império chamava-se Caranai, onde eram as “casas assoalhadas no solo até meia altura e que os tetos são forrados de pinturas de diversas côres, que nestas casas têm elas ídolos de ouro e prata para o serviço do sol” (Carvajal).
Por falar em reinado destas mulheres, não será desoportuno lembrar que os indianos denominavam o país, no qual elas habitavam, Striradjya.
Porventura em que paragens, na Hiléia Amazônica, se ergueu tão civilizado e tão rico império? Se penetrarmos’ em meticulosa pesquisa, deparar-se-nos-á alabirintada perplexidade. O livro do padre Cristobal de Acuña. por exemplo, ao qual La Condamine dá excessivo crédito, assegura de modo convicto: “Os fundamentos que há para assegurar Província de Amazonas neste rio (o Amazonas) são tantos e tão fortes, que seria faltar à fé humana o não lhes dar crédito”.
Orellana informou sua localidade, entre a foz do Rio Negro e a do Rio Xingú. O padre Carvajal que o acompanhou, dá o senhorio das amazonas estendendo-se da foz do Yamundá a “umas sete jornadas da costa”, e escreveu apoiado na autoridade do natural Carauari. Nas mesmas imediaçôes, Acufia também o situa “entre grandes montes e altíssimos cerros, dos quais o que mais se alteia entre os outros, e que, como o mais soberbo, é combatido dos ventos com mais rigor, pelo que sempre se mostra descalvado e limpo de vegetação, se chama Ycamiaba”.
O autor do famoso Muyrakitã conta-nos: “Para mim, a tribo dos Uaupés é a célebre conhecida na história pelo das Amazonas, encontradas por Francisco Orellana. A tradição que existe entre uaupés, hoje habitantes do Alto Rio Negro, de que outrora habitaram as amazonas do Amazonas, que deixaram obrigadas por uma grande inundação, concorda com o lugar que descobri na costa do Peru entre os rios Yamundá e Trombetas, que denominei Tanakuera das Amazonas; por aí, segundo a história, Orellana viu as Amazonas”. E adiante conclui: “Se a história e a tradição não falham, aí foi a aldeia das Amazonas, porque lá encontrei os muyrakytãs e fragmentos da rocha de que são feitos, ‘assim como também aí foi achado o ídolo amazônico
Raleigh informou que o reino das mulheres sem macho demorava próximo ao rio Tapajós, onde depois de quase dois centenários La Condamine encontrou os maravilhosos amuletos. Êsse mesmo diz também que os silvícolas de Caiena lhe informaram que elas moravam ao redor das formidáveis quedas do Oiapock.
O missionário padre Gili pretendeu que tal império ficava no rio Cuchivaro, razão por que, os descendentes delas — dos aikeambenamos (mulheres vivendo só), deram à sua nova habitação, um afluente do Rio Orenoco, o nome de Cuchivaro.
O renomado viajante Carlos Maria de La Condamine soube, por informação de um velho soldado da guarnição de Caiena, que havia, numa viagem de pesquisa, penetrado até os Amicouanes, nação de largas orelhas que vive acima das nascentes dos Oiapock, que as Cunhantainsecuima, eram mulheres “que não tinham marido, cujas terras demoravam a sete ou oito dias de jornada para o lado do Ocidente”.
Em face de tantas e variadas informações não podemos, de maneira alguma, firmar um juízo concludente e positivo. Nesta altura avanço: o contemporâneo que localizar o célebro reino, ainda que fundado nos recursos de sensata lógica, pode, após pequeno raciocínio, ser aniquilado. O material literário, embora um pouco raro, sôbre as amazonas ameríndias, é vastissimo. Dentro dêste, flagrantemente, se entrechocam abalizadas opiniões, das quais, não poucas pertencem a homens cujo áureo nimbo eviterno lhes circunda o nome.
Há escritores que, soltando rédea à imaginação, crêem que Ofir e Parvain estão localizados aqui no Brasil. “Kavila e Ophir são dois irmãos, comenta Ulysses de Pennafort, isto é, dois países vizinhos, situados um ao norte, e outro ao sul. Na região do Norte, que é Ophir, Souffa ou Separará, é onde habitavam as Amazonas. Estas Amiçuanas constituiam aquela célebre tribo composta de mulheres de orelhas compridas que demoravam no país dos Ycamiabas, nos montes Cunurêz além das cabeceiras do Oiapock, e junto às nascentes do Essequibo e Caciquiari, que comunica o rio Orenoco com o Amazonas”. E uma das razões do autor está apoiada no fato de Orellana haver chamado as aguerridas mulheres de amazonas, querendo só por isso explicar que elas são descendentes das~ antigas, e herdeiras legais da ousadia e riqueza.
AMAZONAS AMERÍGENAS E SEUS SINÔNIMOS Têm sido também objeto de polêmica ou de pesquisa o vocábulo amazonas e os sinônimos por que são conhecidas as mulheres do famoso gineceu amerígeno. Antes de mais nada devemos salientar ser infundada a etimologia da palavra amazonas, como oriunda da língua de Homero: o privativo a e o substantivo mazôs — têta, mama, peito, ou seios, sem seio, isso porque supunham que elas sacrificavam o seio direito. Ou como querem os lexicógrafos helenistas: a priv. sem e mazós — petite sem. Enquanto Chassango dá a tradução da raiz alterada: “femme privée d’un sem”. A origem e composição desta palavra é discutida por outros autores de nota. E. Littré, o notável erudito francês, é um dos que afirmam: ‘t. mot d’origine fort incertaine”. E diz mais: tôdas essas etimo]ogias são incertas; e é possível que amazonas seja qualquer nome geográfico, ou qualquer têrmo mitológico, cuja etimologia é hoje desconhecida”. (Dictionnaire de La Langue Française).
Escutemos agora, a respeito, a opinião do notável cônego Raimundo U. Pennafort: — “Eu julgo também que êste nome vem do mesmo grego amaxon, amaxion, amacion, que significa: petit chariot (pequena berlinda) tíma espécie de carro de quatro rodas de que se serviam as amazonas asiáticas” (Brasil Pré-Histórico). Vejamos agora a opinião de A. Lettere (Jesus e sua doutrina, Rio, 1934), que se apóia na autoridade ilustre de Fabre d’Olivet (Histoire Philosophique du Genre Humain) Amazonas (Ramas — Ohne) que significa — sem macho. Esta palavra compõe-se de raiz mãs em latim, maste em francês arcáico, — maschio em italiano, moth em irlandês. Ohne é a negativa de onde mas-ohne, ao que o fenício aplica o artigo ha, donde, portanto: sem macho
“A palavra Amazonas nem é de origem grega propriamente dita, nem tão pouco devêmo-la ao tal Orellana, que tudo falou de outiva. O vocábulo Amazonas, adulterado como se acha hoje, é originário das línguas americanas, que por seu turno promanam das línguas semitas ou arianas, como vamos demonstrando”. E em uma nota acrescenta o mesmo escritor: “Eu admito o fato histórico das Amazonas brasilenas, porém, com os seus nomes próprios e bem significativos de Ycamiabas, nome sânskrito, de gsamicaka, ‘ysamicábas, (de ay priv. e samikabo, sem união de sexos) ; os arianos dizem ayas-gant, ysctmodjana (sem união de sexo) donde a palavra indígena —amicuanes e Aykabeninos, do mesmo sânskrito manusa-y’akeneana, isto é, mulheres que não têm marido, que vivem sós”. (Pennafort).
Referente ao têrmo amazonas, como ficou dito em capítulo anterior, tal expressão não foi pronunciada por índio algum, como em lamentável equívoco, refere o nosso acreditado historiador Visconde de Porto Seguro ao anotar as Descrições de Maurício de Heriarte, em 1871. Aliás não fui eu o Colombo desta observação, e sim, a menos que me falhe a memória, o escritor Cândido de Mello Leitão.
Ë também muito vulgarizado o têrmo Icamiaba, e conjetura-se com possíveis razões, que tal têrmo foi dado a estas belicosas mulheres por motivo de seu reino estar situado à orla da Serra Itacamiaba, aliás Itacamiúua (grafia muito mais corrente) conhecida também pelo nome de Yaci-taperê (aldeia da lua), sita às margens do Rio Jamudá. Pode ser no rigor etimológico uma palavra composta de quatro desinências: ita caa meen anã (a pedra da mato sôbre a qual se entregam), a qual, sofrendo várias influências das figuras metaplásticas, se reduziu respectivamente: Itacamenaua, Itacamenaba, Itacamiaba, Icamiaba. Além daquele significado há mais o seguinte:
pedra peito de gente. Pode-se ainda decompô-la doutras. maneiras mais, a saber: Camby (icami) — leite, ana (aba) — quem, logo: leite de gente. Mas outra forma de decomposição se nos apresenta: Cama, peito (da mulher) iaba, o que se diz, logo: seio falado. O distinto naturalista patrício J. Barbosa Rodrigues (O Muyrakitã, 11 parte),. que tentou provar que a civilização precolombiana descendia de outra de continente civilizado e até para o nosso discutido problema, ora à balha, encontrou uma significação idêntica a do propalado vocábulo helênico amazonas. Vejâmo-la: Ycamiaba, v-ela, cam-seio, ninão, aba-qua (pre’ posição verbal): a que não tem seio. Além destas, podemos trazer mais uma de duvidosa origem, como anteriormente vimos na transcrição que fizemos em linhas acima da autoria do cônego Pennafort.
Examinemos a outra expressão — Cunhátesecuyma (mulher sem marido), cog-mantain-secoima; ambas têm. a mesma tradução e foram grafadas pelo célebre viajante e cientista francês La Condamine, na página 104 de sua monumental obra Relation d’un voyage fait dans l’interieur de l’Amerique Meridionale (Paris, 1745). Em torno do primeiro têrmo o sr. Ângelo Guido em seu livro editado pela Livraria do Globo, opina que aquêle escritor “não tenha grafado com segurança a denominação dada às amazonas pelos índios que ouviu. Talvez tivesse proferido cunhantãs-secó-imas (o grifo é meu), unia vez que secô, como recô é o mesmo que tecô, isto é, uso, costume.
É provável também que da fusão das três palavras que compõem a expressão com que eram designadas aquelas mulheres resultasse cunhãtesecuimas. Entretanto, decomposta a expressão, resultará, como já fizemos notar, mulheres-lei-sem, e não como interpretou La Condamine, mulheres sem marido, pois que marido, em nheengatú, é mena e menasaraima quem não é casado ou casada. Logo, “mulher sem marido” devia ser cuuhãs-menasara,-imas e não cunhãtesecuimas”. Aqui peço vênia ao apreciado escritor para uma pequena observação, e esta, aliás, devo ao saudoso e culto amazonólogo Dr. Octaviano de Mello, “Ita”, no fim das palavras daquele idioma é uma desinência que pluraliza; por conseguinte, aquela pluralização à portuguêsa é errônea. Bom momento para repetir aquela sentença do mestre Horácio: “Quandoque bonus dormitat Homerus”.
Coniupuiára, melhor seria cunhã-pujava ou cunhãpujara, cuja tradução é “Grandes Senhoras”. Êste têrmo foi ouvido e anotado pelo frade dominicano Gaspar de Carvajal.
Aikeambeno, na língua tamanaque, segundo afirma em Saggio di Storia Americana o abalisado padre Salvador Gili, é — mulheres que vivem sós.
Pelo visto, até aqui, a etimologia, sinceramente, não dá margem para conclusões.
MUIRAQUITÃ — Passagem embaraçosa em que os negadores da existência das amazonas americanas esbarram, como diante de um enigma, é a referente ao amuleto muiraquitã.
Esta lenda, colorida num fausto verbal, perturba os que lhe perquirem as origens. Começa por aí a história dos talismãs das amazonas. Na verdade, existem as pedras verdes. Essa côr verde tem um significado melancólico. Parece tomado às nostalgias por lhe faltar o calor que animava as robustas mulheres lendárias. Mas, o verde-pálido não será porventura a côr da saudade.? A côr exata do amuleto é a côr da saudade.
No momento em que escrevo, estamos no segundo quartel do século XX, e é crença que o muiraquitã tem a virtude de dar sorte a quem o trás consigo em um estôjo de prata pura. Outra coisa curiosa a notar é a sua temperatura que lembra a do ouro, também possuidor de temperatura própria.
Em estudos dêste gênero, é imprescindível uma divagação etimológica, enfadonha sem dúvida, mas que nem por isso deixa de ter o seu interêsse.
Vejamos. A esta pedra opaca, côr de alface, chamou-se na Europa Beilestein (que é o resultado da união do silicato de magnésio, cálcio e ferro), variedade compacta branca-esverdeada de actinoto. Tem como sinônimo nefrito, pedra que nossos avoengos das margens do Mediterrâneo usavam como substância terapêutica infalivel na cura de suas cruciantes cólicas renais.
Lá, no velho continente europeu, se propõs e se usou por algum tempo o sonoro vocábulo composto — amazo-nen.stein, que traduz: pedra das amazonas. Aliás não é desoportuno, aqui, fazer uma ligeira referência às amazonas da antigüidade. Esta pedra de que ora se cogita. não tem nenhuma relação com o mineral que usavam as citas, aquêle curioso bando de mulheres que, deixando os maridos, assentou moradia nas ribas do sinuoso Termodonte, em Capadócia, e que era denominada por Plínio e Teofraste de — “esmeralda”. Era assim que geralmente apelidavam todo gênero de pedra verde, quer fôsse trans-lúcida ou opaca. Isso apenas elucida que a ignorância não tem idade.
O conde Ermano Stradelli, cujo nascimento numa província italiana foi saudado com festejos populares, contrastando com sua morte ocasionada pelas torturas do mal de Hansen, taciturnamente enlapado na sua dor íntima, escreveu a palavra myrakytan, que não só foi aceita pelos estudiosos, como conquistou popularidade. Dá sua tradução assim: kytái, kytctn, nó de madeira; rnyrá, muyrá, ‘mbyra, árvore, pau, madeira. Já Maurício de Heriarte, acorde embora na tradução, grafa o vocábulo dêste modo: uuraquitan, dando-lhe o gênero masculino.
Outra particularidade digna de nota.
Muiraquitã é o legítimo nome dos amuletos manufaturados em madeira pelos indígenas da estepe verde do continente sul-americano, enquanto que, na realidade, itaquitan é o nome dos talismãs feitos de pedra, e que se têm encontrado com certa abundância. Faz-se-lhes um orifício em um dos extremos, o qual serve para atravessar um fio que é atado ao pescoço. O curioso diante de uma pedra adquirida das mãos dos selvagens pode fàcilmente confundir o itaquitan com o tembetá, que é um bodoque de pedra (artefato arqueológico verde), que os goitacás, tupinambás e tamoios usavam vaidosamente no lábio inferior. Afirma Heriarte que os índios do Maranhão compravam a noiva com pedras verdes denominadas: baraquitãs. Henry Wassen, em seu estudo, reportando-se às arqueológicas rãs verdes da Amazônia e fundando a sua opinião em Franz Heger, afirma que se deve restringir o têrmo muiraquitã, e sõmente aplicá-lo “aos pequenos, furados e, muitas vêzes, zoomórficas pendentes de nefrite achados numa área bastante definida ao redor de Óbidos”.
Nas lendas eruditas sôbre as amazonas é comum deparar-se-nos a palavra incáica — Yacumana, que é a mãe do muiraquitã e mora na parte mais íntima do ventre dos .lagos.
O talismã em questão é uma variedade de jade —.a sagrada pedra dos chinos, que Confúcio venerava como símbolo da virtude, O mito ameríndio é algo pitoresco.
• Eis como J. Barbosa Rodrigues, em seu “Muiraicytã”, resumiu a fascinante lenda:
“Diz-se que outrora no lago Yacyuaruá (Yacy: lua; ~uaruá: espelho; o espelho da lua) reuniam-se as amazonas em certa época do ano, em determinada fase da lua, depois de dia de expiação faziam uma festa dedicada à lua e à mãe do muirakitã, que no fundo do lago habitava. Finda a festa, quando as águas estavam límpidas e nelas, como em um espêlho, a lua se refletia, tôdas as amazonas se lançavam no lago e iam ao fundo receber das mãos da mãe do muirakitã os mesmos, com as formas que desejavam. Saíam moles, mas em contacto com o ar endureciam. E esculpiam como desejavam.
Êste amuleto tem um tamanho padrão e nunca se viu, pelo menos que eu saiba, um que fuja a pouco mais ou menos de dois centímetros de comprido por um de grossura, e trazendo sempre em relêvo a escultura de um. animal da selva amazônica, que pode ser uma rã com suas. elásticas pernas encolhidas, veado em fogosa carreira, tartaruga em sonolento repouso, onça, jacaré, e outros bichos de nossa quase insuperável fauna.
Estranho, verdadeiramente inexplicável é o desenho de uma pedra que ainda deve dormir no famoso museu. do Sumo Pontífice Benedito XIV, em Bolonha, representando uma perfeita cabeço de poldro. Ora, o caso é realmente de admirar, pois, como sabemos, tais herbívoros. foram introduzidos nestes pagos sul-americanos por seus. intrépidos colonizadores. O professor Water Spalding,. num estudo moderno de demorada investigação sôbre a. “Origem do cavalo atual”, na América, no Brasil, refutando alguns autores que querem comprovar existências. de eqüinos na América, estribados em vocábulos de que os naturais se servem para denominar aquêle quadrúpede, argumenta:
“Isso, portanto, não prova reminiscência do Equus na América e tanto mais que entre várias tribos andinas,. como brasileiras de Mato Grosso e do Amazonas, não há palavra que designe, ainda modernamente, o cavalo; entretanto, onde cêdo se fêz sentir a influência européia, o cavalo surgiu e, com êle, a designação indígena,. adaptada”.
Heriarte acrescenta: “contas redondas e compridas,. vasos para beber, assentos, pássaros”, e o mais já citado.
“Saiam moles, mas em contacto com o ar endureciam”. A propósito desta frase, diremos que, em sua Histoire Naturelle, Mineraux Du Jade, Buffon afirma que a pedra das mulheres guerreiras do Norte da América do Sul não é um produto imediato e simples da Natureza. A Amazonenstein cuja dureza está entre o quartzo e a.mica, sofre, preliminarmente, o lavor de escultura e levada em seguida ao fogo. Só assim se explica a sua elevada dureza a ponto de não sofrer na superfície os atritos da lima e, unicamente, deixar-se riscar pelo diamante. Omalius supunha-a da hierarquia das sílicas e classificou-a de feldspato compacto. O glorioso Humboldt não lhe aceitou a classificação como uma variedade de jade e nem como sendo feldspato compacto, mas simplesmente  feldspato. Num mais recente estudo, O. Derville encontrou neste minério ora estudado: nefrite, jadeite, yete,. esteatite e quartzo.
Muito se tem escrito sôbre a fonte dos famosos talismãs, sem, contudo, qualquer uma das suposições ter o mérito de ser concludente. Admite-se a forte hipótese de que sua jazida está no Turkestan chinês, sendo sua manufatura destinada a grandes colares que se acumulavam, enriquecendo o patrimônio dos antigos mandarins e do soberano do antiqüissimo império. O famoso etnólogo brasileiro Barbosa Rodrigues fundou sua teoria nesta. conjectura que por sua vez é calcada nos trabalhos do conselheiro Fischer, que explica a vinda de tais amuleto dependurados aos pescoços dos componentes das grandes ondas humanas que desceram das frias escarpas do Tibet, dos gelados dorsos do Pamir e da acidentada Mandchúria e atravessaram a pé enxuto o lugar, hoje denominado estreito de Behring.
A maioria dos amazonólogos, porém, não crêem na. sua descendência asiática, mas amazônica, estando ainda aberta a questão de saber verdadeiramente onde está o seu leito geológico. Este heróico mineral tem sido achado na América do Norte, em algumas paragens da América Central e em muitas regiões da América Latina. Os numerosos talismãs que apresentam a forma de rã tanto se têm encontrado na Venezuela como na América Central. Ora, se êstes amuletos eram presentes que as queridas filhas dos Trópicos davam como mimos, numa concludente prova de alegres afetos daquelas poucas noites passadas em comum, aos bravos selvagens de determinadas tribos, como foi, todavia, possível, aos muiraquitãs locomoverem-se a paragens tão diversas? É certo que a resposta pode ser arquitetada fàcilmente, estribada no fator -tempo. Mas outros pretendem explicar a seu modo. Assim, Heriarte, reportando-se aos contos mitológicos dos Xágaba, explica que a rã verde corria à semelhança de moeda para comprar mulheres. Em Forschungsreise zu den Kágaba, Konrad Theodor Preuss descreve uma interessante lenda da tribo chibcha da Serra Nevada de Santa Marta (Colômbia) em que depois do colorido prelúdio o sol pede em casamento a filha do pajé, e êste, por sua vez exige que lhe pague uma rã de pedra verde e outra de pedra vermelha.
Outros ainda dizem que os chefes dos Tainan usavam-nas para minorar as dores das espôsas durante o parto.
Se estas coisas têm algo no fundo de veracidade, por que não acreditar na sua perambulação? Eu, pelo menos, não me recuso a acreditar. Nem sempre os Tomés são os mais sensatos. O local da origem do artefato, afirma Franz Heger, é completamente desconhecido. No baixo Amazonas, nas proximidades de Óbidos, entre as fozes ~dos rios Nhamundá e Tapajós, perdidos nas alvas e rebulhantes areias das praias do soberbo Amazonas, tem-se descoberto êsse mineral. Eis a razão por que: C. H. de Goeje (Oudheden uit Suriname) acredita: ‘parece bastante seguro que na região do Amazonas, entre o rio Yamundá e o rio Tapajós, havia um centro de distribuição dêsses objetos”.
Fiquemos, pois, com a crença, uma vez que não nos foi possível descobrir a realidade confortadora.
AS MULHERES PRIMITIVAS  Aqui, não será extemporâneo dizer algo sôbre as amazonas primitivas.
Justino, baseado nos documentos de Trogno Pompeu (Hist. L. 2 e 4), conta que Scolopito e Ylinos, príncipes citas, expulsos de sua pátria, foram habitar a Capadócia, à margem do rio Termodonte, com um grande número de jovens que levavam consigo. Constituíram família e foram, um dia, vítimas de uma emboscada preparada pelos seus inimigos. As infelizes viúvas - aqui se iniciam os primeiros dias das amazonas - mataram os poucos homens que lhes restaram, maridos de suas companheiras, as quais a desgraça não havia ferido, para que fôsse a dor igual no coração de tôdas. Então ofereceram combate aos inimigos, a princípio em defesa das fronteiras de suas terras e logo mais para estabelecer a paz. Repudiaram por completo o matrimônio, mas uma vez ou outra permitiam aos vizinhos compartilhar de seu leito. Os filhos, frutos destas aventuras, vinham à luz sob um triste signo: tiravam-lhes a vida logo ao nascer, enquanto as filhas eram educadas para a equitação, para a caça e mormente para as armas. Todavia antes de as entregarem a êste escabroso mister, queimavam-lhes o peito direito para não causar obstáculo algum ao lançamento da seta. Existe também outra versão, segundo a qual os seios das amazonas eram atrofiados através do uso contínuo de um aparelho de cobre, fabricado especialmente para .êste fim. Ângelo Guido, já citado neste trabalho, contraria êste fato, argumentando assim: “Para se ter uma impressão de como os gregos representavam as Amazonas, sem a mutilação do seio, basta passar os olhos nas numerosas reproduções de frisos e estátuas sôbre o assunto, reproduzidas na obra de Salomon Reinach”.
Prosseguindo, todavia, dentro da narração de Justino. As Amazonas fizeram várias rainhas; concluindo a dinastia com Talestris, a qual conseguiu a presença do próprio Alexandre Magno em seu leito durante treze noites, a fim de ter um filho. Foi porém frustrada ‘a esperança. Parca lhe tirou a vida pouco tempo depois. E com ela extinguiu-se o original e turbulento reino. Xenofonte, que viveu antes de Alexandre, fala nas terras em que se acredita que viveram as amazonas, mas não toca,. mesmo de passagem, na existência das mesmas. Será que em sua época eram já uma fábula ou ainda não existiam? Outro fato que milita contra a intimidade de Alexandre e as amazonas é Ptolomeu e Aristóbulo, que acompanharam o insuperável conquistador, não relatarem coisa alguma relacionada com as belicosas cavaleiras, e que consolide a suposição de haver Alexandre passado noitadas em orgia com Minithya, como também chamavam a última soberana das amazonas.
Deodoro de Sicília, historiador grego e coevo de Augusto, nos livros III e V, conta as façanhas dêste exército feminino em várias partes do mundo em que habitaram, enquanto Apolônio — C .1. — explica assim a razão de sua independência: “deusa irritada (Vênus) as tornou aborrecidas a seus maridos, que, abandonando-as, procuraram novos prazeres nos braços das escravas que cativaram; dissolvendo a Thrácia e ardendo de ódio e ciúme, assassinaram os seus próprios maridos e rivais, na mesma noite de infidelidade”. Em tôrno dêste poema, & imortal vate maranhense Gonçalves Dias escreveu que,
à falta de assunto original e empolgante, “Apolônio teve de recorrer ao maravilhoso e sobrecarregar o seu poema de episódios.., e valeu-se da tradição das amazonas, que na ilha Lenos aparece tão fora de caráter.., como as habitantes das ilhas dos Amôres aos companheiros de Gama”.
As amazonas da Líbia (L’Atlantide, de Otto Silbermann, pág. 71 — Cristóbal Colón y El Descubrimiento de América, Humboldt, pág. 163), segundo a tradição, surgiram à margem da Lagoa Tritonida, cuja primeira rainha foi Pallas, filha de Japeto Atlante.
Estas mulheres, um dia, comungando o desejo de sentir a sensação da liberdade, fugiram ao jugo do homem e conservaram a virgindade até certo tempo. Mas quando atingiam a idade padrão de se entregarem ao homem, arranjavam marido que também lhes servia de criado. Era o matriarcado por excelência. É uma aberração da natureza, mas da qual se tem notícia, uma vez ou outra, nestes milênios de história, e que contrasta paradoxalmente com a lenda de D. Juan, e com a existência de Casanova! Os frutos femininos daquelas uniões eram recebidos com indizível alegria: gozavam de todo cuidado materno e eram alimentados com leite de cabra, ao passo que aos do sexo forte lhes inutilizavam os membros, para mais tarde não se tornarem superiores, como era fado da natureza. Quem não se revolta ainda com aquelas cenas imortais do Homem que ri, que foi mutilado pela mão perversa de um anatomista mercenário? Mais dolorosa é esta cena, em que a própria mãe surge como protagonista.
Conta-se também que na Europa, em idade prehistórica, mulheres aboríginas, em grande número, entregues ao culto da Magia, isolaram-se dos homens, ocultando-se à sombra das densas florestas, ou nos antros dos montes lavados pelo dilúvio.
Escondido sob o pseudônimo de Eneas Silvius (*), o papa Pio II escreveu em sua História da Bohêntia (Capítulo VII), que outrora, no século VIII, existia naquele país uma forma de república idêntica à das amazonas, sob a direção da inteligente e ousada môça Valasca, uma. das damas de tylissa, filha de Crocus, rei da Bohêmia. Estas, sob o ponto de vista materno, não ficaram aquém no plano de crueldade às suas antecessoras, pois também recebiam jubilosamente as filhas, e aos filhos lhes vasavam o olho direito e lhes cortavam o polegar da destra para os impossibilitar de entesar o arco. E, além disso, viviam organizadas militar e civilmente.
Agora, é o audacioso e celebérrimo Marco Polo quem vem à balha, informando o imaginoso Júlio Verne, o qual, em seu livro Descoberta da Terra, pág. 89; vol. 1, escreve:
S’•• da Arábia oxide arribou às ilhas Macho e Fêmea, assim chamadas porque uma é exclusivamente habitada pelos homens e a outra pelas suas mulheres, que êles só visitam nos meses de março, abril e maio
Aqui, neste bosquejo, encontram-se quase tôdas as notícias que a História não. esquece, referentes às mulheres de todos os tempos, que se alistaram nas milícias de Marte e sacrificaram ou afetaram sacrificar no culto a Vênus.



(*) Incido no êrro para não quebrar o ritmo histórico de vários séculos, pois o nome verdadeiro dêste historiador foi Enéas Silvio Piccolomini, que exerceu a chefia da Igreja cinco anos, onze meses e vinte e seis dias, com o nome de Pio II.



USOS E COSTUMES DAS AMAZONAS — Um perfume de sedutor mistério paira na história destas mulheres; para tôdas as conjecturas que se imaginam só há uma resposta: reticências e interrogações...
O tantas vêzes citado bergantim “Vitória”, construído à margem do Rio dos Omáguas, comandado por Orellana, desceu “O das águas gigante caudaloso, que pela terra alarga-se vastissimo”, — F. G. Magalhães.
O Mar Dulce,, na expressão de Pinzon, que só vigora historicamente, vinha tripulado, além do comandante, por dois frades, um dos quais era Carvajal, e cinquenta soldados espanhóis. Navegavam em busca de alimento para os numerosos companheiros que ficaram à margem do Rio Omáguas, o qual, na valorosa opinião de Toribio de Medina, é “o Napo no ponto de sua confluência com o Aguarico”. O destino, porém, não quis que o bergantim tornasse ao ponto da partida como haviam combinado. Quanto mais dias se passavam, mais crescia a distância e a fome mais assolava a bordo com o seu horripilante aspecto, como afirma pungentemente o frade: chegamos a tal extremo que comíamos couro, cintas e solas de sapatos cozidos com algumas ervas”. É conhecido de todos que a fome não respeita o direito de propriedade, e mormente propriedade do selvagem. Razão por que vou extrair um trecho da Vida de Cristovam Colombo, de W Irving: “contra os quais tinha de empregar fôrça para obter provisões. Em alguns lugares as próprias mulheres carregavam contra os espanhóis; e esta circunstância deu lugar à fabulosa narração”. Esta foi fantasiada e cunhada como verídica pelo índio Apária (*), a quem Orellana deu grande e até demasiado crédito. Outrossim, não nos devemos olvidar que as perguntas eram formuladas pelos europeus ao seu próprio arbítrio. Tanto assim, que quando interrogaram ao índio trombeteiro, prêso na escaramuça dos brancos e naturais entre Iamundá e Trombeta, sobre as mulheres (* *) que supôs ter visto em terra oferecer combate aos seus; as perguntas eram formuladas a bel prazer e as respostas não se faziam esperar e sempre afirmativas. Destas perguntas houve algumas bem absurdas que foram afirmadas. Entre outras as seguintes: ‘a de andarem vestidas de finíssima (!!) lã; a de terem camelo. 



(*) Apúria, também grafado Aparian ou Parian, segundo a observação de Toribio de Medina, assim chamava-se o selvagem que deu notícia das amazonas, o que fêz acordar a imaginação do aventureiro, cujo espírito errava em mirificantes sonhos de encontrar algo portentoso; era a cobiça de todos os nautas, era o que fazia crescer o número de alienígenas em todos os países. Não obstante, a inferioridade intelectual do índio podia, assim mesmo, sugestionar Orellana; pois a faculdade de sugestionar não é privilégio de raça. “A sugestividade — diz A. Austregésilo — é Laculdade humana predominante”. E acrescenta mais, os sugestionáveis são indivíduos de boa fé.” Orellana, hoje, está quase provado, era um homem bom. Mas os naturais são, em regra geral, uma corja de ladinos. Logo, não é estranho que Apária afirmasse que estivera em terras do gineceu das amerígenas.
(**) A respeito do caráter do indígena meridional eis o que diz Neri Tanfucio, citado por Lombroso em seu famoso El Delito:
“Astutos, mentirosos y timidos, su existencia es una serie de pequeíias fraudes”. Na opinião de Gonçalves Dias: “como crianças, respondem muitas vêzes no sentido em que supõem que desejamos a resposta e prestam fàcilmente seu testemunho a cousas que nunca viram”. Blasco Ibaflez, historiando a descoberta da América diz:
“Êstes eram dados ao exagêro, a responderem afirmativamente a tôdas as perguntas, não mostrando estranheza em presença de qualquer objeto que lhes mostrassem, e assegurando que os havia iguais nas suas terras, mas longe, muito longe, numa região fantástica que, conforme o seu capricho, situavam em pontos diferentes do horizonte”.



.  E, no entanto as que êles viram andavam como nossa mãe Eva. Ei-las aqui, retratadas pelo frei Carvajal, que também foi testemunha ocular: “Estas. mulheres são muito alvas e altas, com cabelos muito compridos, entrançados e enrolados e andam nuas em pêlo tapadas em suas vergonhas...” Não são casadas, mas quando lhes vem aquêle desejo” vão buscar os vizinhos.. à fôrça (!!) ; e depois, se nascem filhas são bem recebidas e se, ao contrário, forem homens, matam-nos ou os devolvem aos pais (‘1)
A ARISTOCRACIA DAS AMAZONAS — “Trazem os cabelos soltos até o chão (*) e postas na cabeça coroas de ouro, da largura de dois dedos” — como pachorrentamente escreve o bom frade espanhol. Tinham bastante fôrça, tanto que causou admiração uma delas meter “um palmo de flecha em um dos bergantins”.
Sôbre o assunto Herrera escreveu que atirar flecha uão é novidade nas índias, como se viu nas ilhas Barlavento, Cartagena, etc. (Hist. de La Decouverte et de La Conquête du Perú — Paris, 1742/4 Cap. II).
Quem primeiro especificou a natureza de sua raça foi Alonso Rojas, que disse serem elas raça superior e também foi o primeiro a afirmar que elas só tinham um seio. Em tôrno de tal assunto industriou-se muita literatura entulhada de fantasias, algumas das quais, descrendo do mito, derramam acusações ao nome de Orellana.



(*) •.. cabelos soltos até o chão.., com esta informação poder-se-ia apurar um dos pontos sólidos para refutar os adversários de Orellana, firmando-se na autoridade do insígne Gregório Maraflon (A Evolução da Sexualidade e os Estados Interseccuais, p. 32): “A longa cabeleira foi sempre de fato um dos caracteres específicos da atração sexual da mulher”. E acrescenta em uma nota à mesma página: “Segundo Bucura os cabelos da mulher podem atingir a altura do corpo, enquanto que os do homem não ultrapassam nunca os ombros”. Segundo Rank, “o comprimento médio do cabelo feminino é de 75 cm, porém, freqüentemente atinge a 150 cm, e mesmo mais (Stratz)”. Sólida teoria; mas com calcanhares de Achiles. É sabido que existia na bacia amazônica uma tribo mais branca que as demais, assim conta Heriarte, e que os aventureiros lusitanos chamaram Encabelados, “por trazerem os cabelos mui compridos em demasia, que às vêzes lhes arrastam pelo chão, assim os homens como as mulheres...



La Condamine não identificou o seu criador, porém acreditava que fôsse criação de europeu o dar-se como hábito daquelas amazonas amputarem o seio direito às filhas. A respeito, um escritor de nomeada, como tivemos oportunidade de dizer em capitulo anterior, assevera que para usar aquêles instrumentos guerreiros não há absoluta necessidade do sacrifício daquele órgão.
Comentando a obra de La Condamine, o celebrado bardo de Caxias adverte: “A cauterização ou amputação do seio era operação cujos perigos mal podiam êles suspeitar, e o próprio Cunha a refere de um modo tão singelo e simples, como se tratasse de aparar unhas ou cortar o cabelo”.
SEUS AMORES — Dando folga à imaginação sôbre os amôres das Icamiabas, alentado volume poder-se-ia escrever. Aqui, todavia, nesta síntese, só pretendemos  essencial.
E para tanto compulsemos obras que digam respeito a tal assunto. Carvajal, como se viu em outro capitulo, diz que tinham comércio com o sexo forte de tempo em tempo. Alonso de Rojas conta que recebiam visita, uma vez por ano, dos índios Omáguas, a qual durava dois meses. Acunã escreveu que tinham comércio com os varões uma vez por ano, e os ditosos favorecidos chamavam-se Guacarás, que em sua obra (Lettres Americaines, Boston, 1788), Caril observa esta curiosa coincidência: a denominação dêstes naturais se assemelha muito com a dos agraciados das antigas amazonas, que, segundo Strabão, era — Gargari.
Agora vejamos o seguinte: na hipótese de que haja veracidade nesta tradição, é absurdo crer-se no regime sexual destas mulheres. Primeiramente, considerando o poderoso fator climático, devemos lembrar-nos que, mesmo em qualquer parte que se localize o reino feminino, está colocado na zona equatorial, cuja fôrça fenomenal é apta em desenvolver tudo com luxuriante beleza e precocidade, quer no reino vegetal, quer no reino animal. As mulheres alcançam a puberdade, nesta região, com menos idade que as outras noutros climas. Depois de algumas considerações, Mantegazza, em seu incansável labor de pesquisar a fisiologia da mulher, expende: “entre todos êstes fatôres o mais eficaz é o clima; pois é certo que, nos países quentes a puberdade •se desenvolve primeiro que nos países frios”.
Isso, todavia, de se tornarem mulheres prematuramente, não quer dizer que fôsse impossível guardar castidade. Isso será talvez exato, porém depois das primeiras relações com o sexo oposto, pois o apetite genital ou libido, ou ainda tumescência só aparece com pronunciado vigor nas mulheres que praticaram o amor real. Porventura esta teoria vai de encontro ao paradoxal conceito do notável sexeólogo G. Marafion: — “O orgasmo é um luxo na mulher, uma necessidade no homem”. Se, na realidade, assim fôsse, muitas mulheres não deixariam periclitar a honra conjugal, para buscar alegria fora de sua alcova. Sabemos também da grande distinção que há entre aquelas e estas, que constituem o firmamento do nosso hemisfério social. Aquelas indubitàvelmente não conheciam muitas noções de higiene, enquanto as nossas se esmeram no culto da pele, o que faz lembrar a afirmação do filósofo irônico de Fèrney: “O zêlo da própria saúde faz mais sensíveis os órgãos da volúpia”. Isso, porém, não debilita o juízo formado em tôrno das amazonas. Aceitemos, agora, porém, ‘a palavra de Lombroso: “La estadística y la fisiologia humanas demuestran que la mayoria de nuestras funciones sufren la influencia del calor”. E mais adiante ‘acrescenta y, por consecuencia, al fanatismo religioso y despótico. De aquI un exceso de libertinaje”...; razão por que, dada a existência delas, não podemos de modo algum aceitar tão proverbial castidade. A natureza tem leis irrevogáveis.
Agora escutemos a espirituosa conclusão que delas tira o grande Montesquieu (.Esprit des Lois, L. 14 Cap. 1): “O certo é que o alvorôço com que elas recebiam os hóspedes, e que Acuiña nos relata, mostra que lhes não era indiferente aquela união”.
Lopez de Gomora, ainda que não fôsse um cientista, era um homem instruído e descrente de muitas coisas atribuidas às Amazonas, como se vê no seguinte período:
“Nem creio que nenhuma mulher queime e corte a mama direita para atirar com o arco, pois com ela o fazem à maravilha, nem creio que matem ou desterrem seus próprios filhos, nem que vivam sem marido, sendo luxuriosíssimas.”
Havelock Ellis, o egrégio sexeólogo, em um dos seus eruditos livros, defende os ameríndios com invulgar brilho e cultura. Diz que, para ser estudado o selvagem, não deve êste ter tido contacto com o civilizado — o semeador de libertinagem. E considera-os mais moderados em suas relações que os civilizados. “A raça é menos lasciva que as raças negras e brancas”. E explica a razão, atribuindo-a em grande parte “às duras condições da vida, assim como a uma qualidade insensível do tecido nervoso”. Não poderemos negar o precioso senso científico que encerra sua teoria, porém não nos satisfaz ao pensarmos em aplicá-la às Icamiabas, cuja riqueza tinha proverbial fama. As da alta estirpe serviam-se em baixeIas de ouro! A construção de suas casas era de pedra. Suas roupas de finíssima lã! E, mais ainda, possuíam escravas; logo, essa gente tinha boa vida e do seu extensíssimo reino, com dezenas de tribos recebia a senhoriagem.
Enfim, mais coerente foi o imortal sábio Humboldt (Voyage aux Régions equinoxiales, Paris 1816, T 8.0) quando, após uma análise do tema, disse: “recebiam depois visitas de algumas tribos vizinhas e amigas, quiçá menos metodicamente do que confessa a tradição”.
Agora, concluindo o presente capítulo, vejamos as palavras do abalizado dr. Alexis Carrel em sua magistral obra O Montem, êsse desconhecido: — “A mulher é~ na realidade, profundamente diversa do homem. Cada célula do seu corpo tem o sinal do seu sexo. O mesmo acontece com os seus sistemas orgânicos, e sobretudo com o sistema nervoso. As leis fisiológicas são tão inexoráveis como as do mundo sideral, e é impossível substituí-las pelos desejos humanos; temos de as aceitar tais quais são
LA CONDAMINE (Relation abrégée d’un vayage fait dans l’interieur de l’Amérique Méridionaie, Paris 1745), o defensor galhardo do sonho de Orellana, buscou em todos os lados abundante documentação, que é, até certa altura, incontraditável. Todavia, Gonçalves Dias, em seu trabalho, “Amazonas”, que, sem favor algum, é o melhor trabalho sôbre tal assunto escrito por brasileiro, contradiz muitos passos da obra do francês; aliás, muitas destas contradições têm sido usadas por escritores nacionais como de primeira mão.
Suponhamos, porém, que as Amazonas tenham existido, para considerar certas originalidades suas, que, não resta dúvida, são genuínas aberrações da natureza.
Exemplos: Oferecer combate aos homens por instinto, sabendo nós que “e sempre o macho — afirma Voltaire — que ataca a fêmea  e com maior particularidade comenta Marafión. “Esta lei não varia dos animais inferiores ao homem: Desde a origem celular da vida — o espermatozóide procura o óvulo”.
Não é fácil também de compreender o motivo delas atrofiarem, ou cauterizarem, ou ainda mutilarem o seio direito, visto que êste em nada lhes obstava o uso das suas rudes armas.
Quanto aos filhos que, segundo uns, elas matavam, observa Gonçalves Dias: o infanticídio é um ato que repugna à natureza. E no caso de entregá-los aos pais, só o  faziam no ano seguinte; tinham, então, três meses. E como se explica o resto, se êles não possuíam mulheres para cuidar dos recém-nascidos?
Pergunta Gonçalves Dias: se fôssem elas fecundadas no mesmo período do ano, caso aliás possível, como poder-se-iam defender de uma agressão dos seus inimigos nos últimos meses de gravidez?
Conversando certa vez com um etnólogo ilustre, Professor Harald Schultz, a respeito destas mulheres, êle, a dado momento, ex-abrupto inquiriu:
- Voce crê na existência das Amazonas?
Vacilei e demorei um pouco a resposta. Ora, eu tinha escrito êste trabalho, justamente para provar que foi uma realidade a existência das amazonas amerindias. Moveu-me o desejo, antes de encetá-lo, de apresentar provas irrefutáveis, não arquitetadas por mim, mas fundadas em fatos. Que encontrei? Sábios e escritores com opiniões divididas: muitos dando crédito e alguns negando. Como história, todavia, não é dogma que se fundamenta na crença para aceitar ou não, minha opinião, depois desta cansativa pesquisa sôbre as amazonas, nada pode significar. E noto ainda: quanto maior é a distância da época em que a notícia de seu reinado adveio ao conhecimento da cultura européia, tanto mais os perquiridores vão tornando-se indecisos. Humboldt, La Condamine, Steinen não encontraram provas concludentes, mas se declararam inclinados a aceitá-las. Já não se deu o mesmo com os poetas de raça, tais como Gonçalves Dias e Olavo Bilac, que trataram o assunto como lenda. E eu que estou mais distante ainda, devendo por isso mesmo ser mais cauteloso, respondi, então, ao Dr. Harald Schultz:
- Não.
- Pois eu creio.  Afirmou o ilustre etnólogo.
‘E explicou-me que a região, onde se acredita tenha existido o império das amazonas, é desconhecida e ainda não explorada. Vinte anos na selva, em completo abandono, seriam bastante para sepultar qualquer cidade. Um silvícola disse-lhe uma vez que sabia onde estavam as ruínas de tal reinado. Mas, como êle estava de regresso a São Paulo, não pôde verificar a região apontada pelo amerígina. Tempos depois, procurou o aborígina e não o encontrou. Assim, o etnólogo ficou com a crença de que existiram as Amazonas ameríginas, e nós com a convicção de que elas constituem apenas uma fábula encantadora. 

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

SARTRE







"Que é escrever?", por Jean-Paul Sartre.


"Fala-se, por exemplo, em linguagem das flores. Mas depois de estabelecido um acordo, se as rosas brancas para mim significam “fidelidade”, é que deixei de vê-las como rosas: meu olhar as atravessa para mirar, além delas, essa virtude abstrata; eu as esqueço, não dou atenção ao seu desabrochar aveludado, ao seu doce perfume estagnado; não chego sequer a percebê-las. Isso significa que não me comportei como artista. Para o artista, a cor, o aroma, o tinido da colher no pires são coisas em grau máximo; ele se detém na qualidade do som ou da forma, retoma a elas mil vezes, maravilhado; é essa cor-objeto que irá transportar para a tela, e a única modificação por que a fará passar é transformá-la em objeto imaginário. Ele está, portanto, muito longe de considerar as cores e os sons como uma linguagem [1]. O que vale para os elementos da criação artística vale também para as suas combinações: o pintor não deseja traçar signos sobre a tela, quer criar [2] alguma coisa; e se aproxima o vermelho do amarelo e do verde, não há razão alguma para que o conjunto possua um significado definível, isto é, para que remeta especificamente a algum outro objeto. Sem dúvida esse conjunto também é habitado por uma alma, e já que o pintor teve motivos, mesmo que ocultos, para escolher o amarelo e não o violeta, pode-se sustentar que os objetos assim criados refletem as suas tendências mais profundas. Só que jamais exprimiriam sua cólera, sua angústia ou sua alegria do mesmo modo que o fariam as palavras ou a expressão de um rosto; estão impregnados disso tudo; e por terem penetrado nessas cores, que por si mesmas já possuíam algo como um sentido, as suas emoções se embaralham e se obscurecem; ali ninguém será capaz de identificá-las com clareza. Aquele rasgo amarelo no céu. sobre o Gólgota, Tintoretto não o escolheu para significar angústia, nem para provocá-la;· ele é angústia, e céu amarelo ao mesmo tempo. Não céu de angústia, nem céu angustiado; é uma angústia feita coisa, uma angústia que se transformou num rasgo amarelo do céu, e assim foi submersa, recoberta pelas qualidades próprias das coisas, pela sua impermeabilidade, pela sua extensão, pela sua permanência cega, pela sua exterioridade e por essa infinidade de relações que elas mantêm com as outras coisas; vale dizer, a angústia deixou de ser legível, é como um esforço imenso e vão, sempre interrompido a meio caminho entre o céu e a terra, para exprimir aquilo que sua natureza lhes proíbe exprimir. Do mesmo modo, o significado de uma melodia – se é que neste caso ainda se pode falar de significado – não é nada mais que a própria melodia, ao contrário das idéias, que podem ser traduzi­ das adequadamente de diversas maneiras. Diga que a melodia é alegre ou sombria; ela estará sempre além ou aquém de tudo quase possa dizer a seu respeito. Não porque o artista tenha paixões mais ricas ou mais variadas, mas porque suas paixões, que talvez estejam na origem do tema inventado, ao se incorporarem às notas, sofreram uma transubstanciação e uma degradação. Um grito de dor é sinal da dor que o provoca." 



 Que é escrever?


Jean-Paul Sartre.*

Nós não queremos “engajar também” a pintura, a escultura e a música, pelo menos não da mesma maneira. E por que haveríamos de querer? Quando um escritor dos sé­culos passados expressava uma opinião sobre seu ofício, por acaso se exigia dele que a aplicasse às outras artes? Mas hoje é elegante “falar de pintura”, no jargão do músico ou do li­terato, ou “falar de literatura”, no jargão do pintor, como se no fundo só existisse uma única arte, exprimindo-se indiferen­temente em qualquer dessas linguagens, à maneira da substância spinozista, que cada um de seus atributos reflete com ade­quação. Pode-se encontrar, sem dúvida, na origem de toda vocação artística, uma certa escolha indiferenciada que as circunstâncias, a educação e o contato com o mundo só mais tarde irão particularizar. Também não há dúvida de que as artes de uma mesma época se influenciam mutuamente e são condicionadas pelos mesmos fatores sociais. Mas aqueles que que­rem provar o absurdo de uma teoria literária mostrando que ela é inaplicável à música devem antes provar que as artes são paralelas. Ora, esse paralelismo não existe. Aqui, como em tudo o mais, não é apenas a forma que diferencia, mas também a matéria; uma coisa é trabalhar com sons e cores, outra é expressar-se com palavras. As notas, as cores, as formas não são signos, não remetem a nada que lhes seja exterior. Sem dúvida, é impossível reduzi-las estritamente a si mesmas, e a idéia de som puro, por exemplo, é uma abstração; como demonstrou muito bem Merleau-Ponty na Phénoménologie de la perception [Fenomenologia da percepção] , não existe qualida­de ou sensação tão despojadas que não estejam impregnadas de significação. Mas o pequeno sentido obscuro que as habi­ta, leve alegria, tímida tristeza, lhes é imanente ou tremula ao seu redor como um halo de calor; esse sentido obscuro é cor ou som. Quem poderia distinguir o verde-maçã de sua ácida alegria? E já não será excessivo dizer “a alegria ácida do verde-maçã”? Há o verde, há o vermelho, e basta; são coisas, existem por si mesmas. É verdade que se pode conferir-lhes, por convenção, o valor de signos. Fala-se, por exemplo, em linguagem das flores. Mas depois de estabelecido um acordo, se as rosas brancas para mim significam “fidelidade”, é que deixei de vê-las como rosas: meu olhar as atravessa para mirar, além delas, essa virtude abstrata; eu as esqueço, não dou atenção ao seu desabrochar aveludado, ao seu doce perfume estagnado; não chego sequer a percebê-las. Isso significa que não me comportei como artista. Para o artista, a cor, o aroma, o tinido da colher no pires são coisas em grau máximo; ele se detém na qualidade do som ou da forma, retoma a elas mil vezes, maravilhado; é essa cor-objeto que irá transportar para a tela, e a única modificação por que a fará passar é transformá-la em objeto imaginário. Ele está, portanto, muito longe de considerar as cores e os sons como uma linguagem [1]. O que vale para os elementos da criação artística vale também para as suas combinações: o pintor não deseja traçar signos sobre a tela, quer criar [2] alguma coisa; e se aproxima o vermelho do amarelo e do verde, não há razão alguma para que o conjunto possua um significado definível, isto é, para que remeta especificamente a algum outro objeto. Sem dúvida esse conjunto também é habitado por uma alma, e já que o pintor teve motivos, mesmo que ocultos, para escolher o amarelo e não o violeta, pode-se sustentar que os objetos assim criados refletem as suas tendências mais profundas. Só que jamais exprimiriam sua cólera, sua angústia ou sua alegria do mesmo modo que o fariam as palavras ou a expressão de um rosto; estão impregnados disso tudo; e por terem penetrado nessas cores, que por si mesmas já possuíam algo como um sentido, as suas emoções se embaralham e se obscurecem; ali ninguém será capaz de identificá-las com clareza. Aquele rasgo amarelo no céu. sobre o Gólgota, Tintoretto não o escolheu para significar angústia, nem para provocá-la;· ele é angústia, e céu amarelo ao mesmo tempo. Não céu de angústia, nem céu angustiado; é uma angústia feita coisa, uma angústia que se transformou num rasgo amarelo do céu, e assim foi submersa, recoberta pelas qualidades próprias das coisas, pela sua impermeabilidade, pela sua extensão, pela sua permanência cega, pela sua exterioridade e por essa infinidade de relações que elas mantêm com as outras coisas; vale dizer, a angústia deixou de ser legível, é como um esforço imenso e vão, sempre interrompido a meio caminho entre o céu e a terra, para exprimir aquilo que sua natureza lhes proíbe exprimir. Do mesmo modo, o significado de uma melodia – se é que neste caso ainda se pode falar de significado – não é nada mais que a própria melodia, ao contrário das idéias, que podem ser traduzi­ das adequadamente de diversas maneiras. Diga que a melodia é alegre ou sombria; ela estará sempre além ou aquém de tudo quase possa dizer a seu respeito. Não porque o artista tenha paixões mais ricas ou mais variadas, mas porque suas paixões, que talvez estejam na origem do tema inventado, ao se incorporarem às notas, sofreram uma transubstanciação e uma degradação. Um grito de dor é sinal da dor que o provoca.

Mas um canto de dor é ao mesmo tempo a própria dor e uma outra coisa que não a dor. Ou, se se quiser adotar o vocabulário existencialista, é uma dor que não existe mais, é uma dor que é. Mas, dirá você, e se o pintor fizer casas? Pois bem, precisamente, ele as faz, isto é, cria uma casa imaginária sobre a tela, e não um signo de casa. E a casa assim manifesta conserva toda a ambigüidade das casas reais. O escritor pode dirigir o leitor e, se descreve um casebre, mostrar nele o símbolo das injustiças sociais, provocar nossa indignação. Já o pintor é mu­do: ele nos apresenta um casebre, só isso; você pode ver nele o que quiser. Essa choupana nunca será o símbolo da miséria; para isso seria preciso que ela fosse signo, mas ela é coisa. O mau pintor procura o tipo, pinta o Árabe, a Criança, a Mulher; o bom pintor sabe que o Árabe e o Proletário não existem, nem na realidade, nem na sua tela; ele propõe um operário deter­ minado operário. E o que pensar de um operário? Uma infinidade de coisas contraditórias. Todos os pensamentos, todos os sentimentos estão ali, aglutinados sobre a tela, em indiferenciação profunda; cabe a você escolher. Artistas bem intencionados já tentaram comover; pintaram longas filas de operários aguardando na neve uma oferta de trabalho, os rostos esquálidos dos desempregados, os campos de batalha. Não comoveram mais que Greuze com seu Filho pródigo. E O massacre de Guernica, essa obra-prima, alguém acredita que ela tenha conquista­ do um só coração à causa espanhola? Contudo, alguma coisa foi dita que não se poderá jamais ouvir e que exigiria uma infinidade de palavras para expressar. Os esguios Arlequins de Picasso, ambíguos e eternos, possuídos por um sentido indecifrável, inseparável da sua magreza arqueada e dos losangos desbotados de seus trajes, são uma emoção que se fez carne e que a carne absorveu como o mata-borrão absorve a tinta, uma emoção irreconhecível, perdida, estranha para si mesma, esquartejada e espalhada pelos quatro cantos do espaço e, no entanto, presente. Não duvido de que a caridade ou a cólera possam produzir outros objetos, mas neles elas ficarão atoladas da mesma forma; perderão o seu significado, restarão apenas coisas habitadas por uma alma obscura. Não se pintam significados, não se transformam significados em música; sendo assim, quem ousaria exigir do pintor ou do músico que se engajem?

O escritor, ao contrário, lida com os significados. Mas cabe distinguir: o império dos signos é a prosa; a poesia está lado a lado com a pintura, a escultura, a música. Acusam-me de detestar a poesia: a prova, dizem, é que Les Temps Moder nes raramente publica poemas. Ao contrário, isso prova que nós a amamos. Para se convencer disso, basta ver a produção contemporânea. ”Pelo menos a ela”, dizem os críticos em triunfo, “você não pode nem sonhar em engajar”. De fato. Mas por que haveria eu de querer fazê-lo? Porque ela se serve de Palavras, como a prosa? Mas ela não o faz da mesma maneira; na verdade, a poesia não se serve de palavras; eu diria antes que ela as serve. Os poetas são homens que se recusam a utilizar a linguagem. Ora, como é na linguagem e pela linguagem, concebida como uma espécie de instrumento, que se opera a busca da verdade, não se deve imaginar que os poetas pretendem discernir o verdadeiro, ou dá-lo a conhecer. Eles tampouco aspiram a nomear o mundo, e por isso não nomeiam nada, pois a nomeação implica um perpétuo sacrifício do no­ me ao objeto nomeado, ou, para falar como Hegel, o nome se revela inessencial diante da coisa  esta, sim, essencial. Os poetas não falam, nem se calam: trata-se de outra coisa. Diz-se que eles pretendiam destruir o verbo por meio de acasalamentos monstruosos, mas isso é falso; seria preciso que já estivessem lançados no meio da linguagem utilitária e procurassem retirar daí as palavras em pequenos grupos singulares. como, por exemplo, “cavalo” e “manteiga”, escrevendo “cavalo de manteiga” [3]. Além de tal empreendimento demandar um tempo infinito, não seria concebível manter-se no plano do projeto utilitário, considerando as palavras como instrumentos e, ao mesmo tempo, querer retirar delas sua utensilidade. Na verdade, o poeta se afastou por completo da linguagem-instrumento; escolheu de uma vez por todas a atitude poética que considera as palavras como coisas e não como signos. Pois a ambigüidade do signo implica que se possa, a seu bel­ prazer, atravessá-lo como a uma vidraça, e visar através dele a coisa significada, ou voltar o olhar para a realidade do signo e considerá-lo como objeto. O homem que fala está além das palavras, perto do objeto; o poeta está aquém. Para o primei­ro, as palavras são domésticas; para o segundo, permanecem no estado selvagem. Para aquele, são convenções úteis, instrumentos que vão se desgastando pouco a pouco e são jogados fora quando não servem mais; para o segundo, são coisas naturais que crescem naturalmente sobre a terra, como a relva e as árvores.

Mas se o poeta se detém nas palavras, como o pintor nas cores ou o músico nos sons, isso não quer dizer que aos seus olhos elas tenham perdido todo o significado; de fato, somente o significado pode conferir às palavras a sua unidade verbal ;sem ele, os vocábulos se dispersariam em sons ou em traços de pena. Só que também ele se torna natural; deixa de ser a meta sempre fora de alcance e sempre visada pela transcendência humana; é uma propriedade de cada termo, análoga à expressão de um rosto, ao pequeno sentido, triste ou alegre, dos sons e das cores. Fundido à palavra, absorvi­ do pela sua sonoridade ou pelo seu aspecto visual, adensado, degradado, o significado também é coisa, incriada, eterna; para o poeta, a linguagem é uma estrutura do mundo exterior. O falante está em situação na linguagem, investido pelas palavras; são os prolongamentos de seus sentidos, suas pinças, suas antenas, seus óculos; ele as manipula a partir de dentro, sente-as como sente seu corpo, está rodeado por um corpo verbal do qual mal tem consciência e que estende sua ação sobre o mundo. O poeta está fora da linguagem, vê as palavras do avesso, como se não pertencesse à condição humana, e, ao dirigir-se aos homens, logo encontrasse a palavra como uma barreira. Em vez de conhecer as coisas antes por seus nomes, parece que tem com elas um primeiro contato silencioso e, em seguida, voltando-se para essa outra espécie de coisas que são, para ele, as palavras, tocando-as, tateando-as, palpando-as, nelas descobre uma pequena luminosidade própria e afinidades particulares com a terra, o céu; a água e todas as coisas criadas. Não sabendo servir-se da palavra como signo de um aspecto do imundo, vê nela a imagem de um esses aspectos. E a imagem verbal que ele escolhe por sua semelhança com o salgueiro ou o freixo não é necessariamente a palavra que nós utilizamos para designar esses objetos. Como ele já está fora, as palavras não lhe servem de indicadores , que o lancem para fora de si mesmo, para o meio das coisas; em vez disso, considera-as como uma armadilha para capturar uma realidade fugaz; em suma, a linguagem inteira é, para ele, o Espelho do mundo. Em consequência, importantes mudanças se operam na economia interna da palavra. Sua sonoridade, sua extensão, suas desinências masculinas ou femininas, seu aspecto visual, tudo isso junto compõe para ele um rosto carnal, que antes representa do que expressa o significado. Inversamente, como o significado é realizado, o aspecto físico da palavra se reflete nele, e o significado funciona, por sua vez, como imagem do corpo verbal. E também como seu signo, pois perdeu a preeminência, e já que as palavras são incriadas, com as coisas, o poeta não decide se aquelas existem em função destas, ou estas em função daquelas. Estabelece­ se assim, entre a palavra e a coisa significada, uma dupla relação recíproca de semelhança mágica e de significado. E como o poeta não utiliza a palavra, não escolhe entre acepções diversas, e cada uma delas, em vez de apresentar-se como função autônoma, se dá a ele como qualidade material que se funde, sob os’ seus olhos, com as demais acepções. Assim realiza ele em cada palavra, tão-somente graças à atitude poética, as metáforas com que sonhava Picasso quando desejava fazer uma caixa de fósforos que fosse inteiramente morcego sem deixar de ser caixa de fósforos. Florença é cidade e flor e mulher, é cidade-flor e cidade-mulher e donzela-flor ao mesmo tempo. E o estranho objeto que assim aparece possui a liquidez do fluir do rio, o doce e fulvo ardor do ouro e, por fim, se abandona com decência e prolonga indefinidamente, pelo enfraquecimento contínuo do a final átono, seu desabrochar pleno de recato. A isso se agrega o esforço insidioso da biografia. Para mim, Florence é também uma certa mulher, uma atriz americana que atuava nos filmes mudos da minha infância e de quem esqueci tudo, salvo que era esguia como uma longa luva de baile e sempre um pouco entediada e sempre casta, sempre casada e incompreendida, e que eu a amava, e que se chamava Florence. Pois a palavra, que arranca o prosador de si mesmo e o lança no meio do mundo, devolve ao poeta, como um espelho, a sua própria imagem. É o que justifica o duplo empreendimento de Leiris, que, de um lado, em seu Glossaire, procura dar a certas palavras uma definição poética, isto é, que seja por si mesma uma síntese de implicações recíprocas entre o corpo sonoro e a alma verbal, e, de outro lado, numa obra ainda inédita, se lança em busca do tempo perdido, tomando como ponto de referência algumas palavras particular­ mente carregadas, para ele, ele afetividade. Assim, a palavra poética é um microcosmo. A crise da linguagem que eclodiu no início deste século é uma crise poética. Quaisquer que tenham sido os seus fatores sociais e históricos, ela se manifestou por acessos ele despersonalização elo escritor em face elas palavras. Este não sabia mais como se servir delas e, segundo a célebre fórmula de Bergson, só as reconhecia pela metade; abordava­ as com um sentimento ele estranheza extremamente frutífero· elas não mais eram dele, não mais eram ele; mas nesses espelhos estranhos se refletiam o céu, a terra e a sua própria vida; finalmente, elas se tornavam as próprias coisas, ou melhor, o negro coração elas coisas. E quando o poeta junta vários desses microcosmos, dá-se com ele o mesmo que se dá com os pintores quando juntam cores sobre a tela; dir-se-ia que ele compõe uma frase, mas é só aparência; ele cria um objeto. As palavras­ coisas se agrupam por associações mágicas ele conveniência ou desconveniência, como as cores e os sons· elas se atraem se repelem, se queimam e sua associação compõe a verdadeira unidade poética que é a frase-objeto. Com mais freqüência ainda, o poeta já tem no espírito o esquema da frase, e as palavras vêm em seguida. Mas esse esquema não tem nada em comum com aquilo que de ordinário se chama esquema verbal: não preside à construção ele um significado; aproxima-se antes elo projeto criador através do qual Picasso prefigura no espaço, antes mesmo ele tocar o pincel, essa coisa que se tornará um saltimbanco ou um Arlequim.
Fugir, longe fugir, eu sinto as aves ébrias/ Mas ouve, ó coração, o canto dos marujos.
Esse “mas”, que se ergue qual monolito no limiar da frase, não liga o verso anterior ao verso seguinte. Colore-o de certa nuança reservada, ele um “ensimesmar-se” que o penetra por inteiro. Do mesmo modo, certos poemas começam por “e”. Essa conjunção não é mais, para o espírito, a marca ele uma operação a efetuar: ela se estende por todo o parágrafo, para conferir-lhe a qualidade absoluta ele uma continuação. Para o poeta, a frase tem uma tonalidade, um gosto; ele degusta, através dela, e por si mesmos, os sabores irritantes da objeção, ela reserva, ela disjunção; ele os leva ao absoluto e faz desses sabores propriedades reais da frase; esta se torna por inteiro uma objeção, sem ser objeção a nada em particular. Voltamos a deparar aqui com as relações de implicação recíproca já assinaladas há pouco entre a palavra poética e o seu sentido: o conjunto das palavras escolhidas funciona como imagem. ela nuança interrogativa ou restritiva e, inversamente, a interrogação é imagem do conjunto verbal que ela delimita.

Como nestes versos admiráveis:
Ó estações! Ó castelos!/ Que alma é sem defeito?
Ninguém é interrogado, ninguém interroga: o poeta está ausente. E a interrogação não comporta resposta ou, antes, ela é a sua própria resposta. Será, portanto, uma falsa interrogação? Mas seria absurdo crer que Rimbaud “quis dizer” que todo mundo tem seus defeitos. Como dizia Breton acerca ele Saint-Pol Roux: “Se ele quisesse dizer, teria dito”. Tampouco quis dizer outra coisa. Fez uma interrogação absoluta; conferiu à bela palavra “alma” uma existência interrogativa. Eis a interrogação tornada coisa, tal como a angústia ele Tintoretto se tornou céu amarelo. Não é mais um significado, é uma substância; é vista de fora, e Rimbaud nos convida a vê-la ele fora com ele; sua estranheza vem elo fato de que nos colocamos, para considerá-la, do outro lado ela condição humana; elo lado ele Deus.

Se assim é, compreende-se facilmente a tolice que seria exigir um engajamento poético. Sem dúvida a emoção, a própria paixão – e por que não a cólera, a indignação social, o ódio político – estão na origem do poema. Mas não se exprimem nele, como num panfleto ou numa confissão. À medida que o prosador expõe sentimentos, ele os esclarece; o poeta, ao contrário, quando vaza suas paixões em seu poema, deixa de reconhecê-las; as palavras se apoderam delas, ficam impregnadas por elas e as metamorfose iam; não as significam, mesmo aos seus olhos. A emoção se tornou coisa, passou a ter a opacidade das coisas; é turvada pelas propriedades ambíguas dos vocábulos em que foi confinada. E, sobretudo, há sempre muito mais em cada frase, em cada verso, como no céu amarelo acima do Gólgota há mais que uma simples angústia. A palavra, a frase”coisa, inesgotáveis como coisas, extravasam por toda parte o sentimento que as suscitou. Como esperar que o poeta provoque a indignação ou o entusiasmo político do leitor quando, precisamente, ele o retira da condição humana e o convida a considerar, com os olhos de Deus, o avesso da linguagem?

“Você está esquecendo”, alguém dirá, “os poetas da Resistência. Você está esquecendo Pierre Emmanuel”.

Mas não; eu ia justamente citá-los para endossar o meu argument0 [4].

Mas o fato de ao poeta ser vedado engajar-se será razão suficiente para dispensar o prosador de fazê-lo? Que há de comum entre eles? O prosador escreve, é verdade, e o poeta também. Mas entre esses dois atos de escrever não há nada em comum senão o movimento da mão que traça as letras. Quanto ao mais, seus universos permanecem incomunicáveis, e o que vale para um não vale para o outro. A prosa é utilitária por essência; eu definiria de bom grado o prosador como um homem que se serve das palavras. Monsieur Jourdain fazia prosa para pedir seus chinelos, e Hitler, para declarar guerra à Polônia. O escritor é um falador; designa, demonstra, ordena, recusa, interpela, suplica, insulta, persuade, insinua. Se o faz no vazio, nem por isso se torna poeta: é um prosador que fala para não dizer nada. Já vimos suficientemente a linguagem pelo avesso; convém agora considerá-la do lado direito [5].

A arte da prosa se exerce sobre o discurso, sua matéria é naturalmente significante: vale dizer, as palavras não são, de início, objetos, mas designações de objetos. Não se trata de saber se elas agradam ou desagradam por si próprias, mas’ sim se indicam corretamente determinada coisa do mundo ou determinada noção. Assim, acontece com freqüência que nos encontremos de posse de determinada idéia que nos foi comunicada por palavras, sem que nos possamos lembrar de uma só das palavras que a transmitiram. A prosa é antes de mais nada uma atitude do espírito; há prosa quando, para falar como Valéry, nosso olhar atravessa a palavra como o sol ao vidro. Quando se está em perigo ou dificuldade, empunha-se um instrumento qualquer. Passada a dificuldade, nem nos lembramos mais se foi um martelo ou um pedaço de lenha. Aliás, nem chegamos à sabê-lo: faltava apenas um prolongamento do nosso corpo, um meio de estender a mão até o galho mais alto; era um sexto dedo, uma terceira perna- em suma, uma pura função que assimilamos. Assim a linguagem: ela é nossa carapaça e nossas antenas, protege-nos contra os outros e informa-nos a respeito deles, é um prolongamento dos nossos sentidos. Estamos na linguagem como em nosso corpo; nós a sentimos espontaneamente ultrapassando-a em direção a outros fins, tal como sentimos as nossas mãos e os nossos pés; percebemos a linguagem quando é o outro que a emprega, as­ sim como percebemos os membros alheios. Existe a palavra vivida e a palavra encontrada. Mas nos dois casos isso se dá no curso de uma atividade, seja de mim sobre os outros, seja do outro sobre mim. A fala é um dado momento particular da ação e não se compreende fora dela. Sabemos que certos afásicos perdem a possibilidade de agir, de entender as situações, de manter relações normais com o sexo oposto. No seio dessa apraxia, a destruição da linguagem parece apenas o desmoronamento de uma das estruturas: a mais fina e mais aparente. E se a prosa não é senão o instrumento privilegiado de certa atividade, se só ao poeta cabe contemplar as palavras de maneira desinteressada, temos o direito de perguntar ao prosador antes de mais nada: com que finalidade você escreve? Em que empreendimento você se lançou e por que necessita ele do recurso à escrita? E em caso algum esse empreendimento poderia ter como finalidade a pura contemplação. Pois a intuição é silêncio e a finalidade da linguagem é comunicar. O prosador pode, sem dúvida, fixar os resultados da intuição, mas nesse caso bastarão algumas palavras atiradas às pressas no papel: o autor sempre se reconhecerá nelas. Se as palavras se articulam em frases, com uma preocupação pela clareza, é preciso que intervenha uma decisão estranha à intuição, à própria linguagem: a decisão de comunicar aos outros os resultados obtidos. Em cada caso, é essa a decisão que cabe questionar. E o bom senso, que os nossos doutos tão facilmente esquecem, não se cansa de repeti-lo. Pois não é costume colocar para todos os jovens que se propõem a escrever esta questão de princípio: “Você tem alguma coisa a dizer?'” Por aí deve-se entender: alguma coisa que valha a pena ser comunicada. Mas como compreender o que ”vale a pena”, se­ não recorrendo a um sistema de valores transcendente?

Aliás, se considerarmos apenas essa estrutura secundária do empreendimento que é o momento verbal, o grave erro dos estilistas puros é acreditar que a fala é apenas um zéfiro que perpassa ligeiramente a superfície das coisas, que as aflora sem alterá-las. E que o falante é pura testemunha que resume numa palavra sua contemplação inofensiva. Falar é agir; uma coisa nomeada não é mais inteiramente a mesma, perdeu a sua inocência. Nomeando a conduta de um indivíduo, nós a revelamos a ele; ele se vê. E como ao mesmo tempo a nomeamos para todos os outros, no momento em que ele se vê, sabe que está sendo visto; seu gesto furtivo, que dele passava despercebido, passa a existir enormemente, a existir para todos, integra-se no espírito objetivo, assume dimensões novas, é recuperado. Depois disso, como se pode querer que ele con­tinue agindo da mesma maneira? Ou irá perseverar na sua con­duta por obstinação, e com conhecimento de causa, ou irá aban­doná-la. Assim, ao falar, eu desvendo a situação por meu próprio projeto de mudá-la; desvendo-a a mim mesmo e aos outros, para mudá-la; atinjo-a em pleno coração, transpasso-a e fi­xo-a sob todos os olhares; passo a dispor dela; a cada palavra que digo, engajo-me um pouco mais no mundo e, ao mesmo tempo, passo a emergir dele um pouco mais, já que o ultrapas­so na direção do porvir. Assim, o prosador é um homem que escolheu determinado modo de ação secundária, que se pode­ ria chamar de ação por desvendamento. É legítimo, pois, propor-lhe esta segunda questão: que aspecto do mundo você quer desvendar, que mudanças quer trazer ao mundo por es­se desvendamento? O escritor “engajado” sabe que a palavra é ação: sabe que desvendar é mudar e que não se pode desven­dar senão tencionando mudar. Ele abandonou o sonho impossível de fazer uma pintura imparcial da Sociedade e da condição humana. O homem é o ser em face de quem nenhum outro ser pode manter a imparcialidade, nem mesmo Deus. Pois Deus, se existisse, estaria, como bem viram certos místicos, em situação em relação ao homem. E é também o ser que não pode sequer ver uma situação sem mudá-la, pois o seu olhar imobiliza, destrói, ou esculpe, ou, como faz a eternidade, trans­ forma o objeto em si mesmo. É no amor, no ódio, na cólera, no medo, na alegria, na indignação, na admiração, na esperan­ça, no desespero que o homem e o mundo se revelam em sua verdade. Sem dúvida, o escritor engajado pode ser medíocre, pode ter até mesmo consciência de sê-lo, mas como não seria possível escrever sem o propósito de fazê-lo do melhor modo, a modéstia com que ele encara a sua obra não deve desviá-lo da intenção de construí-la como se ela devesse atingir a máxi­ma ressonância. Nunca deve dizer: “Bem, terei no máximo três mil leitores”; mas sim, “o que aconteceria se todo o mundo lesse o que eu escrevo?” Ele se lembra da frase de Mosca diante do coche que levava Fabrício e Sanseverina: “Se a palavra Amor vier a surgir entre eles, estou perdido”. Sabe que ele é o homem que nomeia aquilo que ainda não foi nomeado, ou que não ousa dizer o próprio nome; sabe que faz “surgir” a palavra amor e a palavra ódio e, com elas, o amor e o ódio entre duas pessoas que não haviam ainda decidido sobre os seus sentimentos. Sabe que as palavras, como diz Brice-Parain, são “pistolas carregadas”. Quando fala, ele atira. Pode calar-se, mas uma vez que decidiu atirar é preciso que o faça como um homem, visando o alvo, e não como uma criança, ao acaso, fechando os olhos, só pelo prazer de ouvir os tiros. Tentaremos mais adiante determinar qual poderia ser o objeto da literatura. Mas desde já podemos concluir que o escri­tor decidiu desvendar o mundo e especialmente o homem para os outros homens, a fim de que estes assumam em face do objeto, assim posto a nu, a sua inteira responsabilidade.: Ninguém ·pode alegar ignorância da lei, pois existe um código e a lei é coisa escrita: a partir daí, você é livre para infrin­gi-la, mas sabe os riscos que corre. Do mesmo modo, a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele. E uma vez engajado no universo da linguagem, não pode nunca mais fingir que não sabe falar: quem entra no universo dos significados, não conse­gue mais sair; deixemos as palavras se organizarem em liberdade, e elas formarão frases, e cada frase contém a linguagem toda e remete a todo o universo; o próprio silêncio se define em relação às palavras, assim como a pausa, em música, ga nha o seu sentido a partir dos grupos de notas que a circun­dam. Esse silêncio é um momento da linguagem; calar-se não é ficar mudo, é recusar-se a falar- logo, ainda é falar. Portan­to, se um escritor decidiu calar-se diante de determinado as­ pecto do mundo, ou, como diz uma locução corrente, particularmente expressiva, decidiu deixar passar em silêncio, é legítimo propor-lhe uma terceira questão: por que você falou disso e não daquilo, e já que você fala para mudar, por que deseja mudar isso e não aquilo?

Nada disso impede que haja a maneira de escrever. Ninguém é escritor por haver decidido dizer certas coisas mas por haver decidido dizê-las de determinado modo. E o estilo, decerto, é o que determina o valor da prosa. Mas ele deve passar despercebido. Já que as palavras são transparentes e o olhar as atravessa, seria absurdo introduzir vidros opacos entre elas. A beleza aqui é apenas uma força suave e insensível. Sobre uma tela, ela explode de imediato; num livro ela se esconde, age por persuasão como o charme de uma voz ou de um rosto; não constrange, mas predispõe sem que se perceba, e acreditamos ceder a argumentos quando na verdade estamos sendo solicitados por um encanto que não se vê. A etiqueta da missa não é a fé, ela predispõe para a fé; a harmonia as palavras, sua beleza, o equilíbrio das frases predispõem as paixões do leitor, sem que este se dê conta, organizam-nas como faz a missa, como a música, como uma dança; se o leitor passa a considerá-las por elas mesmas, perde o sentido; restam apenas cadências tediosas. Na prosa, o prazer estético só é puro quando vem por acréscimo. É constrangedor lembrar aqui idéias tão simples, mas parece que hoje em dia elas foram esquecidas. Se assim não fosse, como viriam nos dizer que estamos premeditando o assassinato da literatura ou mais simplesmente, que o engajamento prejudica a arte de escrever? Se a contaminação de determinada prosa pela poesia não tivesse embaralhado as idéias dos nossos críticos, pensa­ riam eles em nos atacar quanto à forma, sendo que nunca falamos senão do conteúdo? Quanto à forma, não há nada a dizer de antemão e nada dissemos: cada um inventa a sua e só de­ pois é que se julga. É verdade que os temas sugerem o estilo, mas não o comandam: não há temas situados a priori fora da arte literária. O que pode haver de mais engajado, mais tedioso, do que o propósito de atacar a Companhia de Jesus? Pois Pascal fez com isso suas Provinciales [Provinciais]. Em suma, trata-se de saber a respeito de que se quer escrever: de borboletas ou da condição dos judeus. E quando já se sabe, resta decidir como se escreverá. Muitas vezes ocorre que as duas escolhas sejam uma só, mas jamais, nos bons autores, a segunda precede a primeira. Sei que Giraudoux dizia: “A única tarefa é encontrar o estilo; a idéia vem depois”. Mas ele estava enganado: a idéia não veio. Se os temas forem considerados como problemas sempre em aberto, como solicitações, expectativas, compreenderemos que a arte não perde nada com o engajamento; ao contrário. Assim como a física submete aos matemáticos novos problemas, que os obrigam a produzir uma simbologia nova, assim também as exigências sempre novas do social ou da metafísica obrigam o artista a descobrir uma nova língua e novas técnicas. Se não escrevemos mais como no século XVII, é porque a língua de Racine ou de Saint-Evremond não se presta para falar de locomotivas ou do proletariado. Depois disso, os puristas talvez nos proíbam de escrever sobre locomotivas. Mas a arte nunca esteve do lado dos puristas .

Se este é o princípio do engajamento, que objeções lhe poderão ser feitas? E, sobretudo, que objeções já lhe foram feitas? Parece que os meus adversários não estavam com muita disposição para a tarefa, e seus artigos não continham mais que um longo suspiro escandalizado, que se arrastava por duas ou três colunas. Gostaria de saber em. nome de quê, de qual concepção da literatura eles me condenavam; mas não o disseram, eles mesmos não sabiam. O mais conseqüente teria sido basear seu veredicto na velha teoria da arte pela arte. Mas nenhum deles aceitaria. É uma teoria igualmente incômoda. Sabe-se que arte pura e arte vazia são a mesma coisa, e que o purismo estético foi apenas uma brilhante manobra defensiva dos burgueses do século passado, que achavam melhor ser denunciados como filisteus do que como exploradores. É preciso, pois – e eles próprios o reconhecem -, que o escritor fale de alguma coisa. Mas de quê? Creio que o seu embaraço se­ ria extremo se Fernandez não tivesse encontrado para eles, após a Primeira Guerra, a noção de mensagem. O escritor de hoje, dizem eles, não deve em caso algum ocupar-se das coisas temporais; não deve tampouco alinhar palavras sem significado, nem procurar apenas a beleza das frases e das imagens: a sua função é passar mensagens aos seus leitores. Que vem a ser, então, uma mensagem?

É preciso lembrar que a maioria dos críticos são homens que não tiveram muita sorte na vida, e que quando já estavam à beira do desespero, encontraram um lugarzinho tranqüilo como guarda de cemitério. Deus sabe quanto os cemitérios são tranqüilos: não existem mais ridentes que uma biblioteca. Os mortos lá estão: nada mais fizeram senão escrever, há muito tempo estão lavados do pecado de viver, c, ele resto, só conhecemos as suas vidas através de outros livros que outros mortos escreveram a seu respeito. Rimbaud está morto. Mortos Paterne Berrichon e Isabelle Rimbaud; os importunos desapareceram, só restam pequenos ataúdes dispostos sobre tábuas ao longo dos muros, como as urnas de um columbário. O crítico vive mal; sua mulher não o aprecia como seria de se desejar, seus filhos são ingratos, os fins de mês são .difíceis. Mas ele ainda pode entrar em sua biblioteca, apanhar um livro na estante e abri-lo. Do livro escapa um leve odor de porão, e tem início, então uma estranha operação que ele decidiu chamar de leitura. Por um lado, é uma possessão; empresta-se o corpo aos mortos para que possam reviver. Por outro, é um contato com o além. De fato, o livro não é um objeto, tampouco um ato, nem sequer um pensamento: escrito por um morto acerca de coisas mortas, não tem mais nenhum lugar nesta terra, não fala de nada que nos interesse diretamente; entregue a si mesmo, ele se encarquilha e desmorona, não restam mais que manchas de tinta sobre o papel embolorado, e quando o crítico reanima essas manchas, transformando-as em letras e palavras, estas lhe falam de paixões que ele não sente, de cóleras sem objeto, de temores e esperanças defuntas. É todo um mundo desencarnado que o rodeia, um mundo em que as afeições humanas, como não comovem mais, passaram à categoria de afeições exemplares, em suma, de valores. As­ sim ele se convence de haver entrado em contato com um mundo inteligível que é como que a verdade e a razão de ser dos seus sofrimentos cotidianos. Acredita que a natureza imita a arte, como para Platão o mundo sensível imitava o dos arquétipos. E enquanto lê, sua vida cotidiana se torna aparência. Aparência sua mulher rabugenta, aparência seu filho corcunda: e que serão salvas porque Xenofonte descreveu Xantipa, e Shakespeare retratou Ricardo III. É uma festa para ele quando os autores contemporâneos lhe fazem o favor de morrer: seus livros, muito crus, muito vivos, muito exigentes, passam para a outra margem, emocionam cada vez menos e se tornam cada vez mais belos: após uma breve temporada no purgatório, irão povoar o céu inteligível de novos valores. Berotte, Swann, Siegfried, Bella e Monsieur Teste: eis algumas aquisições recentes. Aguardam-se Nathanael e Ménalque. Quanto aos escritores que se obstinam em viver, pede-se apenas que não se agitem demasiado, e que se empenhem desde já tem se parecer com os mortos que futuramente serão. Valéry saiu-se bastante bem, pois vinha publicando livros póstumos há vinte e cinco anos. Eis por que, como acontece com alguns santos de fato excepcionais, foi canonizado em vida. Mas Malraux escandaliza. Nossos críticos são como os hereges cátaros: não querem ter nada a ver com o mundo real, salvo comer e beber, e já que é imperiosamente necessário conviver com os nossos semelhantes, decidiram fazê-lo com os defuntos. Só se apaixonam pelos assuntos arquivados, pelas questões fecha-las, pelas histórias de que já se conhece o fim. Nunca apostam 11um desfecho incerto, e como a história decidiu por eles, como os objetos que aterrorizavam ou indignavam os autores lidos por eles já desapareceram, como a dois séculos de distância a vaidade das disputas sangrentas aparece com clareza, podem encantar-se com a cadência das frases, e tudo se passa, a seus olhos, como se toda a literatura fosse apenas uma vasta tautologia e cada novo prosador tivesse inventado uma nova maneira de falar para não dizer nada. Falar dos arquétipos, e da “natureza humana”, falar para não dizer nada? Todas as concepções dos nossos críticos oscilam entre essas duas idéias. Naturalmente, ambas são falsas: os grandes escritores queriam destruir, edificar, demonstrar. Mas nós não guardamos as provas que apresentaram, porque não nos preocupamos com o que eles quiseram provar. Os abusos que denunciaram não são mais do nosso tempo; hoje há outros que nos indignam e que eles nem sequer imaginavam; a história desmentiu algumas de suas previsões, e aquelas que se realizaram se tornaram verdadeiras há tanto tempo que já nos esquecemos de que foram, antes, traços do seu gênio; alguns dos seus pensamentos estão inteiramente mortos, e há outros que o gênero humano inteiro assimilou e que agora tomamos como lugares-comuns. Segue-se que os melhores argumentos desses autores perderam a sua eficácia; hoje admiramos apenas a sua ordem e o seu rigor; por mais bem estruturados que sejam, para nós não passam de ornamento, uma arquitetura elegante da demonstração, sem mais aplicação prática do que a arquitetura das fugas de Bach ou dos arabescos de Alhambra.

Nessas geometrias apaixonadas, quando a geometria não convence mais, a paixão ainda comove. Ou antes, a representação da paixão. As idéias se tornaram insossas ao longo dos séculos, mas permanecem como pequenas obstinações pessoais de um homem que foi de carne e osso; por trás das razões da razão, que esmaecem, percebemos as razões do coração, as virtudes, os vícios e essa grande dor que os homens têm de viver. Sade fez tudo para nos convencer e, quando muito, consegue nos escandalizar: não é mais que uma alma corroída por um belo mal, uma ostra que produz pérolas. A Lettre sur les spectacles [Carta sobre os espetáculos] não dissuade mais ninguém de ir ao teatro, mas achamos divertido saber que Rousseau detestava a arte dramática. Se formos um pouco versados em psicanálise, nosso prazer será perfeito: explicaremos Du contrat social [Do contrato social] pelo complexo de Édipo e L ‘esprit des lois [O espírito das leis] pelo complexo de inferioridade; isto é, desfrutaremos plenamente da reconhecida superioridade que os cães vivos têm sobre os leões mortos. Assim, quando um livro apresenta pensamentos inebriantes que oferecem a aparência de razões só para se dissolverem sob o nosso olhar e se reduzirem às batidas do coração, quando o ensinamento que se pode extrair dele é radicalmente diferente daquele que o autor quis dar, chama-se a esse livro mensagem. Tanto Rousseau. pai da Revolução Francesa, como Gobineau, pai do racismo, nos enviaram mensagens. E o crítico as considera com igual simpatia. Fossem vivos, ele teria de optar por um contra o outro, amar a um, odiar o outro. Mas o que os aproxima, antes de mais nada, é que eles compartilham ele um mesmo defeito, profundo e delicioso: ambos estão mortos.

Assim, deve-se recomendar aos autores contemporâneos que passem mensagens, isto é, que limitem voluntariamente seus escritos à expressão involuntária de suas almas. Digo in voluntária porque os mortos, de Montaigne a Rimbaud, pintaram a si mesmos por inteiro, mas não intencionalmente e como por acréscimo; justamente isso que nos legaram a mais, sem querer, é que deve constituir o fim primordial e confesso dos escritores vivos. Não se exige deles que nos entreguem confissões sem retoques, nem que se abandonem ao lirismo demasiado nu dos românticos. Mas já que temos prazer em desarmar as artimanhas de Chateaubriand ou de Rousseau, em surpreendê-los na sua privacidade no mesmo momento em que se fazem de homens públicos, em deslindar as causas particulares de suas afirmações mais universais, pede-se aos recém-chegados que nos proporcionem deliberadamente esse mesmo prazer. Que raciocinem, pois, que afirmem, neguem. refutem e provem; mas a causa que defendem deve ser apenas a finalidade aparente dos seus discursos: a finalidade pro funda é entregar-se sem o aparentar. Quanto a seus raciocínios, é preciso que eles primeiro os desarmem, como fez o tempo em relação aos clássicos; que os apliquem a assuntos que não interessam a ninguém, ou a verdades tão gerais que os leitores já estejam convencidos delas antecipadamente; quanto a suas idéias, devem dar a elas um ar de profundidade. mas vazio, e formá-las de tal maneira que elas se expliquem, evidentemente, por uma infância infeliz, um ódio de classe ou um amor incestuoso. Que não se atrevam a pensar de verdade: o pensamento esconde o homem, e é só o homem que nos interessa. Um soluço totalmente nu não é belo; ele ofende. Um bom raciocínio também ofende, como Stendhal bem percebeu. Mas um raciocínio que oculta um soluço, eis o que nos interessa. O raciocínio tira das lágrimas o que estas têm de obsceno; as lágrimas, revelando a sua origem passional, tiram do raciocínio o que ele tem de agressivo; não ficaremos muito comovidos, nem de todo convencidos, e poderemos entregar-nos com segurança àquela voluptuosidade moderada que, como todos sabem, é proporcionada pela contemplação das obras de arte. Tal é, pois, a “verdadeira” e “pura” literatura: uma subjetividade que se entrega sob a aparência ele objetividade, um discurso tão curiosamente engendrado que equivale ao silêncio; um pensamento que se contesta a si mesmo, uma Razão que é apenas a máscara da loucura, um Eterno que dá a entender que é apenas um momento ele História. um momento histórico que, pelos aspectos ocultos que revela, remete ele súbito ao homem eterno; um perpétuo ensinamento, mas que se dá contra a vontade expressa daqueles que ensinam.

Enfim, a mensagem é uma alma feita objeto. Uma alma; e o que fazer com uma alma? Nós a contemplamos a uma distância respeitosa. Não temos o costume ele exibir nossa alma em sociedade sem um motivo imperioso. Mas, por convenção e com algumas reservas, é permitido a algumas pessoas colocar sua alma em circulação, e qualquer adulto pode adquiri-la. Assim, hoje, para muitas pessoas, as obras do espírito são pequenas almas errantes que se podem adquirir por preço módico: há aquela do bom e velho Montaigne, a elo caro La Fontaine; a ele Jean-Jacques, a ele Jean-Paul e a elo delicioso Gérar. Chama-se arte literária ao conjunto de beneficiamentos que as tornam inofensivas. Curtidas, refinadas, quimicamente tratadas, elas fornecem aos seu compradores a oportunidade ele consagrar à cultura subjetividade alguns momentos de uma vida inteiramente voltada para o exterior. Pode-se utilizá-las sem perigo: quem levará a sério o ceticismo ele Montaigne, já que o autor dos Essais [Ensaios] sentiu medo quando a peste devastava Bordeaux? E o humanismo de Rousseau, sabendo que “Jean-Jacques” colocou seus filhos num orfanato? E as estranhas revelações de Sylvie [Sílvia], uma vez que Gérard de Nerval era louco? Quando muito, o crítico profissional estabelecerá entre eles diálogos infernais e nos ensinará que o pensamento francês é uma perpétua   conversação entre Pascal e Montaigne. Com isso, a sua intenção não é tornar Pascal e Montaigne mais vivos, mas sim Malraux e Gide mais mortos. Quando, enfim, as contradições internas ela vida e da obra tornarem ambas inutilizáveis, quando a mensagem, em sua profundidade indecifrável, nos tiver ensinado estas verdades capitais: “o homem não é bom nem mau”, “há muito sofrimento numa viela humana”, “o gênio é só questão de uma longa paciência”- então o fim último dessa culinária fúnebre será atingido, e o leitor, repousando seu livro, poderá exclamar, com a alma tranqüila: “Tudo isso não passa ele literatura”.

Mas uma vez que, para nós, um escrito é uma empreita­ da, uma vez que os escritores estão vivos, antes ele morrerem, uma vez que pensamos ser preciso acertar em nossos livros, e que, mesmo que mais tarde os séculos nos contradigam, isso não é motivo para nos refutarem por antecipação, uma vez que acreditamos que o escritor eleve engajar-se inteiramente nas suas obras, e não como uma passividade abjeta, colocando em primeiro plano os seus vícios, as suas desventuras e as suas fraquezas, mas sim como uma vontade decidida, como uma escolha, com esse total empenho em viver que constitui cada um ele nós – então convém retomar este problema desde o início e nos perguntarmos, por nossa vez, por que se escreve?

Notas

1 Ao menos em geral. A grandeza e o erro de Klee residem na sua tentativa de fazer uma pintura que seja ao mesmo tempo signo e objeto.
2 Digo “criar” e não “imitar”, o que basta para reduzir a nada todo o patético do sr. Charles Estienne, que evidentemente não compreendeu nada do meu propósito e teima em atacar as sombras.
3 É o exemplo citado por Bataille em L ‘expérience intérieure [A experiên­cia interior].
4 Caso se queira conhecer a origem dessa atitude em relação à linguagem, darei aqui algumas breves indicações. Originalmente a poesia cria o mi­ to do homem, enquanto o prosador traça o seu retrato. Na realidade, o ato humano, comandado pelas necessidades, solicitado pelo útil, é. em certo sentido. um meio. Como tal, passa despercebido, e é o resulta­ do que conta: quando estendo a mão para apanhar a caneta, tenho ape­nas uma consciência fugidia e obscura do meu gesto: o que vejo é a ca­neta. Assim, o homem é alienado pelos seus fins. A poesia inverte a re­lação: o mundo e as coisas passam para o inessencial, convertem-se em pretexto para o ato, que se torna o seu próprio fim. O vaso existe para que a jovem faça o gesto gracioso de enchê-lo; a guerra de Troia, para que Heitor e Aquiles travem esse combate heroico. A ação, desli­gada dos seus fins, que vão se atenuando, torna-se proeza ou dança. Contudo, por indiferente que seja ao sucesso elo empreendimento, o poe­ta, antes do século XIX, mantém-se em acordo com a sociedade em seu conjunto; ele não usa a linguagem com a finalidade visada pela pro­sa, mas deposita nela a mesma confiança elo prosador.

Após o advento da sociedade burguesa, o poeta faz frente comum com o prosador e a declara insuportável. Para ele, trata-se ainda de criar o mito elo homem, mas passa da magia branca para a magia ne­gra. O homem continua sendo apresentado como o fim absoluto, porém alcançando êxito no seu empreendimento, ele se atola numa coletivida­de utilitária. Aquilo que no seu ato está em segundo plano, e que per­mitirá a passagem ao mito, não é. portanto, o sucesso, mas o fracasso.

Somente o fracasso, interrompendo como uma parede a série infinita elos seus projetos, o devolve a si mesmo, em sua pureza. O mundo per­manece inessencial, mas continua presente; agora, como pretexto pa­ra a derrota. A finalidade da coisa é devolver o homem a si mesmo, barrando-lhe o caminho. Não se trata, aliás, de introduzir arbitrariamen­te a derrota e, a ruína no curso elo mundo, mas antes ele só ter olhos pa­ra elas. A empresa humana tem duas faces: é ao mesmo tempo êxito e úicá so. Para pensá-la, o esquema dialético é insuficiente: é preciso tornar ainda mais flexível o nosso vocabulário e as estruturas da nos­ sa razão. Tentarei qualquer dia descrever essa estranha realidade, a História, que não é nem objetiva, nem jamais absolutamente subjetiva, em que a dialética é contestada, penetrada, corroída por uma espécie de antidialética, que no entanto segue sendo dialética. Mas essa tarefa é elo filósofo: normalmente não se consideram as duas faces de Jano; o homem de ação vê uma e o poeta vê a outra. Quando os instrumen­ tos estão quebrados, fora de uso, os planos frustrados, os esforços inú­teis, o mundo aparece com um frescor infantil e terrível, sem pontos de apoio, sem caminhos. Ele tem aí o máximo ele realidade porque é es­ magador para o homem, e, como a ação de qualquer modo generaliza. a derrota confere às coisas sua realidade individual. Mas, por uma in­ versão prevista, o fracasso considerado como fim derradeiro é ao mes­mo tempo contestação e apropriação desse universo. Contestação por­ que o homem vale mais do que aquilo que o esmaga; ele não contesta mais as coisas em seu “pouco ele realidade”, como o engenheiro ou o capitão, mas, ao contrário, em seu excesso de realíclacle, exatamente por sua condição de vencido; o homem é o remorso do mundo. Apropriação porque o mundo, deixando de ser instrumento do êxito, torna-se instru­mento do fracasso. Ei-lo percorrido por uma obscura finalidade; o mun­do passa a servir por seu coeficiente de adversidade: tanto mais huma­no quanto mais hostil ao homem. O fracasso se transforma em salvação. Não que nos dê acesso a algum plano do além: por si mesmo, ele osci­la e se metamorfoseia. Por exemplo, a linguagem poética surge das ruí­nas da prosa. Se é verdade que a palavra é uma traição é que a comu­nicação é impossível, então cada vocábulo, por si só, retoma sua indivi­dualidade torna-se instrumento da nossa derrota e receptador do inco­municável. Não que exista outra coisa a comunicar; é que, tendo malo­grado a comunicação da prosa, é o próprio sentido da palavra que se torna o puro incomunicável. Assim, o fracasso da comunicação se tor­na sugestão do incomunicável; e o projeto de utilizar as palavras, con­trariado, dá lugar à pura intuição desinteressada da fala. Assim, volta­mos a encontrar a descrição ensaiada na apresentação desta obra, mas ago­ra sob a perspectiva mais geral da valorização absoluta elo fracasso, que me parece ser a atitude original da poesia contemporânea. Note-se também que essa escolha confere ao poeta uma função muito precisa na coletividade: numa sociedade muito integrada ou religiosa, o fracasso é mascarado pelo Estado ou resgatado pela Religião; numa sociedade menos integrada e laica, como são as nossas democracias, cabe à poesia resgatá-lo.

A poesia é um quem perde ganha. E o poeta autêntico escolhe perder a ponto de morrer para ganhar. Repito que se trata da poesia contemporânea; a história apresenta outras formas de poesia. Meu objetivo não é mostrar os vínculos entre essas outras formas e a nossa. Por tanto, se se deseja realmente falar do engajamento do poeta, digamos que ele é o homem que se empenha em perder. É o sentido profundo desse azar, dessa maldição que ele sempre reivindica e que sempre atribui a uma intervenção do exterior, quando na verdade é a sua escolha mais profunda – não a conseqüência, mas a própria fonte da sua poesia. Ele tem certeza do fracasso total da empresa humana e dá um jeito de malograr na sua própria vida, a fim de testemunhar, por sua derrota particular, a derrota humana em geral. Ele contesta, pois, comoveremos, assim como faz o prosador. Mas a contestação da prosa se faz em nome de um êxito maior, e a da poesia em nome da derrota oculta que toda vitória traz consigo.
5 É claro que em toda poesia está presente uma certa forma de prosa, isto é, de êxito; e reciprocamente, a prosa mais seca encerra sempre um pouco de poesia, isto é, certa forma de fracasso: nenhum prosador, mesmo o mais lúcido, entende plenamente o que quer dizer; ou diz demais, ou não diz o suficiente, cada frase é um desafio, um risco assumido; quanto mais se vacila, mais a palavra se singulariza; ninguém, como mostrou Valéry, consegue compreender uma palavra até o fundo. Assim, cada palavra é empregada simultaneamente por seu sentido claro e social e por certas ressonâncias obscuras; eu quase diria: por sua fisionomia. É exatamente a isso que também o leitor é sensível. E já não estamos mais no plano da comunicação concertada, mas no da graça e do acaso; os silêncios da prosa são poéticos porque marcam seus limites, e é por uma questão de clareza que escolhi os casos extremos da pura prosa e da poesia pura. Não se deveria concluir, porém, que se pode passar da poesia à prosa por uma série contínua de formas intermediárias. Se o prosador cultiva demasiadamente as palavras, o ei­dos “prosa” se rompe e caímos numa algaravia incompreensível. Se o poeta narra, explica ou ensina, a poesia se torna prosaica; ele perdeu a partida. Trata-se de estruturas complexas, impuras mas bem delimitadas.

*Publicado originalmente em: SARTRE, J-P. Qu’est-ce que la littérature?. Paris: Galimard, 1948. A versão do texto em língua portuguesa foi traduzido por Carlos Felipe Moisés, sendo publicado e reimpresso pela Editora Ática no ano de 2004.

Fonte: Territórios de Filosofia