quarta-feira, 21 de setembro de 2011

HUMBERTO DE CAMPOS - MEMÓRIAS 2




MASSENA


ENTRE as raras lembranças amáveis da minha meninice está a nossa estação anual no Massena, fazenda de meu pai, a algumas léguas de Miritiba. Em frente à casa de barro tosco, alta e grande, estende-se a várzea, limitada à direita por uma orla extensa de coqueiros novos e baixos, que acompanha o curso de um riacho marulhante. Antes do riacho, entre ele e a casa, e a uns cinquenta metros desta, levanta-se o curral sólido, de troncos superpostos, em cujos mourões os gaviões e caracarás vêm pousar ao meio-dia, em busca de pintos ou de cordeirinhos recém-nascidos, cujos olhos arrancam. Avida, aí, para mim, é, durante o dia, um deslumbramento e uma festa. Penetro no mato, sozinho, em busca dos ninhos de rola, ou dos urubus implumes, que me causam enorme espanto quando vejo que eles, como os filhos das pretas que moram na casa do patrão, também nascem brancos... Ao anoitecer, porém, quando a escuridão começa a descer sobre a várzea e os olhos perdem os contornos do horizonte, o coração se me enche de um pavor surdo e pressago. É que vem da mata, ao longe, o ronco engasgado das guaribas, as quais, pela voz que emitem na solidão, me dão a ideia de animais temíveis e fabulosos.


Nessas viagens para a fazenda, eu não vejo, entretanto, quase nunca, minha mãe ao meu lado. Quem me aparece, acompanhando-me maternalmente, é a velha Miquelina, preta africana que criara meu pai e que o não abandonara mesmo depois de alforriada por ele. Eu vou para o Massena de véspera, com ela. Quando a família chega, eu já estou coçando desespe¬radamente os pés e os joelhos com os bichos, as terríveis pulgas de pé, que me assaltam. Avó Miquelina extrai, porém, o famigerado inseto penetrante com um espinho do mato, especialmente o de mandacaru, e enche o orifício com o barro do seu cachimbo. E eu fico bom.


Certa vez eu cheguei ao Massena com febre. Paludismo, com acessos quase diários. Avó Miquelina tomou à sua conta o meu tratamento: clister de água de pimenta com outros ingredientes, aplicado com auxílio de um papo de galinha, a que adaptara um canudo do talo de mamona. Feita a aplicação do remédio, eu corria para o mato, como um doido. Elá, quieto, vermelho de dor e do esforço, ao procurar o céu azul através dos rasgos da folhagem, ficava a olhar com inveja os passarinhos pipilantes, que não conheciam, na sua vida inocente, aqueles recursos da medicina caseira...


A mezinha bárbara não deu, porém, ao que parece, o resultado previsto. Ocerto é que, uma tarde, avó Miquelina me tomou pela mão, atravessou o riacho, e me conduziu mata a dentro. Caminhamos, os dois, não sei quanto tempo. Começava a escurecer, quando paramos. Avelha africana reuniu, em torno, alguns galhos secos, fez fogo, e, ajoelhada, pôs-se a rezar, resmungando, e fazendo-me pronunciar, com ela, palavras que eu não entendia. Em seguida, fez-me passar três vezes por cima da pequena fogueira fumegante, repetindo sempre aquilo que ela me ia ensinando. Feito isso, desandamos a correr pelo caminho por onde tínhamos vindo, levando eu a recomendação que o Anjo fizera, na Bíblia, a mulher de Lot: não olhar para trás. Ao atingirmos a várzea, perguntei à avó Miquelina o que significava tudo aquilo.
– É pro menino ficar bom depressa... Agora menino não tem mais sezão...
Emais explicitamente:
– Nós fomos amarrar a febre no mato...
Foi aí, no Massena, que eu vi a festa mais bonita a que tenho assistido neste mundo. Meu pai era, como já tive ocasião de dizer em outro capítulo, um espírito claro, limpo, e alegre, palmeira elegante e erecta em que se não enroscavam, na floresta de árvores retorcidas em que vivia, as heras das superstições. Ele só admitia a religião, como culto exterior, quando ela dava oportunidade a um folguedo profano. Efoi uma festa dessa ordem, uma festa mais pagã do que católica, espécie de homenagem à Ceres dos antigos romanos, que ele promoveu na fazenda, com a cumplicidade não sei de que santo.
Na sala principal da casa, ao centro, foi armado um grande arco, tecido de folhas de coqueiro, frescas e cheirosas. Nesse arco foram pendurados toda a sorte de frutos da terra, que o transformaram em Arco da Abundância: cachos e pencas de bananas maduras, ananases, espigas de milho verde, laranjas e tangerinas, raízes de macaxeira, cocos, cestos de manga, araticuns, frutas de conde, bacuris, cachos de juçara, e outros deli¬ciosos pomos selvagens. O solo, coberto de folhas de mangueira, perfuma o ambiente, carregado, já, do cheiro agreste dos frutos. Violas e harmônicas choram fora, no terreiro iluminado a querosene ou óleo de mamona. Deslumbramento, encanto da minha imaginação.
Após o ato religioso, constante de uma ladainha ou oração equiva¬lente, rezada no pequenino altar improvisado ao fundo da sala, começa o leilão dos donativos pendurados no arco. Eeste é pretexto para a explosão da índole maliciosa da nossa gente do interior, pronta, sempre, a empregar as palavras de duplo sentido, principalmente quando um destes tem fundo francamente rabelaiseano.
– Quanto me dão pela penca de bananas que está no meio do arco?... É a penca do meio... Quanto me dão pela penca do meio ?... – grita o leiloeiro, meu tio Lídio, Anacreonte louro, barbado como Carlos Magno, e que viria morrer aos noventa anos, alegre e livre como um florentino da Renascença.
Ou, então, fazendo rir, alto, a assistência aglomerada em torno, e composta de vaqueiros, de roceiros, de pequenos fazendeiros da vizinhan¬ça:
– Quanto me dão pelo cacho de bacuri?... É o cacho que está do lado esquerdo... Quanto me dão pelo cacho?...
Terminado o leilão, cujo produto reverte, invariavelmente, em pro¬veito da igreja mais próxima, ou de alguma obra de caridade, as violas e harmônicas entram, debaixo de palmas, para começo das danças.
Episa-se folha de mangueira, até de manhã.


IX

MACACOEIRA

OUTRA recordação amável, em que me aparece a imagem viva do meu pai, é a estação que fizemos em Macacoeira, nome bizarro que ficou, para sempre, ressoando na minha memória. A vida que aí levamos caracteriza, aliás, o seu espírito jovial e boêmio.
Macacoeira é uma ilha de que jamais encontrei menção na geografia maranhense. Lembro-me, entretanto, que era batida pelas ondas do mar alto, e que para lá fomos, a família toda, em um grande barco a vela. Não sei como foi a viagem ou o tempo consumido na travessia. Sei que, um dia, acordei lá. Aos cinco anos a vida é um sonho bom e largo, de que só nos fica a suave lembrança que ordinariamente nos deixam os sonhos.
A escolha de meu pai, que pretendia comprar a fazenda ali existen¬te, não podia ser mais extravagante nem, também, mais de acordo com o seu temperamento. Quando lá chegamos, as únicas benfeitorias existentes eram o curral e, em frente a este, um albergue de palha mas inteiramente aberto em redor. Em poucas horas, porém, os canoeiros o cercaram de pindoba, dividindo-o em três compartimentos: dois quartos de dormir e uma sala de jantar. Diante desta erguia-se um grande cajueiro marchetado de frutos, a cuja sombra se improvisou a cozinha. Duas rústicas trempes de pedra serviam de fogão, em que ferviam ao ar livre grandes panelas de peixe. Alouça era arrumada nos troncos das árvores. Eao menor balanço do vento marítimo os cajus despencavam dos ramos altos, sucedendo, às vezes, caírem diretamente nas panelas, como se a natureza tivesse prazer em nos dar, a nós, seus hóspedes, sem trabalho nosso, tudo que possuía.

Tinham ido conosco, a fim de alegrar ainda mais a vilegiatura, diver¬sas moças e meninas, para as quais tudo aquilo era novidade. Omar, que espumava à nossa vista, e que urrava mais alto do que os novilhos, ofere¬cia-nos peixe saboroso e gratuito; o curral, a poucos passos dele e de nós, dava-nos o leite e a coalhada. Ea mata, em torno, era um cajueiral imenso, em que os cajus eram tantos, e tão miúdos, que se tinha a impressão de que havia baixado sobre as frondes uma grande nuvem de vaga-lumes vermelhos. Tomava-se banho de mar, comia-se peixe apanhado na hora, e bebia-se leite, ainda espumante, na cuia tosca em que era mungido. À tar¬de, cada uma com o seu cesto de palha verde, que elas mesmas teciam, as moças se dispersavam pelo mato, em busca de cajus. Eestes eram tantos, e tão variados no gosto, que algumas, repleto o seu cabaz, o derramavam no chão, por terem encontrado outros mais doces e saborosos. Eo cajuí, o caju-menino, lindo como uma joia rubra ou amarela, e cuja castanha era pequenina como uma unha de criança recém-nascida, o cajuí, ele próprio, parecia contente de ser apanhado por mãos femininas, e de sentir-se mor¬dido por aquelas bocas frescas e jovens, e virgens, quase todas, do caju-veneno, que é o beijo... À noite, misturavam-se o cheiro da maresia e o perfume acre do cajual silvestre. Eos bois, monotonamente, num orgulho de cousa viva, respondiam ao mugido contínuo e cavernoso do mar...


Essa vida sem comodidade era, para meu pai, o maior dos encantos. Ele tinha horror, parece, à vulgaridade e aos exageros do método. Por isso mesmo, os dias passados em Macacoeira foram, talvez, dos mais felizes da sua existência ativa e rápida.
– Eu não conheço nada melhor no mundo – dizia ele à minha mãe, que me repetia às vezes esta sua opinião; – eu não conheço nada melhor no mundo do que um almoço em uma velha casa esburacada, diante do mar, e em que penetre o vento atirando ao prato punhados de areia da praia. Epara despertar mais o apetite, uma galinha de pintos ciscando e fazendo barulho debaixo da mesa.
Macacoeira oferecia-lhe tudo isso. Oconforto era nenhum. Só havia o que a natureza dava. O arroz, o açúcar, a farinha, o café, as provisões, enfim, que havíamos levado, estavam ao ar livre, em torno da casa. E, diante desse espetáculo, da completa desarrumação de tudo, em contraste com a vida ordeira e organizada da nossa casa da vila, meu pai rejuvenes¬cia, sentia-se feliz, e tomado, mesmo, de um contentamento alvoroçado e quase infantil.

Foi aí, por ocasião dessa estação de agoniado repouso, que eu pra¬tiquei uma das minhas peraltices mais remotas e inexplicáveis. Minha mãe havia levado preventivamente para aquele degredo que reteria Ulisses algumas dúzias de ovos, que ficaram acondicionados em um caixão de sal, atrás da casa. Eu descobri essa ninhada prodigiosa e fiz, com ela, o que não faria nenhum ovívoro truculento: quebrei-os, um a um, dentro do caixão, como se este fosse uma frigideira, e atirei fora as cascas. Ao dar com a depredação, minha mãe aplicou-me, naturalmente, a surra merecida. Oprazer de haver feito aquela maldade inconsciente foi, porém, tão intenso, que eu não tenho a menor ideia do castigo. Ficou-me, apenas, a lembrança do estrago.
Em compensação, trouxe de lá um ensinamento que me serviu, du¬rante algum tempo, de preventivo contra a gula. Sendo a nossa despensa ao ar livre, eu vivia sempre a rondar os sacos de bolacha, as latas de açúcar e os paneiros de farinha. Enchia o estômago e corria a beber água. Até que, um dia, um vaqueiro mostrou-me um couro de bode, espichado em umas varas, e contou-me a seguinte história:
– Este bode era um animal de estimação. Mas era doido por farinha d’água. Anteontem, apanhou um paneiro de farinha, e pôs-se a comer. Comeu até não poder mais. Quando acabou, marchou no rumo do riacho, e começou a beber. Aágua misturou-se com a farinha, e a farinha princi¬piou a inchar na barriga do bode... De repente, eu ouvi um estouro para o lado do riacho. Corri para ver, e tive pena. Era o bode que tinha estourado, partindo de cima a baixo o couro do bucho!
Olhei minha barriga esticada de cheia, e desatei num berreiro doido. Tinha comido farinha e bebido água, a manhã toda.
E fiquei apavorado, até à noite, à espera do estouro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário