sexta-feira, 6 de abril de 2018

ADALGISA NERY



Anseio
Quero que desça sobre mim a grande sombra que alivia,
Aquela que arranca do meu coração a revolta que me impede de ser mansa.
Quero descansar...
Quero encontrar aquele que é mais belo que o sol,
Que aumenta o meu sofrimento e que ajuda na minha redenção,
Que reparte suas angústias comigo para que lhe sirva de auxílio.
Quero ouvir a sua voz que é como a música dos mares,
Quero acolher-me na sua sombra e abraçar-me aos seus joelhos...
Quero descansar sem demora...
Quero chegar o tempo da minha última lágrima
ser recolhida dos meus olhos pisados e saudosos
Por aquele que é o molde dos poetas, o que se veste com as estrelas que meus olhos
ainda não vêem.
- Adalgisa Nery, in: Dom Casmurro, Rio de Janeiro, 19 ago. 1937, p. 2.


Aspiração
Antes que vingue outra esperança
Quero as sombras do branco espesso.
Antes que mais uma insônia se cumpra
Quero o torpor no abismo indecifrável
Do espírito amortalhado.
Antes que o pensamento acorde
E descubra os espaços petrificados,
Quero narcotizar-me sem sonhos
E deitar-me no mundo sem sombras,
Sem palavras nem gestos.
Antes que alguma crença me recolha,
Antes que eu entenda o obscuro,
Antes que o sensível me assalte,
Antes que eu distinga na lonjura
A morte da estrela cintilante,
O êxtase da solidão vertical,
Quero ser coisa sem motivo
Entregue aos ventos sem destino.
- Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973.


A paisagem de amanhã
Ânsia de paz de noites desertas,
Desejo de sentir o tranquilo positivo
Nas intenções indevassáveis,
Na voz acima de todos os sons,
Acima do estrondo universal da bomba fratricida.
Ânsia de repouso final
No exaspero de mãos unidas pelo medo,
Pânicos imprevistos
Calando todos os instantes, todas as idades,
Chorando o nosso jamais.
Olhos outrora amigos
Impercebem em pastoso sangue.
Que gerações sofridas surgirão
Na espessa aflição de tão grandes mares
De ódio, ambição, vingança
Agora vêm dos ossos à procura do sexo,
Fúria de possessão inexplicável
Invade o campo de alheias propriedades
Lavradas no crime
E plantadas por tiranas mãos,
Heróis do século repetindo o que os outros foram.
Energias, vidas, mocidades
Flutuando sem rumo nas glórias e nas medalhas
Da nação em queda vertical solo abaixo
Cérebros falidos comandando existências em floração,
Numerando interminável esteira
De vassalos de línguas arrancadas.
Braços sem dono, ventres desapropriados,
Espíritos transformados em detritos pestilentos
Alimentam o tétrico destino
Da técnica contra o homem.
As estradas já não pertencem aos pés mansos,
O veio da riqueza, em mãos feudais.
No paralelo de horizonte sombrio
Levanta-se o vulcão que derrubará presídios e asilos
Para criar o grande rio de mortos putrefatos.
Não haverá tropas guerreiras contra ninguém
Apenas climas não sentidos dentro de atmosferas mortas
Desprezadas pelo vento livre.
E no âmago do âmago
O pranto medroso da futura criança
Presa ao ventre da terra,
E a revolta do jovem mudo,
São figuras oscilando nas trevas da Criação.
No profundo dos tempos
A ordem técnica recua medrosa,
Ouve o grito severo
Trazido pelo ar que balançou os corpos enforcados.
No fim, o estupro de cada homem
Violentado pela técnica
Dos inventos de guerra.
Em torno de todas as mortes
A vida, em minúsculas centelhas,
Forçará as trevas
Que cobrem o homem eternamente insepulto.
- Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973.


A poesia se esfrega nos seres e nas cousas
Nunca sentiste uma força melodiosa
Cercando tudo o que teus olhos vêem,
um misto de tristeza numa paisagem grandiosa
Ou um grito de alegria na morte de um ser que queres bem?
Nunca sentiste nostalgia na essência das cousas perdidas
Deparando com um campo devoluto
Semelhante a uma viagem esquecida?
Num circo,nunca se apoderou de ti um amargor sutil
Vendo animais amestrados 
E logo depois te mostrarem 
Seres humanos imitando um réptil?
Nunca reparaste na beleza de uma estrada
Cortando as carnes do solo
Para unir carinhosamente
Todos os homens, de um a outro pólo?
Nunca te empolgaste diante de um avião,
Olhando uma locomotiva, a quilha de um navio,
Ou de qualquer outra invenção?
Nunca sentiste esta força que te envolve desde o brilho do dia
Ao mistério da noite,
Na extensão da tua dor
E na delícia da tua alegria?
Pois então, faz de teus olhos o cume da mais alta montanha
Para que vejas com toda a amplitude
A grandeza infindável da poesia que não percebes

E que é tamanha!
- Adalgisa Nery, in: Mundos Oscilantes, 1962.


A razão de eu me gostar
Eu gosto da minha forma no mundo
Porque representa uma fagulha,
Porque mostra um instante doce e perverso
Da ideia, do gesto e da realização
De Deus no Universo.
Eu gosto dos erros que pratico
Porque vejo a pureza colocada na minha essência
Desde o Início
Lutar contra todo o mal que em mim existe
E ser tão maior, que sobre a minha miséria
Ela ainda persiste
Eu gosto de espiar
O meu olho direito
Ver o esquerdo chorar,
De sentir a minha garganta se enrolar de dor
Porque em troca de tanta cousa dolorosa
Ele construiu em mim uma cousa gloriosa,
Que é o amor.
- Adalgisa Nery, in: A Mulher Ausente, 1946.


A rota
O mundo pulveriza-nos sem revelar
Seus intuitos secretos.
A vida é contemplá-los nos seus gestos mais sutis
E sentir nas águas profundas
O que de cada destino foi escrito
Nos penhascos dos mares agitados.
No vácuo do espírito
Anda a forma sem direção
Por caminhos já pisados
E inseguros são os passos repetidos.
Nem sempre o olhar mais aberto
À procura da estrada de nós mesmos
Torna o espírito mais desperto.
Vivemos nos penhascos dos mares agitados.
- Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973.


A essência imutável
Entre a estrela e o átomo
A matéria viva estabelece o traço original.
A fotossíntese realiza a assimilação
Da energia solar do homem,
Mecanismo-alimento da força biológica
Existente no grão de luz que ronda o corpo inanimado
Vindo da semente viajante dos ventos programados.
Cubos-pedra lançam o elétron
De uma órbita a outra dos planetas tranquilos
E voltam à origem do cansaço.
Desencadeia-se o calor que mata,
O mecanismo complica-se,
O elétron muda de órbita
E a sua volta é seguida de reações em cadeia
Para aniquilar o homem caminhante
Das estradas indecisas.
As múltiplas diferenças de forças
Convocam a origem da vida em cada rumo da poeira ardida
Enquanto a procissão do grande mecanismo
Mostra em todos os níveis, em todas as gamas da existência,
A sua ativa regulagem
Que ainda é mistério para o homem aniquilado
Pela surpresa do nada saber
Além das suas carnes esfarrapadas pela infinita agonia.
- Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973.


Abandono
A exaustão faminta 
Procura elementos ainda vivos no meu ser 
Talvez guardados em escuros vácuos 
Que carrego sem saber. 
Alimenta-se do sopro das imagens 
Desenhadas pela minha imaginação 
Pelo tato dos meus sentimentos, 
Pelo pânico do desconhecido. 
Aparece como febre constante dilatando as minhas carnes 
Descoloridas e sem sabor de vida. 
A exaustão sobe pelos meus pés, 
Cobre os meus gestos incipientes, 
Prende a minha língua, 
Suga o meu cérebro, ninho de aranhas em fogo, 
Pousa no meu cabelo como morcego. 
Exaustão que funga o ar, que saqueia o meu silêncio, 
Último repouso nos meus vácuos devassados. 
- Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973.


Cantiga de ninar
Repousa. Descansa. Virá um dia um vento
Que arrancará a tua balançada alma do teu corpo
E jogará a tua balançada alma do tempo.
Que levará teus braços para as nuvens distantes
E deixará tranqüila tua orelha
À borda das águas cantantes.
Um vento suave como a caricia de uma doce mão
Que se envolverá no brilho dos teus cabelos
Que descerá desde o teu cérebro
Até o fundo do teu amargurado coração.
Cairá sobre ti, como a noite sobre a mata e sobre as flores
Desdobrará as formas dormidas
Deitar-se-á sobre teus sentidos
E estancará tuas dores.
Um vento que levará para a eterna distância
Os dolorosos solavancos de teu espírito
E os pedaços melancólicos de tua infância.
Repousa. Descansa. Aconchega no sono teus pensamentos
Que este vento chegará, não falta muito
Transformará em luz a tua treva,
Dentro de rapidíssimos momentos.
- Adalgisa Nery, in: Mundos Oscilantes, 1962.

Adalgisa Nery, por Ismael Nery
 (década 30)
Canção para dentro
A canção do corpo é cantada para dentro
E a leveza da alegria se transmuda em peso,
A brisa adere aos amargos pensamentos
Fluindo no sorriso compassivo.
Logo,
Surgindo de células desamadas
Os matizes áureos anoitecem,
Pálpebras levantadas vão caindo
E nesgas apenas vislumbramos,
Geografias em nós morrendo,
Oceanos crescendo, ilhas sumindo,
Rosas nascendo na canção
Que o corpo canta para dentro.
- Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973.


Cemitério Adalgisa
Moram em mim 
Fundos de mares, estrelas-d′alva, 
Ilhas, esqueletos de animais, 
Nuvens que não couberam no céu, 
Razões mortas, perdões, condenações, 
Gestos de amparo incompleto, 
O desejo do meu sexo 
E a vontade de atingir a perfeição. 
Adolescências cortadas, velhices demoradas, 
Os braços de Abel e as pernas de Caim. 
Sinto que não moro. 
Sou morada pelas coisas como a terra das sepulturas 
É habitada pelos corpos. 
Moram em mim 
Gerações, alegrias em embrião, 
Vagos pensamentos de perdão. 
Como na terra das sepulturas 
Mora em mim o fruto podre, 
Que a semente fecunda repetindo a vida 
No sereno ritmo da Origem. Vida e morte, 
Terra e céu, Podridão, germinação, 
Destruição e criação. 
- Adalgisa Nery, in: Poemas, 1937. 



Eterno tédio
Muitas vezes esgotando o meu destino
Com o olhar em pranto
E o coração pungente como um dobrar de sino,
Ouço ruídos seculares que unem como um canto,
Crescendo de intensidade,
Mergulhando os meus sentidos
Na maior profundidade!
Muitas vezes, considerando a vida
Com desumana indiferença,
Por toda a esperança perdida,
Pelo abrir de um riso, por todo o bem, por toda a crença,
Sinto o meu viver humilhado,
Vejo o meu nada quase demasiado,
Que nem chega a ser pecado.
E o tédio em toda a amplidão
Cai sobre mim.
- Adalgisa Nery, in: Revista Atlântico – Revista Luso-brasileira, n 1, Primavera de 1942.


Escultura
Eu já te amava pelas fotografias.
Pelo teu ar triste e decadente dos vencidos,
Pelo teu olhar vago e incerto
Como o dos que não pararam no riso e na alegria.
Te amava por todos os teus complexos de derrota,
Pelo teu jeito contrastando com a glória dos atletas
E até pela indecisão dos teus gestos sem pressa.
Te falei um dia fora da fotografia
Te amei com a mesma ternura
Que há num carinho rodeado de silêncio
E não sentiste quantas vezes
Minhas mãos usaram meu pensamento,
Afagando teus cabelos num êxtase imenso.
E assim te amo, vendo em tua forma e teu olhar
Toda uma existência trabalhada pela força e pela angústia
Que a verdade da vida sempre pede
E que interminavelmente tens que dar!...
- Adalgisa Nery, in: Mulher Ausente, 1940.
  

Eu em ti
Desejaria estar contigo quando eras no pensamento de Deus,
Quando tua mãe te concebeu e te alimentou com sua vida,
Desejaria estar contigo na primeira vez que distinguiste as formas,
[as cores e os sons,
Na tua primeira lágrima eu quisera estar contigo e assim na tua
[primeira alegria,
Desejaria estar contigo na tua infância e na tua adolescência,
[acompanhando as transformações do teu físico.
Ao teu lado desejaria estar quando, do teu corpo, constataste as
[primeiras células reprodutoras.
No teu primeiro pudor e no teu primeiro carinho eu quisera estar
[a teu lado,
Desejaria estar contigo na noite de tuas núpcias e no momento em
[que te uniste a outra mulher com o
[pensamento no teu primeiro filho.
Desejaria estar contigo no primeiro vestígio de tua velhice
E ainda desejaria estar contigo no momento da separação de
[tua alma,
Na decomposição de tuas carnes, do teu cérebro, de tua boca,
[do teu sexo,
Para poder continuar contigo, no mundo sem espaço e sem tempo.
- Adalgisa Nery, in: Mundos oscilantes, 1962, p.9.


Fantasmas
Lívidos fantasmas deslizam nas horas perdidas 
Chegam à minha alma 
E como sombras da noite 
Levantam os meus ímpetos mortos 
Desatando as ligaduras do tempo. 
O luar da madrugada fria cai no meu rosto 
E ilumina com branda amargura 
O meu espírito que espera a hora insolúvel. 
Os caminhos cobrem-se de homens que dormem na morte 
E cresce no meu coração um desejo incontido 
Para uma união mais forte, mais intensa e mais perfeita. 
A minha pupila é banhada pela enorme lágrima 
Que umedecerá o solo castigado. 
A lágrima que levará ternura às existências sofridas, 
A lágrima que se mudará em sangue, 
Que levantará a vida morta do universo! 
- Adalgisa Nery, in: Cantos da Angústia, 1948.


Instante
O espanto abriu meu pensamento
Com idioma vindo do delírio,
Dos receios indefesos, dos louvores sem raízes,
No perdão oferecido sem razão.
O espanto abriu meu pensamento
Na noite carregada de lamentos
Em linguagem universal
Fluindo do eco perdido
Com passos de presságio amanhecendo.
Corpos florindo na pele da terra
Acendendo vida nas rosas e nos vermes,
Aumentando a potência do limo,
Preparando a primavera nos campos,
Ventres irrigando secas raízes,
Cogumelos róseos crescendo
Na umidade das faces.
Coagulação de prantos na semente
Das constelações adivinhadas.
E no faminto inconsciente, o tempo
Sorvendo com fúria o seu sustento
No insondável silêncio de mim mesma.
- Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973.
  

Mistérios
Há vozes dentro da noite que clamam por mim,
Há vozes nas fontes que gritam meu nome.
Minha alma distende seus ouvidos
E minha memória desce aos abismos escuros
Procurando quem chama.
Há vozes que correm nos ventos clamando por mim.
Há vozes debaixo das pedras que gemem meu nome
E eu olho para as árvores tranqüilas
E para as montanhas impassíveis
Procurando quem chama.
Há vozes na boca das rosas cantando meu nome
E as ondas batem nas praias
Deixando exaustas um grito por mim
E meus olhos caem na lembrança do paraíso
Para saber quem chama.
Há vozes nos corpos sem vida,
Há vozes no meu caminhar,
Há vozes no sono de meus filhos
E meu pensamento como um relâmpago risca
O limite da minha existência
Na ânsia de saber quem grita.
- Adalgisa Nery, in: Cantos da Angústia, 1948.


Mulher
Retrato de Adalgisa , por Ismael Nery, 1924.
[Coleção Particular]
Na face, a geografia da angústia,
Dos pânicos e das medrosas alegrias.
Cada ruga é um presságio.
E auréola da aflição constante
O esplendor dos cabelos brancos.

Uma só raiz para frutos diversos,
Uma só vida para destinos tão complexos,
Um só pranto para dores tão diversas.

O útero que gera o herói, o sábio, o poeta,
O santo, o miserável e o assassino.
Uma só raiz para frutos tão diversos!

O dom da paz em cada gesto
Cai como noites quietas
Sobre a alma em rancor,
Amor acima do amor.
- Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973.



Nostalgia do impreciso
Ao fechar de olhos para o sono
Aromas de pânico e de dores,
Aromas de errantes chuvas
Transportando montanhas, vales,
Atravessando ventos,
Pousando em instantes tão diversos,
Chamando medos
E exílios de vontades.
Aromas vasculhando a vida,
Engendrando noites no vazio,
Escapando de raízes em tumulto,
De pedras milenares em silêncio,
E de símbolos sem forma
Nascidos de pensamentos mutilados.
Aromas de carne e flor,
De chão e fonte,
De gestos tatuados no espaço,
De galeras rumo ao centro-mar
Em busca de estrelas excedentes
Aromas de grão e de criança
Cobrindo as coisas repetidas,
Fazendo-se pólen no infinito virgem.
Aroma-plasma de invitações
Ao canto, à flor, ao pranto,
Ao entrelaçamento de mãos desprotegidas
No temor de quedas sinuosas.
Ao fechar de olhos para o sono
Aromas de mistério,
Fracas luzes se abrindo
No mundo de silêncios e de símbolos
Dando vida à vida que vai fugindo.
- Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973.


O país do poeta
A paisagem tem cores do avêsso
E as estrelas sobem pelas montanhas como veias
Aguando um seio de mulher.
As quatro línguas do vento
Conversam sobre o amor, o ódio, a vida e a morte.
Os arcanjos cruzam o firmamento de lado a lado,
Os pássaros soluçam como inconsoláveis viúvas.
Os peixes cantam como rouxinóis nas ramas floridas.
Um sirena lamenta-se no corte da noite
E o ruído de possantes motores trepidam o eixo universal
Como o nascimento de um vulcão.
As flores dos jardins cercados são orvalhadas como lágrimas inocentes

E da lua de São Jorge montado no seu cavalo branco
Para velar os mortos e os desesperados.
Um sentimento de pureza sobre o olhar dos arrependidos,
As mães alimentam seus filhos com flores,
Os amantes realizam a interpenetração das almas
E seus corações caem no chão como punhados de cinza.
A tragédia vive entre a boca dos velhos e o olhar do recém-nascido
E o choro do que um dia será assassino é ouvido ao ventre da noite.

O poeta escreve poemas no solo
E a terra grávida recompensa com flores, frutos e nascentes.
Na hora da penumbra abre-se uma grande boca no firmamento
Dizendo sobre o juízo final.
Sob a luz da lua o poeta colhe os lírios entreabertos
E sai guarnecendo sepulturas de noivas ignoradas.
Um resplandecente globo ocular
Desce sobre a paisagem
E procura encontra a Amada e a Morte.
- Adalgisa Nery, in: Mundos Oscilantes, 1962.


Paisagem
Restam nos meus olhos
Séculos de planícies áridas
E o vento ríspido que trouxe as lamentações
Das sombras agitadas
Sobre os pântanos desconhecidos
Distantes estão os caminhos
Onde eu encontraria a suprema fraqueza
Para vergar os meus joelhos
E deitar no pó a minha boca moribunda
Invisíveis estão as estrelas
Que me levariam a contemplar os céus abençoados.
E só espaços sem medida
Onde a música da noite
É livre sobre os pensamentos em sono.
Desconhecida para mim a praia onde eu me deitaria
De olhos cerrados e sentiria
O último movimento da onda
Balançar os meus pés
Como as algas sem direção.
Como os detritos rejeitados pela pureza do mar.
Restam dentro da minha sombra
Fragmentos de agitações de outras vidas
Plantadas no meu grito de revolta
Que eu não libertarei
Até que no deserto universal
A flor de um cardo movimente
A paisagem silenciosa.
- Adalgisa Nery, in: Cantos da Angústia, 1948.


Poema da amante
Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.

Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita do tempo
Até a região onde os silêncios moram.

Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.

Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
Em tudo que ainda estás ausente.

Eu te amo
Desde a criação das águas,
desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.

Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.
- Adalgisa Nery, in: Mundos Oscilantes, 1962.


Poema de amor
Ouve-me com teus olhos
Porque minha queixa é muda.
Acaricia-me com teu pensamento
Porque meu corpo está imóvel.
Beija-me com tuas mãos
Porque minha boca te espera.
Fala-me com o silêncio dos momentos de amor
Porque os ouvidos da minha vida
Se abrirão como as flores

Na úmida e infinita madrugada.
- Adalgisa Nery, in: Mundos Oscilantes, 1962.


Poema essencialista
Sinto o conteúdo da existência.
Procuro ultrapassá-lo com enorme exaltação poética,
Rompo as grades do mundo com o espetáculo das formas,
Dos sons e das cores.
Tudo me afoga em nostalgia de outras eras,
De outras vidas que cristalizaram
As tendências da minha infância.
A utilização das coisas plásticas
Altera o equilíbrio da visão.
Distribuo pelos quatro cantos do meu espírito
A essência imortal.
Fragmento seguidamente o meu interior
Fazendo doações físicas.
Dentro do meu limite há montões de estrelas apagadas,
Pensamentos que não andaram
Senão com o sopro de Deus.
Quero destruir para tentar construir.
A criação vive no ângulo do meu cérebro
Mas sei que serei vencida
Pela limitação das realizações humanas.
- Adalgisa Nery, in: Mundos Oscilantes, 1962.


Poema natural
Abro os olhos, não vi nada 
Fecho os olhos, já vi tudo. 
O meu mundo é muito grande 
E tudo que penso acontece. 
Aquela nuvem lá em cima? 
Eu estou lá, 
Ela sou eu. 
Ontem com aquele calor 
Eu subi, me condensei 
E, se o calor aumentar, choverá e cairei. 
Abro os olhos, vejo um mar, 
Fecho os olhos e já sei. 
Aquela alga boiando, à procura de uma pedra? 
Eu estou lá, 
Ela sou eu. 
Cansei do fundo do mar, subi, me desamparei. 
Quando a maré baixar, na areia secarei, 
Mais tarde em pó tomarei. 
Abro os olhos novamente 
E vejo a grande montanha, 
Fecho os olhos e comento: 
Aquela pedra dormindo, parada dentro do tempo, 
Recebendo sol e chuva, desmanchando-se ao vento? 
Eu estou lá, 
Ela sou eu. 
- Adalgisa Nery, in: Poemas, 1937. 



Poema simples
Deixa-me recolher as rosas que estão morrendo nos jardins da noite,
Deixa-me recolher o fruto antes que este volva as raízes da terra,
Deixa-me recolher a estrela úmida
Antes que sua luz desapareça na madrugada,
Deixa-me recolher a tristeza da alma
Antes que a lágrima banhe a pálpebra
Do órfão abandonado e faminto,
Deixa-me recolher a ternura parada
No coração da mulher que desejou ser mãe.
Deixa-me recolher a esperança dos que acreditam,
Recolher o que ainda não passou
E mais do que tudo dá-me a recolher
A palavra de amor e de doçura para que reparta
Com os ouvidos que esperam como uma gota de mel
Caindo na alma e no coração,
Como a única luz dentro de tanta escuridão.
- Adalgisa Nery, in: Mundos Oscilantes, 1962.


Repouso
Dá-me tua mão 
E eu te levarei aos campos musicados pela canção das colheitas 
Cheguemos antes que os pássaros nos disputem os frutos, 
Antes que os insetos se alimentem das folhas entreabertas. 
Dá-me tua mão 
E eu te levarei a gozar a alegria do solo agradecido, 
Te darei por leito a terra amiga 
E repousarei tua cabeça envelhecida 
Na relva silenciosa dos campos. 
Nada te perguntarei, 
Apenas ouvirás o cantar das águas adolescentes 
E as palavras do meu olhar sobre tua face muito amada. 
- Adalgisa Nery, in: As Fronteiras da Quarta Dimensão, 1951. 


Silêncio
Nas mãos inquietas
Cansadas esperanças
Tateando formas na luz ausente,
Nos olhos embrumados
A viva cruz do alívio,
Na boca imobilizada
A palavra amortalhada.
E à tona da fugaz realidade
O mistério das surpresas superadas.
Paisagem de espaços, e fantasmas
Ordenam não falar, não morrer,
Ouvir sem conduzir o pensamento,
Viver os vazios lúcidos
Entre a palavra e o som
Do coração a bater.
Resta apenas a flutuação ociosa
Livre das coisas da memória, da discordância
Das idéias obsessivas
Que escondidas estavam
Como fantásticos tesouros
Em frágeis e indefesas mãos.
- Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973.


Adalgisa Nery, por Ismael Nery, 1928
Solidão
O espírito da tempestade que executa a minha palavra
Partiu
E minha forma assim abandonada
Caiu.
Vieram depois a aflição e a agonia
E cresceram em mim
Como a aurora e o dia.
E se eu quisesse contar, homens irmãos,
Desde quando meu coração está isento de alegria,
Acreditem,
Não poderia.
Há muitos séculos mora em mim
Uma noite muito escura, muito fria.
- Adalgisa Nery, in: Mundos Oscilantes, 1962.


Ternura
Antes que eu me transforme em água
E corra com os rios
Cantando para as florestas escuras
A canção sublime
Deixa-me contemplar tua face amada
Para que a canção se eternize.
Antes que os meus olhos se transformem
nos minúsculos vermes
Que movimentam o solo
Deixa-me receber a luz de tua boca
Para que eu me ilumine como as estrelas
No infinito da noite.
Antes que minhas mãos se mudem nas pedras das montanhas
Por onde caminharão os jovens pastores
Deixa-me afagar teus cabelos
Para que meu carinho se transforme na brisa
Que beija os grandes trigais.
Antes que minha forma sirva junto às raízes
Para amadurecer os frutos
Guarda-me na música de teu corpo
Para que o mistério do amor
Baixe sobre o universo
E banhe os espíritos perturbados.
- Adalgisa Nery, in: Mundos Oscilantes, 1962.


Vivência
Começamos a viver
Quando saímos do sono da existência,
Quando as distâncias se alongam nas partículas do corpo.
Começamos a viver
Quando confusos e sem consolo
Não sentimos os traços do irmão perdido.
Quando antes da força
Surge a sombra do insignificante.
Quando o sono é transformado em sonhos superados,
Quando o existir não é contradição.
Começamos a viver
Quando percebemos a mutação das células,
Quando fugimos de dentro de nós mesmos
E escondemos a nossa carne num caramujo oco.
Quando o espírito falsificado esquece
As tortuosas estradas
E quando deixamos de ser escaravelhos laboriosos.
Começamos a viver
Quando velamos além do sono
A vida irreal dos nossos passos.
- Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973.

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